O Caos rua lá embaixo. O governo já tinha avisado à população que os quebra-mares não iam mais...

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JUNHO DE 2026

ADAM

inda está amanhecendo quando batem à porta.

– Abram! Abram! Temos uma Ordem de evacuação para esses

apartamentos. Atenção! Todo mundo fora em cinco minutos.

Cinco minutos, entendido?

Eu os escuto avançando pelo corredor, batendo nas portas, repetindo as

mesmas instruções várias e várias vezes. Passei a noite toda acordado, ao

contrário da minha avó, que acabou cochilando na poltrona e agora está

assustada e resmungando.

– Minha Nossa Senhora, Adam. Mas que horas são?

Enquanto ela fala, fico reparando em seu rosto abatido e cheio de rugas,

um rosto envelhecido – com certeza, velho demais para o cabelo roxo.

– São seis e meia, vó. Eles vieram.

Ela lança para mim um daqueles olhares penetrantes, mas desta vez, ao

contrário de me hipnotizar, tudo o que ela consegue é revelar o seu próprio

cansaço e a sua apreensão com a minha possível reação.

– Então é isso – ela diz, de forma cautelosa. – Melhor você pegar logo

suas coisas.

Olhando de volta para ela, só consigo pensar: Não vou pra lugar

nenhum. Não com você.

Nós já estávamos esperando que alguém viesse nos buscar. Ficamos

isolados no apartamento por quatro dias, olhando o nível da água subindo

A

na rua lá embaixo. O governo já tinha avisado à população que os quebra-

mares não iam mais dar conta. Eles tinham sido construídos há muitos anos,

bem antes do nível do mar começar a aumentar, e já não conseguiriam

suportar mais uma tempestade, ainda mais em época de maré alta.

No começo, achávamos que a água viria e depois de um tempo iria

embora, só que ela veio e não foi mais.

– Deve ter sido assim que Veneza ficou antes de sumir do mapa –

minha avó disse, em um tom triste, no primeiro dia, antes de jogar o cigarro

que fumava pela janela. Fiquei olhando a bituca boiar devagar pela rua, na

direção em que a calçada costumava ficar. Antes mesmo que a bituca

sumisse da nossa vista, minha avó já estava acendendo outro cigarro.

A eletricidade foi cortada na primeira noite e depois foi a vez da água,

que começou a cair marrom das torneiras. No dia seguinte, as primeiras

pessoas apareceram em barcos, gritando em megafones para não bebermos

aquela água e avisando que logo nos trariam alguma comida e água limpa.

Mas é claro que ninguém trouxe porcaria nenhuma. Fomos obrigados a nos

virar com o que já tínhamos, só que sem torradeira nem micro-ondas, e com

as coisas estragando na geladeira. Depois de mais ou menos vinte horas, nós já estávamos

oficialmente passando fome. Tive certeza de que as coisas estavam indo mal quando vi minha avó abrindo

seu último maço de cigarros.

– Quando este aqui acabar, nós já vamos estar fora desse lugar, meu

filho. Pode ter certeza disso, é a sua avó quem está falando – ela me disse,

tentando disfarçar o nervosismo e passar alguma esperança, enquanto

acendia o primeiro dos seus vinte últimos cigarros.

– Daqui eu não saio – respondi, enquanto ela se levantava da poltrona.

Como eu poderia abandonar a minha casa? Era tudo o que sobrou da minha

mãe.

– Nós não podemos ficar aqui, querido. Não do jeito que está.

– Não vou. Ponto final. Você pode dar o fora daqui e voltar pra

Londres se preferir. Afinal, não era isso mesmo o que você queria desde o

começo?

E isso é verdade. Minha avó nunca se sentiu à vontade aqui. Ela veio

por causa da doença da minha mãe e acabou ficando de vez para tomar

conta de mim, mas nunca fez questão de esconder que se sentia como um

peixe fora d‟água. É incrível, mas o ar do litoral a faz tossir. O céu aberto e

brilhante – bem diferente do eterno cinza do céu de Londres – é demais

para os seus olhos. Se por acaso você a encontrasse andando na rua, pode

ter certeza que ela estaria com os olhos espremidos, quase fechados, ansiosa

para voltar para casa o mais rápido possível e poder, finalmente, se esconder

em um canto escuro, como uma barata.

– Olhe bem como você fala comigo, seu menino malcriado – ela

respondeu. – E trate logo de arrumar suas coisas. Cedo ou tarde alguém

aparece para nos resgatar.

– Você não manda em mim. Você não é minha mãe, tá escutando? Não

vou arrumar merda nenhuma. – E não arrumei.

E agora temos só cinco minutos para pegar o que conseguirmos levar.

Minha avó começa a enfiar mais algumas das suas coisas em um saco de

lixo. Apressada, ela desaparece dentro do quarto e depois volta carregada de

roupas e com uma caixa de madeira embaixo do braço. É estranho vê-la se

mover pelo apartamento com tanta rapidez. Me sinto bem diferente dela, o

pânico está crescendo dentro de mim. Não posso ir embora dessa forma.

Não estou pronto. Isso não é justo.

Sem pensar duas vezes, vou até a cozinha, pego uma das cadeiras e a

apoio na maçaneta da porta. Mas isso não parece ser o bastante, então

começo a construir uma barricada, amontoando ali tudo o que encontro

pela frente. Primeiro, empurro o sofá e o encosto na porta, depois coloco a

cadeira da cozinha em cima do sofá e, por último, a mesinha do café. Em

poucos segundos, estou ofegante e suando sem parar.

– Adam, que diabos você está fazendo?

Minha avó me agarra pelo braço, tentando impedir-me: suas unhas

longas e amareladas quase rasgam minha pele. Eu sacudo o braço e consigo

afastá-la.

– Sai dessa, vó. Eu não vou. Pode se conformar.

– Não seja estúpido, menino. Pare de perder tempo e vá pegar suas

coisas. Você vai precisar delas.

– Eu não estou nem aí para isso.

– Adam, você não é um ignorante. – Ela me agarra novamente, nesse

momento batem à porta mais uma vez.

– Abram a porta, agora! O tempo acabou.

Eu congelo, olhando para a minha avó. Seus olhos me mostram seu

número: 2022054. Ela ainda tem mais uns trinta anos. É difícil de acreditar;

parece mais que ela pode bater as botas a qualquer momento.

– Abram agora!

– Adam, pelo amor de Deus...

– Não, vó!

– Afastem-se da porta! Atenção, não se aproximem! – gritei.

– Adam...

Primeiro, eles acertam a fechadura com uma marretada e depois

começam a bater direto na porta, que logo fica toda destruída. No corredor,

estão dois soldados: um segurando a marreta e outro empunhando uma

arma. Ela está apontada direto para o apartamento, em nossa direção.

Rapidamente, eles passam a vista por todo o lugar.

– Muito bem, senhora – o cara com a arma começa a falar. – Tenho

que lhe pedir para remover esta barreira e deixar o prédio conosco.

Minha avó concordou com a cabeça.

– Adam – ela olhou para mim. – Faça-me o favor de arrastar esse sofá

para podermos sair.

Eu olho direto para a ponta do rifle parado em nossa direção. Não

consigo tirar os olhos dele. Fico hipnotizado pela ideia de que, de uma hora

para outra, tudo pode acabar; é só o gatilho se mover. Basta eu fazer um

movimento inesperado e pronto. Se for a minha hora, se for meu dia de

partir, vai ser assim. Qual será o meu número? Será que é hoje?

O cano do rifle é brilhante e parece estar apontando exatamente para

mim. Será que vou conseguir ver a bala saindo por ali? Vai sair alguma

fumaça antes, algo que me avise que agora não tem mais jeito?

– Caiam fora! – eu grito, apavorado. – Peguem essas merdas de armas e

caiam fora daqui, agora.

E então tudo acontece muito rápido. O soldado que está com a marreta

jogou-a no chão, deu uma trombada no sofá e entrou no apartamento,

seguido pelo cara com a arma, enquanto, ao mesmo tempo, minha avó me

acertou um tapa na cara com vontade.

– Escuta aqui, seu pirralho – ela disse brava –, eu prometi à sua mãe

que ia tomar conta de você, e é isso que vou fazer. Sou a sua avó e você vai

fazer o que eu mandar! Agora acabou a brincadeira, estamos entendidos? A

gente vai embora daqui e não tem mais discussão. E vê se controla essa

merda de boca. Eu já disse que não quero mais te escutar falando palavrão!

Meu rosto está latejando, mas ainda não estou pronto para desistir. Eu

estou furioso. Esta é a minha casa. Eles não podem simplesmente me tirar da

minha casa à força, podem?

Pode acreditar que sim.

Os soldados me agarram pelos braços, um de cada lado, e me

carregaram para fora. Eu bem que tento resistir, mas eles são fortes e ainda

por cima estão em dois. É tudo muito rápido. Antes que eu perceba, já

atravessei o corredor e estou descendo a escada de incêndio, e em poucos

segundos já estou sentado no bote inflável que estava do lado de fora nos

esperando. Minha avó fica ao meu lado, com o saco de lixo entre as pernas

e o braço ao redor do meu ombro. E assim vamos embora, boiando devagar

pelas ruas cheias de água.

– Tudo bem, Adam – ela diz. – Sei que você está com medo, mas vai

dar tudo certo, você vai ver.

Algumas das pessoas que estão no bote choram baixinho. A maior

parte, no entanto, tem uma expressão vazia no rosto. Eu ainda estou com

muita raiva e me sentindo humilhado com tudo isso. Simplesmente não

consigo entender o que acaba de acontecer.

Então me toco que, para piorar, não estou levando nada das minhas

coisas. Não estou nem com o meu caderno! Uma nova onda de pânico toma

conta de mim. Não vai ter jeito, vou ter que descer do bote e voltar. Não

tem como eu partir sem o meu caderno. Mas onde será que ele está, afinal

de contas? Quando será que eu o abri pela última vez? De repente, percebo

alguma coisa dura espetando a minha coxa e coloco a mão no bolso. Ufa!

Ele está lá. Eu não tinha largado em lugar algum, ele estava comigo o tempo

todo, como sempre.

Finalmente, consigo relaxar um pouco. E só então é que a ficha cai:

estamos mesmo indo embora. Vamos abandonar Weston de vez. Pode ser

que eu nunca mais veja o nosso apartamento de novo.

Agora estou com um nó na garganta. Tento engolir seco, mas não dá.

As lágrimas ameaçam começar a cair. O soldado que está no comando do

bote não para de olhar para mim. Eu não vou chorar; não na frente dele, da

minha avó e de toda essa gente. Não vou dar esse gostinho a ninguém. A

primeira coisa que me passa pela cabeça é cravar as unhas nas costas da

minha mão, com toda a força. Mas as lágrimas continuam lá, prontas para

começar a cair pelo meu rosto. Eu enterro as unhas ainda mais fundo e,

então, a dor me distrai. Não vou chorar. Não vou chorar. Não vou mesmo.

No centro de distribuição dos desabrigados, ficamos em pé, esperando em

uma droga de fila, para fazerem o nosso registro. Há uma fila diferente para

quem tem para onde ir e outra para quem não tem. Para piorar, eu e minha

avó não temos um chip de identificação, então somos obrigados a

apresentar os cartões de identidade e preencher um monte de formulários

para conseguirmos transporte para Londres. Quando acabamos, eles grudam

um pedaço de papel com um número em nossos casacos, como se nós

fôssemos participantes de uma maratona ou algo assim, depois nos levam

para um salão e nos deixam lá, esperando novamente.

Pelo menos aqui eles estão distribuindo comida quentinha e água. Isso é

sinônimo de uma nova fila para enfrentar. Conforme ela vai andando e

nossa vez vai se aproximando, eu sinto o cheiro da comida e minha boca

saliva mais e mais. Só tem mais quatro pessoas na nossa frente, quando um

soldado entra no salão e começa a gritar um monte de números, dentre eles,

os nossos. O ônibus está esperando. Temos que ir imediatamente.

Só que eu estou com muita fome! Não tenho condições físicas para

partir sem pegar nada para comer.

– Com licença – digo para as pessoas da fila –, será que eu poderia

passar na frente de vocês? É que o meu ônibus já está aí.

Nenhuma reação, é claro. Todo mundo fingindo que não escutou.

Tento mais uma vez, enquanto o soldado repete os números. Nada.

Estou desesperado. Dou um passo à frente e enfio a mão no espaço entre

duas pessoas, tateando cegamente a mesa. Meus dedos encontram alguma

coisa – parece uma torrada. Eu a agarro ansioso, mas antes que possa puxá-

la, alguém me segura pelo punho e me puxa com força.

– Há uma fila aqui, mocinho – ele diz com firmeza. – Somos ingleses. E

os ingleses sabem como respeitar uma fila.

– Desculpe-me, senhor. É para a minha avó. Ela está morta de fome e

temos que partir agora.

Olho para cima e encaro o homem que está me segurando. Um cara de

meia-idade, com uns cinquenta anos, mais ou menos. Cabelo grisalho e uma

expressão fechada. Dá para ver que ele está mesmo exausto, mas não é isso

que me impressiona, e sim o seu número: 112027. Só mais seis meses de

vida. Vejo um flash da sua morte também, e ela é violenta: uma pancada

na cabeça, sangue, miolos espalhados...

Largo a torrada no prato, querendo ir embora. O homem solta o meu

pulso. Ele deve ter simpatizado comigo, pois sua expressão fica mais suave e,

antes que eu vire as costas, ele pega a torrada novamente e a passa para

mim.

– Leve para a sua avó, garoto – ele diz, quase sorrindo. – Agora vá.

Você não quer perder o ônibus, quer?

– Muito obrigado – digo baixinho.

A vontade é de enfiar tudo na boca de uma vez só, mas o homem está

me observando e minha avó também: então carrego a torrada até o lado de

fora e, quando já estamos dentro do ônibus, eu a entrego à minha avó. Ela a

divide no meio e me devolve um dos pedaços. Nós não dizemos nada. Eu

acabo com a minha metade rapidinho, enquanto a minha avó saboreia a

dela bem devagar, fazendo com que dure até estarmos fora da cidade, na

rodovia, rumo a Londres. A estrada é uma faixa mais alta de asfalto cercada

de campos inundados dos dois lados. O sol, que finalmente saiu,

transformou a superfície da água em uma lâmina prateada, tão brilhante que

fica difícil de olhar.

– Vó – eu digo, para quebrar o gelo –, e se o mundo inteiro afundar? O

que a gente vai fazer?

Ela limpa uma mancha de manteiga no canto da boca com o dedo e

depois o lambe.

– Nós construímos uma arca e convidamos todos os animais. Não é isso

que deve ser feito, querido? – Ela dá uma risada e depois segura a minha

mão. As costas dela ainda estão vermelhas e marcadas com o formato das

minhas unhas.

– O que você fez aí? – ela pergunta.

– Nada demais.

Ela olha bem para mim e franze as sobrancelhas. E depois chacoalha

levemente minha mão.

– Não se preocupe, querido. Nós vamos ficar bem em Londres. Lá tem

um sistema contra enchentes decente e muito mais. Eles sabem fazer as

coisas direito por lá. Vai dar tudo certo. A boa e velha Londres nos espera

de braços abertos.

Ela inclina a cabeça para trás, fecha os olhos e suspira, feliz por estar

voltando para casa afinal. Mas eu ainda não posso relaxar. Eu tenho que

anotar o número do homem na fila da comida antes que o esqueça. Isso me

deixa ansioso. Acontece que os números das pessoas começam a te dizer

coisas quando você os vê durante a vida toda. E o número daquele cara não

pareceu combinar muito com ele. Eu estou nervoso de novo, mas vou me

sentir melhor assim que tiver anotado tudo.

Tiro o meu caderno do bolso e logo estou escrevendo todos os detalhes

dos quais consigo me lembrar: descrição (é bem melhor quando eu sei o

nome das pessoas), data de hoje, o lugar em que eu a vi, o seu número e a

maneira como ela vai morrer. Anoto tudo bem devagar, e cada letra, cada

palavra que escrevo vai me acalmando lentamente. Está tudo lá, agora, a

salvo, no meu caderno. Mais tarde posso dar uma olhada de novo.

Já posso guardar o caderno de volta no bolso. Minha avó está roncando

baixinho. No fim das contas, ela está feliz com tudo isso. Começo a observar

os outros passageiros. Alguns deles estão tentando dormir, mas outros estão

exatamente como eu: ansiosos e atentos. De onde estou sentado, consigo

enxergar seis ou sete pessoas que também estão acordadas. Nossos olhares

se cruzam e depois se desviam novamente, como costuma acontecer entre

estranhos.

Mas um único momento de contato visual é o bastante para eu ficar

sabendo quais são os seus números, um diferente para cada pessoa,

indicando as diferentes datas que marcarão o fim de suas vidas.

Só que, desta vez, os números não são tão diferentes assim. Cinco deles

terminavam em 12027 e dois eram exatamente os mesmos: 112027.

Meu coração começa a bater descontroladamente e fico com falta de ar.

Na mesma hora, enfio a mão no bolso até meus dedos alcançarem o caderno

novamente. Minhas mãos estão tremendo, mas me esforço para tirá-lo de lá

e abrir na página certa.

A situação dessas pessoas é a mesma do cara da fila: elas têm apenas

mais seis meses de vida.

Elas vão morrer em janeiro do ano que vem.

E vão morrer em Londres.

SETEMBRO DE 2026

SARAH

ocê sabe muito bem por que está aqui, mocinha. Isso não é

exatamente o que você está acostumada, eu sei, mas você não

nos deu opção. Aqui, eles não vão mais tolerar sua falta de

seriedade; nada mais de chegar atrasada, nem de matar aula ou bater boca

com os professores. Encare isso como uma chance para recomeçar, para

fazer do jeito certo, para se acalmar um pouco.

Blá-blá-blá. O mesmo papo furado de sempre, entrando por um ouvido

e saindo pelo outro. Estou cansada demais para escutar. Foi difícil conseguir

dormir na noite passada, e, para piorar, quando finalmente peguei no sono,

tive aquele pesadelo de novo e fui obrigada a acordar. Só me restou ficar

acordada até o dia amanhecer, escutando os barulhos misteriosos que a casa

faz durante a noite.

Não digo nada de volta a Ele. Não digo nem “tchau” quando desço da

Mercedes. Só bato a porta do carro e viro as costas, imaginando como Ele

está se mordendo de raiva e me xingando em voz alta lá dentro – isso me faz

sentir melhor, pelo menos por um segundo.

É claro que, como era de se esperar, a Mercedes chamou a atenção de

todos. Não deve ser sempre que se vê um carro parado aqui na frente da

escola, ainda mais um monstro bebedor de gasolina como o do meu pai. Isso

significa que agora estão todos me olhando. Que ótimo! Já estou marcada

– V

como diferente, antes mesmo de entrar. Mas quer saber de uma coisa? Que

se dane – não estou nem aí.

Enquanto eu passo, um carinha dá um assobio e solta um “da hooora”

bem na minha cara. Mais adiante, um grupo de seis ou setes garotos me

olham de cima abaixo, lambendo os beiços como um bando de lobos. O que

será que eles esperam de mim? Que eu me sinta intimidada ou que encare

isso como um elogio? Babacas. Antes de passar pelo portão da escola, eu

levanto o punho e mostro o dedo do meio para eles.

Até que não é tão ruim, para uma escola pública, eu acho. Pelo menos

está tudo novinho, não tem nada caindo aos pedaços, como eu imaginava.

Mas isso só porque o prédio anterior foi totalmente queimado nas revoltas

de 2022. Também não dá para dizer que esse colégio não tenha uma

reputação – Forest Green: regime rigoroso, alunos barra-pesada. Quase tive

uma parada cardíaca quando os meus pais contaram que tinham me

matriculado aqui, mas então pensei: E daí? As escolas são todas a mesma

porcaria. Na escola ou em casa, você está sempre numa prisão, não é

mesmo? Tudo o que esperam de você é que se conforme e siga as malditas

regras. Então, tanto faz onde estou. Minha mente é só minha e eles não vão

conseguir entrar nela.

E, além disso, para onde quer que eles me mandem, a verdade é que

não planejo ficar por muito tempo. Tenho outras coisas em mente. Pelo

menos uma coisa grande – ou então uma coisa pequena que está ficando

maior. E isso quer dizer que eu tenho que começar a pensar por mim

mesma, planejar, assumir o controle das coisas.

Preciso tomar a minha vida de volta.

Não dá mais para esperar.

Tenho que dar o fora.

ADAM

aranto que não fui eu que comecei. Não mesmo.

Antes de eu sair de casa, minha avó até chegou a falar que era

melhor eu não me meter em confusão. E eu ia mesmo obedecer. Só

queria chegar, me registrar, fazer o que tinha que fazer e depois voltar para

casa.

Eu não tinha nenhuma dúvida de que hoje encontraria uma porção de

números 27. Afinal, há um monte deles em todos os lugares. Durante todo o

verão eu os tenho visto. No meu caderno, as anotações agora dizem sempre

o mesmo, não importa aonde eu tenha passado.

– Kilburn High Road: 84 pessoas.

– Na loja de bebidas, comprando xerez para a velha: 12 pessoas.

É tanta gente que nem me preocupo mais em escrever os detalhes de

todos. Não tem como. Só anoto quantas pessoas vi em cada lugar. Exceto

quando encontro uma pessoa diferente ou alguém de quem saiba o nome, aí

faço o registro completo. Isso me faz sentir bem, quer dizer, um pouco

melhor. Pelo menos costumava ser assim. A verdade é que, quanto mais

tempo passo em Londres, mais tenho certeza de que cometemos um grande

erro. Nós nunca devíamos ter vindo para cá. É perigoso demais. Um monte

de gente está prestes a morrer aqui.

De qualquer maneira, disse para mim mesmo que, por enquanto, o

melhor é deixar as coisas como estão, abaixar a cabeça e manter minha avó

contente. Mas só até eu pensar em um jeito de dar o fora daqui e arrumar

um lugar aonde ir. Preciso descobrir uma cidade onde não haja todos esses

G

números 27. Se ninguém lá for morrer em janeiro de 2027, então, pela

lógica, tenho mais chances de sobreviver, não é mesmo? Acontece que não

tenho como saber qual é o meu próprio número. O único jeito seria se eu

encontrasse outra pessoa que também pudesse vê-los, mas eu tenho quase

certeza de que não há mais ninguém.

Está todo mundo amontoado no saguão de entrada, em uma fila que vai

e volta uma porção de vezes, tipo em um banco ou no caixa rápido do

supermercado. Não gosto de multidões, nunca gostei. Muita gente é igual a

muitas mortes. Mas, como não tenho muita opção, só me resta passar pela

porta e entrar na fila. Em poucos instantes já tem mais um monte de gente

atrás de mim, logo a fila faz mais uma volta e elas também estão do meu

lado, me deixando sem saída. Começo a entrar em pânico e suar feito louco.

Tento procurar uma brecha entre as pessoas, mas quando levanto a vista, só

o que vejo são números terminados em 27, um atrás do outro. De repente

minha cabeça está cheia daquilo tudo: o barulho, o caos, membros

imobilizados, ossos quebrados, escuridão, desespero.

Preciso me controlar. Faz tempo que minha mãe me ensinou o que fazer

nessas horas.

– Respire devagar – ela dizia. – Se concentre e controle seus

movimentos. Puxe o ar pelo nariz e solte pela boca, bem devagar. Não olhe

para mais ninguém, só para o chão. Puxe o ar pelo nariz – dois, três, quatro

–, solte pela boca – dois, três, quatro.

Abaixo a cabeça e me forço a olhar para baixo, um mar de pernas, pés e

mochilas. Se não vir mais seus números, então o mal-estar deve passar. Vou

ficar numa boa. Só que não estou conseguindo respirar fundo, parece que

falta ar para preencher meus pulmões.

Puxando pelo nariz e soltando pela boca. Vamos, Adam. Você

consegue.

Isso não está funcionando. Estou ficando pior. Estou enjoado... Acho

que vou desmaiar...

Alguém atrás de mim está me empurrando. Firmo os calcanhares no

chão e defendo meu território.

Respire devagar. Por que será que não está funcionando?

Ainda estão tentando me empurrar. O cara atrás de mim está

invadindo o meu espaço, tentando literalmente me passar para trás. E não

vai demorar muito para ele conseguir. Se eu não fizer alguma coisa, vou

acabar caindo aqui e então a multidão vai acabar me pisoteando. Pode ser

até que seja esse mesmo o meu destino, mas não é assim que eu quero partir,

e não vou sem lutar.

É isso aí!

Balanço o corpo e acerto uma ombrada na costela do cara atrás de

mim.

– Que porra é essa, mano? Presta atenção aí! – ele cospe as palavras

para cima de mim; um garoto dentuço, um pouco menor que eu e com

aquele corte de cabelo tipo de exército. Eu o acertei e agora seu olhar me

diz que ele quer vingança. Conheço bem esse olhar, já o vi uma porção de

vezes antes. Sei que devia me preparar e ficar atento, pronto para o primeiro

soco, mas o número dele tira toda a minha atenção. Ele é diferente,

entende? E bizarro, na verdade. Só mais três meses para partir. 6122026.

Tenho um flash e vejo uma lâmina, sinto o calor e o cheiro metálico de

sangue. Agora sim estou passando mal. Não consigo mais sair do lugar. O

número dele, sua morte fizeram de mim uma presa fácil. Fecho os olhos para

tirar isso tudo de dentro da minha cabeça e tentar quebrar o feitiço.

Quando os abro novamente, só dá tempo de ver um punho a poucos

centímetros do meu rosto.

Alguém deve ter esbarrado nele, já que ele só acertou a minha orelha e

sem muita força. Pelo menos o soco foi forte o bastante para me trazer de

volta à realidade. Armo a guarda e o acerto em cheio na barriga. Essa deve

ter doído, com certeza, mas não foi o suficiente para derrubá-lo. Ele parte

para cima de mim de novo e me acerta uma, duas vezes, na altura das

costelas. Ao redor os outros alunos estão gritando, alguns querendo apartar

a briga e outros querendo colocar mais lenha na fogueira. Mas não estou

nem aí para isso. Só o que me importa sou eu mesmo e esse sujeito, que está

querendo brigar.

Devolvo seus golpes. Dessa vez, quero machucá-lo de verdade. Quero

mandá-lo para o inferno. Quero mandar tudo para o inferno: esse cara,

todos esses garotos, essa escola escrota, minha avó, Londres...

– Tudo bem, senhores, podem ir parando com isso! – disse um

segurança, do tamanho de uma montanha. Ele veio se enfiando na multidão

e agora está nos agarrando pela nuca.

O dentuço tenta protestar.

– Eu não fiz nada. Foi ele que partiu pra cima de mim. Eu tinha que me

defender.

Mas tudo o que ele consegue é um apertão extra na nuca e um

“Calado!”.

O caminho se abre à nossa frente conforme avançamos. Primeiro,

passamos pelo detector de metais, um de cada vez, e, do outro lado,

passamos pela revista. Depois, somos levados pelo corredor até um

escritório, onde o vice-diretor nos espera.

– Com base na performance desses dois hoje, acredito que não

devíamos sequer deixá-los entrar nesta escola. – O vice-diretor é um

daqueles engravatados metidos a besta, do tipo que não consegue falar com

você sem parecer que está olhando de cima. Como se fizesse alguma

diferença, ele resolve passar o sermão habitual, mas não estou nem

escutando. Só fico olhando o monte de caspa em seus ombros e o punho do

seu paletó, todo desgastado. – É uma vergonha entrar em uma briga logo no

primeiro dia. Uma vergonha. O que vocês têm a dizer em sua defesa?

Tenho a impressão de que o dentuço, que agora começou a ser

chamado de Júnior, já esteve em escritórios como esse antes. Ele também

conhece o código. Nós dois ficamos em silêncio e, depois de uns dez

segundos mais ou menos, falamos baixinho e ao mesmo tempo: – Nada,

senhor. Desculpe-me, senhor.

– Seja lá o que aconteceu entre vocês dois, quero que fique neste

escritório. Deem as mãos, garotos.

Nós nos olhamos e, novamente, o número dele salta aos meus olhos.

Sinto-me lá com ele, na hora em que a faca penetra no seu corpo. Posso

sentir sua surpresa, sua descrença, a dor insuportável.

– Aperta a minha mão, idiota – ele cochicha para mim.

Isso serve para me trazer de volta à sala em que estamos, ao professor

do outro lado da mesa e ao babaca parado na minha frente. Ele está com a

mão levantada para mim. Eu a aperto e nós nos cumprimentamos. Ele

segura tão forte que os nós dos meus dedos se espremem uns contra os

outros.

– Leve-os de volta para fazer o registro. E não quero ver nenhum de

vocês aqui de novo, entendido, garotos?

– Sim, senhor.

O segurança nos escolta novamente pelo corredor e nos larga no fim da

fila. Estou na frente do Júnior. Ele chega perto de mim e sussurra no meu

ouvido: – Você acabou de fazer a maior besteira da sua vida, seu cérebro-de-

bosta.

Tento dar um passo à frente, para me afastar dele, e esbarro em uma

garota loira, uns 15 centímetros mais baixa do que eu.

– Foi mal – digo a ela.

Ela vira um pouco a cabeça para mim e seu olhar me diz que ela não

ficou nada feliz com o esbarrão, mas, de repente, ela muda de expressão e

arregala os olhos.

– Oh, meu Deus! – ela fala baixinho.

Sei que as pessoas costumam me achar esquisito pela maneira como

olho para elas e pelo fato de que, às vezes, continuo olhando por um tempo.

Eu bem que tento não encará-las demais, tento mesmo, mas às vezes fico

meio hipnotizado, congelado por seus números, pelo jeito como eles me

fazem sentir, igual ao que acabou de acontecer com o tal de Júnior. Mas a

verdade é que eu não estava encarando essa garota. Eu acabei de entrar na

fila.

– O quê? – eu disse. – Que foi?

Ela se vira completamente, agora, sem tirar os olhos de mim. Eles são

azuis – o azul mais azul que eu já vi na vida –, mas estão cercados por

olheiras escuras e um rosto cansado e sem cor.

– Você – ela diz com a voz fraca. – É você! – Ela fica ainda mais pálida

e começa a se afastar, andando de costas, tropeçando nas próprias pernas,

sem tirar os olhos de mim, enquanto sai da fila devagar. E, de repente, é

como se o resto do mundo tivesse desaparecido da minha frente.

Seu número, sua morte... Eles roubam a minha atenção.

Mais de quinze anos no futuro e lá está ela, deixando esta vida

tranquilamente, cercada de amor e luz. Consigo senti-los ao meu redor e

dentro de mim, dentro da minha cabeça. E ela não está sozinha. Estou lá

com ela, ela sou eu e eu sou ela. Como pode ser?

Ela se vira de repente e sai correndo pelo corredor. Um dos guardas

percebe e grita para que pare, mas ela não dá ouvidos.

– Opa! Quer dizer que ela gosta de correr? – Júnior diz atrás de mim. –

Mas essa aí não vai conseguir ir muito longe, não sem ser registrada.

E ele tem razão. Nenhuma das portas se abre. Fico observando

enquanto ela experimenta uma atrás da outra, desesperada. Os insetos no

teto acompanham seus movimentos. Ela está mesmo descontrolada agora,

batendo nos vidros e chutando as portas. Até que dois guardas a seguram

por baixo dos braços, um de cada lado, e a carregam até uma sala lateral, ao

lado da mesa da recepção. Ela está resistindo, se debatendo e gritando, a

raiva deforma seu rosto. Mas quando ela abre os olhos por um segundo e me

vê novamente, há algo mais, tão claro quanto seu número.

Ela está apavorada.

Apavorada por minha causa.

SARAH

les querem saber o que tem de errado comigo, por que eu estava

tentando fugir. Como posso explicar? O que eu poderia dizer que não

me fizesse soar como uma perfeita maluca? E se eu dissesse que

acabei de conhecer o garoto que vejo nos meus pesadelos? Que todas as

noites nós estamos juntos, presos em uma espécie de inferno, e que ele

agarra o meu bebê, a minha filha, e se joga com ela no fogo?

E, de repente, aqui está ele, na mesma escola que eu. Esse demônio.

Essa pessoa que só existia na minha cabeça, está bem aqui.

Agora eu sei que não é só um pesadelo. Tem mais alguma coisa, alguma

coisa real.

É lógico que vou me dar muito mal, só pra variar. Meu pai contou a eles

tudo sobre mim, falou do histórico de suspensões, expulsões e de todos os

problemas que tenho. Agora eles vão achar que além de tudo, sou louca.

Melhor não dizer nada. Qual a diferença? Nenhuma explicação. Nenhum

pedido de desculpas. Escuto a bronca de sempre de cabeça baixa. Eles têm

as minhas fichas, sabem quais escolas me chutaram e os motivos pelos quais

elas fizeram isso. Sou privilegiada, segundo o que dizem, por conseguir uma

vaga aqui. Eu devia considerar isso como uma oportunidade para começar

de novo, uma chance de virar a página...

Vocês não sabem merda nenhuma sobre mim, eu fico lá pensando,

parada, olhando para os cadarços do meu tênis. Ninguém sabe. Ninguém

conhece toda a verdade.

E

Então eles me levam de volta para ser registrada. O segurança faz

questão de me colocar atrás de um carinha com o maior jeito de certinho,

que com certeza iria me entregar se eu não fosse direto para a sala e tentasse

escapar de novo. Andando pelos corredores, só consigo pensar que aquele

garoto – o garoto que aparece em meus pesadelos – pode cruzar o meu

caminho a qualquer momento. Antes de entrar na sala de aula, fico alguns

segundos parada na porta, observando o rosto de todos os alunos que estão

lá dentro. Se ele estiver lá, não fico de jeito nenhum. Mas ele não está.

Então procuro uma carteira e me sento, olhando para frente, enquanto o

professor fala. Não escuto uma palavra do que ele diz. Só fico repetindo na

minha cabeça, Será que ele é real? Quem é esse cara? Por que ele está

aqui? Depois de um tempo, tenho quase certeza de que é tudo invenção e

que devo mesmo estar maluca. Afinal, não seria nada estranho se minha

mente, que já costuma estragar minhas noites, resolvesse, de repente,

começar a atrapalhar os meus dias também.

Então, na hora do intervalo, eu o vejo novamente.

Ele está sentado sozinho, encostado na parede do bloco de Ciências. De

onde estou, posso observá-lo sem ele me notar. Tento esvaziar a mente de

toda aquela loucura e olhar para ele como uma pessoa qualquer. Eu quero

ver o que ele faz, como se comporta...

De cara, dá para ver que ele é aquele tipo de pessoa que não consegue

ficar completamente parada, nem que a sua vida dependa disso. O tempo

todo, encostado naquela parede, ele fica balançando a perna. E, de vez em

quando, começa a mexer a cabeça para cima e para baixo como se estivesse

escutando música, só que sem nenhum fone de ouvido.

Não fico surpresa por ele estar sozinho. Tem alguma coisa estranha

nesse garoto, alguma coisa diferente no jeito como ele se move. Ele não é

normal. Do que eu estou com medo, então? Ele é só um cara esquisitão, um

solitário, um zé-ninguém.

Não demora muito e ele tira do bolso um caderno e começa a escrever

nele. Curvado para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos, ele parece

querer se esconder em um casulo. Seja lá o que estiver escrevendo, ele não

quer que ninguém veja. Quer dizer então que esse garoto também tem seus

segredos? Eu até que gosto disso. E também acho legal que ele tenha um

caderno e que escreva em papel. Eu também curto desenhar no papel, gosto

da sensação de segurar um lápis entre os dedos. Ninguém mais faz isso hoje

em dia, todos só querem saber de touchscreens e dispositivos com

reconhecimento de voz. Mas esse carinha é diferente. E ser diferente é legal.

Só que agora estou morrendo de curiosidade, querendo saber o que ele

escreve naquele caderninho.

Enquanto está escrevendo, ele vira um pouco o corpo e o lado esquerdo

do seu rosto fica bem iluminado. Até que ele é ajeitado. Não, é mais do que

isso: ele é bonito. Fico prestando atenção no formato do seu rosto, em seus

olhos profundos, nos traços firmes do seu queixo e no desenho dos lábios. E

a pele então. É um marrom vivo, quase cor de mel, e é tão brilhante e

limpa... Isso não está certo. O garoto do meu pesadelo, aquele que me

aterroriza todas as noites, tem uma cicatriz enorme no rosto, sua pele grossa

e retorcida não tem nada que ver com a pele lisinha do garoto que eu estou

vendo agora.

Não é ele o problema.

Não pode ser.

Deixo escapar um suspiro e balanço a cabeça para um lado e para o

outro. Fiz papel de boba e me meti em confusão à toa, logo no primeiro dia

de aula. Meus parabéns, Sarah.

Ele deve ter notado esse meu movimento pelo canto do olho, pois

começa a olhar ao redor e então me vê. Fecha o caderno de uma vez e o

enfia de volta no bolso, mantendo os olhos em mim o tempo todo. Na

verdade, ele parece se sentir tão culpado quanto eu, por ser pego olhando.

Minha vontade é virar o rosto para o outro lado, mas seguro firme. E

enquanto olhamos um nos olhos do outro, meu estômago revira. Há uma

conexão entre nós.

Eu não sou louca.

Eu o conheço e ele também me conhece.

Meu Deus, o que será que está acontecendo?

ADAM

eu tudo certo?

Minha avó pergunta, sentada no banquinho da cozinha,

exatamente onde eu esperava encontrá-la, assim que entro em

casa. É incrível como, onde quer que esteja – pode ser aqui ou em Weston –

, ela sempre encontra um canto para se pendurar, um território que seja só

seu. E ela fica lá plantada o tempo todo, bebendo chá e fumando como uma

chaminé.

Eu balanço a cabeça dizendo: – Acho que sim.

Sei que, mesmo parecendo uma mosca morta às vezes, minha avó não

deixa nada escapar, mas eu não me sinto pronto para contar tudo o que

rolou na escola. Não ainda. Ela não precisa saber que eu já fiz um inimigo e

que também conheci uma garota.

Júnior não me incomoda com suas ameaças. Eu tenho lidado com

babacas feito ele me dizendo essas coisas durante toda a vida. Se ele quiser

levar mais algumas porradas, pode crer que eu não vou negar. Não tenho

medo dele. Já com o seu número, entretanto, a coisa é bem diferente. Eu o

anotei no meu caderno na hora do intervalo, mas ele ainda não saiu da

minha cabeça. Que morte mais brutal, e está tão próxima. Sinto algo muito

forte sobre ela; algo que me faz pensar em coisas que não quero. Sei lá.

Talvez eu esteja lá com ele, quando acontecer. Talvez seja eu quem está

segurando a faca...

Mesmo agora, parado na cozinha, inclinado sobre o encosto de uma

cadeira, o suor brota da minha pele e me sinto como se fosse apagar a

– D

qualquer momento. E se o meu número for o mesmo que o dele? E se não

foi a morte dele que eu senti, mas sim a minha? Não saber o próprio número

me incomoda mais que tudo nessa vida. Claro que eu já tentei vê-lo. Fiz

todas as tentativas óbvias: procurei no reflexo do espelho, no vidro da janela

e até mesmo na água. Mas nada funciona. Tem que ser olho no olho e a

única pessoa no mundo para quem eu não posso olhar... sou eu mesmo.

Acho que é isso que mais me deixa preocupado como todos esses 27

que eu vejo por aí. Se há tantos, quer dizer que existe uma boa chance de eu

ser um deles também. Vi centenas na escola. Só na minha classe, são treze.

– Acorda, Adam, eu fiz uma pergunta.

A voz da minha avó interrompe meus pensamentos e minha boca

começa a funcionar antes que cérebro possa controlá-la.

– Treze.

Que merda! Foi isso mesmo que eu acabei de dizer?

– Treze o quê, querido? – ela pergunta.

– Nada, não. Eu só estava pensando em uma coisa... Uma coisa da aula

de Matemática.

Ela aperta os olhos, intrigada, e solta uma nuvem de fumaça densa na

direção do teto. Preciso distraí-la, então começo a remexer na mochila e tiro

de lá o tablet que me deram na escola depois que eu, finalmente, consegui

me registrar. Tentei usá-lo na aula, mas nunca tive meu próprio computador

antes – minha mãe nunca deixou um deles entrar em nossa casa –; então

sou muito mais devagar que os outros alunos. Eu vejo as pessoas olhando

para mim todo enrolado, eu as imagino se segurando para não cair na

gargalhada. Mas que belo caipira eu sou.

Minha avó até dá uma olhada nele, mas não está muito interessada.

Está concentrada em mim agora, e seria preciso muito mais que uma

bugiganga tecnológica grátis para desviá-la do seu objetivo.

– Você gosta de Matemática? – ela pergunta. – Gosta de números?

Se eu gosto de números? Gostar deles, como assim? Ela está olhando

direto para mim e, de uma hora para outra, já não sei direito o que ela quer

saber. Eu nunca contei a ninguém sobre os números, exceto para a minha

mãe e para uma professora na escola, quando eu ainda era bem pequeno e

não sabia o que eles significavam. Minha mãe sempre disse que eles eram o

nosso segredo, uma coisa especial só entre ela e eu. E eu levei isso a sério.

Nunca falei para ninguém. Ninguém, mesmo. Quando ela morreu, achei

que era a única pessoa no mundo que sabia dessa história. Eu estava

sozinho. Mas, neste exato momento, não tenho mais tanta certeza disso.

– Eu não acho que goste de números – respondo, com todo o cuidado.

– Acho que eles são importantes.

– É verdade – ela responde. – Eles são muito importantes, mesmo.

Nós ficamos nos observando por cerca de um minuto sem dizer nada. O

rádio está ligado. O jornal anuncia que o governo admitiu estar a

quilômetros dos objetivos estabelecidos pelo protocolo de Kyoto, e, no

vizinho, o cachorro está latindo sem parar, como de costume. Mas o silêncio

entre nós parece maior que tudo isso.

– Eu sei que você é especial, Adam – ela diz finalmente, e um calafrio

corre pela minha espinha. – Eu vi isso em você, no dia em que você nasceu.

– Quê?

– Eu vi e eu vejo um lindo garoto. Eles estão aí em você, querido, seu

pai e sua mãe. Meu Deus. Há tanto do meu Terry em você. Às vezes, eu

juro para mim mesma que ele está aqui de novo. É como se ele não... – Sua

expressão fica triste.

– E o que mais, vó?

– Eu sei que tem alguma coisa aí. – Ela engole seco e olha no fundo dos

meus olhos.

– Sua aura. Eu nunca vi nada assim antes. Ela é vermelha e dourada.

Minha Nossa, você é especial, pode acreditar. É um líder. Um sobrevivente.

Há muita coragem aí dentro, Adam. Você é forte, e não estou falando do

seu corpo, e sim do seu espírito. Você foi colocado neste mundo por algum

motivo, eu juro por Deus.

Eu resolvo arriscar. Preciso saber.

– E quanto ao meu número?

Ela faz uma careta.

– Eu não vejo os números, querido. Eu não sou como você e a sua mãe.

Quer dizer que ela sabe de tudo.

– Então, como você ficou sabendo deles?

– Foi a sua mãe quem me disse. Fiquei conhecendo os dons dela há

alguns anos, antes de você nascer. Mais tarde, quando ela descobriu que

você tinha o mesmo dom, ligou para mim e contou.

De repente, eu precisava dizer a ela, precisava contar sobre o assunto

que tem me incomodado o verão inteiro.

– Vó, metade de Londres vai morrer na virada do ano. Eu não estou

inventando isso. Tenho visto os números todos os dias em todos os lugares.

Ela faz que sim com a cabeça.

– Eu sei.

– Você sabe?

– Sim. Jem me preveniu sobre 2027.

Imediatamente, eu coloco as mãos na cabeça, sem poder acreditar.

Minha avó sabia! Minha mãe sabia! Eu sinto meu corpo tremer, mas não

estou com medo, e sim cheio de raiva. Como elas tiveram coragem de

esconder isso de mim? Por que me abandonaram com esse peso nas costas?

– Por que você não me disse antes? Por que ela não me contou?

Meu corpo todo está fervendo de raiva agora, meus braços e pernas

estão tensos, querendo explodir. De repente, eu acerto um chute na lateral

do armário da cozinha.

– Não faça isso, mocinho!

Eu preciso destruir alguma coisa. Então, dou mais um chute no armário

e escuto alguma coisa caindo lá dentro.

– Adam! Pare já com isso!

Minha avó está de pé agora, vindo na minha direção. Ela agarra os

meus braços com força. Eu tento afastá-la, mas ela é muito mais forte do

que parece. Nós ficamos lutando desse jeito por alguns segundos. Então,

rápida como um raio, ela larga um dos braços e me acerta em cheio um tapa

na cara.

– Aqui, não! – ela grita. – Não na minha casa! Eu não tenho que

aguentar esse tipo de coisa.

Eu volto a mim e percebo a situação como alguém que estivesse

observando de fora. E o que vejo é um garoto brigando com uma velha

senhora no meio da cozinha dela. Impossível não ter vergonha disso. Eu

sinto meu rosto ficar vermelho.

– Me desculpe, vó – digo, esfregando com a mão a bochecha que ela

acabou de acertar. Eu não sei para onde olhar, nem o que fazer comigo

mesmo.

– É para se desculpar, mesmo – ela responde, enquanto coloca uma

chaleira no fogo. – Se você resolver se acalmar, se tiver paciência

para escutar, então eu acho que podemos tentar ter uma conversa sobre

tudo isso.

– Tudo bem.

– Só que você prepara o chá. Tudo o que eu preciso agora é de um

cigarro.

Ela senta de novo em seu banquinho e alcança o maço. Eu percebo sua

mão tremendo mais que o normal, enquanto ela tira um cigarro e o acende.

Quando o chá fica pronto, sento-me de frente para ela.

– Agora você pode falar, vó – começo a dizer. – Por favor, conte tudo

que sabe. Tudo sobre minha mãe e meu pai. Eu tenho o direito de saber.

Ela está examinando alguma coisa na mesa – ou pelo menos fingindo

fazer isso. Varre com a mão algumas cinzas e as joga no chão, e então olha

para mim. Dá uma tragada demorada no cigarro no canto da sua boca e diz:

– Pois é, você tem o direito. E eu acho que a hora é essa.

E então ela começa a me contar.

SARAH

le está tentando abrir a porta.

Eu seguro a respiração e fico imóvel.

Com os olhos arregalados na escuridão, escuto a maçaneta girando e

depois o barulho de madeira raspando no metal, é a porta pressionando a

cadeira que deixei ali para tentar impedi-lo. Agora Ele está movendo a porta

para frente e para trás, cada vez com mais força, querendo entrar de

qualquer jeito. Eu consigo imaginar Sua expressão – confusão se

transformando em raiva aos poucos. Sento-me na cama, encostada na

parede, e me encolho, com o queixo encostado nos joelhos e todos os dedos

possíveis cruzados.

O quarto fica em silêncio por alguns segundos, mas logo Ele está lá de

novo. Não é fácil para Ele admitir que foi derrotado. Ele precisa checar mais

uma vez.

E então escuto passos se afastando, depois silêncio.

Aperto ainda mais os joelhos contra o meu corpo e começo a balançar

um pouco para frente e para trás. Eu queria mais era gritar, berrar o mais

alto possível e sair dançando, mas não posso quebrar o silêncio. Não posso

acordar os outros; Marty e Luke estão dormindo no quarto ao lado e minha

mãe no andar de baixo.

Eu devia tentar dormir agora que estou a salvo. Finalmente, relaxo as

pernas e as deixo deslizar por baixo do edredom. Estou cansada demais, mas

sem nenhum sono, então fico lá deitada por séculos, com a sensação de

E

vitória nesta noite misturada ao medo de sempre. Venci a batalha, mas a

guerra não acabou ainda. Gotas de chuva começam a bater na janela.

Tenho que me esforçar muito para conseguir dormir. E quando pego no

sono, em vez das boas e velhas oito horas com a mente apagada, o que me

espera é o mesmo pesadelo de todas as noites.

A cor laranja das chamas.

Estou sendo queimada viva. Estou presa, encurralada nos escombros.

O amarelo brilhante.

O bebê está gritando. Nós vamos morrer aqui, eu e ela. O garoto com a

cicatriz no rosto está aqui também. O fogo alcançou o seu corpo, mas ele

parece não se incomodar, é só uma forma sombria em meio ao brilho

insuportável e o som das chamas consumindo tudo ao redor.

As chamas estão brancas.

Então ele tira minha filha dos meus braços e vai embora, desaparecendo

no meio do fogo.

O quarto ainda está escuro quando eu me obrigo a acordar. As costas

da minha camiseta e os lençóis estão ensopados de suor. Há uma data

brilhando na minha mente, ofuscando meus olhos de dentro da minha

cabeça. Primeiro de janeiro de 2027. Eu nunca sonhei com isso antes. É algo

novo. E foi ele quem fez isso acontecer. O garoto na escola.

Definitivamente, ele é o garoto do meu pesadelo. É ele, eu sei que é.

Ele conseguiu sair da mente e invadir a minha vida. Mas como? Como fez

isso? Mas que besteira. Isso não pode ser real. Coisas assim não acontecem.

Estico o braço e ligo a luz. Aperto os olhos até eles se acostumarem à

claridade e então vejo a cadeira calçando a maçaneta da porta.

É claro que coisas assim acontecem, eu penso, chateada. Coisas

acontecem o tempo todo.

ADAM

les eram famosos! Minha mãe e meu pai eram famosos. E eu nunca

soube disso. Durante algumas semanas, em 2009, todos no país os

conheciam. Procurados pelas autoridades – é isso o que eles eram.

Mas por algo que não fizeram. Eles só estavam no lugar errado, na hora

errada. E tudo porque, como eu, minha mãe conseguia ver os números.

Minha avó me mostrou alguns recortes de jornal, eu fiquei arrepiado só

de vê-los. Meu pai e minha mãe, tão jovens, mais jovens do que sou agora,

estampados na primeira página. Eles não eram mais que adolescentes

quando me tiveram. Quer dizer, meu pai nunca nem soube de mim. Ele

morreu antes que minha mãe descobrisse que estava grávida.

Se pelo menos eu soubesse sobre isso tudo antes... Poderia ter

perguntado para minha mãe sobre os números, nós poderíamos ter

conversado sobre eles. Mas tudo o que ela me disse foi que eles eram

secretos e mais nada. Eu nunca poderia contar a ninguém qual era o seu

número. Por ironia, a única pessoa a quem eu já contei foi para ela mesma,

naquele desenho que fiz na escola.

O que será que isso causou nela? Como será que foram seus últimos

anos de vida, sabendo o que a esperava? Agora, tenho comigo uma parte da

resposta. Ao lado do meu caderno, há um envelope dobrado ao meio.

Quando acabou de contar a história dos meus pais, minha avó o deu para

mim.

– Ela queria que você recebesse isso, quando chegasse a hora. Agora, eu

acho que a hora chegou.

E

Meu nome está escrito no envelope, com a letra da minha mãe – eu a

reconheceria em qualquer lugar. Juro que meu coração parou por um

segundo quando eu o vi. Não dá para acreditar que é real. É algo da minha

mãe. Algo que ela deixou para mim.

E minha avó estava escondendo o tempo todo de mim. Que direito ela

tinha? A raiva começou a tomar conta de mim de novo.

– Desde quando você está com isso? – pergunto.

– Ela me deu este envelope semanas antes de partir.

– E por que você não deu para mim antes? Isso é meu. É o meu nome

escrito nesse envelope.

– Eu já disse – ela começou a falar devagar, como se estivesse

explicando algo a um idiota. – Ela me pediu que guardasse para você. Para

quando você estivesse pronto.

– E é você quem decide quando eu estou pronto, não é mesmo?

Ela está olhando direto para mim. Consegue sentir a tensão tanto

quanto eu e não parece disposta a recuar.

– É isso, mesmo. Pelo menos é o que sua mãe achava. Ela confiou em

mim.

Eu só dou uma bufada.

– Eu tenho dezesseis anos. Não preciso de você tomando decisões por

mim. Você nem me conhece direito, não sabe nada sobre mim.

– Eu sei mais do que você pensa, meu filho. Agora, por que não se

acalma um pouco e abre o envelope?

O envelope. Eu quase esqueci que era esse o motivo da discussão.

– Eu vou ler sozinho – digo, apertando o envelope contra o peito. É

meu, não dela. Ela está desapontada, é claro. A velha intrometida deve ter

passado todo esse tempo querendo saber o que estava escrito ali. Ela dá uma

fungada alta e pega mais um cigarro.

– É claro – ela diz. – Claro que você vai ler sozinho. Fique à vontade.

Pode vir falar comigo quando terminar. Não vou sair daqui.

Então eu subo até o quarto e me sento na cama. Finalmente, um pouco

de privacidade – a não ser pelo fato de que este não é o meu quarto de

verdade. Só umas poucas coisas aqui são minhas, o resto é do meu pai: um

garoto mais novo que eu, uma pessoa que eu nunca conheci e que nunca

soube nada sobre mim. Estou dentro de um santuário, cercado pelas coisas

dele. Minha avó não mudou nada de lugar desde que ele morreu e eu posso

jurar que deve ter sido um tanto difícil para ela dar o quarto para mim, mas

ela não teve opção, este é o único quarto além do dela.

Coloco o envelope no colo e fico olhando para ele. A mão da minha

mãe tocou este envelope. Será que ainda tem alguma coisa nesse pedaço de

papel dobrado? Passo o dedo pela superfície. Quero ler logo o que quer que

esteja escrito, mas também sei que, uma vez tendo lido, estará tudo acabado

de novo. Não terei mais nada dela. É como se eu tivesse que dizer adeus

mais uma vez.

Não quero que isso acabe. Tudo bem, eu sei que já acabou. Sei que ela

já partiu, acontece que é um pedacinho dela que tenho agora comigo e não

quero me livrar dele.

– Mamãe – digo. Minha voz soa estranha, como se fosse a de outra

pessoa.

Eu queria tanto que ela estivesse aqui comigo.

Então, abro o envelope e é como se ela estivesse, mesmo.

Assim que começo a ler, passo a escutar a sua voz, consigo vê-la sentar-

se na cama e começar a escrever. Seu cabelo já não está mais lá, assim como

uma boa parte do seu peso. Ela está tão magra que você mal pode

reconhecê-la. Mas ainda é ela. Ainda é a minha mãe.

“Querido, Adam

Estou escrevendo isto, sabendo que você só vai ler depois que eu tiver

partido. Eu quero dizer tantas coisas, mas todas elas se resumem a uma frase

só: Eu te amo. Sempre amei e sempre amarei.

Espero que você sempre se lembre de mim, mas caso comece a se

esquecer da minha aparência ou da minha voz, ou qualquer outra coisa, não

se preocupe. Lembre-se apenas do meu amor. É só o que importa.

Como eu gostaria de estar ao seu lado para vê-lo crescer... Mas já que

não posso, pedi à sua avó que tomasse conta de você por mim. Ela é um

verdadeiro diamante. Por favor, não a desrespeite de modo algum.

Adam, eu preciso que você faça uma coisa. Não posso estar com você

para mantê-lo a salvo, então estou lhe dizendo isso agora. Fique em Weston

ou qualquer outro lugar. Só não vá para Londres. Eu vi os números

enquanto crescia. Nós dois somos iguais, nós vemos coisas que ninguém

jamais poderá ver. No passado, contei aos outros, quebrei minha própria

regra e só consegui arrumar confusão. Você não pode contar a ninguém.

Nunca. Isso só vai complicar mais as coisas para você. Adam, confie em

mim, eu sei.

Londres não é um lugar seguro. 112027. Eu vi esse número em

toneladas de pessoas quando ainda era uma garotinha. Encontre um lugar

onde as pessoas tenham bons números, Adam, e fique lá. Não vá para

Londres de jeito nenhum. Não deixe sua avó levá-lo para lá e não a deixe ir

também. Você precisa cuidar dela.

Eu tenho que ir agora. É tão difícil parar de escrever e dizer adeus. Não

há palavras suficientes no mundo para dizer o quanto eu amo você. Você é

a melhor coisa que já me aconteceu. A melhor de todas. Não esqueça.

Com muito amor, sempre.

Mamãe”

Uma lágrima despenca da ponta do meu queixo e cai no papel. A tinta

se espalha como fogos de artifício, deixando tudo borrado.

– Não!

Tento secar o papel com o dedo, mas isso só piora as coisas. Encontro

um lenço velho no meu bolso e o pressiono levemente contra a folha para

absorver a água. Só que, enquanto isso, as lágrimas não param de cair do

meu rosto. Então, resolvo deixar a carta no pé da cama, bem longe do

estrago que eu possa causar.

Eu não choro por tanto tempo assim desde que ela morreu. E não

consigo parar. É como se uma represa tivesse se rompido dentro de mim. É

algo muito mais forte do que eu. Está me dominando. Meu corpo todo está

chorando, fora de controle; sou somente soluços, lágrimas, catarro e

barulhos que eu nem imaginava que se escondiam dentro de mim. Então eu

me encolho todo e começo a balançar, para frente e para trás, para frente e

para trás, por não sei quanto tempo, até que começo a me acalmar devagar.

E não há mais nada sobrando... Nem as lágrimas.

Olho ao redor, como se estivesse observando o quarto pela primeira

vez, e sinto a raiva voltar novamente, formigando na ponta dos meus dedos,

pulsando por todo o meu corpo.

Não vá para Londres. Não deixe sua avó levá-lo para lá...

Eu sabia, desde o começo, que este não era um bom lugar. Eu sabia que

não devíamos ter vindo.

Saio do quarto e desço as escadas. Minha avó ainda está na cozinha.

Uma caneca de chá em cima da mesa e um cigarro aceso.

– Ela nunca quis que nós viéssemos para Londres. Ela queria que nós

dois continuássemos em Weston! Por acaso, você sabia disso? Você sabia?

Estou inclinado do outro lado da mesa, com as mãos fechadas,

apertando tão forte que as juntas estão brancas.

Minha avó passa a mão na testa como se estivesse limpando o suor. Ela

fecha os olhos por um segundo e, quando os abre, eles parecem me

provocar.

– É, ela disse algo sobre isso, sim.

– Ela falou alguma coisa, e mesmo assim você ainda nos trouxe para cá?

– Foi isso, mesmo, mas... – Ela acha que pode discutir comigo, que é

capaz se justificar. Essa velha só pode estar querendo brincar com a minha

cara. Nada que ela diga pode melhorar as coisas. Agora está mais do que

claro a vaca mentirosa e egoísta que ela é.

– Eu disse que não queria vir! E a minha mãe já tinha avisado a você

que não era para virmos!

– Adam...

– Ela confiou em você!

– Eu sei, mas... – Ela estica o braço e alcança o cinzeiro. Suas mãos

tremem enquanto apaga o cigarro. O cinzeiro está cheio até a boca, nojento,

como ela. Eu o alcanço e arremesso contra a parede. Quando cai ao chão,

ele já está todo quebrado, vidro e cinzas voando pelos ares.

– Adam! – ela grita. – Isso é demais. Já chega!

Não é demais, não. Tem muito mais vindo de onde isso veio.

Seguro a mesa com força e a jogo para cima. Ela cai de lado perto da

pia. Porcelana e chá se misturam às cinzas e ao vidro.

– Jesus Cristo! Pare com isso imediatamente, Adam!

– Cala a boca. Cala essa bosta de boca!

– Nem ouse continuar...

O cinzeiro não foi o bastante, a mesa não foi o bastante. Não é culpa

deles, e sim dela.

Melhor eu sair logo daqui. Porque eu sei bem o que gostaria de fazer

agora, e isso seria cruzar a linha. Isso seria totalmente errado. E eu quero

tanto dar vazão à minha raiva, mas se eu começar... Se eu começar, posso

não parar mais.

– Eu odeio você. Odeio, ouviu bem?

Saio da cozinha, atravesso o hall de entrada e já estou do lado de fora,

antes que tenha tempo de mudar de ideia. O ar frio me acerta em cheio e eu

paro para senti-lo entrar pelos meus pulmões. Mas ficar parado não é uma

boa. Tem energia demais pulsando dentro de mim, estou excitado demais,

então saio andando a passos rápidos e depois começo a correr. E, enquanto

corro, começa a chover; as gotas geladas cortam meu rosto.

Não estou correndo dela. Estou correndo do que eu poderia ter feito. É

melhor que seja assim. É melhor para nós dois se eu continuar a correr e

nunca mais voltar.

SARAH

ão vou poder carregar muita coisa. Ele sempre me leva à escola e

vai notar qualquer bolsa extra. Então, é só o que cabe na minha

mochila e todo o dinheiro que eu conseguir. Levando bastante

dinheiro comigo, eu poderei comprar tudo de que precisar.

Mas eles devem começar logo a monitorar minha conta quando

perceberem meu desaparecimento. Então, vão ficar sabendo o que comprei

e por onde passei. O melhor é carregar só o dinheiro vivo comigo, nada de

cartões. Nesse caso, vou precisar de tanto dinheiro quanto conseguir

encontrar.

Já tem algumas semanas que ando afanando as moedas pequenas da

minha mãe. Uma moedinha por vez, para ela não perceber. Também sei que

meu Pai guarda dinheiro em seu escritório. Só que ainda não tive coragem

de entrar lá, é o Seu escritório, o cheiro Dele está impregnado ali. Mesmo

sabendo que Ele não está em casa e que ficará fora por um bom tempo, eu

nunca consigo entrar lá.

Mas agora é diferente. Amanhã é o dia da minha partida. É hora de me

preparar para o que me espera. Tiro da minha mochila os livros da escola –

acho que vou poder me virar bem sem eles – e então dobro cuidadosamente

algumas calcinhas e sutiãs, minhas camisetas prediletas e algumas calças de

moletom. Dou uma olhada triste para os jeans, no armário, me despedindo

deles – são eles que eu uso todos os dias, mas mesmo os meus preferidos,

aqueles que eu já usei e lavei um milhão de vezes até ficarem desbotados e

N

largos, não vão ajudar neste momento. Não tem por que levar coisas que

não vou vestir.

Conto o dinheiro que tenho guardado: oitenta e cinco euros. É muito

pouco. Sei que Marty e Luke devem ter alguma grana. Será que posso

roubar meus próprios irmãos? Acho que sim; isso se eles não estiverem em

seus quartos agora. Mas eu preciso de mais dinheiro. Vai ter que ser o

dinheiro do meu Pai. Ele está fora esta noite, em um jantar de negócios com

alguns clientes. Minha mãe está vendo TV na sala. Passo em frente à porta,

mas hesito. Há outra forma de resolver as coisas, não há? Não tenho que ir

embora. Posso entrar ali agora, me sentar ao lado dela e contar tudo. Ela vai

ter que tomar alguma atitude, não é verdade? Será que ela ligaria para a

polícia? Será que iria expulsá-Lo de casa? Ou será que juntaria as nossas

coisas e nos levaria – eu e meus irmãos – para longe?

Mas e se, ao contrário disso, ela me mandasse calar a boca? E se me

mandasse para o quarto, para pensar nas mentiras horríveis que eu contei

sobre Ele? Ou pior: e se ela simplesmente desse de ombros, dizendo que é

assim mesmo que as coisas são, que é assim mesmo que Ele é?

De alguma forma, lá no fundo, sei que ela já sabe de tudo. E como

poderia não perceber? Mas ela não sabe sobre o bebê. Ninguém sabe. E é

esse o motivo da minha partida. Essa criança é minha. Eu nunca deixarei

que Ele a veja. Ele nunca colocará Suas mãos sujas nela. Ela é minha, está

crescendo dentro de mim. E eu tenho que cuidar dela, preciso mantê-la em

segurança.

Não sei há quanto tempo estou grávida. Minha menstruação sempre foi

desregulada, então não sei direito quando ela parou de vez. Mas todas as

minhas roupas estão tão apertadas agora, que seria difícil esconder isso por

muito mais tempo. Já passou da hora de ir embora.

Ao contrário do que eu imaginava, a porta do escritório não está

trancada. Giro a maçaneta e abro a porta bem devagar, para não fazer

barulho. Dou um passo para dentro e começo a me sentir enjoada. Tudo

nesse cômodo tem a ver com Ele: os pôsteres de golfe nas paredes, a mobília.

Eu quase me descontrolo e desisto, mas respiro fundo e vou até a mesa.

Primeiro, experimento as gavetas – todas trancadas. Merda! Provavelmente,

as chaves ficam com Ele, o que significa que o meu plano foi por água

abaixo. Se por acaso eu tentar quebrar as fechaduras, Ele vai perceber e aí o

jogo acabou mesmo.

Há uma lareira no escritório e sobre ela alguns porta-retratos com fotos

de família. Caras sorridentes por todo lado, a família perfeita. A câmera não

mente jamais, não é mesmo?

Entre elas, há uma foto minha, sozinha, tirada em alguma viagem de

férias. Eu estou na praia, em Cornwall. Estou usando uma roupa de banho

listrada, meus cabelos pendem na altura do ombro. Meus olhos estão

praticamente fechados, por causa da claridade, mas eu estou sorrindo direto

para a lente da câmera. Eu amava o meu pai. Ele era meu herói – um

homem grande, forte, divertido. Ele sabia tudo, conseguia fazer tudo. E eu

era a Sua princesa. Eu tinha sete anos naquela foto e tinha doze quando Ele

começou a me visitar à noite.

O que foi que aconteceu? Por que será que Ele começou com isso? Por

que a vida não podia continuar a ser como era na foto: dourada, ensolarada,

inocente?

Eu estico o braço e alcanço o porta-retratos. Já faz bastante tempo que

eu não me sinto como a garota da foto, difícil acreditar que somos a mesma

pessoa. Eu fico observando os olhos daquela menina por alguns segundos,

então eu a aproximo de mim e a abraço, apertando-a contra o peito. Eu

queria poder cuidar dela, garantir que ficaria bem. Se para mim é tarde

demais – eu fico pensando –, não é para a criança que estou carregando

aqui dentro. Nós podemos começar novamente; podemos viver a vida como

ela deve ser vivida.

Quando eu volto desses pensamentos, reparo que agora há uma chave

bem na minha frente. Ele deve tê-la escondido atrás da minha foto. Eu pego

a chave e coloco o porta-retratos de volta no lugar. A vontade é de levar

aquela fotografia, queria mantê-la comigo, mas se qualquer coisa estiver

diferente, se o menor objeto estiver fora do lugar, Ele pode perceber e então

começará a fazer perguntas. Eu não posso me arriscar. Tenho que ser

cuidadosa.

A chave é mesmo a das gavetas da mesa. Eu encontro o dinheiro logo

na primeira. Há três rolos de notas, presos com elásticos. Será que eu pego

todos, esperando que ele não abra a gaveta quando chegar mais tarde, nem

amanhã de manhã? E agora? Minha mão fica pairando sobre a gaveta

aberta. No final, decido pegar só um dos rolos, o que fica no fundo. Assim,

caso ele resolva abrir a gaveta por algum motivo, as coisas parecerão estar

em seus devidos lugares. Ele só perceberá que há algo errado se tirar tudo lá

de dentro.

Eu coloco a grana no meu bolso, fecho e tranco a gaveta e depois

coloco a chave no lugar, atrás da foto.

– Tchauzinho – eu digo para a garota da fotografia. Depois de fechar a

porta do escritório, eu subo direto para o meu quarto. Chegando lá, coloco o

rolo de notas em um dos bolsos da minha mochila e confiro minhas coisas

de novo.

É, está tudo lá. Eu estou pronta.

ADAM

ormem duplas e sentem um de frente para o outro. Hoje nós vamos

desenhar retratos dos nossos companheiros de classe. Vamos lá,

pessoal, formem as duplas. Sem perder tempo.

É a aula de Artes. Eu estou de volta à escola, é claro. Como eu não

voltei mais para casa depois da nossa briga, minha avó resolveu ligar para a

polícia e informar o meu desaparecimento. Eu nunca pensei que ela faria

isso, mas ela fez. Eles me encontraram na manhã seguinte, me levaram para

a delegacia, tiram minhas impressões digitais, me fotografaram, recolheram

uma amostra de DNA da minha boca com um cotonete e implantaram um

chip em mim – uma injeção rápida, na lateral do meu pescoço. Está feito,

antes mesmo que eu perceba.

– Que porra é essa? Saiam de perto de mim. – Mas é tarde demais.

Agora, ele já está dentro do meu corpo, um minúsculo microchip capaz de

dizer tudo sobre mim a qualquer um que queira saber.

– Vocês não podem fazer isso! Não fiz nada!

– Seu desaparecimento foi comunicado à central. Você é menor de

idade. Agora não vai mais ser tão fácil fugir de casa, garoto. Nós sempre

vamos encontrá-lo.

Quando minha avó aparece para me buscar, eu não troco uma palavra

com ela. Não consigo nem olhar para a cara da velha. No ônibus, a caminho

de casa, ela tenta fazer as pazes.

– Nós dois perdemos a cabeça e dissemos coisas que não devíamos, mas

isso não é motivo para você ir embora. Eu fiquei preocupada. Não sabia

F

onde você estava. Nós temos que ficar juntos, Adam. Só temos um ao outro agora...

Nós só temos um ao outro. Isso é mesmo verdade. Mas não quero ficar

com ela. Ela não é a minha mãe. Mal conheço essa mulher, e o que sei sobre

ela é o bastante para me fazer não gostar.

– Será que eu devo contar a você o que eles fizeram comigo?

– Quem?

– A polícia. Será que eu digo a você o que eles acabaram de fazer? Eles

pegaram o meu DNA, vó. Enfiaram um chip dentro de mim. Só porque me

encontraram vagando por aí. Só porque você disse a eles que eu tinha

desaparecido.

– Eles fizeram isso? Sinto muito, querido. Não sabia que eles fariam

essas coisas. Mas mesmo assim, isso não é nenhum problema se você não se

meter mais em encrenca, não é mesmo?

– Esse é o tipo de coisa que se faz com cachorros, vó. Eu não sou uma

merda de um cachorro.

– Eles estão fazendo essas coisas com todo mundo, hoje em dia, não

estão? Não vai demorar e todo mundo terá um chip implantado no corpo.

Sua vez ia chegar uma hora ou outra, só foi mais cedo do que você

imaginava.

Eu aperto os lábios um contra o outro com força, para impedir qualquer

palavra de sair, e então viro a cabeça para a janela. Não tem por que

continuar falando com ela, não tem mesmo. Ela não entende.

Só voltei para a escola porque é melhor do que ficar em casa com ela.

Na sala de aula, só se escuta o barulho das mesas sendo arrastadas

enquanto as pessoas trocam de lugar e se organizam. Eu levanto disposto a

formar minha dupla, mas ninguém parece interessado em se juntar a mim.

Do outro lado da sala, uma garota está esperando sozinha: é ela – a loirinha

histérica do primeiro dia: Sarah.

– Tudo bem, vocês dois, podem se juntar.

Sarah olha para mim e é como se, do outro lado da sala de aula, ela

estivesse atirando facas na minha direção. Seu olhar é hostil, feito de raiva

pura. Pura não, pois ela está misturada com outra coisa que eu também já

tinha visto antes: medo. Seja lá o que essa garota sabe sobre mim, ou então

pensa saber, é algo ruim. Muito ruim.

– Ele não, professora – ela diz. – Eu não quero sentar com ele.

Alguns dos outros alunos se viram para mim, percebendo que tem algo

rolando.

A professora suspira.

– Por favor, Sarah, nós não temos tempo para isso. A não ser que

alguém queira trocar de dupla, vocês dois terão que trabalhar juntos hoje.

Alguém quer trocar?

Todos balançam a cabeça em silêncio.

– Então é isso, vocês dois podem sentar-se juntos.

– Não quero que ele seja a minha dupla.

– Ou você senta com ele ou vai ter que se explicar ao vice-diretor.

Isso significaria que os pais dela seriam avisados e significaria ficar na

detenção depois da aula. Sarah pensa nas suas opções e se senta em uma

carteira vazia. Ela fica lá me esperando, de cara feia. Acho que quem devia

ficar com medo agora sou eu. Eu pego minha mochila, atravesso a sala e me

sento de frente para ela. Fique numa boa, eu digo para mim mesmo, não

diga nada, idiota. Não faça nada estranho. Só seja legal e haja

naturalmente.

– Oi – eu digo –, eu sou o Adam.

– Eu já sei quem é você – ela diz, olhando para a mesa. Por um

segundo, entretanto, ela levanta a vista e eu vejo o seu número novamente.

E, de novo, isso me tira dos eixos.

Imediatamente, o mundo ao meu redor desaparece e de repente sou só

eu e o momento da morte dela.

Eu consigo sentir em cada uma das minhas terminações nervosas, em

cada célula do meu corpo e também na mente: é uma sensação esmagadora

e reconfortante ao mesmo tempo, uma jornada pacífica para fora desta vida

e em direção à outra. Eu estou lá com ela, tenho certeza que estou. Meus

braços estão ao redor da sua cintura, o perfume dos seus cabelos se espalha

pelas minhas narinas. Eu não sei exatamente o que estou fazendo, só estou

ali, com ela, por ela. De repente, eu não sei mais se é a Sarah ou se é a

minha mãe quem está ao meu lado. E eu não sei se ela está me deixando ou

se está se juntando a mim. Afinal, de que lado eu estou?

– Para com isso. Para de me encarar.

Com uma sacudida na mesa, eu aterrisso de volta no colégio Forest

Green.

– Eu tenho que olhar para você para poder desenhá-la – eu respondo.

– Eu não estou vendo desenho nenhum.

Eu dou uma olhada para a mesa e vejo que ela já desenhou um traçado

oval e fez marcas suaves onde meus olhos, narinas e boca deveriam estar.

– Está certo – eu digo. – É isso mesmo, melhor começar logo. – Eu

alcanço minha mochila e tiro de lá o estojo e uma folha de papel, e então

começo a esboçar o formato do rosto dela. Ela tem o cabelo na altura do

ombro, com uma onda suave. Seus olhos não são grandes, mas são

penetrantes e bonitos, acompanhados por cílios grossos. Seu nariz é reto,

pode-se dizer, mesmo, que é forte, não é um narizinho delicado como o de

muitas garotas, mas nada que estrague o seu rosto. Quanto mais eu olho

para ela, mais parece que nada poderia estragá-la para mim.

Eu me esforço ao máximo para desenhar o que estou vendo. Quero que

ela goste do meu desenho. Mas eu não consigo fazer justiça a ela. O meu

desenho retrata apenas uma garota no papel, mas não é a mesma que está

sentada à minha frente. Eu fico apagando e redesenhando, mas

simplesmente não está rolando. E quando eu olho para a imagem na qual

ela está trabalhando, fico de boca aberta. Ela trabalha como uma artista de

verdade, usando linhas bem marcadas e sombras para dar forma ao seu

desenho. De alguma maneira, ela colocou de lado o que estava sentindo,

toda aquela raiva e o medo. Ela está olhando para mim como se eu fosse um

objeto que ela precisa reproduzir no papel.

O rosto que ela desenha é o de um homem jovem, não o de um menino

que ainda vai à escola. Ele tem traços fortes no queixo e nas bochechas, mas

tem linhas suaves na boca. Mas são os olhos que mais me deixam

impressionado. Eles estão olhando para fora do papel, direto para mim, para

nenhum outro lugar. Ela desenhou de um jeito que você pode ver o reflexo

da luz neles, como se eles tivessem uma faísca, um brilho, como se

estivessem mesmo vivos. Tem uma pessoa de verdade naquele desenho,

alguém que ri, sofre e tem esperanças. O desenho se parece mesmo comigo,

mas tem algo mais também, não é só a minha aparência que está naquele

papel, é o que eu sou.

– Caramba – eu digo. – Está incrível!

Ela para, só que não olha para mim, e sim para o desenho que eu estou

fazendo. Eu me apresso em colocar as mãos em cima do papel, querendo

escondê-lo.

– O meu está péssimo – eu explico. – Eu gostaria de poder desenhá-la,

representar seu rosto, direito. Queria poder fazer justiça a ele. Só que está

difícil.

Então, ela olha para mim, mas em vez de sorrir, ou algo assim, ela faz

cara feia de novo.

– Eu só queria... Só estava tentando... É... – Eu me esforço para

encontrar as palavras certas. – Eu só quis dizer que você tem um rosto

muito bonito...

Devia ter ficado com a boca fechada. É como se eu estivesse

insultando-a. Ela olha para o lado e aperta os lábios com força, como se

estivesse evitando dizer qualquer coisa.

– ...e você fez um trabalho maravilhoso comigo. Você me fez parecer...

bom, você me fez parecer... como eu posso dizer...

– ...bonito! – ela completa. Agora ela está olhando de volta para mim e,

embora ainda esteja de cara fechada, estamos nos olhando nos olhos – de

repente, eu sou preenchido pelo seu número de novo, pelo calor e pela paz

que ele traz. Sou eu e ela, só eu e ela.

De repente, ela faz algo surpreendente.

– Eu não entendo – ela diz em um tom meio irritado, mas em voz baixa,

como se estivesse falando consigo mesma. Ela estende o braço na minha

direção e coloca a mão suavemente na minha bochecha esquerda. Eu fico

de boca aberta por causa do choque e quando solto o ar, um pouco de saliva

se acumula no canto da minha boca e toca a ponta do seu dedão.

– Sarah – eu sussurro.

Ela olha profundamente para mim e começa a mover os lábios para

dizer alguma coisa... mas então, alguém no fundo da classe solta um assobio

malicioso e ela tira a mão do meu rosto de uma só vez. Eu olho em volta e a

classe toda está nos observando.

Eu olho novamente para Sarah, em busca de alguma ajuda, mas ela não

me dá atenção – tudo voltou a ser como antes. Ela está guardando os lápis

no estojo e enfiando o material de qualquer jeito na mochila, vermelha de

vergonha e de raiva. O sinal toca, anunciando o fim da aula, e todos

começam a se mover.

– Terminem os desenhos em casa. É a tarefa dessa semana – a

professora grita, tentando superar a barulheira das pessoas que se arrumam

para ir embora e conversam muito alto.

Eu guardo minhas coisas na mochila e depois coloco a mesa no lugar.

– Sarah – eu a chamo novamente, só que já não há mais ninguém lá, só

uma cadeira vazia. Ela deixou para trás o estojo e o papel em que estava me

desenhando e se foi.

SARAH

á mais de vinte mil câmeras de segurança espalhadas por Londres.

Olhos que nunca piscam, vigiando as ruas, vinte e quatro horas

por dia. Elas seguem as pessoas, fotografam, leem o seu chip e

carregam os seus dados: quem, quando, onde, elas sempre sabem. Eu estava

achando, ingenuamente, que ia ser fácil desaparecer, que era só sair

andando e me misturar à multidão. É só quando você tenta fazer isso, que se

dá conta de que é quase impossível. Quase.

Estou me sentindo confiante, quando saio da escola, no fim do dia.

Tenho as roupas e o dinheiro necessários. Mais cedo, eu tinha dito aos meus

pais que depois da aula iria ao clube de fotografia. Eles ficaram satisfeitos;

era um sinal de que eu estava me enturmando e me acostumando à escola.

Desse jeito, consegui ganhar uma hora a mais antes de eles notarem que eu

havia sumido.

Vou direto para a biblioteca e entro no banheiro público. Tranco-me

em uma das cabines e troco o uniforme da escola por uma das minhas

roupas normais. Minha ideia era largar o uniforme ali mesmo, eu nunca

mais vou precisar dele, mas, no último segundo, eu resolvo guardá-lo na

mochila. Eu trouxe tão poucas roupas comigo, que as peças do uniforme

podem ser úteis. Posso usá-las por baixo da roupa caso esteja com frio. Dois

minutos mais tarde já estou do lado de fora novamente. Um ônibus vem

descendo a rua. Eu corro até o ponto e faço sinal. Dentro do ônibus,

procuro um lugar no fundo e me sento, olhando o mundo lá fora pela janela.

Não me importa muito saber para onde o ônibus está indo. O que

interessa é que ele está me levando para longe da escola mais rápido do que

H

eu poderia se fosse andando. Meu coração está batendo acelerado, então

resolvo fechar um pouco os olhos e respirar fundo, para me acalmar.

Consegui! Escapei! Nós escapamos! Eu e minha filha podemos ainda não

estar completamente seguras, mas a cada minuto, a cada segundo que passa,

estamos mais e mais distantes dos perigos que nos ameaçam, distantes de

casa, da escola, do meu Pai, do Adam.

Adam.

Quando estava sentada bem perto dele hoje cedo, pude ter mais certeza

enquanto eu o desenhava e o observava em seus mínimos detalhes, de que

era ele, mesmo, o garoto do meu pesadelo. Só que, de perto, ele não parecia

tão assustador quanto no sonho. Ele é um carinha esquisito, sem dúvida. O

coitado não consegue parar quieto, está sempre agitado, chacoalhando uma

perna, batucando na mesa, mexendo a cabeça.... E o modo como ele olha

pra gente? É como se conseguisse ver tudo, até mesmo os nossos

pensamentos. Mas em vez de ficar com medo, hoje eu tive vontade de olhar

para ele de volta.

No meu pesadelo, eu estou apavorada. Ele está lá comigo, no meio das

chamas, e tira de mim minha filha, um bebê indefeso, a coisa mais preciosa

que eu tenho. Ele a tira diretamente dos meus braços e caminha com ela no

meio do fogo. O Adam do pesadelo tem uma cicatriz horrível, o lado

esquerdo do seu rosto está completamente desfigurado. Já o Adam da escola

tem a pele mais bonita que eu já vi, brilhante, suave, cor de cappuccino.

Quando eu a toquei mais cedo, quando um impulso estranho me levou a

esticar o braço na sala de aula e tocá-la, ela era exatamente como parecia

que seria. Macia, lisinha. Ele tinha um rosto perfeito, e por um instante

maluco eu imaginei o meu rosto próximo ao dele, seus olhos se encontrando

com os meus olhos, seus lábios tocando os meus lábios...

O ônibus dá um solavanco e eu abro os olhos. Estou olhando direto

para uma câmera no teto. Merda! Mas é claro: todos os ônibus têm essas

malditas câmeras! Eu preciso descer. Agora. Aperto o botão de parada e vou

até a porta para esperar o próximo ponto. Vai logo, motorista. Vai logo. Na

minha cabeça, parece que o ônibus percorre vários quilômetros antes de

parar. Finalmente, ele começa a diminuir a velocidade e para no ponto.

Desço antes mesmo que as portas estejam completamente abertas e saio

andando o mais rápido que posso. Tento não correr para não chamar muito

a atenção das pessoas, pois a última coisa que eu preciso é que alguém se

lembre de mim. Há câmeras de segurança a cada cem metros nessa rua e um

grande painel de informações na esquina. Às vezes, essas telas enormes

mostram fotos de pessoas desaparecidas. Eu já vi várias antes. Só nunca

imaginei que elas podiam ser pessoas como eu, pessoas que simplesmente

não queriam ser encontradas. Será que meu rosto vai estar em uma dessas

telas amanhã? Assim que é possível, eu entro em uma rua lateral, onde

espero que não haja câmeras.

Enquanto eu ando, fico pensando. O que vou fazer agora? Como vou

levar isso adiante? Não posso entrar em um hotel. Com certeza, eles

pediriam minha identidade. Eu preciso de um documento falso, ou então

descobrir um lugar em que eles não peçam documento nenhum. O mais

importante agora é passar despercebida.

Mas esse não é o tipo de coisa que você consegue fazer sozinha, sem ter

os contatos certos.

De repente, eu tomo consciência da minha real situação. Uma garota

de dezesseis anos, que mora em um condomínio fechado, grávida, andando

sozinha em um bairro desconhecido de Londres, carregando dois mil Euros

em dinheiro vivo. Mas que porcaria eu estava pensando? Como eu achava

que ia conseguir lidar com isso?

Eu dou uma olhada no relógio, que marca 16:20. Em dez minutos,

minha mãe vai começar a perguntar por mim. Eu não tenho tempo. No fim

da rua, vejo um trem passando. Posso ir mais longe de trem do que iria de

ônibus. Se eu conseguisse embarcar em um sem ser vista, poderia estar a

cem, duzentos, trezentos quilômetros daqui, ainda esta tarde. Eu tenho o

dinheiro necessário. É a melhor opção.

É isso mesmo. Eu preciso chegar até a estação de Paddington.

Não saber exatamente em que lugar da cidade eu estou é algo que não

ajuda muito. Eu vou ser obrigada a arriscar. A melhor opção é voltar para a

rua principal e pegar outro ônibus. Minha mãe não deve ligar para a polícia

antes das seis horas, não é mesmo? E até lá, eu já devo estar bem longe.

Então, está decidido. Paddington é o lugar.

De volta à rua principal, não demora muito e passa um ônibus. Eu ergo

a gola da minha blusa tentando esconder um pouco o rosto, mesmo sabendo

que não vai fazer a menor diferença, e fico de cabeça baixa o tempo todo.

Chegando à estação em Paddington, compro uma lata de Coca e tento

observar a posição das câmeras de segurança, imaginando que talvez exista

um jeito de despistá-las para poder conferir quais são as próximas partidas e

decidir aonde ir sem ser gravada. Mas é claro que é impossível. Enquanto

faço tudo isso, percebo que estou sendo observada.

Um sujeito se aproxima de mim.

– Você é nova por aqui, não é? Precisa de algum lugar para ficar,

gatinha?

– Não – eu respondo. – Estou bem, só esperando uma amiga.

Ele me olha de cima a baixo e dá um sorriso irônico.

– Eu posso ser seu amigo, se você quiser.

Ele está parado muito perto de mim agora, dizendo essas besteiras bem

na minha cara.

– Não – eu digo novamente. – Estou numa boa.

– Qual é, querida? – ele diz. – Esse aqui não é um bom lugar para você

ficar sozinha, é perigoso. – Posso sentir o cheiro dele agora: loção pós-barba

barata e bafo de bebida.

– Vê se cai fora daqui agora e me deixa em paz, seu filho da puta – digo

com raiva, soando mais corajosa do que realmente me sinto. Logo, eu saio

andando pelo pátio, sem me importar mais com as câmeras, só querendo sair

de perto daquele imbecil.

Preciso urgentemente comprar uma passagem, embarcar em um dos

trens e dar logo o fora daqui. Só não sei direito para onde ir. Esse é o

problema. Há uma garota parada perto do guichê onde eles vendem as

passagens. Ela não parece ser muito mais velha do que eu. Está vestindo

uma jaqueta de couro e tem piercings ao redor da orelha inteira. Ela ficou

me observando enquanto eu atravessava o pátio e me afastava do tarado

que estava tentado conversar comigo.

Eu paro e tomo um gole de Coca.

– Esses caras são uns doentes, não são? – a garota me pergunta.

– Quem?

– Os caras por esses lados. Eles acham que podem chegar em você só

porque você está sozinha na sua. Babacas.

– Pode crer – eu respondo, enquanto levanto a garrafa na direção dela.

– Valeu – ela aceita e dá um gole.

– Você está indo para algum lugar?

– Sim, para longe de Londres.

– Algum lugar legal?

– Estou indo para qualquer lugar.

– Você sabe que eles vão pedir a sua identidade quando você comprar a

passagem, não sabe?

– Putz... – Não sabia.

– Se você precisa de algum lugar para ir, eu tenho um apartamento.

Você pode ficar por uns dias, até conseguir se arranjar, só vai ter que dormir

no sofá...

– Posso mesmo?

Ela faz que sim com a cabeça.

– Claro que pode. Eu já estive na mesma situação que você. Sei bem

como é. Você precisa de algum lugar para começar. Algum lugar seguro.

Eu não conheço essa garota. Não sei onde fica seu apartamento. Mas eu

gostei dela, gostei da sua atitude. Ela é como eu; não foi ela mesma quem

disse isso?

– Bom, só por alguns dias...

– Só uns dias, é claro.

Ela devolve a garrafa de Coca para mim.

– Nós não nos apresentamos ainda, eu sou a Meg.

– Sarah.

– Vamos nessa, então – diz. – Vamos logo dar o fora desse hospício.

E eu a sigo pela estação. Nós somos engolidas pela multidão. Há

centenas, milhares de pessoas ao nosso redor, mas está tudo bem, não estou

mais sozinha.

Eu tenho um contato agora, alguém que sabe um pouco mais das coisas,

e também tenho um lugar para onde ir.

ADAM

la desapareceu.

Eu vou para a escola no dia seguinte realmente perturbado. Eu quero

encontrá-la, preciso conversar com ela. Não dá para esperar. Só que

ela não aparece, nem no dia de hoje nem no dia seguinte. Eu resolvo

perguntar sobre ela para os outros, mas ninguém da classe sabe onde ela está

ou o que aconteceu. Ninguém sabe muita coisa sobre ela, na verdade.

Isso está me deixando maluco. A conexão entre nós – aquela

eletricidade – é tudo em que eu consigo pensar. Deitado na minha cama, à

noite, eu sinto a sua mão no meu rosto de novo e começo a suar. Não é só

um sonho. É real. Real como o incômodo que eu sinto lá embaixo quando

penso em vê-la, abraçá-la, tocá-la...

É tão injusto. A única pessoa naquela escola que consegue me

entender, que me vê como eu realmente sou, simplesmente sumiu do mapa.

– Onde a sua namorada foi parar?

– Será que você foi demais para ela, Adam?

– Coitadinho, está se sentindo tão sozinho. Só não vai chorar, hein...

Eu não gosto de ficar escutando essas coisas, mas me esforço para

ignorar os comentários imbecis dos ignorantes que estudam comigo. Eles

não são importantes. Nada aqui é importante.

Eu fico sentado durante as aulas e tudo parece uma perda de tempo

completa. O que esses professores pensam que sabem? Eles não sabem

merda nenhuma. Eles passam todos os dias das suas vidas tristes repetindo

sempre a mesma coisa sobre História e Geografia, Literatura e Ciências,

enquanto só eu sei o que interessa: que tudo vai desabar ao nosso redor

E

dentro de poucos meses. Na boca deles, isso tudo não passa de um

amontoado de palavras, são só palavras – placas tectônicas, aquecimento

global, o fim das reservas de petróleo, falta de água potável. Só eu sei como

isso tudo está ligado ao que está acontecendo lá fora, em Londres, agora.

Alguma coisa já começou. E é algo que vai mudar tudo, que vai matar

metade das pessoas nessa sala. A escola não tem absolutamente nada a nos

dizer sobre isso.

Eu preciso encontrar a Sarah. Ela sabe alguma coisa, eu tenho certeza

disso. Ela está lá fora agora em algum lugar, e eu não vou encontrá-la

sentado aqui. A professora abre um mapa da Terra na tela da frente da sala

e diz para copiarmos o formato das placas tectônicas no mapa que ela

enviou para os nossos tablets.

Eu enfio a mão na mochila, tentando pegar o meu, mas, em vez disso,

eu tiro de lá o estojo da Sarah. Eu fiquei com ele depois que ela desapareceu

da sala de Artes naquele outro dia. Minha ideia era guardá-lo para ela e

devolver no dia seguinte junto com o desenho que ela estava fazendo de

mim. Eu abro o zíper e dou uma olhada dentro dele. Só o que há são

canetas, lápis e borrachas, mas eu me sinto como se estivesse olhando uma

coisa íntima, uma coisa só dela. Antes de fechar o estojo novamente, algo

chama a minha atenção. Tem uma coisa escrita do lado de dentro: seu

nome e endereço. Passo meu dedo por cima das letras, como tinha feito com

a carta da minha mãe, esperando absorver algo dela. Eu leio várias vezes

seguidas e as palavras ficam gravadas na mente. Passo o resto da aula

pensando nelas, repetidamente. Quando bate o sinal, anunciando que é

hora da saída, eu sei exatamente o que vou fazer.

Em vez de ir para casa, eu procuro o endereço da Sarah na internet e

vejo o caminho que devo fazer da escola até lá. São mais de seis quilômetros

até Hampstead e vai levar pouco mais de uma hora para chegar, mas eu não

ligo para a caminhada. Essa parece ser a melhor coisa a fazer. Parece certo

fazer alguma coisa, seja ela qual for.

Eu começo a me arrepender um pouco quando chego ao bairro dela. As

casas são realmente grandes, com seus portões automáticos e cercas

elétricas. É aqui mesmo que a Sarah mora? Eu sei que ela vai para a escola

em um carrão, já ouvi os outros comentando, mas isso já é demais. Dá para

entender por que ela prefere ficar aqui a ir para a escola. Se eu morasse em

um lugar assim, não sairia nunca mais.

A casa número seis está escondida atrás de um muro alto de tijolos,

com duas câmeras penduradas no alto. O portão de metal sólido, sem

nenhuma brecha sequer, não te deixa ver o que tem do outro lado. Só o que

há é um interfone. A única forma de entrar é tocando a campainha, então

eu aperto o botão. Uma voz séria de mulher fala comigo pelo interfone.

– Pois não?

Eu limpo a garganta.

– Eu estou aqui para ver a Sarah, sou um amigo da escola.

– De que escola?

– Forest Green, senhora.

A mulher do outro lado fica em silêncio por um momento. Então, o

portão começa a se abrir. Eu entendo isso como um convite para entrar e

sigo em frente pelo caminho de pedras. A casa me deixa de boca aberta. Ela

é toda branca, com colunas imensas sustentando a varanda. Em frente a ela,

está estacionada uma Mercedes preta, ao lado de um Porsche vermelho.

Meu Deus! A família dela não é só bem de vida, eles são milionários.

A porta da frente se abre enquanto eu me aproximo, mas não é a

mulher que falou comigo pelo interfone quem me espera, e sim um homem.

Ele é um sujeito forte e alto, e que parece ainda mais alto porque eu o estou

vendo de baixo, do primeiro degrau da escadaria que leva até a porta. Seus

sapatos pretos brilhantes devem ser mais caros do que todas as minhas

coisas juntas. Ele está usando uma calça preta e uma camisa branca toda

chique com as mangas dobradas. A gravata está afrouxada no pescoço. Ele

me olha como se eu fosse uma porcaria qualquer que o gato trouxe para

dentro de casa, e eu vejo o seu número: 112027. O pai da Sarah não tem

muito tempo.

Ele não me convida para entrar.

– Você sabe de algo sobre Sarah? – ele pergunta. – Você a viu?

Quer dizer, então, que ela também não está aqui? A Sarah fugiu de

casa.

– Não, senhor – eu respondo –, eu não a vejo há dias. Eu pensei que ela

estava aqui. Eu queria falar com ela.

– Falar com ela?

– É, nós... nós somos amigos. Eu acho que não falei de uma forma

muito convincente.

– Ela é sua amiga? – ele não acreditou em mim ou não quis acreditar.

Eu não gosto dele, não gosto do jeito esnobe como ele fala.

– É isso, mesmo – eu digo. – Nós somos parceiros na aula de Artes.

– E você gosta dela, não é mesmo?

Onde esse mané está querendo chegar?

– É. Como eu disse, nós somos amigos.

Ele começa a andar na minha direção e descer as escadas.

– Ela estava naquela escola só há alguns dias antes de desaparecer – ele

diz. – O que você fez a ela? O que você disse?

– Nada, eu não disse nada. Nós éramos parceiros na aula de Artes, só

isso.

Estou entendendo o que sua linguagem corporal está dizendo e sei que

é melhor sair logo daqui. Começo a recuar, mas não consigo ser rápido o

bastante. Uma mão me agarra pelo pescoço e encosta em uma das colunas.

Ele chega bem perto de mim, ficando com o rosto quase colado no meu, e

joga seu peso inteiro na mão que está apertando o meu pescoço. Eu começo

a engasgar.

– Você a tocou, não foi isso? Você colocou esses dedos sujos na minha

filha, seu bandidinho de meia-tigela.

– Não – eu me esforço para fazer as palavras saírem. – Eu nunca fiz

nada disso, senhor.

– Fale a verdade, moleque. Eu conheço bem o seu tipo. Você não

conseguiu manter suas mãos depravadas longe dela, não foi? Você é

nojento. Eu tenho nojo de gente como você.

O número dele está bem na minha cara agora. Ele é um 27, mas não

como os outros, há algo diferente na sua morte – ela vem de dentro dele, a

dor se espalha pelo seu corpo, acabando com as suas forças, o esmagando de

dentro para fora.

– Gary? O que foi?

Por cima do ombro dele, eu consigo ver uma mulher do lado de dentro

da casa. Deve ser a mãe da Sarah. Ela está descalça, usando apenas um

roupão.

– O que foi? Eles descobriram algo sobre a nossa Sarah?

O pai dela solta um pouco o meu pescoço.

– Não – ele responde. – Não é nada demais, querida.

Eu consigo me livrar dele e saio correndo, com as mãos no pescoço,

meu peito vai e vem com violência, enquanto eu tento recuperar a

respiração. Os portões ainda estão abertos, graças a Deus, e agora eu já

estou do lado de fora, correndo pela rua. Eu não paro de correr até que

esteja fora daquele bairro maldito e de volta a um lugar normal, onde as

lojas, lanchonetes e casas não se escondam atrás de muros enormes.

Eu entro na primeira loja que encontro, compro uma Coca-Cola e a

abro assim que pago.

– Ei, você não pode tomar isso aqui dentro! Vá lá para fora – o sujeito

atrás do balcão grita para mim. Eu não estou nem aí. O açúcar do

refrigerante está chegando até a minha corrente sanguínea agora e eu estou

parando de tremer. Nossa Senhora, como eu precisava disso! Eu achei que

aquele maluco ia acabar me matando. Que imbecil! Tudo bem que ele

estava preocupado com a filha, mas partir para cima de mim daquele jeito,

quase me fazendo sufocar, não é normal.

Eu sugo até a última gota de Coca de uma vez só e devolvo a garrafa

vazia para o vendedor. Ele aponta com a cabeça para a cesta dos recicláveis

e me dá os cinco centavos que me deve por devolver a garrafa, como se isso

estivesse o matando.

– Valeu, cara – eu agradeço e saio da loja, querendo chegar em casa o

mais rápido possível. Minhas pernas estão lentas e cansadas, mas minha

cabeça não para. Ela não está em casa. Não está na escola. Onde será que

ela se meteu, então?

SARAH

um apartamento de dois quartos, dividido por seis garotas, comigo

inclusa. Para mim, está ótimo. Elas parecem ser legais o suficiente.

Assim que chego arrumam um cantinho em um dos quartos, onde eu

posso deixar minhas coisas.

Meg me apresenta às outras, então me leva até a cozinha e prepara ovos

cozidos e batata assada para nós duas. Eu estou morta de fome. Não gosto

de comer de manhã, mas à noite eu como feito louca.

– Uma refeição balanceada saindo – ela diz, dando risada. – É isso e

mais a dieta básica da boa garota rock androll: cigarro, vodka e... bom, você

sabe. Só de pensar, meu estômago começa a revirar. Eu nunca bebi nem

fumei antes. E para ser sincera, não estou com a menor vontade de começar

agora.

Eu devo estar fazendo uma cara feia, porque a Meg logo vai dizendo:

“Você tem que tomar uma bebida com a gente. Todo mundo bebe. É a

única forma de sobreviver por aqui. Mas por hoje não, tudo bem. Não na

sua primeira noite”.

– Sobreviver? Aqui não parece ser tão ruim assim...

Nenhum músculo do rosto dela se move, mas da para notar que tem

mais alguma coisa ali, algo atrás dos olhos dela me diz isso. O que será que

está rolando nesse lugar? A porta da frente se abre e um homem entra no

apartamento, vindo direto para a cozinha. Ele não é muito alto, só um

palmo mais alto que eu, mas é forte, com braços musculosos e um ombro

largo, pelo que posso notar debaixo da jaqueta jeans que ele está vestindo.

É

Em uma das mãos ele segura um cigarro aceso e na outra, as chaves de um

carro.

– Beleza? – ele pergunta à Meg e se inclina como se fosse beijá-la nos

lábios. No último segundo, entretanto, ela vira o rosto e dá a bochecha. –

Não seja assim, sua vadia estúpida – ele diz. A frieza em sua voz faz os

cabelos da minha nuca ficarem arrepiados. Mas então ele repara que

também estou ali e tudo muda. – Quem é essa? – ele pergunta. Agora sua

atenção se volta toda para mim.

– Essa é a Sarah. Ela precisa de um lugar pra ficar.

– Tudo bem, tudo bem. – Ele me olha de cima a baixo e então estende

a mão. – Shayne. Bem-vinda à nossa humilde residência.

Eu aperto a sua mão e nós balançamos – seria um pouco rude não fazer

isso, e não me sinto tão confiante assim para ser rude com esse cara. Ele fica

segurando minha mão por mais tempo do que eu acho necessário.

– Aposto que tem gente atrás de você, não é mesmo?

Eu faço que sim com a cabeça.

– Não se preocupe. Aqui você ficará sã e salva. Ninguém vai encher o

seu saco. Só vou precisar de uma contribuição para o aluguel, você sabe

como é. Mas hoje não precisa. A primeira noite é de graça. Amanhã a gente

conversa sobre esse assunto.

– Ah – eu fico meio surpresa, mas não vejo muito problema. – Tudo

bem. – Eu tenho o meu dinheiro; ele não disse ainda quanto vai me cobrar,

mas eu só vou ficar por um dia ou dois e isto não deve me custar mais do

que cinquenta Euros ou cem, no máximo.

As garotas estão se preparando para sair agora, arrumando o cabelo e

fazendo a maquiagem. Shayne entra e sai dos quartos o tempo todo. Se fosse

uma delas, o mandaria cuidar da vida dele, mas ninguém faz isso. Meg senta

no sofá e dá uma batidinha no assento ao seu lado, me convidando para

sentar também.

– Você não vai sair? – eu pergunto.

– Não, hoje não. Vou ficar por aqui com você.

– Valeu – eu respondo.

Ela tira do bolso uma latinha com maconha, alguns papéis e começa a

enrolar um baseado. Nós estamos vendo qualquer coisa na TV e quando

Shayne aparece de volta na sala, Meg passa o baseado para ele, que senta no

braço do sofá e o acende. Ele está olhando para nós duas e não para a

televisão. Em seguida, ele dá uma olhada no relógio, um trambolho enorme

e brilhante, feito de ouro.

– Vamos nessa, garotas – ele grita. – É hora de ir.

As outras meninas começam a sair em fila do apartamento. Shayne é o

último a passar pela porta.

– O Vinny estará por aqui daqui a pouquinho. Tudo bem pra você, né?

– ele pergunta à Meg.

– Sossegado.

Ele volta e deixa um chumaço de dinheiro com ela, que coloca tudo

dentro do sutiã.

– Tá tudo certo, então. Nos vemos depois, garotas! – Antes de sair, ele

pisca para a Meg e faz um gesto de positivo com o dedão.

– Ele parece ser um cara... legal – eu digo. – Está levando todo mundo

para sair.

Ela bufa, depois se abaixa, pega uma garrafa de vodka e dá um belo

gole.

– O Shayne é um babaca. Mas ele é menos babaca do que os outros por

aí. Aqui... – Ela oferece a garrafa para mim.

– Não, obrigada.

– Não precisa tentar ser educada, pode tomar.

– Não, eu não quero, mesmo. Eu não bebo, na verdade.

– Quer dar um pega nesse aqui, então? Pode confiar que é do bom. –

Ela solta a fumaça bem no meu nariz.

– Não, também não quero. Estou numa boa.

Então, Meg olha para mim e sua expressão fica mais suave. Ela estica o

braço e mexe no meu cabelo, espalhando-o na frente do meu rosto.

– Quantos anos você tem, Sarah? – ela pergunta.

– Dezoito – eu respondo. Mas ela sorri.

– Quantos anos você tem, de verdade?

– Dezesseis.

– Vá embora para a sua casa, Sarah. Vá embora, antes que seja tarde.

– Fugi porque tinha um bom motivo.

– É, eu sei, todas aqui tinham um motivo. Mas eu garanto que aqui não

é o melhor. Eu vou te dar uma grana para o táxi.

– Tudo bem, eu tenho dinheiro... – Os olhos dela ficam um pouco mais

abertos. Ela pressiona o dedo indicador contra os lábios.

– Não conte isso para ninguém. Não conte nem para mim. Espero que

esteja escondido, porque essas meninas são um bando de ladras, filhas da

mãe.

– Está na minha... melhor eu conferir. – Eu deixei a mochila em um dos

quartos. Dou um pulo do sofá e vou correndo ver. O zíper está aberto.

Alguém mexeu ali. O dinheiro sumiu, é claro! Não sobrou nem uma nota

sequer.

– Merda! Alguém pegou o meu dinheiro. Preciso da sua ajuda para

recuperá-lo, é tudo o que tenho.

Ela balança a cabeça negativamente.

– Agora já era. Você nunca mais vai ver essa grana. Se você tiver

dinheiro, guarde-o com você. – Ela bate no peito, onde havia guardado o

dinheiro que tinha recebido do Shayne, minutos atrás.

– Mas foi uma das garotas que pegou, ou então o próprio Shayne. Eu o

vi entrando e saindo dos quartos o tempo todo. As pessoas não podem

simplesmente sair por aí pegando as coisas dos outros. E aquele dinheiro era

meu!

– Não é mais. Essa é a sua primeira lição. Dura, não é mesmo? Vamos

torcer para que não tenha sido o Shayne, porque nesse caso ele também viu

isso aqui. – Ela tira da mochila o meu uniforme da escola.

– E qual é o problema?

– Ele vai fazer você usar isso amanhã. Ele pode cobrar o dobro do preço

por uma garota em uniforme de colegial.

Amanhã. Como vou pagar o aluguel para o Shayne se alguma dessas

vadias malditas me roubou? De onde eu vou tirar dinheiro? Como eu vou

conseguir... As palavras da Meg começam a fazer sentido.

Eles vão cobrar por mim. Amanhã.

– As garotas não saíram somente para ir a uma balada por aí, não é?

Ela dá outro gole na garrafa de vodka.

– Não – ela responde. – Elas saíram para trabalhar. Eu também devia

ter ido com elas, mas hoje o Shayne me deu a noite de folga. Ele quer que

eu fique de olho em você.

Ficar de olho em mim, quer dizer, ter certeza que eu não vou fugir. Que

vou ficar até amanhã. Amanhã. Meu Deus.

– Meg – eu começo a falar desesperada –, eu não consigo... eu não

posso fazer o que as outras garotas estão fazendo.

Só de pensar, eu me sinto enjoada. É exatamente disso que eu estou

fugindo. Eu prometi que nunca mais ia deixar alguém fazer isso comigo de

novo. E eu não vou deixar isso acontecer. Não vou...

Ela passa a mão na minha cabeça de novo, como se quisesse me

tranquilizar.

– Claro que pode, querida. Todos ficam nervosos na primeira vez, mas é

só você tomar um pouco de vodka, fumar um baseado ou qualquer outra

coisa. Vai dar tudo certo.

– Não, Meg, quando eu digo que não posso é por que eu não posso...

Eu estou grávida.

Ela se senta no sofá, começa a fazer uma careta, então solta a cabeça

para trás e começa a rir.

– Meu Deus do céu! Eu estou perdendo o jeito. Como eu não percebi

isso? De quantos meses você está grávida?

– Sei lá. – Eu me levanto e ergo a blusa, mostrando minha barriga

inchada.

– Cacete, olha só pra você! Cinco meses? Seis? Não tem jeito, eu vou

ter que tirar você daqui.

– Você não vai se meter em confusão?

– Pode crer que sim. Vai ser a maior confusão por aqui, mas tudo bem.

Nem mesmo eu sou capaz de mandar um bezerro indefeso como você para o

matadouro.

– Mas nenhum dos... clientes... vai querer... fazer coisas comigo, não é

mesmo?

Ela descruza as pernas e levanta do sofá.

– Ah, eles vão, sim, pode ter certeza disso. Tem todo o tipo de tarado lá

fora. E o Shayne conhece cada um deles. Você tem certeza de que não pode

mais voltar para a sua casa?

Eu balanço a cabeça. – Não importa o que possa acontecer, por pior

que as coisas fiquem para o meu lado, não volto para lá nunca mais. – Ela

vem até mim, se abaixa e coloca os braços ao meu redor.

– Nós vamos encontrar um lugar decente para você. Algum lugar

seguro – ela fala baixinho no meu ouvido.

A campainha toca de repente. Meg se afasta de mim, com a maquiagem

ao redor dos olhos toda borrada. Ela passa o dedo em baixo deles, pisca

rápido algumas vezes e dá uma fungada bem longa.

– Dá uma olhada pra mim. Novinha em folha, não é mesmo? Deve ser

o Vin lá fora. Espere aqui.

Ela vai até a porta. Depois eu começo a escutar duas vozes

conversando, a dela e a de um homem. Eles ficam falando por um bom

tempo, mas eu não consigo entender o que estão dizendo. Meg volta, então,

para o quarto.

– Esse aqui é o Vinny – ela diz. – Ele falou que pode tirar você daqui.

O homem atrás dela dá um passo à frente. É um sujeito alto e muito

magro, seus olhos esbugalhados saltam do rosto que, de tão seco, mais

parece uma caveira.

Eu não sei o que dizer nem o que fazer. Já não sei mais em quem posso

confiar. A Meg, por exemplo, parecia ser uma pessoa legal. Mas no final ela

só estava tentando me trazer para cá e me fazer vender o meu corpo em

troca de uns trocados para pagar o aluguel a um cafetão. O que será que eu

posso esperar desse cara agora?

– Tudo bem, ele não vai machucar você. Eu confiaria a minha vida a

ele. Eu confio minha vida a ele. Todos os dias. – Eles trocam um sorrisinho

de canto de boca, e então ela passa o braço direito ao redor do braço

esquerdo dele e encosta a cabeça em seu ombro. – Sarah, ele não vai fazer

nenhum mal a você. Eu não deixaria isso acontecer, pode acreditar.

Será que eu posso mesmo?

Vinny passa a mão no cabelo dela e depois eles se separam.

– Você pode ficar no nosso squat – ele me diz. – Você não vai precisar

dar nada em troca. Não vai ter que fazer nada. O Shayne não vai tocar em

você lá. A polícia também não vai dar problema. Você vai poder ficar numa

boa.

– Por quê? Por que você faria isso por mim?

Ele olha para o chão e balança o pé um pouco, para um lado e para o

outro.

– A Meg me falou. Ela me contou do seu bebê. Você precisa de um

lugar para ir e eu tenho um lugar. É bem simples.

Eu tenho quase certeza de que não é tão simples assim, mas sei o que

vai me acontecer se eu ficar aqui. Tenho que ser realista, minhas opções são

bastante limitadas. Então é melhor tentar a sorte.

– Tudo bem – eu digo.

– Você não quer tomar alguma coisa, Vin? – Meg pergunta. – Por que

você não fica um pouco e bebe algo?

Ele olha para o relógio e balança a cabeça.

– Acho que não vai rolar, gata. Se ela vai comigo, é melhor a gente ir

logo. Tudo bem pra você, Sarah?

– Para mim, está ótimo – eu respondo.

– Cuide-se, então – ela diz, enquanto passa a mão na minha barriga. É a

primeira vez que alguém, fora eu mesma, faz isso. Parece muito mais real

agora. Tem alguém crescendo dentro de mim, uma pessoa nova, uma pessoa

de verdade. Esse choque de realidade me faz ficar um pouco tonta.

– Você tá bem? – Vinny me pergunta, enquanto eu tento me equilibrar.

– Estou sim – eu respondo. Então respiro fundo e volto a mim. – Estou

bem, vamos logo dar o fora daqui.

ADAM

s vezes, parece que ela não passou de uma invenção da minha

cabeça. Sarah... Nos meus devaneios, ela é perfeita. Seu rosto, seus

olhos... Fecho os olhos e de repente estou de volta àquele momento

na sala de aula. Consigo sentir seus dedos tocando o meu rosto. Parece um

sonho, mas foi real. Tenho certeza disso, já que anotei tudo no meu caderno

assim que cheguei em casa naquele dia.

Está tudo escrito. Seu número e outras coisas mais que eu consigo

lembrar a seu respeito. Ela tem uma página inteira só sua. Todos os dias, eu

passo um bom tempo olhando para essa página, mas não adianta nada. Isso

não a traz de volta para mim.

Já se passaram semanas desde que eu a vi pela última vez. Quase um

mês inteiro.

Saio pelas ruas procurando por ela. Ela tem que estar em algum lugar.

Eu devia ter uma foto dela, assim poderia sair por aí, mostrando para as

pessoas, perguntando se elas não a teriam visto, só que eu não tenho. Tudo

o que tenho são as minhas lembranças, mais vivas que nunca.

Não gosto de ir a lugares movimentados. Geralmente prefiro ficar longe

das pessoas, tento evitar fazer contato visual, mas agora é diferente. Me

obrigo a enfrentar as multidões. Eu passo andando por elas ou fico parado

em um canto, observando, prestando atenção em cada um dos rostos

apressados que cruzam a minha frente. Mas em todos os lugares aonde vou,

eu também estou sendo observado. Não costuma demorar muito para a

polícia me encontrar e me levar embora. E no final, todo esse esforço não

serve para trazer Sarah de volta, e sim para encher a minha cabeça com

À

mais números.

Todo mundo tem um número. Todo mundo vai morrer mais cedo ou

mais tarde.

Falta de ar, gritos desesperados, sustos e dor, muita dor; dor nas minhas

pernas e braços; uma dor horrível pressionando a minha cabeça; dor em

cada centímetro do meu corpo. Sinto metal me cortando; um peso sobre o

peito que é impossível suportar; sangue jorrando do meu corpo sem parar;

pulmões que não funcionam, tentando puxar o ar em vão. Sinto todas as

mortes ao meu redor. Elas aparecem e desaparecem em flashes na minha

cabeça e sempre deixam algo para eu lembrar depois. Nenhuma delas deixa

de me afetar. Cada morte que sinto é um novo choque, um novo motivo

para eu me sentir impotente.

Por isso eu escrevo sobre elas – antigamente, era uma morte por vez,

mas hoje em dia tenho que anotar as informações de grupos inteiros –, com

esperança que elas desapareçam da minha mente e fiquem guardadas apenas

nas páginas do meu caderno. Mas a verdade é que agora isso não funciona

mais, eu nem consigo escrever no meu caderno tudo o que vi. Logo fico

cansado, com a cabeça cheia demais. Preciso dar um tempo, um tempo das

pessoas, das suas histórias dos seus finais.

– Minha nossa, Adam, que cara é essa? Você está acabado. Por onde

você andou?

Assim que entro em casa, minha avó começa o falatório.

Aonde você foi? Por quê? Quem estava junto com você?

Bem que eu gostaria de ter outro lugar para ir, mas por enquanto isso é

o melhor que tenho. Minha casa. Ou algo que pelo menos se parece com

uma. Uma caixa minúscula dividida por duas pessoas que não deviam estar

juntas. Eu passo por ela sem dizer nada, subo as escadas e me tranco no meu

quarto. É isso que quero, é isso que preciso – uma porta fechada, nenhum

outro rosto, nem olhos, nem mortes ao meu redor.

Eu deito na cama ou sento no chão, mas a minha cabeça não para.

Enquanto tento relaxar, fico batucando um ritmo qualquer na madeira da

cama com os dedos, ou então mexendo a perna sem parar, para lá e para cá.

Não dá para ficar aqui parado esperando. Eu preciso tomar alguma atitude.

Eu tiro o caderno da mochila e começo a folheá-lo. Vejo alguns nomes

de lugares, uma porção de números e mortes. E um monte de 27 por toda

parte. Eu vou e volto olhando as páginas. O que será que vai acontecer

aqui? O que vai acontecer com Londres para tanta gente acabar morrendo?

Em alguns lugares, o número 27 aparece numa proporção de um para cada

quatro pessoas, em outros, um para cada três. Quanta gente será que vive

em Londres? Aproximadamente nove milhões de pessoas, mais ou menos?

Seria possível que três milhões delas tivessem só mais dez semanas de vida?

E será que eu sou uma dessas pessoas?

As mortes são sempre violentas: ossos quebrados, colunas e crânios

esmagados. O tipo de morte que acontece quando um prédio desaba ou

explode ou é atingido por alguma coisa.

Deve ser mesmo algo assim, afinal, se fosse uma doença – uma gripe

muito forte, uma praga ou algo do tipo –, ela se espalharia para fora da

cidade. E também não ia acontecer tão rápido. Além disso, eu não sentiria o

que sinto quando vejo os números –, eu sentiria calor, fraqueza, cansaço.

Não é mesmo?

Eu coloco na minha cabeça que deve existir um padrão por trás de tudo

isso, e que eu tenho que encontrá-lo. Há um padrão nos números. Eles estão

tentando me dizer alguma coisa. Então, eu penso que talvez o meu caderno

seja só o começo. Eu poderia usar as informações que anotei nele para

alguma outra coisa. Eu tenho datas. Eu tenho lugares. Eu sei como as

pessoas vão morrer. Talvez eu pudesse colocar tudo isso em um mapa.

Minha avó guarda um antigo guia de Londres na sala. Ela estica a cabeça

pela porta da cozinha e começa a falar qualquer coisa quando me escuta

chegando. Mas eu não dou a menor atenção. Só pego o livro e subo

correndo de volta para o quarto.

Acontece que é tudo muito pequeno e não dá para ver direito as partes

que ficam entre as duas páginas. Eu resolvo começar pelos mapas que

mostram as ruas da nossa vizinhança. Primeiro eu arranco as páginas, mas

elas não vêm facilmente e acabam rasgando um pouco. Quando as coloco

lado a lado, em cima da mesa, alguns pedaços rasgados ficam faltando. Eu

tiro meu estojo da mochila e começo a trabalhar com as minhas anotações.

Eu começo fazendo um ponto para cada pessoa morta no mapa, mas ele é

tão pequeno que depois de ter feito uns dez pontos, tudo o que eu tenho é

algo que mais parece um borrão de tinta. Eu sei que está uma porcaria, mas,

ainda assim, insisto mais um pouco. Então eu me afasto e olho para o meu

trabalho. Não me resta fazer outra coisa senão juntar as páginas, amassar

tudo e arremessar do outro lado do quarto. Não tem jeito.

Meu tablet está em cima da mesa. Ele também é pequeno, mas eu o

tenho usado bastante na escola e ele tem uma tonelada de aplicativos. Deve

ter algum que vai me ajudar com isso. Se pelo menos minha mãe tivesse me

deixado ter um computador... Mas ela não queria a internet em nossa casa,

entende? Ela sempre disse que a rede estava “lotada de mentiras”. Agora eu

percebo que o que ela queria mesmo era me manter afastado da verdade. Se

eu soubesse sobre o que aconteceu a ela e ao meu pai, então poderia

começar a fazer perguntas. Poderia e deveria... Mas não adianta pensar

nessas coisas a essa altura.

Eu pego o computador, ligo e sento na cama, encostado nos meus

travesseiros. A página inicial aparece: – Adam, bem-vindo à rede do colégio

Forest Green. Você tem quatro tarefas pendentes. Para detalhes e prazos,

clique aqui. – Eu ignoro a mensagem e começo a explorar os aplicativos. Há

uma porção deles, incluindo um para fazer planilhas de dados. Eu tenho

certeza de que é disso mesmo que preciso. Só o que tenho que fazer para

descobrir é experimentar.

Quando você tenta sem pressão, sem os outros te olhando e o professor

esperando, é bem fácil. Basta fazer uma lista com diferentes categorias.

Depois que você fez isso, pode localizar o dado que quiser, ou então

organizar a lista em ordens diferentes. Eu começo a passar as anotações do

meu caderno para o computador. Mas então eu paro.

– Adam, bem-vindo à rede do colégio Forest Green.

Se eu estou na rede da escola, isso quer dizer que tudo o que eu faço

aqui pode ser visto por eles? Eu consigo escutar a voz da minha mãe

repetindo. – Você não pode contar a ninguém. Nunca.

Merda!

– Apagar tudo.

Enter

– Você tem certeza que deseja apagar todo o banco de dados?

Tenho, sim. Enter.

Desligo o computador e o jogo do outro lado da cama. Porcaria de

aparelho. Sei bem por que eles querem a juventude toda conectada, porque

assim vão poder mantê-la sob controle, vão poder saber o que fazemos e o

que deixamos de fazer. Talvez minha mãe estivesse mesmo certa: melhor

não se envolver com essas coisas. Mas eu estava indo bem, organizando um

banco de dados. O caminho é esse. Tenho certeza disso.

Tem um laptop antigo, em cima da mesa, do outro lado do quarto.

Com essa aparência de velho ele só pode ter sido do meu pai. Será que um

computador parado há dezesseis anos pode funcionar? Levanto da cama e

vou até ele. Tiro a poeira com a mão, abro e aperto o botão.

A última pessoa a fazer isso foi o meu pai. Minha avó o chama de Terry.

Minha mãe o chamava de Spider. Ele tinha quinze anos da última vez que

fez isso. Será que ele já conhecia a minha mãe? Talvez ela estivesse aqui

com ele, neste mesmo quarto.

De repente, a tela ascende e uma música explode pelos alto-falantes,

um de cada lado da mesa.

– You are not alone. I am here with you. É uma voz alta e pura, que me

dá calafrios. Michael Jackson. Ele morreu no mesmo ano que o meu pai.

Será que era esta música que ele estava ouvindo no último dia que passou

nesse quarto? Eu achava que meu pai era durão, um bad boy. Mas essa

música é romântica, daquelas feitas para tocar os seus sentimentos. Eu fecho

os olhos e a escuto até o fim. Como será que minha vida seria agora se ele

estivesse comigo? Eu queria que ele estivesse aqui, ou então a minha mãe,

ou alguém.

Eu queria não estar metido nessa confusão sozinho.

SARAH

em um homem no meu quarto. Ele está ajoelhado ao lado do meu

colchão, colocando a mão no meu ombro. É Ele. Ele está aqui. Eu

não quero mais passar por isso.

Eu mexo o braço com força e acerto o queixo dele.

– Opa! Caramba, o que cê tá fazendo?

Não é a voz que eu esperava ouvir. É mais nova e mais aguda. Mas

mesmo assim é familiar.

– Relaxa, Sarah. Sou eu, o Vinny.

Não posso estar em casa, a cama está no chão e a janela está no lugar

errado. De repente, eu me lembro da noite passada, do Vinny me guiando

através das ruas estreitas, me trazendo até esse squat e me acompanhando

nas escadas até o último andar. Então, ele me mostrou este quarto, que

tinha um colchão no chão e mais nada e disse: “Esse aqui pode ser o seu, se

quiser.” Lembro-me de olhar para este quarto vazio, para as tábuas soltas no

chão e os lençóis na frente das janelas, e, apesar de tudo, sentir meu coração

aliviado. Meu quarto, meu espaço, meu.

– Vinny – eu digo, ainda um pouco afetada pelo susto. – O que você

está fazendo aqui?

– Você estava gritando apavorada. Pensei que você estava sendo

assassinada na cama.

Meus olhos já estão se acostumando à luz a essa altura. Um amarelo

suave vindo dos postes na rua e entrando no quarto pelos vãos na borda dos

lençóis que servem de cortina. Me sento. Vinny se arruma e senta, apoiando

as costas na parede ao lado da cama.

T

– Então você está numa boa? – ele pergunta, preocupado.

– Só um pesadelo – eu respondo. – Foi mal pelo barulho.

– Tranquilo. Eu nem tinha dormido, mas um pessoal ficou assustado. E

esse seu pesadelo, era sobre o quê?

– Fogo – eu explico, sem querer entrar em detalhes.

– Fogo e enxofre?

– Eu sei lá, por que enxofre?

– Não é enxofre que tem no inferno?

– Até pode ser, só que o meu pesadelo não é exatamente no inferno, é

aqui, mesmo.

– Aqui?

– Sim, em Londres. A cidade está em chamas e eu estou nela, e o meu

bebê...

– Vixe! Esse sonho é barra pesada.

– É mesmo. E tem mais alguém comigo. Ele tira a minha filha de mim e

entra com ela no meio das chamas.

– Cacete...

Nós ficamos sentados por um minuto. Eu ainda me sinto daquele jeito –

meio acordada, meio dormindo –, como se os sonhos ainda fossem reais.

– Eu o conheci – eu digo. – O demônio do meu pesadelo. Ele é de

verdade e eu o conheci.

– Quer merda, cara.

Vinny se aproxima e coloca o braço ao meu redor. Então eu me ligo

aonde ele quer chegar. Aqui vamos nós, eu penso. Então é isso o que ele

queria desde o início. Mas sem nenhum papo furado antes? Sempre tem

alguma historinha. Eu devo ter reagido de alguma forma ou então congelado

completamente, porque logo ele tira o braço.

– Tudo bem, Sarah – ele diz. – Não vou fazer nada.

– Por que você me trouxe para cá, então? Não posso pagar, você sabe.

Ele dá um longo suspiro, olhando para o nada e eu me pergunto se não

está só tentando ganhar tempo para pensar na coisa certa a dizer para me

fazer baixar a guarda. Mas quando ele começa a falar, vejo que não era nada

disso. Ele não se vira para mim, fica só olhando para frente.

– Eu tinha uma irmã, há uns anos, sabe? Ela ficou grávida como você e

saiu de casa. Ela queria ajuda, chegou a procurar um médico, mas eles a

mandaram embora. É isso o que eles fazem hoje em dia, não é? Mandam as

pessoas embora. A não ser que tenha algo errado com o bebê, senão já era.

O negócio deles é dizer: “Se vira, minha filha”. Que se dane se a mãe não

vai conseguir segurar a bronca. Que se dane se ela está desesperada, como a

Shelley estava. O que aconteceu foi que ela resolveu fazer um aborto em

alguma clínica de fundo de quintal e morreu uns dias depois. Nós só ficamos

sabendo porque o hospital ligou para casa.

Suas palavras ficaram pairando ao nosso redor, no quarto. Quantas

pessoas já ficaram sabendo disso. Será que eu fui a primeira a quem ele

contou?

– Vinny, que triste, sinto muito.

– Tudo bem, não foi sua culpa.

– Eu sei, mas...

– Não foi sua culpa e não foi minha também. Mas sinto saudade dela.

Então você tem um lugar pra ficar por quanto tempo quiser, sacou? E

quando nós tivermos comida, você também vai poder comer, e quando eu

conseguir arrumar uns trocados, você também vai poder ficar com um

pouco, pra gastar com o bebê.

– Obrigado, Vinny. Isso é... isso é incrível.

– Pode ser que eu também consiga descolar uns negócios que você vai

precisar, tipo coisas de bebê, sabe? Contanto que você não fique muito

chocada, querendo saber de onde elas vêm.

– Como assim? Do que você está falando exatamente?

– É melhor se você não souber, Sarah. Mas é nisso que sou bom, saca?

Em arranjar o que for preciso. Vou trazer algumas coisas para você.

O bebê está acordado dentro de mim, se movendo sem parar, mexendo

os braços e as pernas atrás de um pouco de espaço.

– Você quer sentir? Quer sentir meu bebê se mexendo? Aqui, ó...

Eu pego a mão dele e a coloco em cima da minha barriga. Por alguns

segundos, nada acontece, mas então ela chuta.

– Oh, cara... isso é demais!

– Eu sei. Quando começou, eu só sentia um movimento leve, alguma

coisa se agitando suavemente, mas agora, é mais do que isso.

– É menino ou menina? Quando você contou sobre o pesadelo, disse

que era “ela”.

– Sério mesmo? – Então, eu me dou conta de que ele tem razão. – É, é

isso mesmo.

– Então é uma garotinha, não é?

– Eu não fiz nenhum exame, mas eu sei que é. Aqui dentro, eu sei que é

uma garotinha que estou esperando. – Eu abraço minha barriga com os dois

braços, imaginando que a estou carregando no colo.

– Ok, então. Vou te arranjar umas coisas cor-de-rosa.

– Isso é tão ultrapassado, Vinny. Por que tem que ser azul para meninos

e rosa para meninas?

– Ah... eu não tinha pensado nisso. – Ele parece bem desapontado.

– Não tem problema, eu digo, dando risada. – Você pode trazer quantas

coisas rosa quiser. Eu não ligo.

ADAM

ão encontro nenhuma resposta nos números. Eles são o que são e

pronto. A única coisa que eles me dizem é que um monte de gente

vai morrer em Londres, em janeiro do ano que vem. Algo vai

acontecer no dia primeiro que vai matar a maioria das pessoas, então elas

vão continuar morrendo ainda por uns dias depois disso.

Eu digitei tudo no computador do meu pai enquanto ainda havia

energia para isso. O sistema de eletricidade em Londres está uma merda.

Não é raro ter que passar horas sem luz, esperando no escuro e passando

frio. E tudo o que eu consegui no final foi uma lista e nada mais. Eu

precisaria de alguém muito mais inteligente do que eu para tirar alguma

coisa desse amontoado de números e nomes: alguém tipo um cientista ou

um professor. Um professor! Será que alguém na escola me ajudaria? Que

tal um garoto prodígio, desses que adoram computadores, gráficos,

estatísticas e essas coisas?

Eu vou ficar de olho nos próximos dias na escola. O problema é que

para conseguir a ajuda de alguém, eu vou ter que explicar tudo. Mas eu

prometi não quebrar as regras: Você não pode contar a ninguém. Nunca.

Eu imprimo o banco de dados, mas só os números e as datas, mais nada.

Então, decido procurar os nerds. Eu vi no quadro de avisos que há um

clube de Matemática na hora do intervalo: é por lá que vou começar.

Quando eu paro na frente da sala em que eles se reúnem, me sinto em um

bar do velho oeste. Todos param o que estão fazendo e olham para mim, até

mesmo a professora. Ela é bem jovem para uma professora. Está vestindo

uma camiseta e uma saia longa, meio hippie.

N

“Pois não?”, ela pergunta, sorrindo. Eu sorrio de volta, meio sem pensar,

e vejo o seu número. Ela é um 27. Eu começo a ficar nervoso. Eu preciso

lembrar-me de não olhar para as pessoas. Isso vai ser difícil de verdade.

– Oi – eu respondo.

– Você quer entrar no clube?

– Hum... sei lá. Acho que sim.

– Nós estamos estudando cálculo hoje.

O quê?

– Beleza. Hum... acho que eu entrei no lugar errado, na verdade. Foi

mal. – Eu saio da sala, rapidinho. Droga, droga, droga. Tinha energia

cerebral ali dentro suficiente para alimentar a rede elétrica de Londres

inteira.

No dia seguinte, eu volto lá.

– Pois não – a professora pergunta novamente.

– Eu preciso de ajuda com um problema. – Alguns alunos estão

segurando o riso. – Um problema com Matemática.

– Então você devia procurar o seu professor de Matemática – ela diz. –

Quem ensina matemática para a sua sala?

– Não – eu respondo. – Não é nenhum trabalho da escola, é outra

coisa.

Eu coloco os papéis que imprimi em cima da mesa.

– Eu tenho um monte de datas e lugares aqui e queria entendê-los,

queria entender o que eles querem dizer.

Todos começaram a se reunir ao redor dos papéis.

– Mas de onde vêm essas datas?

Eu preciso pensar em uma boa mentira, algo que eles engulam, e rápido.

– São... aniversários. Isso. Aniversários de pessoas. Eu tenho juntado

esses aniversários há um tempo.

– Por quê? Por que alguém faria isso? – um dos nerds quer saber. As

lentes dos seus óculos têm a grossura de um dedo. A pergunta dele acaba

me deixando um pouco na defensiva. Eles devem estar pensando que eu sou

um maluco. Eu me preparo para ser humilhado por uma enxurrada de

risadas. Mas alguns segundos se passam e ninguém ri.

– Eu só estou interessado neles, nada demais.

Eles parecem aceitar numa boa, e só então eu me dou conta de que

estou em uma sala cheia de gente que não deve achar nada demais se você

sair por aí recolhendo e colecionando coisas estranhas.

– Você tem os códigos postais desses endereços? – o carinha de óculos

pergunta. Ele tem um tique irritante no canto da boca, às vezes parece que

está tentando disfarçar um sorriso.

Eu balanço a cabeça e entrego a ele o monte de folhas impressas.

– Você só tem aqui nomes de ruas e de lugares. O mais recomendável é

conseguir os códigos postais. Eu posso procurá-los no diretório on-line da

prefeitura se você conseguir os números das casas. Aí fica fácil mapear essas

datas. Basta associar cada uma delas a uma cor diferente no mapa. Assim,

qualquer padrão aparecerá rapidamente diante dos nossos olhos.

Os outros estão viajando na maionese, mas o menino de óculos parece

realmente concentrado.

– Tem gente que mora nesses lugares? Esses são os endereços das

pessoas que você pesquisou?

– Não – eu respondo. – Esses são os lugares onde eu... as encontrei.

– Na rua? Quer dizer que você entrevistou as pessoas?

– É... foi mais ou menos isso que eu fiz.

– Entendo. É uma pena que você não tenha pedido o endereço delas.

Ele está começando a me tirar do sério agora. Tudo bem, então quer

dizer que eu não fiz direito? Eu sei que não sou nenhum pesquisador

profissional. Mas eu consegui alguma coisa. E eu preciso da ajuda dele, não

é mesmo?

– Mas e aí, você vai me ajudar ou não vai?

– Eu vou ajudar, sim. Mas, para isso, nós precisamos coletar dados

melhores do que esses.

Eu confesso que não esperava por essa. A ideia de ter que sair por aí

encarando os outros não me atrai nem um pouco. Não tenho certeza se

consigo fazer isso de novo.

– Eu posso ver se consigo fazer algo de bom com isso – ele diz sacudindo

as páginas na minha frente –, se eu puder levar as informações para casa.

– Claro, pode sim – eu respondo rapidamente. – Obrigado...?

– Nelson.

– Nelson. Valeu mesmo. Meu nome é Adam.

– Não precisa agradecer. Eu fiquei interessado nessa sua pesquisa

também. Um segundo de distração é o bastante para que nossos olhares se

cruzem. Mas que droga! O número dele não podia ser diferente: 112027. O

coitado vai mapear a própria morte.

Minha vontade agora é arrancar os papéis da mão dele e dizer que, por

enquanto, é melhor deixar isso para lá. Posso inventar que vou conseguir

informações mais completas sobre as pessoas ou qualquer coisa assim. Ainda

dá tempo de voltar atrás, nós não combinamos nada. Enquanto eu penso

essas coisas, em vez de desistir, escuto a minha própria voz dizendo: – Onde

você mora?

– Moro com os meus pais, em um apartamento na Churchill House.

Olho para ele de novo e de repente estou caindo. O chão desapareceu e

estou desabando no escuro. Não há nada em que eu possa me agarrar. Estou

sendo jogado de um lado para o outro, batendo em tudo, sentindo meus

ossos serem arrebentados:– tijolos, paredes, canos, fios, está tudo misturado.

– Adam?

– Sim. O que foi?

– Está tudo bem com você? Você estava... me encarando de um jeito

esquisito.

– Não, tudo bem. Estou numa boa. Foi mal. Eu faço esse negócio de

ficar encarando às vezes. Sei lá por quê. Não consigo evitar. Cada um com a

sua mania, não é mesmo?

Aquele sorriso de canto de boca está aparecendo e desaparecendo do

rosto dele sem parar. Que incrível, ele está totalmente fora de controle.

Nelson percebe e tenta disfarçar, colocando a mão no rosto.

– Então vejo você amanhã, Adam – ele diz. – A não ser que você

prefira ficar. Ainda estamos estudando cálculo hoje.

– Não, tudo bem. A gente se vê amanhã. – Eu coloco a mochila nas

costas e saio da classe. Mas a verdade é que tem uma parte de mim, uma

parte bem grande, que gostaria de poder ficar. Ao menos se eu fosse

inteligente o bastante... É claro que se eu ficasse, acabaria me sentindo um

estúpido. Mas eu confesso que seria bom estar em um lugar onde não tem

problema nenhum ser diferente.

Do lado de fora, todos estão reunidos em suas panelinhas. Há alguns

grupos de duas ou três pessoas batendo papo e outros grupos maiores,

jogando futebol ou basquete. Ser diferente, definitivamente, não combina

com esse lugar.

Encontro um canto sossegado, dou uma olhada ao redor para conferir

se ninguém está me espionando e tiro meu caderno do bolso. Depois, eu

anoto todos os detalhes do Nelson. Eu esperava que isso me ajudasse a ficar

mais calmo, mas não adianta. Dá para sentir o pânico crescendo dentro de

mim: Não tenho como parar. Ele é um cara decente, do tipo que, com

certeza, nunca fez mal a ninguém. Por que ele tem que morrer tão jovem,

então? Isso não é justo. Isso não é certo. Ele tem menos de três meses de

vida e então já era. E talvez esse seja o meu caso também.

Quando olho para o meu caderno, é como se todas aquelas mortes

estivessem me chamando, como se estivessem tentando gritar algo para

mim. O futuro desta cidade está ali, bem nas minhas mãos; e é um futuro

desastroso e violento. Todas aquelas sensações, aquelas vozes, aqueles

últimos gritos de agonia, estão dentro de mim, em meus ouvidos, atrás dos

meus olhos, dentro dos meus pulmões. Isso é demais para mim. Vou

explodir. Sem soltar o caderno, eu levo as mãos à cabeça e a aperto,

fechando os olhos com toda força. Tento fazer aquela coisa da respiração –

puxe o ar pelo nariz e solte pela boca –, mas minha garganta está tão

apertada que eu mal consigo fazer o ar passar e o barulho na minha cabeça é

tão grande que fica difícil escutar meus próprios pensamentos.

– Que cê tá fazendo aí, hein, esquisitão?

Eu conheço essa voz. Abro os olhos só um pouco e vejo quatro pares de

pernas, quatro pessoas se aproximando de mim. Eu não preciso olhar para

cima para saber quem é. Eu não preciso ver o número dele para sentir a

violência e o cheiro de sangue. Parece aquele carinha do primeiro dia, o tal

de Júnior, trouxe alguns dos seus amiguinhos para conversar.

– Não escutou, não? Que cê tá fazendo aí, seu babaca? E o que tem

nesse caderninho?

SARAH

u estou vivendo no passado aqui. Devia ser assim a vida das pessoas

nos anos 1970 do século passado, antes de inventarem o telefone

celular, os computadores e o MP3. Ainda estou com o meu celular e

a porcaria de tablet que eles me deram na escola, mas eu não posso mais

usá-los, pois eles podem ser rastreados, e não quero ser rastreada por

ninguém.

Vinny e seus amigos parecem não ligar muito para tecnologia, a não ser

por um antigo CD player (CDs, quem escuta isso?) e uma TV velha. Eu

não me interesso muito pela TV. A qualquer hora, o que mais passa são

esses programas de variedades que adoram desgraça e coisas bizarras ou a

reprise de um seriado qualquer que já não era engraçado da primeira vez

que foi ao ar e que continua sendo uma porcaria agora. Ou, então, as

notícias. Mas quem quer ver as notícias? Guerras ao redor do mundo,

metade do planeta debaixo d‟água, a outra metade morrendo de sede. Eu

não posso fazer nada para resolver tudo isso. Então, que diferença faz ficar

sabendo? Da última vez que eu vi o noticiário, eles tinham fechado o Túnel

do Canal*, para tentar conter a vinda dos imigrantes da África. Por que esse

pessoal ia querer vir para cá? Aqui nós também estamos cheios de

problemas – enchentes, falta de energia, revoltas... Se eles querem vir, então

é melhor deixar, é isso o que eu acho. Não vai demorar muito para eles

perceberem que as coisas aqui não estão tão boas quanto eles pensam.

*Trata-se do Eurotúnel, um trem subterrâneo que faz a ligação entre

França e Inglaterra, através do Canal da Mancha.

E

Talvez mais gente devesse viver como nós vivemos aqui no squat.

Você está imaginando que sinto falta da vida que eu levava antes, não é

mesmo? Eu confesso que é bem fácil ter uma casa grande, com sala de

cinema, academia e toda a mordomia. Mas a verdade é que, de tudo isso, eu

só tenho saudade mesmo da piscina, porque minha barriga está ficando bem

grande agora. Ela fica me puxando para baixo quando eu caminho por aí e a

única hora do dia em que me sinto um ser humano normal de novo é na

banheira. Por isso, acho que nadar poderia ser maravilhoso. Fora isso, do

jeito que as coisas estão é o bastante para mim.

Mais dois outros caras moram aqui, além do Vinny: Tom e Frank.

Todos eles são viciados. Você deve estar achando que tenho medo de morar

com esses sujeitos, não é? Mas não tenho. Não, mesmo. Eles não estão nem

um pouco interessados em mim ou pelo menos não estão interessados em

me encher o saco. Só o que querem saber é da próxima dose. Vinny sustenta

o seu vício vendendo drogas. Ele tem seus clientes habituais, como Meg e

suas amigas ladras, e está sempre indo para lá e para cá, resolvendo seus

negócios. Ninguém vem me incomodar. Ele mantém todos longe de mim.

Dois tacos de beisebol estão guardados na cozinha, só por segurança, caso

algum problema aconteça, mas nada demais aconteceu desde que vim para

cá há poucas semanas.

Eu pago a minha estadia cozinhando para eles. Nunca imaginei que

conseguiria cozinhar, afinal nunca precisei fazer isso antes. No primeiro dia

no squat, eu desço e encontro a cozinha em um estado inacreditável. Não

dá para fazer nada. Tem sujeira por toda parte, sem exagero. Então, eu

começo fazendo uma bela faxina e arrumando tudo. Afinal, eu não tenho

mesmo nada melhor para fazer. Naquela noite, o prato é macarrão com

molho de queijo. As únicas coisas que há na geladeira.

No dia seguinte, Vinny aparece carregando várias sacolas com

ingredientes frescos – frutas, legumes e verduras.

– Você tem que comer coisas saudáveis – ele diz, todo animado. – Seu

bebê precisa de vitaminas.

– E desde quando você é um especialista nesse assunto, Vinny?

Ele dá de ombros.

– Sei lá, eu só acho que é assim que tem que ser. É preciso comer

direito quando se está grávida, não é?

– É, eu acho que sim. Mas não tenho a menor ideia do que fazer com

essas coisas.

– Sopa – ele responde. – Corta isso tudo e joga numa panela com água.

E pronto!

É isso mesmo que eu faço. E fica uma delícia. Todo mundo experimenta

um pouco. Meus companheiros de casa não costumam ter muito apetite. Às

vezes, eles não comem nada o dia inteiro. Mas eu tenho – e bastante. E não

é só porque tenho que comer por dois. Quando você mesma cozinha sua

própria comida, parece que ela fica mais gostosa.

Eu até gosto de ficar na cozinha, arrumando as coisas, cozinhando para

três marmanjos. Sempre odiei essa história de que mulher tem que ficar em

casa, cuidando das coisas para o marido. Foi isso que a minha mãe fez a vida

inteira: serviu as outras pessoas. Estava sempre correndo de um lado para o

outro, cuidando para que tudo estivesse perfeito: casa limpa, roupas

perfumadas, jantar na mesa. Isso me dava nojo e pena. E pensar que agora

estou fazendo a mesma coisa. Só que aqui não é do mesmo jeito. Nós somos

uma família diferente. Do tipo que na metade do tempo todo mundo está

doidão demais para comer. Do tipo que ninguém pergunta de onde a

comida veio e as pessoas podem vomitar no quintal sem precisar pedir

licença a ninguém para fazer isso.

Mas nós também somos o tipo de família em que ninguém perde tempo

julgando ninguém, em que ninguém faz algo que você não queira, uma

família com a qual você pode se sentir segura, apesar de tudo. Me sinto mais

segura nesse squat, na Giles Street, do que me senti durante esses últimos

anos na casa dos meus pais.

Quando não estou cozinhando ou limpando, eu gosto de desenhar. Um

belo dia, eu encontro um monte de papel de parede velho e começo a

rabiscar. Vinny chega em casa e me vê ali desenhando.

– Esses seus desenhos são do caramba, Sarah!

No dia seguinte, ele aparece com um rolo de fita adesiva para eu

prender os desenhos na parede. Eu gosto de desenhar várias coisas – coisas

da vida real, coisas de que eu me lembro. Outro dia, peguei Vinny e seus

amigos largados na sala dormindo e os desenhei. Eu achava que eles iam

gostar, e foi isso mesmo que aconteceu. Agora, o desenho está lá colado na

parede. Mas, mesmo assim, ele também parece deixar o Vinny triste.

– Essa é a minha vida, Sarah. Você desenhou a minha vida.

– Você parece tão feliz quando está dormindo. Parece que está em paz.

– Não estou dormindo, e sim chapado. E não estou feliz, não mais. Só

estou aliviado por ter usado alguma coisa.

– Mesmo assim, eu gostaria de poder me sentir em paz desse jeito.

A expressão dele fica sombria, como se uma nuvem estivesse pairando

sobre a sua cabeça.

– Você não precisa disso. Se eu achasse que você poderia seguir esse

caminho um dia, já teria te chutado daqui, Sarah. Isso não é pra você. Você

vai ter um filho. Não é brincadeira.

– Eu não quis dizer... – Ou será que quis? O negócio é que, quando

você para e pensa, a realidade é uma porcaria. Não parece haver muitos

motivos para você se prender demais a ela. Então, se existe algo – um

cigarro, uma pílula, uma agulha – que pode melhorar um pouco as coisas,

por que não experimentar?

– A melhor maneira de se manter limpo é nem chegar a se sujar, Sarah.

Não comece com isso. Não vale a pena nem dar o primeiro passo.

– Você está me aconselhando a dizer não às drogas, Vinny? Justo você?

– Você pode até rir de mim, mas isso não tem graça. Todos os meus

amigos, todos eles, usam alguma coisa. A maior parte de nós nunca vai

conseguir parar, nunca vai ser capaz de ficar limpo. Alguns de nós vão

morrer por causa disso. Mas você é diferente. Você é a pessoa menos fodida

na vida que eu conheço, Sarah. Não mude, por favor.

– Eu não vou, pode ter certeza. Não vou começar a usar nada. Eu só

queria conseguir dormir um pouco, só isso. Queria ter uma boa noite de

sono, sem sonhos.

– E por que você não faz um desenho?

– Um desenho de quê?

– Do seu pesadelo. Se você desenhar, se tirar as coisas de dentro de

você, talvez ele não volte mais.

Estou com medo. É como se eu fosse trazer meu pesadelo ao mundo

real, como se ele se transformasse em realidade e passasse a ocupar meus

dias tanto quanto já ocupa as minhas noites. Mas quem estou tentando

enganar? Eu já penso nele o dia inteiro mesmo. Vinny tem razão, eu posso

muito bem desenhá-lo e ver se alguma coisa muda.

Encontrei um rolo de papel de parede novo e comecei a desenhar. Mas

o lápis não está bom. Eu peço ao Vinny para arrumar um pouco de carvão.

Esse desenho precisa de linhas escuras. Além disso, parece ser certo

desenhar com algo que já esteja queimado, que tenha sido escurecido pelo

fogo. Minhas mãos tremem enquanto começo a esboçar as primeiras formas.

Não consigo continuar. Então fecho os olhos e estou lá de novo. Está tudo

dentro da minha cabeça, me preenchendo por dentro, se espalhando pelo

meu corpo todo – a luz e a escuridão, os rostos, o fogo, o medo. Eu começo a

desenhar ainda de olhos fechados e, quando os abro, há um rosto olhando

para mim no papel.

Um homem com uma criança nos braços.

É ele.

Adam.

ADAM

les pegaram. Os filhos da mãe pegaram o meu caderno. E claro que

não estão nem pensando em devolver. O imbecil do Júnior está

folheando as páginas.

– Mas que porra é essa? É tipo a sua lista negra? Será que tem o meu

nome aqui? Ou será que você anota aqui os nomes das garotas que já pegou

por aí? Nem vem me dizer que você pegou essa gente toda? Tá querendo

zoar com a minha cara, garanhão?

– Cala a boca e me devolve logo isso.

– Cara, tem homens e mulheres aqui! Sabia que você só podia ser um

pervertido, seu tarado de merda. É claro que você não vai pegar essa gente

toda nem em um milhão de anos. Mas talvez você queira...

Eu tento agarrar o caderno, mas Júnior é mais rápido e o tira do meu

alcance. Então, ele começa a dançar e a pular com o braço erguido,

balançando o caderno para um lado e para o outro.

– Júnior, isso é meu. Não tem nada aí que seja da sua conta. Passa logo

pra cá, vai. Você não tem nada que seja só seu?

– Agora, eu tenho. É esse seu caderno aqui, ó. Agora ele é só meu.

Estou desesperado. Ele não pode saber o que está escrito. Eu preferia

que o meu caderno tivesse pegado fogo, que tivesse sido destruído. Eles são

quatro e estou sozinho, mas não interessa. A adrenalina se espalha rápido

pelo meu corpo. Tenho que pegar o caderno de volta e eu vou conseguir.

Júnior está a uns 20 metros de mim agora e seus amigos estão me cercando.

Eu parto para cima deles e tento empurrar o mais forte possível. Consigo

afastar um, mas os outros ainda estão no meu caminho. Por trás deles eu

E

consigo ver que o Júnior parou de correr. Ele está virando as páginas mais

devagar agora. Se eu não alcançá-lo nos próximos segundos, eu vou me

ferrar. Ele vai ver os títulos das colunas, vai ler as descrições. Ele vai

encontrar nomes conhecidos. E então vai encontrar o seu próprio nome.

Eu acerto uma cabeçada no peito do mais alto e depois dou uma

joelhada em cheio nas bolas do outro, então saio correndo na direção do

Júnior e pulo em cima dele e o derrubo. Nós chegamos juntos ao chão.

– Cai fora, seu maluco dos infernos!

Ele ainda está com o meu caderno. Eu seguro seus dedos com força e

começo a tirar um de cada vez. O coitado começa a gritar feito uma

garotinha. Parece que ele não é tão macho assim sem a ajuda dos amigos.

Quando termino com o terceiro dedo, ele solta o meu caderno, que cai ao

nosso lado. Eu o pego e me levanto rápido. Já de pé, eu o enfio dentro da

calça. O maricas do Júnior ainda está no chão, segurando os dedos com a

outra mão.

– Você quebrou, seu filho da puta. Você quebrou os meus dedos!

Alguém deve ter chamado a segurança, pois em um segundo nós

estávamos cercados. Um deles se ajoelha ao lado do Júnior e começa a olhar

a sua mão, enquanto os outros dois me pegam por baixo do braço e me

arrastam para dentro do prédio. Meus pés mal tocam o chão. Antes de

passarmos pela porta, eu consigo escutar um dos amigos do Júnior fazendo

um teatro para me ferrar.

– De repente, ele partiu pra cima da gente. Ele estava completamente

surtado. Parecia um bicho. Como se estivesse chapado de alguma coisa.

Eles me levam para uma sala e a primeira coisa que fazem é me revistar.

Minha esperança é que eles não encontrem o caderno – ele é bem fino e

pode muito bem passar despercebido –, mas é claro que eles o encontraram.

Eles me mandam tirar. Mas eu não quero fazer isso. Então, eles dizem que se

eu não fizer, eles mesmos resolvem o problema. Eu coloco a mão dentro da

calça e o puxo para fora. Ele está meio amassado e moldado no formato da

minha bunda.

– Coloque em cima da mesa.

Eu não resisto e coloco, mas se eles pensam que vão olhar o que tem

dentro, estão muito enganados. O caderno não é deles. É uma coisa

particular.

– Isso não é um caderno escolar. O que é então?

– É um caderno, ué.

– Sim é um caderno, mas de quê?

– É só um caderno, senhor.

O sujeito do outro lado da mesa estica o braço para alcançar o meu

caderno, mas eu consigo chegar antes e pego ele.

– Coloque isso de volta na mesa, Dawson.

– Não, senhor, não posso.

Então ele começa com o papo furado sobre as regras da escola.

– Os alunos não estão autorizados a trazer nenhum item de sua

propriedade que não seja requerido como parte dos estudos. Se um item

deste for blá-blá-blá...

Eu escuto a porta abrindo atrás de mim. Mais alguém está entrando na

sala. Não preciso nem pensar – me viro de uma vez só e saio correndo pela

porta, atropelando quem estiver na minha frente. Alguns segundos depois o

alarme começa a tocar e meus ouvidos parecem que vão explodir. Agora, a

escola inteira está em alerta vermelho. Como eu vou conseguir escapar

dessa? A sala em que eu estava fica ao lado da entrada principal, mas as

portas estão fechadas e não tem a menor chance de elas abrirem sem eu

passar meu cartão de identidade. A recepcionista fica olhando de boca

aberta enquanto eu corro pelo corredor em sua direção. Ela dá um grito

quando eu me debruço sobre o balcão.

– Qual deles? – eu grito bem na cara dela. – Qual desses botões abre a

porta? Fala logo!

Ela não responde, mas basta eu dar uma olhada para encontrá-lo. Um

botão quadrado e preto, do lado esquerdo da mesa. Eu o aperto, e a porta

começa a abrir. Só que a recepcionista aperta outro botão – o seu botão de

emergência – e mais um alarme começa a tocar. Mas não estou nem aí para

isso. Agora eu já estou do lado de fora. Cada vez mais longe da escola.

Eu desço a rua apressado. A escola já deve ter chamado a polícia por

minha causa e não vai demorar muito para eles me encontrarem. Afinal,

agora eu tenho um chip, não é mesmo? Basta eles darem uma olhada nos

satélites ou acionarem uma dessas naves de controle remoto que ficam de lá

para cá pelos céus de Londres o tempo todo. Eles vão me pegar de jeito, não

há dúvida. Mas não quero mais ninguém bisbilhotando no meu caderno.

Ficou muito perigoso carregá-lo por aí. Eu preciso destruí-lo ou escondê-lo.

Eu chego correndo à casa da minha avó. Para conseguir fazer a curva e

entrar, eu agarro o poste que está na frente de casa e giro ao seu redor, subo

as escadas correndo. Ela está parada na porta, de casaco. Antes que eu a

atropele, ela estica o braço na minha direção, mostrando a palma da mão.

– Eu estava mesmo esperando você. Acabei de atender a um

telefonema da escola.

Ainda não consigo falar. Preciso de um minuto para respirar. Acontece

que também deve demorar um minuto para a polícia chegar aqui. Eu a

empurrei para dentro de casa e fechei a porta atrás de nós.

– Tudo bem, tudo bem, não precisa empurrar. Você andou brigando de

novo, não foi? – ela começa a falar. – Você lembra que nós já conversamos

sobre isso.

Eu ainda estou sem ar, mas não dá mais para esperar.

– Eu preciso... eu preciso... esconder um negócio – eu falo, mal

conseguindo respirar.

– O que você quer esconder?

Eu tiro o caderno do bolso.

– Ah, o seu caderno.

– Você já sabia dele?

– Eu posso ser velha e meio maluca, Adam, mas eu não sou cega. Pode

deixar que eu cuido do seu caderno.

Eu hesito um instante.

– Você pode confiar em mim, querido. Eu estou do seu lado. Eu sei que

você não acha isso, mas estou sim.

Uma batida na porta e depois um grito.

– Polícia. Abram a porta.

Ela estende a mão na minha direção.

– Confie em mim, Adam.

Eu entrego a ela o caderno. Então ela vira de costas para mim e o enfia

na blusa.

– Ninguém passou por aqui nos últimos trinta anos. Ele não podia estar

em um lugar mais seguro, é isso que eu digo.

Ela passa por mim e vai atender a porta.

– Senhora Dawson?

– Pois não, oficial?

– Nós estamos procurando por Adam Dawson. Por acaso ele está aqui?

– Está sim.

– Acho que teremos que levá-lo conosco para a delegacia.

Eles ficam me enrolando na delegacia por umas cinco horas. Despejam

em cima de mim um monte de perguntas. Querem saber o que aconteceu

entre mim e o Júnior e também sobre o meu caderno. Eu não digo nada.

Nada mesmo. E também não estou a fim de obedecer nenhum policial

escroto. Eles querem que eu confesse alguma coisa, que peça desculpas, só

que eu não tenho nada para me desculpar e não estou nem um pouco a fim

de rastejar nos pés de ninguém. E, no meio de tudo isso, minha avó tenta

me proteger.

– Ele só tem dezesseis anos, oficial – ela fica repetindo, sem parar. –

Dezesseis anos. Ele se meteu em confusão na escola, é só isso. Eu aposto que

o senhor já fez o mesmo quando era jovem, pelo menos uma ou duas vezes,

não foi?

Eles ficam dizendo que podem me indiciar por perturbar a ordem e

atacar a recepcionista da escola, mas em vez disso, fazem minha avó

concordar em me trazer de volta à delegacia dentro de uma semana.

Talvez, depois de esfriar a cabeça, eu mude de ideia e resolva dizer algo.

Ela assina os papéis e nós voltamos para casa.

Já passa das dez quando nós chegamos e há dois envelopes sobre o

tapete da porta de entrada; um está endereçado à minha avó, o outro, a

mim. O envelope dela é da escola. Eu estou suspenso por seis semanas.

Depois disso, ainda vou ter que fazer uma entrevista com o diretor para

saber se eles vão me aceitar de volta. Dane-se. No que depender de mim, eu

não preciso voltar para lá nunca mais.

Eu abro a minha carta no quarto. Não consigo reconhecer a letra e, por

um instante, chego a pensar que poderia ser da Sarah. Abro o envelope

segurando a respiração. Que seja dela, por favor. Que ela esteja bem. A

carta não está assinada, mas não precisava estar.

– Caro babaca, eu sei o que tá escrito naquele seu caderninho de

merda. Eu vi meu nome lá e vi que você colocou uma data pra mim. Mas

não é comigo que você tem que se preocupar, seu merda. É com você:

6122026. A gente se vê.

E lá está de novo: o cheiro de suor, a dor insuportável, o gosto de

sangue. Será que é o meu? Será que é o gosto do meu próprio sangue que eu

estou sentindo?

SARAH

iro as minhas roupas e fico olhando para o meu reflexo no espelho

por um tempo. De frente, até que eu continuo bastante parecida

comigo mesma. A barriga não cresceu para os lados, então meus

contornos ainda são quase iguais. Só os meus peitos é que incharam um

pouco. E meu tornozelo também está ficando mais grosso.

Então, viro de lado. Meu Deus, minha barriga está enorme. Ela mal

tinha mudado quando eu saí da casa dos meus pais – era bem fácil escondê-

la embaixo das roupas –, mas desde que estou aqui ela está crescendo

descontroladamente, você quase consegue vê-la aumentar de tamanho. E a

pele está tão esticada que não dá para acreditar que ela pode crescer mais

do que isso.

Vinny me trouxe um livro de presente. Ele é cheio de figuras e mostra

todo o crescimento do bebê, desde quando ele é só um punhado de células,

passando por algo que mais parece um tipo de girino, até se transformar

naquela coisinha pequena com a aparência de uma pessoa. Eu o leio do

começo ao fim. Leio a parte do nascimento duas vezes. Eu nunca pensei

antes sobre como vai ser para este bebê sair de dentro de mim. Eu não posso

ir para o hospital, afinal eles vão pedir identidade e então vão chamar a

minha família – e aí estou ferrada. E eu também não quero que coloquem

um chip na minha filha. É assim que se faz hoje em dia, o bebê mal nasce e

eles já injetam um chip nele. Eles costumavam fazer isso com os cachorros,

mas agora fazem com as pessoas também. Esse assunto me dá arrepios só de

pensar.

T

Isso quer dizer que eu vou ter que dar à luz aqui mesmo, sozinha. Dou

uma olhada para baixo, para a minha barriga. O bebê está se mexendo, eu

quase consigo ver um joelho ou um cotovelo por baixo da pele esticada.

Minha filhinha vai chegar logo. Como será que vai acontecer? É como tirar

um navio de dentro de uma garrafa. É impossível.

Estou toda arrepiada. Está frio demais nesse quarto para ficar pelada,

mas eu ainda não estou pronta para me vestir.

Olhe só para mim, para o estado em que estou. Como foi que eu fiquei

assim? É claro que eu sei como. Eu nunca tentei lutar contra Ele, eu devia

ter feito isso. Devia ter chutado, batido, mordido, sei lá. Nunca disse nem

mesmo um “não”. Ele é um homem grande, então eu poderia muito bem

dizer que eu tinha medo, e eu tinha mesmo quando ele estava daquele jeito,

à noite, no escuro, desligado do mundo, impessoal, não como o meu Pai

costumava ser –, mas a verdade é que não foi o medo que me impediu de

gritar e lutar. Foi o amor. Ele era meu pai e eu O amava. E Ele me amava

também.

Só que eu nunca pedi aquele tipo de amor.

E agora, aqui estou eu. Grávida. Sozinha. E foi Ele quem fez isso

comigo. Ele é um homem confuso e doente, e eu o odeio. As pessoas tinham

que saber quem Ele é de verdade. Ele devia ser julgado, condenado e

envergonhado na frente de todos. Ele tinha mais é que apodrecer na cadeia.

Mas, mesmo assim... mesmo assim... sei que nunca faria isso com Ele,

porque Ele ainda é o meu pai.

Talvez eu seja tão doente quanto Ele.

Eu olho novamente para o meu reflexo. O corpo está diferente, mas o

rosto no espelho é o aquele rosto que Ele via quando estava comigo. O

cabelo é o mesmo que Ele tocava. De repente, eu não quero mais ser aquela

pessoa. Eu não quero me parecer com ela.

Agora eu estou tremendo de frio e resolvo colocar as roupas de novo.

Quando já estou vestida, vou direto para o banheiro, encontro uma tesoura

e começo a cortar o meu cabelo. Os tufos caem na pia e no chão ao meu

redor. Eu abro a torneira e deixo o cabelo descer pelo ralo. Depois eu o

tampo e coloco uma toalha ao redor dos ombros. Quando a pia já está cheia

de água, me inclino para frente e afundo a cabeça nela. Depois esfrego

xampu no que sobrou do cabelo, pego um barbeador descartável e começo a

raspar a cabeça. Resolvo deixar uma faixa no meio, um moicano. Vou pedir

para o Vinny arrumar uma tintura amanhã. Pode ser rosa, verde, preta,

tanto faz. Alguma coisa diferente.

E, então, quando olhar no espelho amanhã, eu não vou ver a velha

Sarah. Pode ser que eu tome um susto e nem me reconheça, talvez eu ache

que tem mais alguém ali comigo.

Vou ser uma pessoa diferente amanhã.

ADAM

omo será que as pessoas conseguem dormir à noite? Como elas

conseguem fechar os olhos, relaxar e cair no sono? Quando fecho os

olhos, só o que vejo são números, mortes, caos. Vejo construções

desmoronando, sinto a água abrir caminho com violência até encher os

meus pulmões, sinto o calor do fogo ao meu redor. Escuto gritos

desesperados, gente berrando por ajuda. Eu vejo o brilho de uma lâmina e a

sinto deslizar entre minhas costelas, e eu sei que isso é tudo, sei que é o fim.

Eu não consigo aguentar, ficar sozinho, no escuro, só com as minhas

ideias como companhia. No escuro, tudo fica maior, mais alto, mais urgente.

Eu fico aqui deitado e não consigo parar de pensar. Minhas pernas começam

a coçar, prontas para correr, mas não tenho para onde ir. Meu coração bate

forte, a respiração é rápida e irregular. Fico tateando a parede até encontrar

o interruptor, então eu me sento, esfregando os olhos até eles se

acostumarem com a luz.

Eu olho ao redor. Esse quarto é o meu mundo agora. Eu não vou para a

escola. Eu não saio mais. Eu só fico aqui, dia e noite, dia e noite, escutando

o cachorro do vizinho latir vinte e quatro horas por dia, sete dias por

semana.

Eu tentei conseguir informações melhores para o Nelson. Ele tinha

razão, eu precisava de endereços, códigos postais, tinha que saber onde as

pessoas moravam e não apenas o lugar em que eu as tinha visto na rua.

Pensei em duas maneiras de fazer isso: ou ir até um lugar cheio de gente e

seguir as pessoas até suas casas, ou esperar do lado de fora de prédios e casas

C

e anotar o número de quem sai de lá. Das duas maneiras a polícia acabaria

me pegando rapidinho.

Cheguei a pensar que, mesmo assim, isso era algo que eu podia fazer –

podia tratar a coisa como um emprego e sair todas as manhãs para trabalhar.

Mas depois de três dias e de ser pego pela polícia três vezes, minha avó

resolve me prender em casa e eu não posso mais sair para lugar algum. A

polícia do bairro já me conhece bem e todos os radares estão programados

para me identificar. Assim que eu passo pela porta, eles ficam sabendo e

logo estão atrás de mim. No terceiro dia, não levou nem meia hora para eu

começar a escutar o som do avião espião em cima da minha cabeça.

Eu não estou fazendo nada errado e eles não podem me acusar de

nenhum crime, mas, em Londres, andar por aí e ser jovem e negro é o

bastante para eles te pegarem e te levarem para a delegacia. Eles te

revistam, te trancam um pouco em uma cela, fazem perguntas e depois te

deixam ir de novo. Na primeira revista, eles encontram o meu caderno.

– O que é isso?

– Nada.

– É um caderno. O que você anda escrevendo aqui?

– Nada.

Eles começam a virar as páginas.

– Tem uma porção de nomes aqui, com datas e descrições. O que você

é, hein, fedelho? Um tipo de maníaco que fica por aí seguindo as pessoas,

imaginando coisas? É esse o seu joguinho sujo?

Fico em silêncio. Melhor não dizer nada a esses caras. Eles que pensem

o que quiserem pensar. Não machuquei nem incomodei ninguém – eles não

têm nada contra mim. O show continua, eles me filmam e escrevem

alguma coisa no computador da sala de interrogatório.

No terceiro dia, não é a polícia que faz perguntas, mas sim dois sujeitos

de terno. Um deles é jovem, tem o cabelo ruivo e está usando uma gravata

ridícula; o outro é um velho com a barriga pulando para fora da calça. Eles

me perguntam quase as mesmas coisas que os policiais. Por que eu estou na

rua? O que eu tanto anoto no meu caderno? Eu não digo nenhuma palavra.

Nenhuma mesmo. Então, o mais velho muda de assunto.

– Sabe, Adam, eu conheci a sua mãe – ele diz. – Jem. Eu a conheci há

dezesseis anos. Fiquei triste quando soube que ela tinha... bom, você sabe.

Agora ele encontrou o meu ponto fraco. Conseguiu prender a minha

atenção. Eu quero saber mais. Nós nos olhamos nos olhos e eu vejo que ele

é um sobrevivente. Mais trinta anos de vida pela frente.

– Eu falei com ela em Bath, quando ela estava refugiada na abadia. Ela

disse que conseguia ver números, que sabia quando as pessoas iam morrer.

Isso causou um pouco de agitação na época. Mas depois ela negou tudo,

disse que não passava de uma invenção. – Ele tira alguma coisa do meio dos

dentes com a unha e depois continua.

– Acontece que isso me deixou com uma pulga atrás da orelha. Eu não

acredito que ela tenha inventado a história toda. Para mim, naquele dia

na London Eye, ela viu mesmo que toda aquela gente ia morrer. Por acaso,

é do mesmo jeito com você, Adam? Você é como ela? Você também sabe

quando as pessoas vão morrer?

Eu quero dizer que sim. Quero contar tudo. Ele vai acreditar em mim.

Ele pode me ajudar a lidar com isso.

– Porque se for – ele vai falando devagar –, então você tem o meu

apoio. Quer dizer, deve ser difícil para você conseguir lidar com uma coisa

dessas, tenho certeza.

Eu fico encarando o velhote barrigudo sentado à minha frente,

tentando entender qual é a dele, mas sem demonstrar que o assunto me

deixou empolgado.

– Não pode, mesmo, ser fácil para você. O negócio é que você pode ser

muito útil para a gente como eu. Por outro lado, eu sei que você pode

arranjar muita confusão também. E como...

De uma hora para outra, sinto um calafrio subir pela minha espinha.

Não que eu me sinta exatamente ameaçado por ele, mas sei que nós dois

não estamos do mesmo lado. Mas, afinal, quem é esse cara? Com esse terno,

ele podia ser muito bem do serviço secreto ou qualquer coisa assim.

– Eu vi o que você escreveu no seu computador da escola e também

chequei algumas impressões do seu laptop. Tem uma porção de números no

começo de janeiro. O que vai acontecer, Adam? O que está acontecendo aí

na sua cabeça. Pode dizer. Confie em mim.

Ele não escuta nenhuma resposta vinda de mim. Cheguei a pensar em

contar sobre o ano-novo, mas agora ele já viu tudo, então já está avisado,

está de prontidão, é por isso que eles vieram falar comigo. Em todo caso, eu

não dou nenhuma resposta. Não dá para saber direito o que está

acontecendo.

– Como ela era? Minha mãe. Como ela era quando você a conheceu?

– Nervosinha. Manipuladora. Sem educação. Eu gostava dela.

Ele dá um suspiro e é como se estivessem esvaziando um balão na sala.

Nessa hora, eu me toco que ele está tão nervoso quanto eu, por mais

descontraído e gente boa que esteja fingindo ser. Ele se inclina na minha

direção, com os cotovelos na mesa.

– É um dom perigoso esse seu. Muito perigoso. Não é algo que você

deva compartilhar, não é um assunto para sair falando para qualquer um.

Os outros podem perder a paciência com você, ou então se assustar. Você

entende o que eu estou dizendo, Adam?

– Entendo.

– Então você tem que guardar isso só com você. Só pode contar para

gente como eu. Na verdade, nós precisamos que você fale. Precisamos que

você conte tudo o que sabe. Fique com isso... – Ele coloca a mão no bolso

do paletó e joga um cartão em cima da mesa: nome, celular, endereço de e-

mail. – Você pode me ligar – ele diz –, a qualquer hora.

Mas quando minha avó chega para me buscar, eles a levam para um

canto da sala e começam a falar como se eu simplesmente não estivesse lá.

– Apresentando um comportamento inaceitável... recomendamos que

vocês procurem por assistência psiquiátrica... sair de casa sem supervisão...

Ela escuta com toda a atenção. Eu fico de cabeça baixa, olhando para o

chão até tudo estar terminado e nós já estarmos sentados no ônibus,

voltando para a Rua Carlton Villas.

– O que você está aprontando, Adam? O que você está tentando fazer?

Ela é a única pessoa com quem eu posso conversar, e não aqueles

desconhecidos de terno, mas não dá, não consigo. Tem uma parede nos

separando e não consigo atravessá-la. Em parte, pela pessoa que ela é, suas

atitudes, as coisas que ela diz, mas, por outro lado, também é pela pessoa

que ela não é. Ela não tem culpa se não é minha mãe, mas eu ainda não

consigo perdoá-la por isso. Ainda não.

Então, eu fico no quarto, acordado as vinte e quatro horas do dia,

vasculhando a internet, atrás de alguma pista, prestando atenção no som da

caixa de correio. Assim que escuto alguma coisa, desço correndo. Preciso

chegar antes da minha avó, pois não quero que ela saiba. Não quero que ela

veja a chuva de mensagens que o Júnior está mandando. Eu já sei o que

todas elas dizem – mais ou menos, pelo menos... Depois de receber algumas,

acho que deu para entender o recado: “6122026. Seu número tá chegando.

Tá pronto, desgraçado?” “Pode dar adeus pra sua vovozinha, mané. Você tá

ferrado.”

Às vezes ela chega antes de mim na porta. E não perde a chance de me

encher.

– É para você – ela diz. Ela está com o envelope na mão e examina com

curiosidade.

– Passa isso pra cá – eu digo, estendendo a mão.

– É de algum amigo? – ela pergunta. – Alguma namorada? Você pode

receber as pessoas aqui em casa se quiser, você sabe disso, não sabe?

Eu não respondo nada, só fico lá, de braço estendido, esperando ela

sacar a mensagem.

– Adam – ela me chama enquanto eu dou as costas e subo a escada. –

Fique aqui comigo um pouco. A gente precisa...

Sua voz se perde atrás de mim quando eu fecho a porta do

quarto. Conversar. Nós precisamos conversar. Pelo menos se eu

conseguisse.

Eu jogo o envelope junto com os outros e ligo o laptop do meu pai. Ele

é velho, demora séculos para carregar as páginas, mas pelo menos entra na

internet. Já sei o bastante de informática agora para usar o Google.

Normalmente eu digito “2027” ou “fim do mundo”, mas hoje não. Esta

noite, eu vou pesquisar o assunto que tem me mantido acordado todos esses

dias.

Meus dedos digitam as letras bem devagar, hesitando um pouco antes

de cada uma delas, até que finalmente está escrito na caixa de busca:

Quando eu vou morrer?

Enter.

Oitocentos e trinta milhões de resultados. Eu clico no primeiro.

O site fica me fazendo perguntas. “Quantos anos eu tenho? Eu fumo? Qual

o meu peso? Quantos minutos de exercício eu faço por dia?”

Nem me preocupo em ir até o fim. Páginas como essa não sabem nada

sobre o inesperado. Elas não sabem de bomba nenhuma, nem de nenhum

incêndio ou desabamento. Elas não sabem nada sobre o que vai acontecer

com Londres dentro de poucas semanas. Elas não sabem se um maníaco

com uma faca vai me acertar antes disso.

E nem eu posso saber.

SARAH

u passo o dia todo me sentindo meio enjoada, com um desconforto

estranho. Até que, em algum momento, não sei bem quando, me dou

conta que essa sensação vem em ondas, a cada dez minutos mais ou

menos, e é mais do que uma pontada leve, é dor, mesmo. Quando ela vem,

minha barriga se contrai, os músculos ficam tensos, como se não fossem

relaxar nunca mais.

Estou sozinha em casa.

Merda! Merda! Não pode ser. Eu não sei exatamente em que altura da

gravidez estou, mas devo estar perto de nove meses, não é mesmo? Eu ainda

não estou pronta. Eu pego o livro e começo a procurar alguma coisa.

“Trabalho de parto.” Meu Deus do céu, por que eu não li isso mais vezes?

Ele fala alguma coisa sobre a respiração, sobre se manter em movimento e

depois mostra umas posições. As palavras ficam flutuando e dançando em

frente aos meus olhos e outra contração vem com tudo.

Mantenha-se em movimento. Mantenha-se em movimento. Eu tento

caminhar um pouco no andar de cima da casa, mas quando sinto uma nova

contração chegar, fico paralisada. Encosto na parede e tento respirar.

Mas desse jeito fica difícil para eu me manter firme. Agora estou

chorando, gemendo e soluçando; os barulhos mais esquisitos saem de dentro

de mim sem que eu consiga ter o menor controle.

Não era para acontecer assim. Não queria nada de médicos e hospitais,

é claro, mas eu realmente acreditava que haveria mais alguém por perto

quando a hora chegasse. Eu achei que o Vinny pudesse estar aqui. Estou

caída no chão quando alguma coisa começa a escorrer. Não é um jorro, é só

E

um fio de água correndo pela minha perna. Eu me mijei, eu penso. Que

maravilha! Mas quando eu tento parar o fluxo, nada acontece, o líquido

continua a sair e escorrer. Parece que tem sangue misturado também. Isso

não deve ser bom.

Eu me arrasto até o banheiro. O barulho, meu barulho, fica mais alto lá,

ecoando na parede de azulejos. Sento na privada e deixo o resto daquele

negócio vazar. Eu podia ficar ali sentada para sempre, mas me obrigo a

levantar. Não posso deixar meu bebê nascer dentro de uma privada.

Fico apoiada na pia, segurando com força, tentando suportar a dor. Ela

está conseguindo me vencer, eu não tenho tempo para descansar. Queria

desistir e ir embora disso tudo, mas não tenho para onde ir. Eu me viro de

lado e vomito no vaso, uma, duas, três vezes, e depois solto meu corpo no

chão.

Os barulhos parecem um animal agora – gritando, gemendo, roncando.

Eu podia morrer aqui.

Se a dor não parar logo, vou morrer e não estou nem aí para isso, para

falar a verdade. Eu só quero que acabe. Só quero que isso vá embora. A dor

está na minha barriga e nas minhas costas, junto com uma pressão na minha

bunda. Eu estou a ponto de ser partida ao meio e sangrar até a morte.

Vou morrer no chão do banheiro, que nem uma drogada, mas tudo

bem. Vai ser melhor do que isso, essa tortura insuportável, esse inferno.

Estou pronta para bater as botas.

Vinny nos encontra. Nós ainda estamos no chão do banheiro. Eu consegui

alcançar umas toalhas para nos cobrir. Eu estava preocupada que minha

filha estivesse com frio. Eu a trouxe para perto de mim e a abracei, pele com

pele, para tentar passar um pouco do meu calor. Ela chorou um pouco, mas

parou logo e olhou para mim com seus olhos azuis tão lindos. Eu a abracei

carinhosamente e a beijei. Beijei o seu rosto, suas mãozinhas, seus

bracinhos.

Minha filha.

Minha garotinha.

Mia.

ADAM

só você decidir: “verdade ou desafio”. Simples assim.

– Eu não estou a fim de brincar com você.

– Por que, então, você veio aqui?

– Eu quero que você saia do meu pé. Quero que você me deixe em paz

e a minha avó também, deu pra entender?

– Aquela sua vovozinha é uma velha comédia, não é não? É preguiçosa

pra cacete! A velha fica em casa o dia todo, sentada na cadeira da cozinha,

fumando que nem louca. Dá pra ver que ela não curte muito se mexer.

Coitada. É o que eles costumam chamar de um alvo imóvel.

Tem uma janela grande nos fundos da nossa casa. E do outro lado há

um condomínio com centenas de outras janelas viradas para nós. Qualquer

um lá pode estar nos observando de uma delas. E o babaca do Júnior faz

questão de sempre falar algo da minha avó ou da nossa casa nos bilhetes.

Ele está nos vigiando.

– É isso mesmo que eu quero que pare. Essas suas ameaças idiotas. Ela

não tem nada a ver com isso. A coisa é entre mim e você. Então, vamos

resolver de uma vez e brigar aqui mesmo, só nós dois.

Minhas palavras soam mais seguras do que eu realmente estou, mas é

assim que você tem que fazer com gente como o Júnior. Você tem que falar

a língua deles.

– Eu posso sair na mão com você, se você quer tanto. Mas queria

entender umas coisas antes. Quero saber por que você fica encarando as

pessoas. Quero saber o que você tanto escreve naquele caderno. Quero

saber por que você escreveu aquele negócio a meu respeito.

– É

– Quer a “verdade”?

– Isso mesmo.

– E o que consigo em troca?

– Eu mando o meu pessoal sair da sua cola e paramos de vigiar a sua

casa.

– E por que eu devia acreditar no que você diz? Tá na cara que você

curte essa coisa toda.

– Calma aí. Você acha que eu curto ficar de olho na sua vovó

fumando até dizer chega o dia inteiro? Meu irmão, eu preferia olhar a tinta

secando na parede.

– Quer dizer, então, que você me dá a sua palavra?

– É isso aí, cara. Você tem minha palavra. – Os outros estão nos

observando. Tem uma certa tensão no ar, eles estão só imaginando como

isso vai acabar, prontos para partir para cima de mim, caso eu decida

começar alguma coisa.

– Vamos sentar e conversar como homens de verdade, só eu e você –

proponho.

Estamos em um galpão abandonado. Uma fogueira está queimando em

um dos cantos, cercada por algumas caixas de madeira empilhadas. Nós dois

sentamos a uns dois metros dela. Eu observo as chamas refletindo em seus

olhos quando ele se inclina um pouco na minha direção.

– Então, pode ir falando. Que baboseira toda é essa que você tanto

escreve?

Você não pode contar a ninguém. Nunca.

Eu sei, mas eu bem que podia contar ao Júnior. Afinal, ele não vai

acreditar em nada, mesmo. Sem falar que saber não vai fazer a menor

diferença para ele. Ele não tem meses de agonia pela frente como a minha

mãe teve. Ele não tem nem um dia, na verdade, já que hoje é o seu último.

Eu respiro fundo.

– Quando eu olho para as pessoas, eu vejo um número. E esse número é

a data em que elas vão morrer. Parece absurdo, eu sei, mas é a verdade. Eu

sempre vi esses números. Não tem jeito, não consigo evitá-los.

– Então você pode ver o meu número?

Eu sei que ele está querendo me enrolar, me fazendo pensar que

acreditou.

– É isso, mesmo.

– Daí você escreveu esse meu número no seu caderno. É aquele

número que eu vi, certo?

– Sim.

– É hoje.

Eu fico em silêncio. Já são nove e meia da noite, está escuro e frio. O

barulho das gotas de chuva batendo nas telhas onduladas do galpão é

constante ao fundo. Ele tem mais duas horas e meia, no máximo. É algo que

não parece nada provável. Todos os seus amigos estão aqui esta noite. Eles

estão em quatro e eu estou sozinho.

Ele olha ao redor e se espreguiça, abrindo os braços.

– Então, qual é que é, meu chapa? Onde que tá, me diz? Como vai rolar

essa coisa aí de morte?

É bizarro demais.

– Como vai rolar, Adam? Eu já li isso, já vi o que você escreveu. Tem

uma faca, sangue. Quem vai fazer? Não tem mais ninguém aqui além da

gente. E não tem ninguém aqui que queira brigar comigo além de você.

Quer dizer que vai ser você, Adam? Você vai me matar?

Ele está tentando me provocar, quer que eu dê o primeiro golpe. Mas,

então, sua voz fica séria. Ele passa a língua nos lábios e, em seus olhos, eu

vejo outra coisa além do seu número. Ele está com medo. Talvez, tanto

quanto eu.

Eu não queria estar no lugar do Júnior. Eu não gosto dele, é verdade. O

cara é um escroto e eu quero mais é que ele saia do meu pé de uma vez, só

que também não quero matá-lo; não quero matar ninguém.

Queria que os relógios sumissem para sempre, que o tempo parasse. Eu

queria que os números fossem embora.

O calor da fogueira está tostando o meu rosto. Alguém jogou uma

tábua no meio. As cinzas ainda quentes e vermelhas flutuam ao redor,

colorindo a escuridão.

– Estou indo – eu digo, enquanto me levanto. – Júnior, eu vim aqui

para brigar com você, mas não quero fazer isso. Eu já disse a verdade, então

agora você já pode me deixar em paz. Era esse o nosso acordo, não era?

Ele faz um sinal para os outros e eles partem para cima de mim, me

agarrando por trás, amarrando meu braço atrás das costas.

– Sou um homem de palavra, então vou desencanar da sua avó. Mas

não pense que você pode ir embora assim. Você disse que veio aqui pra

brigar, então a gente vai ter que brigar. De homem pra homem, só eu e

você. Podem revistar o imbecil.

Eu começo a chutar e dar coices para tentar afastá-los, mas não

adianta. Eles estão me apalpando inteiro e mexendo nos meus bolsos. E é

claro que encontram a faca que eu trouxe. Ela não estava escondida, estava

bem à mão na verdade, enfiada no meu cinto, para o caso de eu precisar

usá-la.

– Você trouxe uma faca?

– Autodefesa, cara.

– Mas eu não tô armado. – Ele ergue as mãos vazias.

– Não confio em você.

Eu não posso ser o único que trouxe uma faca. Ele vira os bolsos do

avesso e abre a jaqueta para mostrar que não trouxe nada. Que merda, a

única faca aqui é a minha. E agora eu estou na mão deles, sem nenhuma

defesa.

– Você veio aqui pra usar essa faca em mim. Veio me matar? – Ele

chega bem perto de mim, apertando o dedo contra o meu peito. “Tudo bem.

Só que eu não vou cair nessa. Você não vai me pegar. Amanhã, você vai ter

que pegar aquele seu caderninho e riscar o meu nome, porque eu não vou a

lugar nenhum hoje. Você entendeu tudo errado, babaca.

Ele acerta um soco com toda a força na minha barriga.

– O único que tá correndo risco de vida aqui hoje é você, meu irmão.”

Ele me dá outro soco, bem no começo das costelas. E outro. E mais

outro. Eu tento ficar firme na frente dele, mas com os braços amarrados,

não posso fazer nada. Ele está me batendo na cabeça agora. Meu lábio se

corta e agora estou sangrando. O cheiro de sangue me manda direto para a

minha visão.

– Já chega, Júnior. Você tinha dito que ia ser uma briga justa – diz um

dos caras que me revistou.

– Cala a boca.

– Ele já apanhou demais, dá só uma olhada para o cara. Ele tá

detonado.

– Eu falei pra você calar essa merda de boca.

– E quem é que vai fazer?

Eu não escuto muito bem o que eles estão dizendo. Minha cabeça está

pendendo para a frente e minhas pernas estão moles. Se não estivessem me

segurando, eu estaria caído no chão agora.

E o Júnior não quer parar de me bater. Agora já pegou gosto pela coisa.

Mais alguns socos na barriga e eu estou vomitando sangue. Ele está me

matando. E está fazendo isso sem precisar de faca nenhuma, pois seus

punhos dão conta do recado.

– Deixa o cara em paz, Júnior.

Outro soco.

– Eu disse pra parar.

Eu não consigo ver mais nada. Só o que eu tenho diante dos olhos é

uma mancha vermelha. Estou pendendo para a frente e, de repente, sinto

que me largaram e meu corpo está caindo devagar. Tento me equilibrar.

Então vem um grito, um gemido alto e cheio de raiva, e alguém esbarra no

meu ombro, me jogando para o lado. Mais gemidos, pés arrastando no chão,

gritos, vozes sem palavras e o espaço diante dos meus olhos começa a passar

de vermelho para preto.

Só o que eu percebo é o som das chamas que consomem a madeira

aumentando, enquanto eu caio na fogueira. Meus braços e pernas não

funcionam. Não consigo sair dali. Eu obrigo os olhos a se abrirem e vejo as

faíscas viajando pelos ares, pontos iluminados subindo e subindo, voando ao

meu redor. Através das chamas, eu vejo o brilho de uma lâmina, o olhar de

surpresa no rosto do Júnior e seu número piscando como um desses

anúncios na porta das lojas.

Liga, desliga. Liga, desliga.

Alguém está gritando.

As chamas alcançam o meu rosto, minhas narinas se enchem com o

cheiro de carne cozinhando.

Alguém está gritando.

Sou eu.

SARAH

s primeiros dias passam na maior tranquilidade. Se ela chora, dou

de mamar. É verdade que preciso tomar coragem para começar,

pois dói pra caramba quando ela começa a sugar, mas depois de

alguns segundos a dor diminui e o leite faz a sua mágica – nela e em mim.

Ela parece que fica bêbada com ele – acalma-se na hora, não liga para mais

nada ao redor, fica feliz. Seu corpo inteiro relaxa, os braços caem para os

lados e o único movimento é o de sua orelha, indo e voltando, conforme seu

queixo sobe e desce de maneira ritmada – suga, suga, suga, pausa... suga,

suga, suga, pausa. E me refugio em um lugar em que só existimos eu e ela,

nada mais – um mundo tranquilo, aconchegante e seguro, claro como o

leite.

Eu não sabia que ia ser desse jeito. Mas como eu podia saber? É incrível

como você pode amar uma pessoa desde o primeiro instante em que a vê.

Pois é assim comigo. Amo a minha filha. Ela é uma parte de mim que

agora se separou e se transformou em uma pessoa – e a amo tanto. Eu

odiava a minha vida, cada instante dela. Odiava ser eu mesma. Mas agora

isso tudo passou, meu passado já era. Como eu cheguei aqui, quem eu

costumava ser, não faz mais diferença. Eu queria ser uma nova pessoa e

agora eu sou. Eu sou a mãe da Mia: e isso é maravilhoso.

O

ADAM

u estou tipo um boneco de neve que ficou no sol. Tudo de um lado

do meu rosto derreteu. Os contornos desapareceram. Um rosto sem

detalhes – pelo menos, parte dele. Na primeira vez em que me olho

no espelho, não choro. Eu só fico olhando e olhando, tentando procurar a

mim mesmo nesse rosto. Olho para o lado e depois para o espelho de novo,

esperando que ele esteja diferente, esperando que um milagre aconteça e eu

volte ao normal.

Mas milagres não existem. Estou marcado pelo fogo e as cicatrizes vão

me acompanhar para sempre.

A polícia aparece de vez em quando, perguntando todo tipo de coisa,

mas eu não quero falar. Eu fecho os olhos e fico de boca calada. Com isso,

eles desistem. As cortinas ao redor da cama ficam sempre fechadas. Eu não

quero ver ninguém, nem quero que os outros me vejam. Quando as

enfermeiras entram, eu não olho para elas. A última coisa que eu preciso

agora é ver mais números. Por algumas semanas, isso funciona, até que um

dia a enfermeira não fecha direito a cortina e quando eu levanto o espelho

até o meu rosto para vê-lo, percebo que o garoto da cama ao lado está me

observando pela fresta que ficou. Ele é mais novo que eu – um garotinho

pálido e completamente careca de uns onze anos de idade. Eu conheço essa

aparência. Ele está fazendo quimioterapia, igual à minha mãe.

Eu o pego me olhando, mas em vez de ficar sem jeito e olhar para o

lado, ele olha bem nos meus olhos e diz: “O que aconteceu com você?”.

Eu não estou com a menor vontade de conversar com ele. Não quero

conversar com ninguém, especialmente com alguém que tenha um número

E

terminado em 27. E é exatamente esse o caso desse menino. Ele está aqui,

afundado até o pescoço na quimioterapia, querendo se curar, mas seu

número fica me dizendo que ele vai bater as botas dentro de poucas

semanas, junto com todos os outros. Eu finjo que não estou escutando,

então ele fala mais alto.

– O que aconteceu? Parece uma queimadura. – Ele não desiste.

– Caí em uma fogueira – eu digo finalmente. Mas o tom da minha voz

diz mais que isso. Pronto, eu disse a você o que foi que me aconteceu.

Agora, cala a boca e me deixa em paz.

Ele balança a cabeça.

– Eu me chamo Wesley – ele continua. – Eu tenho câncer, igualzinho

ao Jake, que está logo ali, mas o dele é nos rins e eu tenho leucemia. É um

tipo de câncer no sangue.

Por alguma razão, ele entende o fato de eu não responder nada como

um convite e, antes que eu perceba, tira os lençóis do caminho, escorrega

para fora da cama, abre as minhas cortinas e se aproxima de mim.

– Aquele é o Carl – ele fala baixinho, apontando com a cabeça para o

garoto na cama em frente à minha, com as duas pernas engessadas e

erguidas. – Acidente de carro – ele cochicha –, perdeu o pai e o irmão.

– Que bosta.

– Pois é.

Carl está olhando na nossa direção, mas ele não está nos vendo de

verdade. Seus olhos estão vidrados e ausentes, mas, mesmo assim, eu ainda

consigo ver o seu número. Ele parte amanhã.

– Ele está mal, cara. Está mal de verdade – eu digo ao Wesley.

– Não – ele responde. – Ele parece mal, mas está bem melhor do que

estava antes. São somente as pernas quebradas agora. O resto está bem.

É claro que ele escutou isso dos médicos, mas eles estão errados. Os

números não mudam. Eles não mentem jamais. Eu saberia.

Minha avó veio me visitar no fim da tarde.

– Vó, você tem que me tirar daqui.

– Está se sentido preso aqui? Eu não o culpo, querido.

Ela trouxe um pacote de balas de menta para mim, que deixou em cima

da mesinha ao lado da cama, mas é ela quem as chupa sem parar.

– Isso aqui está me deixando maluco. – Eu abaixo a voz e faço um gesto

para ela se aproximar. – São os números, vó. Sempre eles. Algumas pessoas

daqui não têm tanto tempo assim de vida.

Ela para de mastigar e me olha direto nos olhos.

– Aquele garoto ali, com as pernas para cima. Amanhã é o dia dele e

ninguém nem suspeita disso. Eles acham que ele está bem. Nem se

incomodam com ele.

– Você tem certeza do que está falando?

– É claro que tenho. Eu não falaria se não soubesse, se não tivesse visto.

– Você devia avisar alguém.

– Será que devia?

– Talvez...

– Mas não ia fazer nenhuma diferença. Não fez diferença com a minha

mãe, nem com o Júnior.

– E se fizer diferença desta vez?

– Vó, eu vi isso a minha vida toda. Os números não mudam. Eu podia

ter morrido naquela fogueira, mas eu não morri, porque não era o meu dia.

O Júnior podia só ter se machucado com a facada, mas não foi isso que

aconteceu. Ele morreu por causa dela. Eu vi o seu número. Ele estava

marcado. Ninguém poderia ter mudado as coisas.

– Mas isso não devia nos fazer parar de tentar... Vou trocar algumas

palavras com alguém da equipe do hospital. Nós precisamos mesmo tirar

você daqui. Não acho que este seja um bom lugar para você.

Ela levanta e vai procurar alguém, para tratar desse assunto, e o pacote

de balas vai embora junto com ela.

Naquela noite, quando a enfermeira de plantão aparece para fazer a

última ronda antes das luzes apagarem, tento fazer alguma coisa.

– Será que você não poderia dar uma olhada no Carl? – eu digo depois

de tomar os remédios que ela me entrega.

– Claro que sim – ela responde. – Vou ver como todos aqui estão.

– Eu sei, mas não é isso. Será que você não podia continuar verificando

como ele está durante a noite inteira? Só hoje.

Ele olha para mim como se eu fosse maluco, então alisa os lençóis sobre

as minhas pernas.

– Não precisa se preocupar com ele. Ele está indo muito bem.

Quando as luzes da enfermaria se apagam, eu acendo o abajur ao lado

da cama e me sento. Eu estou decidido a cumprir a promessa que me fiz

alguns minutos atrás: vou ficar acordado de olho nele a noite inteira, atento

ao menor sinal de que algo estranho possa estar acontecendo. Talvez, se eu

conseguir avisar as enfermeiras, ele tenha alguma chance. Só que o tempo

passa e a luta contra o sono vai ficando cada vez mais difícil. Eu me distraio

um pouco e quando dou por mim, minhas pálpebras estão quase

completamente fechadas. Esfrego os olhos, pisco rápido algumas vezes e

então os abro bem, depois me dou um belo beliscão no braço. Isso até que

funciona, mas eu só fico acordado mais alguns minutos. O silêncio e a quase

total escuridão da enfermaria me hipnotizam, eu sinto que meu corpo está

se entregando e não consigo evitar cair no sono. A próxima coisa que eu

vejo é a luz acesa sobre a cama em frente à minha e uma porção de gente

vestida de branco em volta dela. E de repente alguém fecha as cortinas.

– O que foi? O que está acontecendo? – Não parece ter ninguém

escutando. Wesley e Jake ainda estão dormindo, apesar de toda a agitação a

poucos metros de suas camas, e todos os outros estão com as atenções

voltadas para o Carl.

Mais tarde, ninguém da equipe parece a fim de falar sobre o que se

passou. Nem mesmo o Wesley consegue descobrir o que aconteceu.

– É alguma coisa ruim de verdade – ele me diz. – Alguém se descuidou

e acabou fazendo besteira, caso contrário, eles teriam nos contado.

O que ele não sabe é o que eu vi quando eles estavam trabalhando no

Carl, tentando salvar sua vida: um rio de sangue correndo por baixo das

cortinas, uma tesoura caindo no chão e sendo chutada para longe por

alguém, no meio da confusão. Pelo que parece, foi o Carl quem acabou

dando um fim na própria vida.

Eu penso nisso o dia todo. Nenhuma outra coisa passa pela minha

cabeça. Se eu tivesse conseguido ficar acordado, se eu tivesse tocado o

alarme mais cedo... Talvez eles o tivessem salvado. Eu sabia que algo estava

para acontecer – eu devia ter feito alguém me ouvir. A culpa foi minha.

Agora há um espaço vazio no lugar em que ficava a cama dele. Eu me

levanto da minha e vou até lá.

– Foi mal, cara – eu sussurro. – Eu te deixei na mão.

Por alguma razão, agora eu acho que a minha avó tem razão. Se você

tentar com todas as forças, então talvez possa mudar os números. Se eu

tivesse ficado acordado, se tivesse visto o que estava acontecendo, tudo

poderia ter sido diferente. Agora eu estou pensando em todos os 27 pela

cidade. Eles continuam lá fora.

Se eu prevenir as pessoas, se conseguir fazer com que elas me escutem,

talvez possa evitar milhares ou até milhões de mortes. Talvez eu tenha uma

chance real de salvar essas pessoas – ou pelo menos uma parte delas. E

mesmo que eu salvasse apenas algumas, já ia valer a pena, não ia?

Acontece que o tempo está acabando. Eu preciso começar logo a avisar

as pessoas.

Mas como vou fazer para elas me escutarem?

E o que exatamente vou dizer?

SARAH

la não quer parar de chorar. Simplesmente não quer parar.

Parece que veio do nada. Numa bela noite, ela simplesmente começa

a chorar. Dou de mamar e não adianta. Troco a fralda e não faz a

menor diferença. Eu a pego no colo e depois a seguro na altura do meu

ombro e fico andando de um lado para o outro do quarto para ver se ela se

acalma. Depois de uma eternidade, ela cai no sono por puro cansaço.

Eu a coloco na gaveta que estou usando como berço e desabo na cama.

Ainda consigo escutar o som do choro, como se ele estivesse ecoando

eternamente nas paredes do quarto. Me encolho toda e tampo os ouvidos

com as mãos. Eu também acabo dormindo, mas não sei por quanto tempo.

Só o que eu sei é que o choro dela consegue penetrar nos meus sonhos e me

puxar de volta para o mundo real. Me levanto automaticamente e vou até

ela. Sua pele está quente e melada de suor.

Apelo para tudo o que sei: dou de mamar, troco-a de novo, canto,

pego-a no colo. E ela só chora, chora e chora.

Vinny bate na porta e entra.

– Tudo bem por aqui? Vi que a luz estava acesa. Bom... e também

escutei vocês duas. Toma aqui, eu trouxe um pouco de chá.

– Que horas são?

– Umas cinco.

– Da manhã?

– Isso.

– Ela não para, Vin. Eu não sei mais o que fazer – eu digo com uma voz

aguda e trêmula.

E

– Pra começar, passa ela pra cá e toma o seu chá com calma. Depois a

gente vê o que pode fazer.

Ele a pega do meu colo.

– Meu Deus, Sarah, ela está pegando fogo!

– Eu sei. O que eu faço,Vin? O que eu faço, pelo amor de Deus?

– Ela precisa ir para o Pronto Socorro, não vai ter jeito. A gente vai ter

que apelar para o hospital.

– Não dá. Eu não posso. Eles vão querer identidades, um endereço e

tudo mais...

– A gente tem que fazer alguma coisa, Sarah. Ela não pode ficar assim.

É só fingir que você esqueceu a identidade e usar um nome falso. Vai dar

tudo certo. Eles vão ver o estado em que ela está e vão cuidar dela, que é só

um bebê e precisa de ajuda, eles vão ver isso. Vem logo. É melhor você

pegar umas roupas. Eu só vou buscar a chave do carro.

No carro, como Vinny não tem uma cadeirinha para Mia, eu me sento

no banco de trás e a levo no meu colo.

– Vá devagar – eu digo.

– Pode deixar.

O hospital é um lugar branco e iluminado. Não é um bom ambiente

para quem mal tem saído de casa nos últimos tempos. É tão movimentado,

tão grande, tão limpo. Eu dou uma olhada em mim mesma: um suéter

manchado por cima de uma camiseta velha, uma calça de moletom e

chinelos – nada de meias. Eu pareço mais alguém que mora na rua.

– Seu nome?

– Sally Harrison.

– Identidade, por favor.

– Que droga, eu deixei em casa. Foi tanta correria quando nós saímos

que eu me esqueci...

A recepcionista me olha e levanta uma sobrancelha.

– Você não tem um chip?

– Não.

– E a criança?

– Também não.

Eles podem se negar a atender sem identidades se quiserem. Eu olho

para ela, imaginando o que vai acontecer.

– Por favor – eu peço, desesperadamente.

Ela continua olhando para mim com aquela cara de desconfiada, mas

então simplesmente dá um suspiro, aperta uma tecla no computador e me

pede mais detalhes. Eu passo um endereço e um número de telefone falsos e

conto tudo quanto posso sobre os sintomas da Mia.

Vinte minutos mais tarde, uma enfermeira nos leva até uma sala. A

médica chega logo depois – ela parece ser jovem, mas tem olheiras enormes

embaixo dos olhos e vários fios do seu cabelo loiro escapam para fora do

rabo de cavalo bagunçado que ela está usando.

– Vamos dar uma olhada nessa garotinha.

Elas a deitam em um colchão dentro de uma espécie de tanque feito de

plástico, parecido com um aquário, e começam a tirar suas roupas,

delicadamente.

– Há quanto tempo ela está com essa temperatura?

– Já faz umas vinte horas. Ela também passou esse tempo todo

chorando.

– Ela está mamando direito?

– Não come desde que começou a chorar.

Elas observam cada pedacinho do seu corpo, examinam seus olhos,

orelhas e boca, mexem seus braços e pernas suavemente.

– Sua filha está com uma pequena infecção em torno do cordão

umbilical. Está vendo como ele está vermelho e inchado?

Quando a médica me mostra, fica óbvio. A pele está inchada e irritada

perto do que sobrou do cordão umbilical. Meu Deus do céu, como eu não vi

isso? Que tipo de mãe eu sou? Ela estava chorando porque estava doendo.

– Alguns antibióticos devem resolver. – Antes que eu perceba, elas

estão injetando alguma coisa na perna da minha filha. Na sequência, a

médica tira mais uma seringa da embalagem.

– Ela ainda não tem um chip, não é?

– Não, mas...

– É obrigatório. – Ela me olha nos olhos e eu entendo que não vai

adiantar discutir. E mesmo que eu quisesse, agora é tarde. A agulha já está

dentro, o chip já está sendo injetado.

– Nós podemos registrar todos os detalhes depois, na enfermaria.

– Enfermaria?

– Precisamos ser cuidadosos com infecções nessa parte do corpo.

Eventualmente, elas podem levar a um quadro de tétano. Então, o mais

indicado é a mantermos aqui, para ver como ela responde ao tratamento.

Eles vão mantê-la aqui?

– Você não pode só dar um remédio? Nós não queremos ficar.

Precisamos ir embora...

– Nós precisamos observá-la. Tétano é um grande perigo para um bebê

tão novo. Não podemos correr esse risco. Parece que você precisa descansar

um pouco. Vocês duas podem ir para a enfermaria da maternidade, eu posso

pedir um quarto individual se você preferir.

As coisas estão saindo do controle. Agora que ela está aqui, parece que

eles não querem deixá-la sair. Eles a pegaram. Implantaram um chip nela. A

ideia de um negócio desses enfiado no corpo da minha filha me dá náuseas.

Eu não queria isso para ela. Eu não queria que ela fosse marcada,

identificada e rastreada pelo resto da vida.

Mas basta eu me manter firme com a minha história – identidade

esquecida, nome e endereço falsos – e tudo vai dar certo, não é mesmo? É o

que o Vinny disse. Me viro e olho mais uma vez para a barriga da minha

menininha, para a pele infeccionada, esticada e brilhante por causa do

inchaço, e sei que nós não temos escolha.

ADAM

les não querem me dar alta, mas eu vou embora mesmo assim. Não

tem mais como eu ficar aqui. Isso tudo está me deixando maluco.

Minha avó trouxe roupas limpas e, enquanto a enfermeira explica a

ela como cuidar do meu rosto, eu me visto. É hora de ir.

Wesley está com a cabeça enfiada em um balde. Quando eu me

aproximo para dizer tchau, ele ergue a mão, mas não diz nada.

– Aguenta firme aí, Wes – eu digo. Mas o que eu quero mesmo é falar

para ele parar com a quimioterapia e aproveitar o tempo que ainda tem.

Afinal de contas, ele é um 27, o que significa que tem um pouco mais de

uma semana pela frente. Mas então eu começo a pensar que vou tentar

mudar as coisas e que talvez ele vá precisar da quimioterapia – ela pode dar

a ele um pouco mais de tempo.

É uma sensação muito estranha cruzar a enfermaria depois desses dias.

Não posso evitar olhar para a cama em que o Carl estava. Há alguém

diferente lá agora e logo haverá outra pessoa também no meu lugar. É como

se existisse uma linha de produção interminável de doentes e feridos –

alguns deles acabam melhorando, outros não. Uma nuvem escura paira

sobre a minha cabeça quando eu penso no que aconteceu ao Carl. Eu ainda

sinto como se a culpa fosse minha. Tudo o que eu tinha que fazer era ficar

acordado, e eu o deixei na mão.

– O que tem de errado com você, querido? Achei que você queria sair

logo daqui.

– Não é nada. É só... esse lugar.

– Você fez o que foi possível, ela diz, lendo os meus pensamentos.

E

– Mas eu podia ter feito melhor.

– Pare de se torturar. Vamos logo embora daqui.

Eu me surpreendo com a dificuldade para caminhar. Nesses dezessete

dias que eu fiquei internado, parece que as minhas pernas desligaram. Os

corredores parecem não ter fim.

– Tem um ponto de ônibus logo ali à esquerda. Adam? Adam...

A voz dela vai sumindo até eu não conseguir escutar mais nada. Só

consigo prestar atenção em uma garota entrando em um carro velho todo

amassado, no estacionamento do hospital. Ela está com um casaco

pendurado nos ombros e eu não consigo ver os seus braços. Um magrelo

alto está ajudando-a a entrar. Agora ele está na frente dela, tampando a

minha visão e eu não consigo enxergá-la direito, mas não é preciso mais do

que uma olhada rápida para eu ter certeza.

É a Sarah.

O cabelo está diferente, quase todo raspado, com um moicano esquisito

no meio. Mas é ela. Meu Deus do céu, é ela mesma.

Eu fico ali parado como um idiota, olhando enquanto ela se acomoda

no banco de trás. O outro sujeito fecha a porta e dá a volta no carro, até o

banco do motorista e só então eu me ligo. Ela está indo embora! Em poucos

instantes ela estará longe daqui e eu posso nunca mais encontrá-la. O que

diabos eu estou fazendo parado?

– Adam? Aonde você pensa que está...?

Eu começo a andar na direção do estacionamento, cada vez mais rápido

até sair correndo de vez. Ele já ligou o motor, e o carro está se movendo.

Vou tentar interceptá-los na barreira da saída. Eles vão ter que parar lá para

serem liberados. O carro anda bem devagar e eu chego um pouco antes

deles. Eu faço sinal com o braço para o motorista parar. Ele parece um

pouco assustado, mas é obrigado a parar de qualquer jeito. Ele encosta o

carro, abre a janela do passageiro e se inclina um pouco na minha direção.

– Tudo bem aí, cara? – ele pergunta.

Eu dou uma olhada para o banco de trás. O encosto de cabeça do

banco da frente fica no caminho da minha vista.

– Eu só queria... só queria... Sarah?

Ela se move um pouco para o lado e eu vejo o seu rosto. É ela, não resta

a menor dúvida. Eu estou diante do rosto que não saiu da minha cabeça

todo esse tempo, o rosto do qual eu fico relembrando todo dia antes de

pegar no sono. Ela engasga e fica parada por uns segundos, de boca aberta.

Só então eu me lembro de como o meu próprio rosto está. Deve ser meio

chocante para ela vê-lo desse jeito.

Eu ergo a mão e coloco na frente das cicatrizes.

– Não está tão mal quanto parece... – eu começo a explicar. Mas agora

ela está olhando para frente e gritando.

– Vai logo, Vinny! A gente tem que ir embora daqui AGORA! Acelera

esse carro! Acelera!

– Sarah, não!

O tal de Vinny acelera e o carro se move alguns metros cantando pneu.

Mas a barreira ainda não abriu. Eu coloco a mão na porta traseira do carro e

me inclino pela janela. Sarah ainda está gritando, mas quando me vê para e

só se encolhe do outro lado, amedrontada.

Assim que a cancela começa a abrir, Vinny arranca com o carro e sai.

O metal do carro desliza pelos meus dedos e eu fico lá, parado, sem

entender direito o que acaba de acontecer. Foi como da primeira vez em

que ela me viu, só que muito pior. Por que será que ela tem tanto medo de

mim? Quem ela é na verdade e quem ela acha que eu sou?

– Adam.

Olho para trás, por cima do ombro. Minha avó está esperando na

calçada, olhando tudo. Eu começo a caminhar devagar em sua direção.

– Quem eram aquelas pessoas?

– Era só uma garota que eu conheço.

– Qual o problema com ela?

– Ela me odeia. E morre de medo de mim.

Ela fecha a cara.

– Medo? Como assim? O que você fez a essa garota, Adam?

– Não fiz nada. Ela sabe alguma coisa sobre mim ou pensa que sabe.

Algo que a faz reagir desse jeito.

– Estão fazendo fofoca de você por aí? Inventando histórias a seu

respeito?

– Não. Não é nada disso. Ela fez a mesma coisa quando nos vimos pela

primeira vez na escola, no primeiro dia de aula. – É então que a ficha cai e

quando eu digo em alto e bom som, parece ser a mais pura verdade. – Ela é

diferente. Diferente como eu e você. Você vê essa coisa das auras. Eu vejo

os números. Ela também tem alguma coisa. Ela sabe de algo.

Minha avó não ri da minha cara. Ela não acha que eu estou ficando

doido.

Ela enfia a mão na bolsa e tira um cigarro, acende-o, traga

profundamente e solta uma nuvem de fumaça bem em cima de um aviso

que diz PROIBIDO FUMAR NAS DEPENDÊNCIAS DO HOSPITAL.

SUJEITO A MULTA DE €200.

– Se é assim, acho melhor você encontrá-la logo, querido – ela diz, com

uma cara séria. – Você precisa encontrar essa garota e ela tem que dizer o

que sabe a seu respeito.

SARAH

ra ele. E o seu rosto era o mesmo dos meus pesadelos. Um dos lados

tinha uma cicatriz enorme, parecia estar derretido.

Como eu poderia saber que aquele rosto perfeito que eu tinha visto

na escola acabaria queimado desse jeito? E mais: como eu sei que eu o

encontrarei novamente em outro incêndio?

Eu achava que os pesadelos podiam desaparecer quando minha filha

nascesse. Ao que parece, eles começaram logo nas primeiras semanas dela

dentro de mim, antes mesmo que eu imaginasse estar grávida. Se foi ela que,

de alguma maneira, os fez aparecer, imaginei que talvez eles fossem dela e

que, uma vez que ela tivesse saído, eles sairiam junto. Só que ela os deixou

comigo. Na mesma noite em que voltamos do hospital, eu tenho o pesadelo

de novo. Dessa vez, eu vejo a cidade toda destruída; prédios reduzidos a

montanhas de destroços, rachaduras imensas no asfalto, grandes demais

para você conseguir pulá-las; gente morta nas ruas; corpos sendo retirados

dos escombros. E só o que consigo pensar é na minha filha. Mia não está

comigo. Eu preciso encontra-lá.

Eu obrigo meu corpo a despertar do sono. Onde ela está? Meu Deus,

onde está a minha filha? Começo a tatear as coisas no escuro, desesperada.

E então minhas mãos encontram sua cabecinha e alisam sua pele tão macia

e quentinha. Ela está lá, dormindo tranquilamente em sua gaveta-berço.

Foi só um sonho. Nada daquilo é real.

Esse pesadelo não faz o menor sentido. Afinal, eu nunca deixaria Mia

sair da minha vista. Isso é só a minha cabeça tentando me pregar uma peça

– pegando meus maiores medos, misturando tudo e vendo no que dá.

E

A não ser... A não ser pelo fato de que, uma por uma, as peças estão se

encaixando como em um quebra-cabeça. Mia. Adam. Eu.

Tem algo de inevitável em tudo isso.

Eu não consigo aguentar. É muito solitário lidar com essas coisas

sozinha, no escuro.

Eu alcanço Mia novamente e a puxo para cima da cama, para perto de

mim, e a abraço. Ela acaba acordando. Eu acho que nunca fiz isso antes,

sempre a deixei dormir segundo seu próprio ritmo. Mas ela está acordada

agora e nem ameaçou começar a chorar. Eu a coloco de pé, com as costas

apoiadas nas minhas pernas dobradas. Eu seguro suas mãos delicadamente e

ela agarra meu dedão com firmeza. E nós ficamos assim, nos observando em

silêncio, olho no olho, por um bom tempo.

– Eu não vou te abandonar – eu digo finalmente. – Eu não vou te

abandonar jamais, minha princesinha.

Fico esperando que ela me diga o mesmo de volta. Às vezes, eu acho

que dar à luz me deixou meio fora de órbita. Parece que meu cérebro ficou

menos exigente com a realidade, que os limites não estão mais tão claros

para ele. Se agora ela me dissesseEu também não vou abandoná-la, mamãe,

eu não ficaria nem um pouco surpresa. Nada mais normal em um mundo

que é só leite e noites maldormidas.

Mas ela não me diz nada. Só olha, olha e olha. Então, aos poucos, suas

pálpebras vão ficando pesadas demais para ela. Por alguns minutos elas

ficam alternando entre fechadas e abertas, até que finalmente se fecham e

não abrem mais. Ela está respirando pela boca pesadamente, quase

roncando. Eu a coloco ao meu lado no colchão.

Independentemente do que possa acontecer e do que o futuro esteja

nos reservando, agora nós estamos juntas – tão juntas que uma está

respirando o ar vindo dos pulmões da outra – e dividindo nosso sono. Nós

temos o agora. E, por enquanto, isso é o bastante.

Caio no sono de novo e desta vez Mia está chorando e eu também. Nós

estamos cercadas por uma parede de chamas. Nós vamos queimar aqui,

vamos queimar vivas. Eu não ligo para o que pode me acontecer, só não

posso suportar a ideia de que algo possa acontecer a ela. Eu a cubro com o

meu corpo, tentando protegê-la do fogo. As chamas estão mais próximas a

cada instante. Está tão quente que minhas roupas estão derretendo.

– Sarah! Sarah!

Alguém está chacoalhando o meu ombro. É ele. Adam. Ele quer me

dizer alguma coisa, mas ao nosso redor tudo está desmoronando. Eu não

consigo ouvi-lo.

– Sarah, acorda! Ei, tem alguém aí? Acorda!

Abro os olhos, sem saber direito onde estou. Grito e minha filha

também, mas o ar está fresco. Eu estou no quarto no squat e quem está me

acordando não é o Adam, e sim o Vinny.

– Você acordou a menina – ele diz. Eu a pego no colo. Minha

garotinha. Eu a assustei. Levanto da cama e ando de lá para cá com ela,

balançando levemente o seu corpinho, mas isso não adianta. Então eu volto

para a cama e tento dar de mamar. Ela agarra o meu peito como se fosse a

coisa mais importante de todas e começa a sugar. Eu limpo as lágrimas ao

redor do olhinho que está virado para mim e, aos poucos, ela vai se

acalmando – e eu vou ficando mais calma também.

– Você precisa fazer alguma coisa, Sarah. Conversar com alguém.

– Você quer dizer um psicólogo?

– Talvez.

– Para conversar sobre a minha infância e tudo mais?

– E por que não? Bem que podia te ajudar.

– Mas meus pesadelos não têm relação com o passado, Vinny, e sim

com o futuro.

– Quê?

– Eles indicam algo que ainda vai acontecer comigo e com a minha

menininha. E não só com nós duas. Parece maior, algo grande de verdade.

– Eu posso ver os desenhos? Você desenhou tudo, não foi?

Eu tinha feito alguns desenhos no papel de parede que encontrei, mas

depois enrolei tudo de novo, eu não aguentava mais ficar olhando para

aquelas coisas.

– Logo ali – eu digo, apontando com a cabeça para o rolo de papel

encostado na parede, no canto do quarto. Vinny começa a desenrolá-lo

segurando o desenho em frente aos seus olhos, mas então ele percebe que o

desenho é maior do que imaginava e o coloca no chão, usando os meus

sapatos para segurar as pontas.

– Meu Deus do céu, cara – ele diz, impressionado. – Puta que pariu!

Esse aqui é aquele carinha, o garoto no estacionamento do hospital. E todo

esse fogo, esses prédios em ruínas. Caramba, Sarah, você tem ideia do que tá

desenhado aqui?

Eu faço que sim com a cabeça e quando olho de volta, ele está com cara

de assustado.

– E isso aqui é uma data? É o dia primeiro de janeiro de 2027?

– É essa a data em que meu pesadelo acontece.

– Cacete!

Ele esfrega o rosto com as mãos e quando olha para mim novamente,

está ainda mais assustado.

– Você não pode guardar isso só pra você, garota. Não se for real. Isso é

real, Sarah?

– Eu não sei, Vin. Parece bastante real para mim. Aquele garoto,

Adam, eu já o via no meu pesadelo antes mesmo de conhecê-lo. E quando

eu o vi pela primeira vez, ele ainda não tinha aquela cicatriz, mas eu já a

tinha visto em meu sonho, já sabia que ele acabaria ficando do jeito que está

agora.

– Que merda, cara. Que merda. Isso tudo é esquisito demais pra mim.

Esse assunto é sinistro. Você tem que avisar as pessoas. Eu conheço o lugar

certo pra isso. Vem comigo, eu te levo.

– São cinco da manhã, Vin. E estou alimentando a minha filha.

– Assim que ela terminar a gente vai, então. Eu levo você. E também

vou ver se arrumo uns sprays de tinta. Eu conheço um cara que pode ter

alguma coisa. Você precisa contar isso ao mundo.

– Vinny, você quer dizer sair por aí pichando as paredes?

– É isso aí, Sarah, você já tá pegando o espírito. Mas não é pichação é

grafite, sacou?

– Ah, não. Nem vem com essa. Sem chance.

Ele fica sério.

– Você tem que fazer isso. Não tem escolha. As pessoas lá fora têm que

saber.

– Cala a boca. Não tenho que...

– Você tem sim. Ou você vai me dizer que não sabe o que toda essa

desgraça quer dizer?

Eu balanço a cabeça para os lados.

Ele olha para mim, depois para o desenho e então para mim

novamente, com os olhos arregalados.

– É o dia do Juízo Final, Sarah. Você desenhou a porra do dia do Juízo

Final, sacou agora?

ADAM

u não quero sair de casa. Não quero ver ninguém. Minha avó sai do

seu posto habitual, no banquinho da cozinha, para vir me ver no

quarto um milhão de vezes por dia, mas só o que eu quero é que me

deixem aqui sozinho.

Uma bela noite, ela entra escondendo alguma coisa atrás das costas.

– Trouxe um presente para você – ela diz, animada. E então me mostra

um pacote quadrado, embrulhado com um papel de presente cheio de

pássaros.

– O que é isso?

– Nada demais, na verdade. Só uma lembrancinha de Natal. Feliz

Natal, Adam.

Sério mesmo? Hoje é 25122026? Quer dizer que só falta uma semana.

– Você não vai abrir? – ela pergunta, apontando com a cabeça e

olhando para o pacote, tentando me encorajar a ter alguma reação.

Fico meio atrapalhado com a fita, mas acabo conseguindo abrir o

presente. É uma caixa de chocolates.

– Obrigado – eu agradeço, sem graça. – Eu não comprei...

– Não tem problema, querido. Não precisa me dar nenhum presente.

Eu não imaginava que você fosse lembrar que dia é hoje. Estou preparando

o jantar, um belo assado com tudo o que a gente tem direito. Você não quer

descer logo mais? Aposto que você vai adorar.

– Não, vó, tudo bem. Acho que vou ficar por aqui, mesmo.

– Eu trago aqui em cima então, pode ser? Parece que vai ficar gostoso.

Tem de tudo um pouco: peru, linguiça, carne, batata assada... Eu nunca

E

imaginei que dava para colocar tudo isso no micro-ondas. Impressionante...

– Não precisa trazer, eu estou bem aqui assim. Não estou com a menor

fome, na verdade.

– Você devia comer alguma coisa, Adam, sair um pouco de dentro

desse quarto. Só hoje.

– Já disse que estou bem aqui.

– Só hoje, Adam. É Natal...

– Vó, se eu quisesse alguma coisa, você seria a primeira a saber, mas

não quero nada, está bem?

É como se eu tivesse acertado um tapa no meio da cara dela.

– Só queria ver você bem, só isso – ela diz.

– Dá uma olhada nisso aqui – eu respondo. – Você acha que eu vou

ficar bem de novo, com o rosto desse jeito, hein? Olha bem pra isso. Olha!

Eu tenho perfeita consciência do que estou fazendo e me odeio por isso,

mas foi ela quem me obrigou, eu não queria ficar jogando meus problemas

na cara de ninguém.

– Eu vi o seu rosto – ela fala com calma. – E ele vai melhorar, eu tenho

certeza. Seu rosto vai ficar bem melhor do que está agora.

– Não vai melhorar porra nenhuma, sua velha idiota. Agora já era. É

assim que eu sou e é assim que vou ser para sempre.

Como toda vez que fica nervosa, ela coloca a mão no bolso e tira um

cigarro. Ela coloca o cigarro na boca bem devagar, e acende-o. A chama me

hipnotiza, o cheiro do papel pegando fogo e do tabaco começando a

queimar me atropela como se fosse um caminhão em alta velocidade. A

fumaça está nos meus olhos, atrás deles, ao meu redor, e estou queimando –

eu escuto novamente o som do meu próprio cabelo pegando fogo, da minha

pele sendo consumida pelas chamas.

– Para com isso e sai logo daqui, sua vadia! Sai do meu quarto! – eu

estou gritando, furioso.

Ela olha para mim sem entender nada e fica horrorizada, enquanto

arranco o cigarro da sua boca, o jogo no chão e piso em cima.

– Adam!

– Vai embora! Me deixa em paz, por favor!

Ela sai e eu finalmente consigo o que queria. Mas será que era isso

mesmo? Agora eu estou sozinho novamente, com a companhia apenas do

meu próprio reflexo e com uma cabeça cheia de chamas, punhos, facas e a

última visão que tive, naquele galpão, do rosto desesperado do Júnior. E há

também outro rosto povoando os meus pensamentos. É o da Sarah. Um

rosto cheio de medo, preso em um corpo que se encolhe todo para se

manter o mais longe possível de mim, no banco de trás daquele carro.

SARAH

o começo, não me dou muito bem com os sprays de tinta. Eu não

estou acostumada e também não tem muito a ver com o meu

estilo, mas depois de fazer alguns traços, vou pegando o jeito. Eu

achei que o Vinny estava viajando com essa história de sair por aí pintando

as paredes para avisar as pessoas, mas tem alguma coisa aí. A cada

movimento do meu braço, sinto que estou me libertando. Eu estou

colocando meu pesadelo para fora, e talvez seja esse mesmo o lugar dele:

fora de mim.

Eu estou grafitando dentro de um túnel que passa por baixo dos trilhos

do trem. Poucos carros passam por ali, mas alguns pedestres usam essa

passagem para ir do bairro ao centro da cidade. Pelo menos, aqui eu posso

pintar durante o dia. É incrível. As pessoas passam olhando, intrigadas, mas

ninguém parece disposto a me fazer parar. Talvez, por eu estar fazendo algo

grande, elas pensem que é alguma coisa oficial, ou então só achem que meu

desenho é bem melhor do que uma parede vazia.

Venho para cá sempre que posso, mesmo no dia de Natal. O Natal

desse ano é de um tipo diferente. Sem enfeites pendurados, sem luzes, nem

árvore, mas com presentes. Tem um pacote na mesa da cozinha quando eu

desço as escadas de manhã. Dentro dele, tem uma caixa de chocolates para

mim e um chapeuzinho de lã para Mia, junto com um bilhete: “Feliz Natal,

do Vin. Bjs”

Eu me sinto envergonhada, já que não comprei nada para ele, nem

tenho dinheiro para isso. Então, antes de sair, resolvo preparar um chá com

torradas e levo até o seu quarto. Café na cama já é alguma coisa, não é

N

verdade? Ele está capotado. Quero acordá-lo para que ele veja o que fiz, mas

não tenho coragem de fazer isso, então eu só deixo a caneca e o prato ao

lado do seu colchão e saio.

Mia vem junto comigo, deitada no carrinho de bebê que o Vinny

encontrou em uma caçamba de lixo. Eu não a deixo em casa, jamais. Não

que os meninos não sejam legais, não me leve a mal. Sei que eles não fariam

nada de ruim a ela, mas acontece que no fim das contas eles são, mesmo,

mais dois viciados. Não quero julgá-los, afinal, quem sou eu para julgar

quem quer que seja? É só que minha Mia é importante demais para mim. Eu

não posso correr nenhum risco com ela.

Então eu pinto por tanto tempo quanto ela me permitir. Às vezes por

duas, três horas seguidas. O desenho está começando a tomar forma e eu

estou adorando. De vez em quando é como se eu tivesse esquecido do que

se trata, totalmente envolvida na coisa física da pintura e da criação. Mas,

então, quando eu dou um passo para trás e olho para o todo, é

surpreendente. A violência do desenho, o caos, o horror. Isso tudo veio de

mim, é parte de mim.

É só quando começo a pintar o Adam que fico mais preocupada. Não

dá para não saber que é ele. Parece que eu estou querendo difamá-lo para a

cidade toda. Começo a ficar nervosa. Será que eu posso colocar gente real

na minha pintura? Será que isso é certo? Eu penso que tenho que ser fiel ao

que vejo. Isso não é só um sonho, não é só fantasia, é real. Estou alertando

as pessoas. Por isso desenho Adam exatamente como o vejo – com seus

lindos olhos cheios de fogo e a cicatriz no rosto. Desenho Mia e coloco

também a data.

E de repente está pronto. É tão grande que não se consegue ver tudo de

uma vez só. Você tem que andar ao lado do desenho e olhar pedaço por

pedaço. Mas está lá. É a coisa com que tenho convivido por todo esse

tempo. E está lá para quem quiser ver. Eu consegui.

Eu ando de um lado para o outro, observando minha obra. Algumas

partes eu poderia mudar e outras poderia ter feito melhor, mas não vou

começar a remendar as coisas agora. Está começando a ficar escuro. Eu tiro

Mia do carrinho e a abraço, encostando o meu rosto no dela.

– Vamos para casa, minha querida. A mamãe já terminou por aqui.

Vamos dormir.

ADAM

asso horas deitado na cama, pensando. Quando caio no sono, os

mesmos pensamentos se transformam em pesadelos tão horríveis que

eu sou obrigado a acordar. Eu não tenho ideia de onde estou. A

janela está do lado errado, a mesinha ao lado da cama não é da altura que

devia. Aqui não é Weston. Aonde será que vim parar? Cadê a minha mãe?

Começo a voltar à realidade e me lembrar das coisas, mas isso não é

nem um pouco reconfortante. Porque além de me lembrar do fogo, do

Júnior, da Sarah, tem mais outra coisa: 112027. Eu estou um dia mais

próximo. O tempo está acabando. Se quero fazer alguma coisa sobre isso,

tem que ser logo, mas o que pode ser feito? Não posso fazer porra nenhuma

para ajudar. O que me resta é ficar aqui deitado, escutando o tique-taque

dos ponteiros do relógio e as batidas do meu coração, desejando estar a um

milhão de quilômetros daqui, desejando ser outra pessoa que não eu mesmo.

A polícia aparece querendo falar comigo logo cedo. Às seis horas em

ponto, em uma manhã de Boxing Day.* Eu os escuto batendo na porta e,

imediatamente, estou de volta a Weston. Meu estômago vazio começa a

revirar. Eu consigo ouvir as vozes da minha avó e dos policiais conversando

e, alguns minutos depois, ela aparece no meu quarto.

*“Boxing Day é como é conhecido, na Inglaterra, o dia seguinte ao

Natal, em que as lojas fazem liquidações superconcorridas.

– Eles querem falar com você na delegacia. É melhor você colocar uma

roupa. Vou junto com você. Eles vão fazer uma busca na casa enquanto

P

estivermos fora. Eles trouxeram uma autorização do juiz e tudo mais.

– Merda!

– Vê se não vai complicar mais as coisas, Adam. Não dessa vez.

– Não fiz nada.

– Sei que não. Você é a vítima, foi isso que eu disse a eles, mas você

estava lá, um garoto morreu, por isso eles são obrigados a fazer algumas

perguntas.

Eu olho ao meu redor no quarto. Isso é tudo o que tenho: o meu espaço

e a mistura estranha das minhas coisas com as do meu pai. Não quero esses

babacas se intrometendo aqui, bisbilhotando coisas que não dizem respeito a

eles.

– Você precisa levantar-se, querido. Eles só nos deram alguns minutos

para nos aprontarmos. É melhor você se apressar. Ah! E o seu caderno?

– O quê?

– É melhor ele ficar comigo. Não ia ajudar muito se eles o

encontrassem, não é mesmo?

Meu caderno! A data da morte do Júnior está lá, a causa também está

escrita com todas as letras. Tudo previsto. Premeditado. Meu caderno pode

fazer de mim um assassino.

– Você leu alguma coisa?

Ela pode ter lido quando ficou cuidando dele por um tempo.

Ela faz que não com a cabeça.

– Eu não li nada, mas também nem precisava. São suas datas que estão

lá, não são? Os números que você encontra por aí?

– Também tem o computador. O laptop do meu pai, com um monte

de informações que eu passei para ele.

– Acho que não vou ter como resolver esse problema. Eles vão vê-lo se

eu tentar sair com ele.

Nós nos olhamos e, de repente, eu finalmente me sinto à vontade para

conversar com ela.

– Ele estava me fazendo ameaças, vó. Mas eu não o matei. Não fui eu.

Eu juro.

Ela coloca o dedo indicador na frente dos lábios.

– Não diga nada disso a eles – ela fala baixinho. – Nem uma palavra

sequer. – Então ela pega o meu caderno e vai para o quarto para se vestir,

sem me dizer mais nada.

Eles me fazem perguntas o dia inteiro.

Eu não digo nada.

– Quem mais estava lá? – Vocês acham mesmo que eu vou contar?

– Como você acabou caindo no fogo? Eu achei que podia ser legal me

queimar um pouco. O que você acha, gênio?

– Você viu alguém com uma faca?

Começa a ficar óbvio que eles ainda não encontraram a faca. Ela ainda

está lá fora, talvez jogada em algum terreno baldio, ou então escondida em

algum lugar. Quem sabe o garoto que matou o Júnior esteja carregando a

arma do crime agorinha mesmo.

Eles não conseguiram encontrar a faca. Eles têm nomes, mas falta a

evidência. Por isso quiseram procurar na minha casa.

Eu fico só esperando as coisas acontecerem como em um seriado da

TV. Alguém entrando de repente e sussurrando algo no ouvido do cara que

está me fazendo as perguntas. É a pista do assassino que vai resolver o caso

para eles. Estava tudo planejado. O garoto está sem saída, ele não tem a

menor chance. Então eles olhariam para mim com aquele olhar triunfante

– nós o pegamos! Mas, no final das contas, não é assim que as coisas

acontecem.

Minha avó conversa com a defensora pública que está nos

acompanhando, uma mulher jovem, negra e enérgica, que faz anotações

no laptop o tempo inteiro. Ela fecha o computador e então começa a fazer

as suas próprias perguntas.

– Vocês vão acusá-lo oficialmente de alguma coisa?

– Se vocês quiserem mantê-lo aqui por mais tempo, eu vou ser obrigada

a solicitar a presença de um médico – ele saiu do hospital há pouquíssimo

tempo. Vocês vão mantê-lo aqui?

– Vocês estão pressionando excessivamente o meu neto. Será que não

estão cientes do que o Estatuto do Menor de 2012 prevê para os

procedimentos relativos a jovens suspeitos de delitos?

Eles não ficam nada contentes com esse papo, mas finalmente são

obrigados a concordar que eu não posso ser acusado de nada hoje e me

autorizam a voltar para casa. Do lado de fora, minha avó dá a mão para a

defensora e me dá um cutucão nada discreto para que eu faça o mesmo.

– Muito obrigado – eu digo, sem jeito. A defensora dá um sorriso.

– Quer dizer, então, que você sabe falar? – ela diz. E entrega à minha

avó seu cartão. “Ligue se vocês precisarem, a qualquer hora do dia ou da

noite.

Seguimos nosso caminho para casa, sem saber direito o que nos

esperava quando chegássemos lá. Mas quando finalmente entramos e

acendemos a luz, está tudo como tínhamos deixado mais cedo. Eu confiro o

meu quarto e não tem nada faltando nele, nem mesmo o computador.

Eu desço novamente e encontro minha avó com uma chaleira no fogo e

o cigarro aceso. Ela coloca a mão dentro da blusa e tira de lá o meu caderno.

– É melhor você pegar isso de volta.

– Vó – eu começo a falar. – Você sabe que eu nunca concordei em vir

para Londres, não sabe?

Ela aperta os olhos, me observando através de uma cortina de fumaça.

– Sim, eu sei.

– Eu acho que nós temos que sair daqui agora. Londres é um lugar ruim

para mim. Foi a minha mãe quem disse, não foi? Aqui não é seguro.

– Bom, é nesse ponto que nós dois discordamos, porque eu acredito que

você está aqui por algum motivo. Momentos como esse precisam de pessoas

como você, capazes de mostrar às pessoas um caminho melhor. Você é um

profeta, Adam.

– Um profeta tipo Jesus ou algo assim?

– Talvez.

Eu sinto como se o chão estivesse se mexendo sob os meus pés. Eu

sempre soube que minha avó era meio esquisita das ideias, mas agora eu

acho que ela está perdendo a cabeça de vez.

– Cala essa boca. Você não pode ser tão estúpida assim.

– Lá vem você com esse palavreado de novo. Você deve ter mesmo

razão. É impossível que você seja como Jesus. Ele nunca trataria a própria

avó dessa maneira.

– Vó, eu não sou Jesus. Não sou nada parecido com Ele. Sou só... um

cara comum.

– Adam, nós dois sabemos que você não pode estar falando sério.

Nós fazemos uma pausa e ficamos apenas nos observando. Não é

segredo para ninguém que ela está certa.

– Tudo bem, sou diferente. Consigo ver coisas que os outros não

conseguem. Mas isso não quer dizer que eu posso mudar o mundo.

– Será que não? Será que você não conseguiria mudar o rumo dos

acontecimentos?

– Não, vó, que droga! É claro que não!

– Pois eu acho que você pode, sim. E acho que você vai fazer isso

mesmo.

– E eu acho que se não for embora de Londres logo, vou acabar

apodrecendo em uma cela de cadeia.

Ela coloca as duas mãos na frente do rosto.

– Não diga isso, Adam. Por favor. Não diga uma coisa dessas para a sua

avó, nunca mais na sua vida.

– Vó, você precisa entender. Eu não sei qual é o meu número. Mas uma

montanha de pessoas está prestes a morrer nesta cidade, e pode ser que eu

seja uma delas.

Ela desaba na cadeira e passa a mão no cabelo, que já há algum tempo

ela não tinge, com as raízes acinzentadas. Ela permanece sem palavras por

um instante. Eu acho que, pelo menos dessa vez, consegui fazer com que ela

me desse ouvidos. Tenho certeza absoluta que preciso dar o fora daqui o

quanto antes e pode ser que, finalmente, ela concorde e queira vir comigo.

– Vamos logo fazer as malas, vó. Nós podemos partir ainda essa noite!

Não há tempo a perder.

Da cadeira onde está sentada, ela me observa.

– Mas e aquela garota...?

Sarah. E o seu número. O número que me diz que eu não vou morrer

em nenhuma cela. Ou será o contrário?

A pergunta da minha avó ainda está no ar quando tocam a campainha.

Nós dois congelamos, instantaneamente. A primeira coisa que penso é que

é a Sarah do lado de fora. A bruxa velha a invocou e ela apareceu aqui,

graças aos seus poderes mágicos. Meu coração começa a bater forte dentro

do peito. E se for mesmo ela? O que eu vou fazer? O que vou dizer? Mas,

então, eu penso que deve ser a polícia. Eles encontraram a faca. Meu

coração continua batendo descontroladamente.

– Você vai lá atender? – minha avó pergunta.

– Não sei – eu respondo e mordo a ponta da língua.

– A pessoa que está esperando lá fora parece que não quer desistir,

querido. É melhor você ir logo. Vá em frente, Adam. Poupe um pouco de

esforço para essas minhas pernas cansadas.

Eu caminho até a porta da frente. Como está escuro lá fora, ligo a luz ao

mesmo tempo em que giro a maçaneta.

Tem um garoto ali parado, um baixinho de óculos. Ele é familiar, mas

não me lembro de onde eu o conheço. Ele dá uma olhada no meu rosto e

depois desvia a vista, e então me olha nos olhos, em vez de olhar a minha

pele.

– Eu... sinto muito – ele diz, completamente sem jeito. Seu rosto se

contorce e então a ficha cai – Nelson, o carinha do clube de Matemática.

– Você sente muito por quê? – eu pergunto.

– Por causa do seu acidente, por ter vindo incomodar. Eu só achei que

você ia querer ver isso aqui... – Ele me mostra uma folha de papel enrolada,

com um elástico no meio.

– E o que é isso?

– São aqueles aniversários. Eu cruzei os dados que você recolheu. Só

que...

– O quê?

– Só que... eles não são aniversários, são? – Aquele tique irritante que

ele tem na boca está descontrolado agora. E tudo em que eu consigo pensar

é que isso pode virar uma nova evidência contra mim – impressa,

organizada, mapeada.

– É melhor você entrar.

Nós abrimos o rolo na mesinha de café na sala. É um mapa da região

oeste de Londres cheio de pontos. Tem tantos pontos, que você mal

consegue ver o mapa embaixo deles.

– Eu trabalhei com os dados que você conseguiu, mesmo eles sendo

muito pouco precisos. Pelo menos, eles serviram como ponto de partida.

Procurei os códigos postais dos lugares das suas entrevistas e usei códigos

aproximados em alguns casos pouco detalhados, depois cruzei os dados e os

distribuí no mapa. Como você pode ver, as diferentes cores correspondem às

diferentes datas – está tudo explicado na legenda aqui ao lado. Quanto

maior o círculo, maior o número de pessoas. O ponto menor é para até

cinco pessoas, o seguinte é para entre cinco e dez, depois entre dez e vinte e

o maior de todos é para mais de vinte pessoas com a mesma data no mesmo

lugar.

Ele usou preto para o dia primeiro de janeiro, azul para o dia dois,

vermelho para o dia três e assim por diante.

– E onde é que a gente está aí no mapa?

Nelson aponta uma área com um círculo preto enorme.

– E a sua casa, fica em que lugar?

Ele aponta e é uma área preta novamente.

Nós nos sentamos e eu fico olhando o mapa em silêncio por um minuto.

Nelson olha para o mapa, depois para mim e depois para o mapa de novo,

esperando alguma reação. Seu rosto está totalmente fora de controle, se

contraindo e se contorcendo sem parar. Até que finalmente arruma bem os

óculos na frente dos olhos e diz o que estava tão ansioso para dizer.

– Eu não acho que esses números indiquem aniversários, Adam. As

datas normalmente se concentram em lugares específicos e a distribuição é

muito desigual. O que é isso, afinal? O que são essas datas?

Ele está piscando sem parar na minha frente, fazendo caras e bocas, o

rosto parece ter vida própria. E junto com seus olhos lá está ele, piscando: o

seu número, 112027. É a minha chance. Se eu não posso salvar todo

mundo, talvez consiga, pelo menos, salvar uma pessoa. Para começar, seria

preciso contar a ele a verdade. Mas, enquanto eu penso nisso, escuto uma

voz ecoando na minha cabeça. É a minha mãe dizendo que eu não posso

revelar o meu segredo. Só que, dessa vez, eu vou deixá-la falando sozinha.

Muita coisa mudou nos últimos tempos e eu tenho que tomar minhas

próprias decisões.

Então, outra voz surge.

– Conta logo pra ele. Conta a verdade, Adam. – Minha avó está

encostada no batente da porta da cozinha.

– Você tem mesmo razão Nelson – eu me obrigo a dizer, sem ter a

menor ideia do que vou falar depois. Acabo, então, sendo direto. – Essas

datas não são aniversários, são datas de mortes. Eu as vejo por aí. Você

consegue acreditar nisso?

Nelson pisca e engole seco. Eu não aguento ficar olhando para ele. Seu

número está me deixando com medo. Com medo por ele e também por

mim.

– Eu acredito em você – ele responde, para a minha surpresa. – Eu não

consigo entender, mas eu acredito em você, Adam. A internet está cheia de

histórias esquisitas. É melhor eu te mostrar.

Ele se abaixa e alcança a sua mochila. De dentro dela, ele tira

um laptop, que coloca no colo e liga.

– Fiz uma pesquisa sobre a primeira data, dia primeiro de janeiro.

Vários sites falam as coisas mais estranhas sobre o assunto. Tem um culto

na Escócia que prevê que o Apocalipse vai acontecer no primeiro dia ano de

2027. Eles se mudaram para uma ilha e estão lá isolados. Seu líder é citado

em uma porção de blogs e fóruns, veja só o que ele diz: “É o Juízo Final,

todos aqueles que não tiverem Deus no coração vão morrer no ano-novo.

Está escrito em seus olhos”.

Ele entra em um site.

– Ainda bem – ele diz. – Este aqui continua no ar.

Tem uma foto toda embaçada de um homem no centro de um círculo

de pessoas.

– Quem é o cara no meio?

– Nenhum dos sites dá o nome inteiro. Ele é conhecido só como

Mikah.

Um calafrio sobe pela minha espinha e minha pele se arrepia toda.

– Ele consegue ver os números também – eu digo. – É isso que ele quer

dizer.

– Tem um monte de gente maluca mundo afora. Sempre foi assim.

Alguém sempre dizia que o fim do mundo estava próximo, mas ele nunca

chegou de verdade.

– Você acha que eu sou maluco?

Nelson hesita por um instante. Seu rosto se contorce, incomodado.

– Tudo bem – eu digo. – Não precisa responder se não quiser.

– Não. Não é isso. Eu não acho que você seja louco. É só que... Eu não

consigo entender o que é isso que você vê. Eu não conheço nenhuma

explicação científica. O que você vê, afinal?

– Eu não sei dizer ao certo se eu vejo de fato os números ou se eu só

penso neles. Quando eu olho para os olhos de alguém, não consigo evitar.

Seu número, simplesmente, está lá e eu sei qual é. Eu vejo os números das

pessoas desde sempre.

– E eles são a data em que as pessoas vão morrer?

– É isso. Eu vi o número da minha mãe e o de outras pessoas e todas

elas morreram na data prevista.

Ele está perdido, sem saber o que fazer consigo mesmo, nem para onde

olhar. Nelson não parece ser do tipo que viraria para mim e perguntaria de

uma forma direta, mas eu sei que agora mesmo ele está imaginando qual

seria o seu próprio número. Enquanto ele pensa, eu estou vendo, sei

exatamente qual é, e amaldiçoo esse dom horroroso, esse peso que eu

carrego nas costas. Eu queria poder dizer alguma coisa para acalmá-lo,

queria dizer que ele vai ficar bem, mas seu número está impresso na minha

cabeça.

– Nelson... cara... – Ele se agita todo, com medo do que eu possa dizer.

Ela dá uma tossida nervosa e batuca com os dedos o teclado do

computador.

– O governo sabe de alguma coisa também – ele muda o assunto. –

Olha só. Eles estão proibindo os eventos públicos. Todas as licenças

solicitadas em Londres para eventos depois do dia trinta de dezembro foram

negadas. O ano-novo está chegando, Adam. Eles devem estar com medo,

para cancelarem as festas de réveillon.

– Quer dizer então que o governo sabe...?

– Parece que sim. Assim que aparece algum site falando sobre o

assunto, eles o tiram do ar. É por isso que eu me surpreendi pela foto do

Mikah ainda estar nesse site.

Eu devia estar contente, não devia? Contente porque agora sei que eu

não sou maluco. Contente porque outras pessoas sabem sobre o que vai

acontecer. Contente por saber que não estou sozinho. Mas só o que eu sinto

é uma onda de pânico tomando conta de mim. Eu sinto cada pedacinho do

meu corpo vibrando, se agitando, em estado de alerta. É real. Está

acontecendo.

– Tem mais uma coisa que eu queria te mostrar, se ela ainda estiver

aqui. Eu salvei o link...

Ele abre outra página e passa o laptop para mim. Eu não consigo

entender direito o que ele quer me mostrar no começo. A tela está

preenchida por uma imagem confusa, um tipo de pintura.

– Você tem que mover para a esquerda e para a direita para ver a coisa

toda.

Parece uma zona de guerra: escuridão, caos, o céu cheio de fumaça,

mãos saindo do meio de escombros, enormes vazios em lugares onde devia

haver casas.

Corro a imagem para a direita. Há uma data em destaque no topo:

1º de janeiro de 2027. Os pretos, cinzas e marrons vão se transformando em

vermelhos, amarelos e laranjas, conforme a imagem vai sendo tomada pelas

chamas. Nelson nem se preocupa em olhar para o computador, deve ter

visto isso uma porção de vezes; ele olha só para mim, querendo ver a minha

reação. Eu corro a imagem para o outro lado e vejo um monte de rostos com

expressões de dor e terror. Há também um bebê, com os olhos apertados e o

rosto cheio de lágrimas, sendo carregado por um homem negro. As chamas

estão refletidas nos olhos desse homem, mas não são seus olhos que me

fazem entrar em pânico, é o seu rosto. Ele é deformado por uma enorme

cicatriz.

Sou eu.

Sou eu o cara na imagem.

Sou eu o sujeito com fogo queimando nos olhos.

Me seguro para não vomitar, mas a ânsia não passa. Tento não sentir o

cheiro da fumaça, não ouvir o som das chamas consumindo tudo ao redor.

– O que tem aí? – minha avó diz enquanto se aproxima para ver por

cima do meu ombro. A fumaça do seu cigarro entra direto pelas minhas

narinas e eu começo a soluçar e engasgar. Ela o tira de perto de mim, mas

agora é tarde demais. Estou de volta àquele galpão abandonado, sem forças

para reagir enquanto o fogo queima a minha pele. Tusso, soluço e engasgo,

estou a ponto de colocar as tripas para fora. Não consigo respirar.

Eu corro até a porta da frente, tropeçando em minhas próprias pernas.

Do lado de fora, eu me curvo, com os braços em torno da barriga, e fico

tentando forçar o vômito. Até que finalmente eu vomito bem em cima da

coleção bizarra de gnomos que minha avó tem no jardim da entrada.

“Adam! Adam! Tudo bem com você? Ah, meu Deus! Boggart! Ele é o meu

preferido. Você o acertou em cheio!”

Minha avó fica ali do meu lado enquanto eu coloco para fora todo o

conteúdo do estômago. Então, depois de um último espasmo, o meu corpo

todo começa a relaxar. O ar fresco da noite enche os meus pulmões e, aos

poucos me sinto melhor e me levanto devagar. Nós ficamos ali, parados, por

um tempo. Eu respirando fundo e tentando me lembrar de como é viver

como um ser humano novamente e minha avó, olhando completamente

desolada para os enfeites do jardim, cobertos de vômito.

Quando nós entramos, Nelson estava guardando o laptop na mochila.

– De onde veio essa pintura? Onde ela fica? – eu pergunto.

– Em Paddington, embaixo dos trilhos, perto da Westbourne Park

Road.

– Eu tenho que ir lá para ver ao vivo, com meus próprios olhos. – Só de

pensar nisso eu tenho calafrios.

– Nelson?

– Sim.

– Você devia sair de Londres, cara. Você devia ir para longe daqui.

– Quê? Com a minha mãe e os meus irmãos? E para onde nós iríamos?

– Eu sei lá, qualquer lugar. O que importa é que você tem que levá-los

para longe de qualquer lugar desse mapa.

Ele balança a cabeça para os lados.

– Posso tentar. Mas o que eu digo a eles? Como vou convencê-los a ir?

– Disso eu não tenho a menor ideia. É essa a pergunta que não quer

calar, e se eu soubesse como respondê-la já teria dado um jeito de contar a

todo mundo. Já teria avisado que algo de muito ruim está prestes a

acontecer e teria dito a todos para saírem dessa cidade.

Minha avó está olhando para mim agora, e seus olhos estão brilhando.

– É isso aí, Adam. É disso mesmo que eu estava falando – ela diz. – Esse

é o espírito!

– Vó... – Ela está me olhando como se eu fosse o Messias de novo.

– Você consegue, Adam. Você pode salvar essas pessoas todas.

Nelson fica ali parado, meio sem saber o que fazer nessa situação,

olhando para mim e para a minha avó. Se fosse eu no lugar dele, já teria

virado as costas e ido embora sem olhar para trás. Mas eu não sou ele. Em

vez de dar o fora, Nelson dá uma ideia: – A internet é a resposta. É lá que

você pode avisar as pessoas. Os governos controlam os principais servidores

e os sites de busca, mas tem toda uma rede subterrânea a que eles não têm

acesso. Um milhão de blogs e fóruns e de gente tuitando. Antes que eles

consigam impedi-lo, sua mensagem já estará por toda parte.

– Você é um gênio, Nelson! – eu digo, todo empolgado.

Ele faz que não com a cabeça, mas é claro que está orgulhoso.

– Tecnicamente, eu precisaria ter um QI de mais de 140 para ser um

gênio, e o meu é só 138.

– Mas o que são dois pontinhos de nada, quando a gente está entre

amigos, não é mesmo? – eu respondo, antes de pedir ajuda novamente. –

Escuta só: sou um ignorante nessa história de internet. Você não pode me

dar uma força nessa missão?

– Não nesse exato momento. Antes eu precisaria criar uma identidade

oculta e descobrir um jeito de impedi-los de me rastrear.

– E você vai tentar?

– Claro que sim. Ele me passa seu endereço e o número do seu celular.

Depois que ele sai, minha avó fecha a porta e se vira para mim,

sorrindo, toda animada.

– Nós estamos conseguindo, Adam. Vamos mudar a história!

Queria poder ficar tão entusiasmado quanto ela. Queria acreditar que

nós podemos fazer alguma diferença. Mas eu só consigo pensar nos números

e em como nunca consegui mudá-los antes. Minha mãe, Júnior, Carl. Eu

não pude evitar que nenhum deles morresse. Será que não estamos nos

enganando com essa história de salvar o mundo?

E no meio de tudo isso, da multidão de números, de todas aquelas

mortes, estou eu. Alguém me pintou bem no coração do caos, sendo

engolido pelas chamas. Quem fez aquele desenho deve me conhecer, ou

pelo menos deve ter me visto em algum lugar. Só sabendo qual é o meu

número para pintar a minha morte daquele jeito.

Isso quer dizer que eu não vou arrumar as malas esta noite, pois sei

exatamente o que tenho que fazer. Preciso encontrar a pessoa que fez o tal

desenho. Preciso encontrá-la e olhá-la nos olhos.

No dia seguinte, eu saio cedo. Pego dois ônibus e depois caminho um

pouco. Basta seguir os trilhos e eu logo encontro o lugar. A rua que leva até

o Metrô está vazia. Só o que tem ali é lixo sendo carregado pelo vento. Eu

desvio dos pedaços de plástico e papel flutuando pelos ares e sacudo a

sujeira das minhas roupas.

É um lugar escuro, mesmo de dia. As paredes dos dois lados estão

cobertas de grafites. Quando chego perto, começo a andar mais devagar. Eu

paro na entrada do túnel, de repente, com medo. Sou obrigado a respirar

fundo algumas vezes para me acalmar, antes de entrar. A primeira coisa que

eu noto lá dentro é o frio subindo pelos meus dedos e pela ponta do meu

nariz, além disso, os sons do lado de fora ficam abafados e quase somem,

enquanto os de dentro ficam bem mais altos que o normal – o meu sapato

raspando o chão está fazendo muito mais barulho do que eu gostaria. Pelo

menos não tem mais ninguém ali para escutá-lo. O cheiro é de umidade,

escuridão e mofo. E de repente, algo diferente acontece.

Eu sinto o gosto da fumaça no fundo da minha garganta. Escuto o

estalar das chamas. Uma mulher gritando.

E lá está ela, bem diante dos meus olhos.

A imagem da internet – o rosto. Meu rosto. E agora eu consigo ter ideia

do tamanho da imagem. Ela é enorme. Vai do chão até o teto e se estende

por uns cinco metros.

– Meu Deus do céu. – Minha voz ecoa nas paredes do túnel.

Eu já tinha ficado bastante impressionado com as imagens na tela do

computador, mas agora é diferente.

Minha vontade é me afastar para conseguir ver a cena toda, só que o

espaço para recuar acabou – o túnel tem poucos metros de largura.

Resolvo caminhar na direção do desenho. Minhas pernas estão

tremendo. Meu corpo inteiro está, na verdade, tremendo. Eu estou

derretendo. Sinto o suor ensopando o boné, escorrendo pelas costas. Eu

coloco uma das mãos na parede. A data está escrita bem grande. Eu estou

com a mão bem aberta em cima do desenho e mal consigo cobrir a metade

de cima do número sete. Sinto o frio intenso da parede contra o calor da

minha mão. Tiro a blusa e o boné e chego ainda mais perto. Com as duas

mãos na parede, inclino a cabeça e encosto a testa no concreto.

É um tipo de experiência religiosa. Eu tenho guardado os números

dentro de mim por tanto tempo e agora, finalmente, tenho uma prova de

que não estou sozinho. Mais alguém sabe. Nos últimos meses, o número

2027 virou a minha vida de cabeça para baixo. Mas aqui, em um túnel frio e

escuro no lado oeste de Londres, com uma imagem de morte e destruição na

minha frente e ao meu redor, eu sei que mais alguém compartilha comigo

essa dor. É como se eu tivesse voltado para casa.

A parede sob a minha pele está viva. Eu consigo senti-la com a ponta

dos dedos; a vibração está crescendo nos meus ouvidos e subindo pelas

minhas pernas. Eu escuto aqueles barulhos de novo; entre gritos

desesperados e o estalar das chamas, um som contínuo e confuso vai

crescendo ao fundo – é o som da destruição. Essa sensação está tomando

conta de mim. Eu fico firme de pé, mas fecho os olhos com força. A

vibração e o som são uma coisa só, crescendo ao meu redor e dentro de

mim. Chamas, escombros, rostos, está tudo misturado, distorcido – tudo é

horror.

Abro a boca e deixo escapar um grito. É o mesmo grito que dei quando

caí no fogo. Um som animal saído direto das minhas entranhas. O túnel não

é mais feito de concreto e tijolos, ele é uma besta selvagem e furiosa, é um

pesadelo vivo. Meu grito continua até eu não ter mais de onde tirar ar.

Respiro fundo e grito de novo.

O barulho e os gritos desaparecem de repente e sobra só o som da

minha própria voz ecoando nas paredes e o estrondo de um trem que passa

sobre o túnel, totalmente indiferente ao meu desespero. Conforme ele se

afasta o barulho diminui, até que o silêncio volta a prevalecer.

Dou um passo para trás e abro os olhos. Eu não consigo entender o que

acaba de me acontecer – não sei direito quanto disso tudo foi real. Minhas

mãos estão congelando. Eu esfrego uma na outra, depois as coloco em frente

à boca e assopro. Os discos de luz em cada extremidade do túnel estão cinza

e eu consigo ver os pingos que os cortam lá fora. Demoro alguns segundos

para perceber que tem alguém parado na entrada do túnel de onde eu vim.

Essa pessoa não está andando na minha direção, só está lá, parada.

Eu só consigo ver os contornos: calças largas, uma espécie de casaco e

um tufo de cabelo no topo da cabeça. De repente, eu me dou conta de

como esse lugar é isolado e vazio.

Merda. Um viciado maluco vai me atacar.

A última coisa que estou procurando é confusão. Não penso duas vezes

e viro as costas e começo a caminhar para o lado oposto. Fica tranquilo.

Você não pode mostrar que está assustado. Do lado de fora, eu olho para

trás por um segundo para saber se não estou sendo seguido. Ele ainda está

lá, olhando para mim. Eu paro de andar e olho de volta. Nós dois estamos

parados na chuva observando. E então o cabelo da minha nuca se arrepia.

Nós estamos longe um do outro, mas nossos olhos se encontram e eu sinto

uma onda de calor tomar conta de mim.

Não é um homem do outro lado, é uma garota. É a garota que me

odeia, a garota cujo último suspiro antes de partir deste mundo me envolve,

quinze anos no futuro.

Sarah.

SARAH

u o vi antes que ele me visse. O que é mais esquisito é que eu sei que

ele estará aqui, antes mesmo de virar a esquina. Não é uma completa

surpresa vê-lo. E eu fico me perguntando por que diabos eu vim para

cá assim mesmo. Com essa chuva, seria mais rápido ir pelo meio do bairro

até o supermercado, então por que foi que eu quis dar a volta por aqui? Por

quê?

Encontrá-lo em carne e osso – o Adam real, não só a imagem na minha

cabeça e na parede – me faz ficar fora de mim. Eu estou com medo dele.

Mas eu também estou animada de algum jeito estranho. O que tem de

errado comigo afinal?

Eu devia virar as costas antes de ele me notar. Devia virar as costas e ir

embora. Devia sair correndo para longe. Ele é o garoto do meu pesadelo. É

ele que vai atravessar o meu destino, que vai tirar minha filha de mim e

entrar com ela no meio das chamas. Ele só vai me fazer mal, então por que

continuo aqui parada?

E

ADAM

arah!

Ela não se move, então eu começo a andar em sua direção.

Quando estou a uns dez metros, ela reage.

– Pode ir parando aí mesmo. Não se aproxime.

Ela parece confusa.

– Eu só quero falar com você.

– Mas não tenho nada pra dizer a você.

– Foi você, não foi? Foi você que me desenhou aqui. Por que você me

pintou nessa parede?

– Você sabe muito bem. Você sabe o que faz. Sabe o que é. – Ela está

falando baixo e devagar, mas eu consigo escutar o veneno escorrendo das

suas palavras. Ela me odeia. Tem nojo de mim.

– Não. Não sei de nada.

Dou um passo à frente. Ela dá outro para trás e se abaixa para pegar

uma pedra.

– Não se aproxime, seu monstro.

– Sarah, eu não sei o que posso ter feito. Nunca fiz nada para você. Não

dá pra entender. Mas eu sei o que vai acontecer no ano-novo.

Agora, ela está escutando, prestando atenção de verdade.

– Eu também vejo os números das pessoas. Tem um monte delas com o

dia primeiro, o dia dois e o dia três. Isso é grave, Sarah. Alguma coisa

grande de verdade vai acontecer.

– Números? Que história é essa?

– É, Sarah. São as datas das mortes das pessoas. Você sabe. Você os vê

– S

também.

– Cala essa boca. Não vejo número nenhum. Você não me conhece.

Você não sabe nada sobre mim.

E eu penso: Sei sim. Sei muito bem. Consigo ver os anos se estendendo

à sua frente. Eu consigo senti-la comigo, consigo sentir como nós dois nos

amamos.

Ela me encara com firmeza, mas não é só ódio que percebo em seu

olhar. Tem medo ali também. Mesmo no frio, ela está suando.

– Cala essa boca – ela diz. – Não tenho nenhum assunto pra conversar

com você, só quero que você vá embora. Vai logo. Tchau!

– Por favor, Sarah. Você é a única pessoa que entende. Vamos

conversar, por favor.

Ela levanta o braço e atira a pedra na minha direção. Tento me

proteger, mas é tarde demais. Ela acerta o topo da minha cabeça.

– Cacete! – eu grito. Eu me curvo para baixo, tentando respirar no

meio da dor, enquanto o mundo à minha frente fica vermelho e depois

preto. Eu olho para cima e vejo Sarah desaparecer em uma rua lateral.

Tento levantar e correr atrás dela, mas a dor é como se fosse um peso

me segurando no lugar.

Mesmo assim, eu começo a me mover e vou atrás dela me arrastando

como um bêbado.

Passo por quarteirões e mais quarteirões de casas e não a vejo em parte

alguma, em nenhuma das ruas laterais e becos. Eu estou a ponto de desistir,

quando passo por um beco e vejo uma porção de latas de tinta em uma

caçamba de lixo. Eu olho melhor e vejo o portão dos fundos de uma casa

balançando.

O portão está caindo aos pedaços. O quintal que vem logo depois dele

está abandonado e o fundo da casa está completamente detonado; há

algumas janelas quebradas e outras fechadas com tábuas, e o telhado tem

uma porção de telhas faltando. Não deve ter ninguém morando nesse lugar.

Encosto na parede do outro lado do beco e fico olhando para a casa. Ali

parado, minha cabeça não dói tanto assim. Sinto uma coceira no rosto e

coloco a mão no lugar que está coçando. Ela volta suja de sangue.

Alguma coisa se move em uma das janelas. Eu não consigo ver direito o

que ou quem é, mas agora eu tenho certeza que tem alguém lá dentro. Será

que eu devo bater? Ou seria melhor dar a volta e bater na porta da frente?

Ou será que eu devo ficar aqui mesmo e esperar?

Enquanto estou parado, pensando no que fazer, a porta dos fundos se

abre. Um homem sai de lá. É um sujeito alto e magro. É o cara do carro. Ele

está vindo na minha direção e está carregando um taco de beisebol.

SARAH

ico parada ao lado da janela, no andar de cima, fora da vista deles.

Ela está aberta apenas uns poucos centímetros, então eu também não

consigo enxergar muita coisa, mas pelo menos posso escutá-los.

Eu tive que acordar o Vinny quando cheguei, mas ele não precisou de

muitas explicações para ir lá fora, bastou ver como eu estava apavorada.

– Que cê tá fazendo aqui, brother? – ele chega intimando. – Cai fora.

Vai!

– Tem uma pessoa aí dentro com quem eu queria falar. – Ouvi-lo falar

faz meu estômago revirar.

– Ah é? Acho que cê perdeu a viagem, então. Porque ela não tá a fim

de conversar com você sobre merda nenhuma.

– Não tem problema – ele responde. – Vou ficar aqui esperando. Uma

hora dessas, ela vai acabar me escutando.

Coloco com cuidado a cabeça em frente à janela, para conseguir

enxergá-los. Vinny está parado bem perto do Adam. Ele pode não ser muito

forte, mas está deixando bem claro que não está para brincadeira.

Isso mesmo, Vinny. Dê um jeito nele. Pode assustá-lo o quanto quiser,

só se livre desse monstro de uma vez.

– Saca só, mano – ele dá mais um passo à frente. – Não tô a fim de

partir pra violência. O lance é que você não pode sair por aí seguindo os

outros desse jeito. Ainda mais uma menina que nem a Sarah. Isso não tá

certo.

– Pode até ser, mas ela também não devia ficar atirando coisas nos

outros pra machucar. Eu só queria conversar com ela. Não vou fazer nada

F

de mau.

Eu me inclino um pouco mais para frente. O rosto dele está coberto de

sangue, principalmente do lado que foi queimado.

– Foi ela quem fez isso com você?

– Foi.

– Você é aquele carinha do hospital, não é? Escuta – ele está falando

com mais calma agora –, eu não tenho nem ideia do que tá rolando entre

vocês, mas eu acho que você devia ir embora logo e deixar isso pra lá, senão

vai acabar se machucando mais.

– Não vou. Não saio daqui antes de falar com ela. É importante. É

sobre aquele grafite que ela fez no túnel. Você já viu?

Agora o Vinny não está parecendo mais tão ameaçador. Que droga. Ele

já está todo relaxado e dando um passo para trás, como se estivesse

conversando com um velho amigo.

– Eu vi sim.

– Então. Ela me colocou nele. Eu cheguei lá e vi minha cara estampada

naquela parede. Quero entender por quê.

– É porque você aparece no pesadelo dela.

Mas que merda, Vinny. Você não quer fazer o favor de calar essa

porcaria dessa sua boca?

– O quê?

– É tudo um sonho, cara. Aquele grafite que você viu é um sonho que

ela tem sempre. E você tá no meio dele. O porquê de ela sonhar contigo

toda noite, aí eu já não sei dizer.

– E eu também não sei de nada. É isso mesmo que eu estou querendo

descobrir.

A essa altura, o Vinny já está balançando o taco de beisebol para frente

e para trás, como se fosse um brinquedo inofensivo, enquanto conversa. Isso

não é nada bom.

– Dá um tempo aqui, então – é o que ele diz, antes de voltar para

dentro de casa. Ainda no corredor, ele grita para mim.

– Sarah! Tá tudo bem. É só um moleque querendo falar com você sobre

o seu grafite.

– Mas eu não quero ele aqui, entendeu? Eu disse pra você dar um jeito

nele. Pelo amor de Deus, Vinny, usa esse taco pra alguma coisa!

– Ele só quer conversar... Eu não vou bater em ninguém. Ele é só um

garoto. Sem falar que você mesma já deu um jeito nele. O cara tá sangrando

de verdade. Vem logo, vai... Ele não vai sair de lá enquanto você não

aparecer pra conversar. E aí, você vem ou não?

O Vinny é muito mole para cuidar disso. Eu devia ter resolvido tudo

sozinha.

Eu abro o meu casaco e tiro Mia do sling com cuidado, depois a coloco

na gaveta. Ela está dormindo, graças a Deus. Então, eu desço as escadas,

entro na cozinha e pego uma faca. Vinny está esperando na porta. Atrás

dele, eu consigo ver o Adam. Ele entrou pelo portão e está esperando no

quintal. Eu caminho em sua direção, empurro Vinny para o lado e digo, com

toda frieza do mundo.

– Eu não quero você aqui, será que não deu pra entender ainda?

Ele coloca a mão no rosto e, de repente, eu sou transportada de volta à

sala de aula, um milhão de anos atrás, quando eu o alcancei, do outro lado

da mesa. Sua pele era perfeita naquela ocasião – tão macia, lisa, limpa. Um

lado do seu rosto ainda é assim, mas o outro está completamente

transformado. “Desfigurado”, você poderia dizer. Eu prefiro dizer apenas

“diferente”. Com o olho da minha mente, eu me vejo tocando aquele rosto

uma vez mais e sinto meus dedos formigarem, só de pensar. Por que será que

ele me atrai desse jeito, se é uma das duas pessoas de quem eu mais tenho

medo no mundo?

Ele continua lá fora parado, com sangue escorrendo pelos dedos. Eu

preciso dar um jeito nele logo, antes que eu acabe cedendo.

– Qual é, Sarah? – Vinny insiste. – Quem sabe ele não pode te ajudar?

Isso me faz voltar à realidade, minha versão da realidade.

– Me ajudar? Você tá querendo dizer que ele pode me ajudar? – eu vou

erguendo a voz a cada palavra. – Você não conhece esse cara, Vin. Você

não sabe do que ele é capaz. Ele é o demônio, o demônio em pessoa. E eu

não quero mais esse demônio perto de mim. Por favor, faça ele ir embora,

agora. Eu imploro.

As palavras que saem da minha boca parecem erradas até para mim

mesma. De uma hora para outra, eu me vejo como eles devem estar me

vendo agora: os olhos arregalados, completamente fora de mim, gritando e

sacudindo uma faca no ar. Quem é que estou querendo enganar desse jeito?

Não vou dar uma facada nele. Não quero machucá-lo, só preciso que ele vá

embora.

Eu não posso mais lidar com a presença dele. Não consigo continuar

aqui com ele. Então entro na cozinha novamente, cambaleando. Deixo a

faca cair no chão e depois caio também ao lado dela, dobrando as pernas

contra a minha barriga e as abraçando, toda encolhida. As lágrimas

começam a rolar. Mas que ódio de tudo isso! Que ódio de mim por agir

dessa forma. Eu não sou do tipo de garota que desaba a chorar. Sou bem

mais forte do que isso. Sei que sou. Só que agora que já comecei a chorar,

não tem mais como parar.

Eu tenho certeza de que eles vieram atrás de mim na cozinha, mas

prefiro não conferir. Nenhum deles se aproxima de mim. Isso é tão típico

dos homens; eles nunca sabem o que fazer com uma mulher chorando. Eu

bem que devia imaginar: pedras e facas não servem para assustá-los, mas

lágrimas, sim.

– Desculpe-me – é o Adam quem está falando. – Desculpe-me de

verdade, Sarah. Nunca quis te chatear.

Eu levanto um pouco a cabeça e dou uma olhada para ele. Parece que

ele está mesmo se sentindo culpado por tudo isso.

– Só vá embora – eu digo baixinho.

– Tudo bem – ele responde, decepcionado. – Vou te deixar em paz. –

Ele dá as costas para mim e começa a andar, mas então para novamente. –

Sarah?

– O que foi?

– O meu número? Ele é o mesmo dos outros? Eu também vou partir no

ano-novo?

Ele mal consegue olhar para mim. Está assustado também. Eu tenho a

impressão de que ele está prendendo a respiração.

– Eu não tenho a menor ideia do que você está falando – eu digo, antes

das lágrimas começarem a jorrar dos meus olhos mais uma vez.

Envergonhada, eu escondo o rosto entre meus braços novamente. Agora,

ele vai embora, mesmo. Eu o escuto esbarrar no batente da porta e depois

ouço seus passos se afastando do lado de fora.

No andar de cima, Mia está acordada. Primeiro, eu a escuto chorar

baixinho, mas em poucos segundos ela já está gritando a plenos pulmões.

Isso parece me acordar do transe em que eu estava. Eu me desenrolo e

levanto, mais ou menos como se nada tivesse acontecido.

– Tá tudo bem com você agora? – Vinny pergunta, preocupado.

A verdade é que eu não sei direito como começar a responder a esta

pergunta. Adam se foi – graças a Deus ele me deixou em paz – e eu estou

aliviada, mas, no fundo, eu sei que ainda não terminou. Agora ele sabe onde

eu moro. Eu não estou mais segura aqui.

ADAM

aio daquela casa completamente atordoado. Ela não vê os números,

mas sim tem um pesadelo que sempre se repete – e eu estou nele.

Não dá para acreditar. É surreal demais. Quer dizer então que ela já

devia sonhar comigo antes mesmo de nós nos conhecermos, por isso reagiu

daquela maneira no primeiro dia na escola. Ela já me conhecia dos sonhos.

Mas como?

Eu aceito os números porque eles estão comigo desde sempre. Eu cresci

vendo-os por toda parte – eles são “normais” para mim. Mas ela tem outro

tipo de dom, é obrigada a lidar com uma maldição diferente da minha, e isso

me confunde as ideias. Eu simplesmente não entendo. Nada disso faz o

menor sentido para mim.

Sem pensar, eu vou em direção ao túnel novamente. Ainda chove, mas

lá dentro está seco. Me apoio na parede oposta à do grafite da Sarah e só

então percebo como estou cansado. Quase sem energias, eu deixo meu

corpo escorregar até o chão. Então, fico olhando para a parede à minha

frente e meu próprio rosto me encara de volta. Se foi desse jeito que ela me

viu, noite após noite, em seus sonhos, não é de surpreender que sinta tanto

medo.

Fecho os olhos, mas aquela imagem não me deixa em paz. Ela continua

dentro da minha cabeça, bagunçando meus pensamentos. E não é só feita

de cores e traços, ela também está cheia de sons e texturas, cheiros e

sabores. Eu escuto um bebê se acabando de chorar, desesperado. Também

escuto Sarah chorando, mas é um choro diferente, de quem já não tem mais

esperanças. Ao fundo e vindo de todos os lados, há o som de um prédio

S

desmoronando, sendo consumido pelo fogo. As chamas não nos

alcançaram, mas o calor insuportável já tomou conta do ar ao nosso redor.

Estamos cercados.

Eu abro os olhos, encho a mão de pedras e as arremesso contra a

parede.

– É só um desenho! É só a bosta de um desenho!

Eu sei que é mais do que isso, mas queria que não fosse. Queria poder

esquecer tudo – os números, os pesadelos e o futuro terrível que se

aproxima, sem que se possa evitar. Ninguém merece viver desse jeito.

Cheio de raiva acumulada, pego mais um punhado de pedras do chão,

levanto e corro na direção do desenho. Então atiro as pedras no rosto que

estava me encarando – o meu rosto.

– Não sou eu. É outra pessoa nessa merda de desenho. Vai se foder! Vai

se foder, porra! Me deixe em paz! – As pedras e os xingamentos não fazem a

menor diferença. A imagem continua lá. Então, eu começo a socá-la sem

parar. Eu sei que estou dando um chilique ridículo, mas o que mais eu posso

fazer? Eu não posso lutar contra o futuro. Ninguém pode. Eu bem que

queria. Se dependesse da minha vontade, eu chutaria a bunda do futuro. Eu

enfiaria os dedos em seus olhos, acertaria uma joelhada nas suas bolas e

esmurraria a barriga dele até vê-lo cuspir sangue.

Mas só o que estou fazendo neste momento é machucar as minhas

próprias mãos. Merda!

– Isso não vai resolver coisa nenhuma. Nada vai. – Uma voz interrompe

o meu acesso de raiva.

Imediatamente, eu me viro.

E ela está lá, na entrada do túnel, debaixo da chuva. Há quanto tempo

será que está me observando? Quanto será que ela viu?

– Eu não sei o que fazer – eu digo. E isso é a pura verdade. Eu não sei o

que fazer, o que dizer, nem para onde ir.

– Então é melhor você voltar comigo. A gente devia ter uma conversa.

Algo terrível acontece quando ela me diz isso. Minha boca começa a

tremer, meu rosto se contrai todo e começo a chorar feito um bebê.

Me viro. Não quero que ela me veja assim. O problema é que não dá

para esconder o que eu estou fazendo – é o meu corpo todo que está

chorando. Sem saber onde enfiar a cara, eu me abaixo, de costas para ela,

com as lágrimas rolando pelo rosto e o catarro escorrendo do meu nariz.

Meus soluços ecoam e enchem o túnel. Sei como estou parecendo para

Sarah, mas não consigo evitar. Preferia estar morto. Meu Deus, é por isso

mesmo que eu estou chorando. Eu preferia estar morto.

Ela coloca a mão no meu ombro, querendo ajudar, eu imagino. Mas

estou envergonhado demais. Dou um pulo para o lado e grito: “Não!”

Eu a escuto se afastar.

– Quando você estiver bem, venha de novo para casa. Vou estar lá,

esperando – ela diz, antes de partir. Faço força para parar de chorar e poder

escutar seus passos, mas quando finalmente consigo me acalmar, só o que eu

consigo ouvir são as gotas de chuva atingindo o asfalto do lado de fora do

túnel.

Enxugo o rosto com as mãos e as mangas da blusa e me levanto

devagar, sentindo o sangue voltar a circular normalmente pelas minhas

pernas. Me sinto completamente vazio, nulo, só uma carcaça sem nada por

dentro.

Eu enxergo a pintura na parede com o canto do olho e me lembro de

toda a raiva que estava sentindo. Foi só há uns minutos, mas parece que faz

anos. Eu queria fazer o futuro explodir. E ainda quero. Mas não hoje.

Porque agora estou indo para a casa da Sarah.

Ela está me esperando.

SARAH

or que eu decido ir até lá e chamá-lo de volta? Porque enquanto

estou tentando acalmar Mia, eu só consigo lembrar-me da maneira

como ele me olhou na cozinha. Ele estava com medo também,

entende? Igual a mim.

Além disso, agora ele já sabe onde eu moro, então poderia voltar

quando bem entendesse. Não quero que ele apareça a qualquer hora. Prefiro

que seja do meu jeito.

Resolvo ir atrás dele e o encontro exatamente onde esperava – no

túnel. Eu só fico surpresa com a maneira como ele reage quando me vê. Ele

simplesmente desaba na minha frente, chorando descontroladamente. Vê-lo

assim é de cortar o coração – aquele garoto charmoso, agressivo e cheio de

si desapareceu e só o que restou foi um menino desesperado de medo. Ele

está chorando como um bebê, mais parece a minha Mia. Desde que ela

nasceu alguma coisa aconteceu comigo e eu não consigo lidar com gente

chorando do meu lado. Preciso fazer alguma coisa. Uma parte de mim agora

quer abraçá-lo e niná-lo até tudo ficar bem. Eu coloco a mão em seu ombro,

mas ele se afasta. Não posso culpá-lo, porque, se fosse comigo, eu

provavelmente faria a mesma coisa. Todos temos nosso orgulho, não é?

Melhor deixá-lo resolver isso por si só.

Disse a ele que estaria em casa esperando e aqui estou eu agora. Sei que

ele vem. Seria capaz de apostar minha própria vida nisso. E é isso mesmo

que ele faz. Cinco minutos depois de eu chegar, ele aparece no portão dos

fundos. Da janela da cozinha posso vê-lo; em seguida, caminho até a porta.

Ele está ensopado. A chuva lavou a maior parte do sangue em seu

P

rosto, mas ainda sobrou um pouco em sua testa. Seu rosto não parece o de

alguém que estava chorando há poucos minutos, mesmo assim ele continua

envergonhado e mal consegue me olhar nos olhos.

– Pode entrar – eu digo. Ele vai até a cozinha, deixando um rastro de

água atrás de si. Eu entrego uma toalha a ele. – Você pode se secar com isso

aqui.

Primeiro, ele a pressiona com cuidado contra o rosto e depois esfrega o

cabelo.

– Ah... – ele suspira.

Eu fico olhando para ele, molhado até os ossos, tremendo de frio.

– Você quer alguma coisa pra beber? Água? Coca? Chá?

– Acho que uma caneca de chá podia ser uma boa. Valeu.

Em seguida, eu me concentro por alguns minutos em preparar o chá –

colocar a água para ferver, pegar o pó e essas coisas. É estranho demais fazer

uma coisa tão normal com ele junto na cozinha.

– E aquele seu amigo, onde ele está? – ele pergunta.

– Deve estar na sala – eu minto. Vinny havia saído para fazer uma

entrega.

– Ele esqueceu o taco aqui. – Ele olha para o taco de beisebol

encostado na parede.

– Eu sei usá-lo se precisar – eu digo. Na mesma hora, eu percebo que

estou soando ridícula e dou um sorrisinho sem graça.

Adam não tem certeza se também tem autorização para sorrir. O canto

da boca dele se mexe um pouco.

Ele responde, com uma expressão séria. – Você não vai precisar. Eu não

vim até aqui para machucar você Sarah. Nunca poderia fazer uma coisa

dessas.

É como escutar a voz do meu pai me dizendo: – Não vai doer se você

ficar paradinha. – Mentiras e mais mentiras.

Eu devo ter deixado isso transparecer no meu rosto, pois Adam

pergunta logo a seguir, preocupado: – Eu disse algo de errado? Desculpe-me.

Mas eu estou falando sério, Sarah, não quero machucar você. Só preciso

conversar.

Eu resolvo mudar de assunto.

– Não, tudo bem. Acredito em você. E quero conversar também.

Vamos nos sentar. Eu o levo até a sala vazia.

Ele olha ao redor. – Eu achava que...

– O quê?

– Nada, não. Deixa pra lá. – Ele achava que o Vinny estaria lá. Pelo

menos, foi isso que eu disse.

Nós nos sentamos e tomamos o chá, eu em um sofá imundo e caindo

aos pedaços, e ele no outro. Temos tanto a dizer um ao outro, que fica difícil

saber por onde começar. O silêncio desconfortável está tomando conta da

sala. Quanto mais ele dura, mais esquisita a situação toda fica. Até que,

finalmente, Adam resolve dar o primeiro passo.

– Sarah, você estava falando coisas sobre mim. Você disse que eu era o

demônio. Não consigo entender por quê. Nós só nos encontramos algumas

vezes. E eu nunca fiz nada de mal a você.

Eu respiro fundo. É agora.

– Tudo bem, nós só nos encontramos algumas vezes, é verdade. Mas eu

já conhecia você. Tenho visto você todas as noites durante o último ano.

Você está nos meus pesadelos. Já aparecia neles antes mesmo do primeiro

dia na escola. E eu sabia da sua cicatriz muito antes de ela aparecer no seu

rosto.

Ele coloca a mão na frente do rosto.

– Merda – ele diz. – Você viu o meu acidente, o incêndio.

– Não, isso eu não vi. Mas eu sempre vejo fogo, prédios desmoronando,

chamas por toda parte, mas acontece... acontece que o meu pesadelo... Eu

acho que ele é sobre o futuro. Ele não tem a ver com algo que já aconteceu,

mas sim com algo que ainda está para acontecer, e logo.

A maior parte das pessoas riria de mim se eu dissesse uma coisa dessas a

elas. Mas o Adam não faz isso.

– O Ano-Novo – é só o que ele diz.

– Isso. É essa a data que aparece no meu pesadelo. O dia primeiro de

janeiro. Eu não sonhava com ela até conhecer você. Ela apareceu no meu

pesadelo na noite em que nos vimos pela primeira vez, na escola.

– Eu fiz você ver um número – ele diz. – É isso que eu vejo: números.

Datas de mortes. Ele está me encarando agora. – Quando o meu olhar cruza

com o de outra pessoa, eu vejo um número. É a data em que ela vai morrer.

Eu também sinto como vai acontecer. Posso ver ou escutar algo.

Um flash passa pela minha cabeça. Eu consigo saber se a morte vai ser

tranquila ou violenta, se vai ser causada de dentro ou se vai vir de fora.

O acidente não mudou em nada os olhos dele. Eles continuam lindos e

vivos, apesar de tudo. Eu poderia me perder neles se quisesse. Só que agora

eu sei que eles veem mais do que os outros e não posso deixar de pensar no

que eles veem quando olham para mim.

– Você consegue ver a minha morte?

Ele não desvia o olhar de mim. Eu também não desvio o meu. Não

tenho certeza se ele me escutou. Ele parece tão atento, é como se estivesse

em outro lugar.

– Você consegue ver a minha morte, Adam?

Ele arregala os olhos e puxa o ar com força, como se tivesse tomado um

banho de água fria.

– Sim – ele responde. Seu rosto relaxa, então. Ele continua olhando

para mim, mas não é só nos meus olhos que está prestando atenção agora.

Seus olhos passeiam por todo o meu corpo, de cima até embaixo. É como se

ele estivesse me iluminando com eles. É tão intenso quanto desconfortável.

– Então você sabe quando eu vou morrer – eu digo. E minhas palavras

acabam quebrando o feitiço. Ele olha para o lado e diz calmamente: – Eu

não posso te contar, Sarah. Eu não digo às pessoas qual é o número delas.

Isso não seria certo.

– Eu não quero saber – eu respondo. – Eu não tenho medo (o que é

uma mentira). – Só não quero saber. Não precisa me contar, nunca.

NUNCA. Por que será que eu disse isso? Como se fôssemos nos tornar

amigos. Como se fôssemos nos conhecer por um bom tempo. É como se

tivéssemos um futuro juntos pela frente.

– Eu não vou dizer – ele responde. – Você não tem medo, mesmo?

– Eu não tenho medo de morrer. Tenho medo de... – Eu não termino a

frase. Eu tenho medo de perder minha filha. Tenho medo que ela fique sem

mim.

– Medo de quê?

– Do meu pesadelo. É isso – digo devagar. Não é mentira, no fim das

contas. – Ele está me deixando maluca. Sempre o mesmo sonho. A mesma

data. Não dá para viver desse jeito. Eu não sei mais o que fazer.

– Comigo é assim também – ele responde. – As ruas estão cheias de

pessoas que vão morrer nos primeiros dias do ano. São todas mortes

violentas. E estão se aproximando cada vez mais. Faltam só cinco dias agora.

Isso me esmaga às vezes. Essa sensação de não poder fazer nada... Acontece

que eu queria poder fazer alguma coisa para mudar essa história. Queria

lutar. Queria avisar as pessoas. Dar um jeito de tirá-las daqui, de mandá-las

abandonar Londres o quanto antes.

Ele está ficando agitado agora, apertando os punhos e se mexendo no

sofá. Essa energia toda que ele guarda é de assustar. Mas ela é contagiante

também.

– Acho que nós podemos fazer isso – ele diz. – Acho que podemos

vencer os números e salvar as pessoas. Eu só não sei como...

– É só em Londres que vai ser assim?

– Sei lá. Tem mais gente aqui morrendo nessas datas do que eu vi em

Weston.

– Weston?

– Foi de lá que eu vim. Weston-super-Mare. Fica no litoral. Eu morava

lá com a minha mãe.

– E o que aconteceu?

– Ela morreu quando eu tinha oito anos. Câncer. Eu vi o seu número,

mas não sabia o que queria dizer. Então, eu contei a ela. Ou melhor, eu

escrevi em um desenho da escola e ela viu. Ela entendeu o que era, porque

também via os números. Na explosão da London Eye em 2009, ela se meteu

na maior confusão porque percebeu que tudo estava prestes a ir pelos ares e

foi flagrada correndo pelas câmeras. Ela viu os números das pessoas na fila.

O negócio é que ela teve que aguentar o resto dos dias que sobravam

sabendo a data da própria morte. E foi tudo culpa minha.

Sua voz começa a falhar no final da frase até desaparecer e eu percebo

que ele está se esforçando para não chorar.

– Tudo bem – eu digo. – Não tem problema ficar chateado com o que

aconteceu com a sua mãe. Eu tenho um lenço aqui em algum lugar.

– Não – ele responde rápido. – Não precisa. Eu estou bem assim. Ele

esfrega o rosto, se arruma no sofá, alonga o pescoço, os braços e as pernas e

diz de repente: – Desculpa.

– Por quê?

– Por tudo. Por ficar no seu pé. Por aparecer no seu pesadelo.

Eu dou de ombros. – Não é sua culpa. Você não pediu para aparecer lá,

pediu?

Ele se inclina para frente e aperta as mãos, uma contra a outra.

– Sarah, e se o seu pesadelo não precisasse se realizar? E se nós

pudéssemos mudar o rumo das coisas?

Ele não precisa se realizar. Se pelo menos ele tivesse razão... Mas eu

acho que não.

– Eu já tentei avisar as pessoas – eu respondo. – Está lá fora, a minha

pintura. Está tudo lá.

– É por isso que você fez aquilo?

– Eu não sei direito. Foi o Vinny quem sugeriu, na verdade. Ele me

escutava gritando toda noite. Então ele pensou que eu podia desenhar tudo

o que eu via em sonho. Eu tenho pilhas de folhas com os meus desenhos. É

tão real, Adam. Eu queria conseguir fazer com que os outros soubessem.

Também queria tirar isso de dentro de mim.

– E o seu pesadelo foi embora?

– Não.

Eu me afundo no sofá, de repente, exausta. De uma hora para a outra,

eu sinto o peso de todas as noites maldormidas nas minhas costas.

– Você parece exausta – ele diz. – Melhor eu ir embora.

Ele já está de pé. Começo a me levantar bem devagar.

– Tudo bem – ele se apressa em dizer –, fique aí. Eu já sei o caminho

daqui. Só uma última coisa... Será que eu poderia voltar uma hora dessas

para conversar de novo?

Eu afundo de volta no sofá – minha energia foi toda sugada. Eu estava,

esse tempo todo, preparada para discutir com ele, para me defender do

demônio do meu pesadelo. Mas o Vinny tinha razão. Ele é só um garoto, um

garoto que está tão confuso quanto eu. Estou exausta e agora só quero que

ele vá embora.

Mas eu também quero que ele volte.

– Tudo bem – eu respondo. – Pode voltar quando quiser.

Ele sorri. É um sorriso meio torto, porque do lado do seu rosto que foi

queimado, a pele está mais rígida. Tem alguma coisa naquela pele que me

faz sentir mais tranquila por dentro. Ele passa perto de mim e hesita um

instante.

– Tchau, Sarah – ele fala antes de sair andando novamente.

– Tchau.

Meus olhos se fecham antes mesmo de ele cruzar a porta. Logo eu estou

entregue a um sono sem sonhos.

ADAM

la fecha os olhos. Desse jeito, ela parece mais tranquila, mais jovem.

Sua pele é bem pálida, quase branca. Quando passo por ela, ficamos

tão perto que eu consigo sentir o seu perfume. Tudo o que eu quero

fazer é passar os braços ao seu redor, apertá-la contra o meu corpo, colocar

o meu no seu e respirar seu perfume.

Fico parado na porta alguns segundos antes de ir, olhando para ela. Eu

poderia ficar assim para sempre.

Começo a escutar um barulho vindo de algum quarto no andar de

cima. Lá no fundo de seu sono, Sarah também deve estar escutando, pois

muda de posição no sofá. É um som fraco, mais parece um som de um

animal, um filhote. Algo nele está me incomodando. Eu caminho na ponta

dos pés pelo corredor, até chegar ao início da escada. Parece que não tem

ninguém lá em cima, apenas essa espécie de choro. Ali parado, eu acho que

sei o que é.

Estou dividido – ao mesmo tempo em que quero subir, também quero ir

embora daqui de uma vez. Talvez seja só curiosidade mesmo, ou então pode

ser mais do que isso. Essa casa, a Sarah, é como se eu estivesse destinado a

encontrá-las. É o meu e destino estar aqui agora. É meu destino escutar esse

som. E se eu for embora agora, vou acabar vendo do mesmo jeito da

próxima vez que vier para cá. Com todo cuidado, eu subo as escadas. No

primeiro andar, o som ainda parece vir de cima. A essa altura, meu coração

está querendo sair pela boca, minha respiração está cada vez mais ofegante.

Mais um lance de escadas. O som está mais alto agora e mais

desesperado também. Eu estou em um corredor com quatro portas. Eu abro

E

uma de cada vez, dando um pulo para trás em todas elas, como se do outro

lado tivesse um homem armado me esperando. A primeira é do banheiro –

quatro paredes mofadas e uma torneira pingando sobre uma mancha de

ferrugem na pia. Eu abro um quarto cheio de roupas pelo chão, um colchão

em um dos cantos e uma guitarra encostada na parede. Depois dele, vem

mais um, com um sofá velho e pilhas de livros, revistas e jornais por toda

parte. Todos vazios.

Só falta mais um cômodo.

A porta está entreaberta. O barulho está tomando conta dos meus

ouvidos agora. E com certeza não é um animal. Paro do lado de fora. Eu não

consigo continuar. Vai nessa, eu digo para mim mesmo. Agora que você já

veio até aqui, tem que continuar.

Eu empurro a porta e paro na entrada. Comparado com os outros

quartos, este está bem arrumado. Em um dos cantos, há um colchão no

chão, com um edredom sobre ele, dobrado na metade. Pilhas de roupas,

cobertores e toalhas dobradas estão cuidadosamente alinhadas nas

prateleiras de uma estante. Está na cara que alguém aqui se esforçou para

deixar as coisas desse jeito.

Ao lado do colchão, há uma gaveta grande. Da porta, só o que eu

consigo ver são duas mãozinhas rosadas se agitando no ar.

Vou até lá e olho para baixo. O rosto do bebê está vermelho de tanto

chorar. É uma menina. Ela está de olhos fechados, seus cílios úmidos por

causa das lágrimas. Ela continua mexendo os braços no ar e também está

agitando as pernas para a direita e para a esquerda, por baixo do lençol.

Eu abaixo e chego mais perto.

– Quem é que está fazendo todo esse barulho aqui? – eu digo.

De repente, seus braços e pernas param e ela abre os olhos. Eles são

azuis e brilhantes. Como os da mãe dela. Eu demoro alguns segundos para

absorver o choque. – Meu Deus. Não. Por favor.

Seu número atravessa a minha cabeça como uma bala: 112027.

SARAH

que você pensa que está fazendo aqui? Fique longe dela!

Ele está bem ali no meu quarto, abaixado ao lado do

berço. Quer dizer que ele estava atrás dela o tempo

inteiro. Toda aquela história dele ser só um garoto confuso e com muito

medo era papo furado. Ele sabia que a minha filha estava aqui – ele queria

chegar até ela.

Ele olha para trás por cima do ombro. Vejo a culpa em seus olhos. Eu o

peguei em flagrante olhando para o seu rosto, depois para o rostinho da

Mia, eu sei que o pesadelo vai se realizar.

– Ela estava chorando. Eu só subi para ver se...

– Sai de perto dela, seu monstro!

Eu corro até o berço e, ao passar por Adam, dou uma trombada que o

faz cair um pouco para o lado. Eu tiro Mia do berço e a levo para o outro

lado do quarto, o mais longe possível dele. Fico andando de lá para cá com

ela no colo, tentando acalmá-la, mas não é fácil fazer isso quando o seu

próprio sangue está fervendo de raiva.

– Você não devia ter subido até aqui. Se ficou preocupado desse jeito,

você devia ter me acordado.

Mas é claro que ele não faria isso. Ele veio aqui para encontrá-la e eu

estava exatamente onde ele me queria – fora do caminho.

– Foi mal, Sarah. Eu não sabia o que fazer. E você estava tão cansada.

– É óbvio que eu tô cansada. E como eu não ia ficar, com o sono de

merda que eu tenho tido nos últimos meses? Estranho ia ser se eu não

ficasse. Só vai embora, pode ser? Vai logo. Eu não quero escutar mais nada

– O

de você.

Ele põe as mãos para o alto e dá um passo para trás.

– Tudo bem, tudo bem. Eu vou. Desculpa, mais uma vez. O que tem de

errado com ela?

– Ela não tem nada. Bebês choram, você não sabia? Deve ser fome.

Ele continua lá parado, que nem bobo.

– Mandei você ir, não foi? Vai logo, Adam – eu digo, com firmeza. Ele

hesita por um segundo. – Quer fazer o favor de dar o fora daqui? Eu disse

JÁ!

Isso o faz se mexer. Ele se arrasta até a porta, resmungando. – Tudo

bem, mas eu ainda posso voltar, não é?

– Não. Não. É melhor você não aparecer mais.

– Sarah, por favor.

Aqueles olhos de cachorro pidão não vão mais me fazer de trouxa.

– Será que não deu pra entender? – agora eu estou gritando mesmo. –

Eu não quero você rondando a minha casa de novo, seu imbecil. Eu não

quero mais ver você na minha frente. Se você der as caras aqui de novo, vai

se machucar de verdade. Eu tô falando sério.

Finalmente, ele se vai. Eu o escuto descendo as escadas, batendo a

porta da cozinha e depois o portão do lado de fora. Então me sento no

colchão e levanto a minha blusa.

– Pronto, Mia – eu digo. Pode mamar agora. Você está com fome, não é

mesmo? Coitadinha da minha garotinha. Faminta, ela procura

desesperadamente até encontrar o que estava procurando e começa a sugar.

– Ele já foi, querida. O homem mau já foi embora. Eu não vou deixá-lo fazer

nada de ruim a você.

Acontece que, sentada ali, eu só consigo pensar no que ele me disse

mais cedo. Todo aquele papo dos números. Parecia ser verdade quando ele

contou. Afinal, faz todo sentido. Na escola, quando eu o vi escrevendo

naquele caderno, ele estava anotando os números, eu tenho certeza disso.

Se ele vê isso mesmo, então está vivendo em um pesadelo, igual a mim.

Pobre coitado. E ainda tem a queimadura no rosto... Por quais tipos de

problemas será que ele tem passado?

Quando me dou conta de que estou pensando no Adam, balanço a

cabeça com força, tentando expulsar essas ideias de dentro dela. Não posso

desperdiçar o meu tempo com ele. Já foi difícil demais chegar até aqui – sair

de casa, ter Mia sozinha e construir essa espécie de vida para nós duas. Não

posso me dar o luxo de me preocupar com os problemas dos outros. Só o

que interessa sou eu e a minha filha. E, nesse caso, talvez o Adam tenha

razão. Nós temos que nos mudar daqui o quanto antes. Vou levar o meu

anjinho para longe de Londres, para longe da desgraça que se aproxima,

para longe dele. Nós vamos para algum lugar onde ele jamais possa nos

encontrar.

ADAM

omo eu sou idiota. A pintura no túnel. Eu nem cheguei a me

perguntar quem era aquele bebê. Só me preocupei comigo mesmo,

apenas eu. Mas que estúpido. É o bebê – é por causa do bebê que

ela está com tanto medo.

É a filha dela.

Eu não fazia a menor ideia. Ela já devia estar grávida na escola, mas eu

nem notei. Eu estava hipnotizado pelo seu rosto, seus olhos, seu número.

Ainda está chovendo, enquanto eu cruzo os quarteirões correndo.

Meus pensamentos seguem o ritmo dos meus pés batendo no asfalto. É a

filha dela. É a filha dela.

Eu achava que era ruim o bastante ser eu mesmo e andar por aí com o

peso de milhares e milhares de mortes nas costas. Mas imagine só como está

sendo para ela, com o fim do ano se aproximando e a mesma imagem se

repetindo, noite após noite, em seus sonhos – a imagem da sua filha sendo

engolida pelas chamas. A angústia que eu sentia por causa dos números e

por querer ser capaz de mudá-los é dez vezes maior agora. Eu não posso

deixar o pesadelo da Sarah se realizar. Tenho que lutar contra isso com

todas as forças que tiver.

– Meu Deus do céu, Adam, você está ensopado. Por que não levou um

guarda-chuva? Pelo menos valeu a pena se molhar desse jeito? Você

conseguiu encontrar a tal pintura? – é a minha avó, gritando sem se

levantar do seu banquinho na cozinha, assim que eu entro em casa.

– Encontrei sim, e também encontrei muito mais.

– O quê?

C

– O que não, quem. A pessoa que fez o desenho, vó. Foi a Sarah, a

garota da minha escola, aquela do hospital.

– E o que tem demais com ela?

– Ela tem um pesadelo e eu estou nele.

Se fosse outra pessoa já estaria rindo da minha cara, achando que eu

estou fora do meu juízo normal. Mas não a minha avó. Ela entendeu

perfeitamente.

– Essa pintura. É o pesadelo dela, uma visão. Ela é uma vidente,

querido. Sua amiga tem um sexto sentido.

– E ela tem um bebê também.

– Um bebê?

– Eu vi. É uma menina. E ela é um 27, vó. A filha da Sarah vai morrer

junto com todas as outras pessoas.

Eu não estava pensando em falar sobre isso, mas tem algo na minha

avó, na maneira como ela escuta, que faz as palavras, simplesmente, saírem

da minha boca. Quando eu percebo, já é tarde e eu contei tudo.

Ela arregala os olhos.

– A criança vai morrer? Oh não... e você está lá com ela, naquela

pintura. Meu Deus, Adam. Você sabe o que isso significa, não sabe?

Balanço a cabeça para os lados. Minhas pernas estão moles, eu não sei

nem como estou conseguindo ficar de pé.

– Quer dizer que você não deve vê-las nunca mais. Eu preciso tirar

você daqui, mandá-lo para longe de Londres, como você queria. Você não

pode estar aqui quando acontecer. Você não pode estar nem por perto.

– Foi isso que ela disse também.

– Ela disse para você se afastar?

– Isso. Ela me expulsou da sua casa e disse para eu não aparecer mais lá.

– Foi ela quem fez isso com você também?

Ela diz isso enquanto coloca a mão na minha cabeça. Quando ela tira,

há sangue nas pontas amareladas dos seus dedos.

– Foi sim. Mas isso foi antes, quando ela me viu pela primeira vez, antes

de nós conversarmos. Ela jogou uma pedra em mim.

– Muito legal essa sua amiga. Quanta educação.

– Cala a boca, vó. Você nem conhece ela.

Ela dá uma fungada.

– E nem quero.

– Tanto faz, porque você nunca mais vai poder vê-la. Vocês duas estão

com a razão. Eu tenho que ficar longe dela, longe da filha dela. Se eu for

para bem longe, então o pesadelo não vai poder se realizar, não é mesmo?

Minha avó me faz sentar à mesa da cozinha, enquanto ela pega alguma

coisa e passa no meu machucado com um pedaço de algodão.

– Vó – eu digo. – Por acaso, o Nelson apareceu aqui hoje?

– Não. Por quê?

– Porque eu acho que você está certa quanto ao que tinha me dito

antes. Nós temos que avisar as pessoas. Não podemos ficar aqui de braços

cruzados, esperando a merda toda acontecer.

Ela para de limpar o meu machucado e olha para mim.

– Você está falando sério, Adam?

– Estou sim. Isso tudo é muito grande, muito sério. Não interessa se as

pessoas vão me tratar como se eu fosse um lunático. Nós temos que dar a

elas a chance de sair daqui. E então nós poderemos ir embora também. Eu e

você, vó, para bem longe de Londres. Será que pode ser assim?

– Claro que pode, querido. Primeiro, nós tentamos avisar aos outros,

depois arrumamos as nossas coisas e vamos embora daqui de uma vez. Eu

costumava gostar de Northfolk antes de ela ser engolida pelo Mar do Norte.

Mas nós precisamos ir para algum lugar alto, algum lugar com montanhas. E

no meio do nada, é claro. Quanto mais distante daqui, melhor. Então nós

vamos poder subir até o topo de uma colina, abrir umas latinhas e ficar lá

sentados, esperando e olhando o mundo se acabar. E então, o que você

acha?

Eu e minha avó, no topo de uma montanha, assistindo ao fim do

mundo.

– Você vai poder fumar um último cigarro se quiser. Eu não vou negar

uma coisa dessas a você.

– Sempre imaginei que seria a última fumante da Inglaterra. Quem

diria que eu poderia ter razão?

Ela guarda o remédio no armário e começa a vasculhar o freezer, atrás

de alguma coisa para o jantar.

– Adam – ela me chama de repente, ainda com o corpo inclinado e a

cabeça dentro do freezer.

– O quê?

– Fico feliz que você tenha decidido lutar, porque já tomei uma atitude.

– Ai, meu Deus. O que você fez agora?

– Marquei um encontro – ela diz, se levantando e deixando o ar escapar

pela boca.

– Com quem?

– Com o chefe de planejamento do Departamento de Defesa Civil do

Conselho, o nome dele é Vernon Taylor.

– E que merda é essa?

– Olha a boca, menino. Esse tal de Taylor é o encarregado de fazer

planos de emergência para o caso de acontecer alguma catástrofe. Eu

pesquisei um pouco. Vai me dizer que você não está orgulhoso dessa sua avó

aqui?

– É, acho que sim. Sei lá... Mas será que a gente não devia falar com

aquele outro cara, aquele engravatado que parecia ser do serviço secreto?

Ele me deu um cartão. Um velhote que trabalha no Conselho não vai

acreditar na gente, vai? E mesmo que ele compre a ideia dos números, nós

não sabemos o que vai acontecer exatamente. Só quando vai ser.

– É o trabalho dele se preocupar com esse tipo de coisa, Adam. Ele

pode, pelo menos, se preparar para o que quer que seja. Também não gosto

de ter que falar com esse pessoal do governo, mas o assunto é sério e nós

não podemos deixar nossos caprichos interferirem. Nós precisamos avisar

alguém que possa tomar alguma atitude. Nós temos que fazer isso, Adam.

Há vidas que precisam ser salvas lá fora. Esse é o nosso dever de cidadãos. –

Então ela começa com essa história de cidadão para lá e para cá. Eu acabo

fazendo uma cara feia, porque, de repente ela diz: “Você é mesmo um

garoto muito ingrato. E eu que achava que você ficaria agradecido”.

– Mas estou sim. E só que... Ah, sei lá. Estou agradecido sim. Valeu aí,

vó.

Ela tira uma bandeja de dentro da caixa que pegou no freezer e faz

alguns furos com uma faca no plástico que a cobre. Se não tivessem

inventado a comida congelada, minha avó já teria morrido de fome há

muito tempo.

– O jantar vai ficar pronto em dez minutos. É o tempo de você subir e

tomar um banho rápido. Pode jogar essas roupas molhadas na máquina de

lavar. Eu estava pensando que amanhã você podia usar uma camisa e

parecer um menino sério, só para variar.

– Como assim? Camisa pra quê?

– Acabei de falar, seu distraído. Nós vamos ao Conselho, lembra? Nós

precisamos ir bem apresentáveis. Ou você quer que eles achem que somos

uma dupla de malucos?

Subo correndo as escadas e entro direto no banheiro. É só quando

entro embaixo da água quente que me dou conta de como meu corpo está

gelado. Eu fecho os olhos e sinto o calor me dominando até os ossos. Lá

fora, continua chovendo. Eu vejo o rosto da Sarah e o seu número me

sussurra uma promessa. Na riqueza e na pobreza. Na saúde e na doença.

Até que a morte nos separe.

Se eu nunca mais a vir de novo, se eu me afastar dela de uma vez por

todas, como essa promessa vai se realizar?

SARAH

uando eu vim para cá, trouxe só a minha mochila da escola comigo.

Agora, não sei o que fazer para juntar as coisas de nós duas. Eu acho

que só o que vamos realmente precisar são roupas, fraldas e lenços

umedecidos. Com o resto, a gente vai ter que se virar.

Eu não sei para onde estamos indo, só o que sei é que precisamos sair

logo daqui. Eu não tenho dinheiro o bastante para uma passagem de trem,

quem sabe consigamos pegar um ônibus para algum lugar. Talvez o Vinny

me arranje algum dinheiro. Mas eu não tenho coragem de pedir. Ele já fez

muita coisa por nós duas. Transformou-se em um amigo de verdade.

Mia está dormindo enquanto eu junto as coisas. Eu paro um pouco e

fico olhando para ela, com a boquinha aberta e os braços levantados ao

redor da cabeça. De repente, uma onda de pânico começa e me tomar. Será

que vou conseguir me virar sozinha com ela? E se eu não encontrar um

lugar para nós ficarmos? Lá fora, está caindo uma tempestade de raios. O

vidro da janela treme ao som dos trovões. Não, eu não posso simplesmente

sair por aí sem ter para onde ir nem quem procurar. Não com um bebê no

colo.

Eu deixo o meu corpo cair na cama, não me sentindo derrotada ainda,

mas tomando consciência da minha verdadeira situação. Eu preciso pensar à

frente, preciso me planejar.

Os trovões estão tão altos que eu não consigo escutar as batidas na

porta. De repente, começo a perceber que há algum outro som além dos

estrondos e dos vidros tremendo e desço as escadas correndo. As batidas

não vêm dos fundos, mas sim da porta da frente. Ninguém nunca entra pela

Q

frente. Eu abro os ferrolhos, mas não há nenhuma chave para a fechadura.

A porta não vai abrir.

Me abaixo um pouco e abro a entrada de correspondências.

– Quem é?

Eu só consigo ver um cinto brilhante bem apertado no meio do casaco

de alguém. A pessoa do outro lado fica em silêncio um momento e depois se

abaixa. Agora eu consigo ver o seu queixo.

– Olá, meu nome é Marie Southwell. Sou do Departamento da

Infância, do Conselho dessa região.

Merda!

– E o que você quer?

– Eu gostaria de falar com Sally Harrison. É você?

Por um instante eu me sinto aliviada. Sally Harrison? Ela se enganou de

endereço, na certa. Mas, de repente, eu lembro que sou eu mesma, foi esse o

nome que dei quando tivemos que levar Mia ao hospital.

– Você tem que dar a volta e entrar pelos fundos. Eu vou esperá-la no

quintal.

– Tudo bem.

Eu vou para a cozinha correndo, recolhendo os pratos e canecas sujas

pelo caminho, depois as enfio em um armário e fecho a porta. A mulher que

aparece na janela está com as roupas e os cabelos desalinhados por causa do

vento, mas mesmo assim continua elegante, com as botas combinando com

seu cinto brilhante. Ela me mostra sua identificação e eu a convido para

entrar, morrendo de medo de como ela vai reagir quando vir as coisas aqui

dentro. Se é a primeira impressão que fica, eu já consigo imaginar o que ela

vai pensar do teto todo sujo e cheio de gordura, do cocô de rato espalhado

pelo chão e do taco de beisebol encostado na parede.

– Você aceita um pouco de chá? – eu pergunto esperando distraí-la um

pouco. Mas seus olhos estão correndo por todos os cantos, percebendo tudo

de errado.

Ela sorri. – Eu aceito sim, obrigada. Com leite e sem açúcar, por favor.

Preparo o chá com todo o cuidado. O leite está em cima da bancada e

quando eu o coloco no chá só o que cai da caixa é um creme branco todo

empelotado. Na mesma hora, eu despejo tudo na pia.

– Merda. O leite acabou, desculpe-me. Vou preparar mais chá. Você

toma puro?

– Não precisa se preocupar com o chá. Nós podemos sentar e conversar

um pouco? É só um acompanhamento de rotina, para saber de você... e do

seu bebê. Ela está em casa?

– Está sim, lá em cima.

– Ótimo. Eu gostaria de poder vê-la, depois da nossa conversa.

– Tudo bem. – Minhas mãos estão suando. Eu as seco na calça e me

sento. – Minha filha está muito bem. Não tem nada de errado com ela, eu

posso garantir.

Ela levanta a vista dos papéis que colocou sobre a mesa da cozinha.

– Não, não. Claro que não tem nada de errado. É só que os seus dados

ficaram incompletos no hospital. Não é nada demais, só preciso saber

algumas coisas de rotina.

– E como vocês... como vocês nos encontraram?

– A sua filha, Louise, foi identificada com um chip no hospital, não foi?

– Foi sim, mas...

– Pois é. O hospital notificou o nosso departamento e ela foi rastreada.

Rastreada. Eu estou passada. Não importa aonde formos agora, eles vão

poder nos encontrar.

– Eu nunca quis que colocassem esse negócio nela. Eles simplesmente

foram colocando, sem nem me perguntar nada.

– Bom, é verdade. Eu sei que muita gente não gosta da ideia, mas não

dói nada e é uma exigência legal.

– Eu sei. Nesse caso, essa lei é uma porcaria.

Me escuto dizendo isso, e me dou uma bronca por dentro. Para com

isso. Melhor você agir normalmente e ser gentil. Assim ela vai embora logo.

O sorriso no rosto dela diminui.

– Mas agora já está feito. E isso quer dizer que nós podemos dar a você

o aconselhamento e a assistência de que você necessita. Você tem contato

com o pai da pequena Louise?

– Não – eu respondo rápido. – Ele nunca nem ficou sabendo.

– Então, eu vou precisar dos dados dele. Ele tem que se responsabilizar

também. Você poderia estar recebendo uma pensão.

– Eu não quero o dinheiro dele. Não quero nada que tenha qualquer

ligação com ele.

– Sim, mas um pouco de dinheiro não faria mal.– Ela olha ao redor.

– Eu estou bem. Consigo me virar. Eu tenho amigos aqui que me

ajudam.

– E você também tem direito a receber um auxílio em dinheiro do

Estado.

– Mas eu não quero. Não quero nada de ninguém. Eu só quero que me

deixem em paz, será que deu pra entender?

– Perdoe-me, Sally, mas eu temo que as coisas não funcionem assim,

pelo menos não quando você tem um filho. A autoridade local tem o dever

de garantir que as crianças dessa região recebam os cuidados adequados.

Cuidados? Ela disse cuidados? E quem foi que cuidou de mim quando

eu ainda estava em casa? Quem se preocupou em descobrir os motivos pelos

quais eu comecei a aprontar na escola? Ninguém quis olhar para além do

grande portão de ferro e do caminho de pedras da entrada. Não tem nada

de errado com esse lar, deve ser só uma garotinha muito mimada pelos pais.

– Nós podemos inscrevê-la no programa da Assistência Social agora

mesmo, pela internet. É rapidinho. Eu trouxe meu laptop.

– Eu já disse que não quero nada.

– Talvez em uma próxima vez, então...

– Olha só, eu vou buscar a Louise lá em cima e vou mostrá-la a você,

pode ser? Ela está bem e eu também estou. Nós estamos ótimas assim. É só

isso que você quer saber?

– Eu gostaria de ver o quarto da criança, se você não se importa. Posso

ir até lá com você?

Mas que saco.

– É claro.

E então eu mostro o caminho a ela, subindo as escadas, passando pelos

soquetes sem lâmpadas e pelos pedaços de papel descolado pendendo da

parede, até chegarmos à porta arrombada do meu quarto. Mia ainda está

dormindo na gaveta. Ela está limpa, segura e bem. É isso que deve interessar

a esse pessoal, não é mesmo?

– Você está de partida. – Marie diz, vendo os sacos plásticos cheios de

roupas e fraldas.

– Não. Só estou colocando ordem nas coisas. Não é fácil manter tudo

arrumado por aqui... – Cala a boca. Aqui está muito bom.

Meus desenhos estão empilhados por toda parte. Ela vagueia um pouco

pelo quarto, então para ao lado de uma das pilhas e pega o desenho que está

em cima.

– Você é uma artista, Sally. Isso aqui é bom.

Ela pega um dos desenhos que está bem embaixo e dá uma olhada no

desenho de baixo. Alam e Mia, no meu pesadelo. Ela se curva para alcançá-

lo e faz uma careta.

– O que é isso?

– Nada. Não é nada demais. Só um pesadelo. Eu desenhei um pesadelo

que tive outro dia.

– Isso é... muito forte. Perturbador. Esse aqui é o pai?

Eu começo a rir, mas de repente falo: – É ele. É ele, mesmo. O sem-

vergonha me abandonou antes de eu descobrir que estava grávida. Isso tudo

é ridículo. Está na cara que eu estou mentindo. Ali está Mia, deitada em seu

berço, com sua pele branquinha e seus olhos azuis, para provar. Mas Marie

parece não ter percebido a evidência.

– Nós conseguiríamos localizá-lo facilmente, Sally – ela diz. – O rosto

dele é muito... característico.

– Eu não quero encontrar esse sujeito. Eu já te expliquei, não quero ter

nenhuma relação com ele.

Nós duas escutamos a porta dos fundos batendo. Vinny e os outros

estão de volta.

– São os amigos que dividem a casa com você?

Eu faço que sim com a cabeça.

– Eu só preciso dar uma olhada rápida na Louise e depois vou deixá-la

em paz.

Ela se ajoelha ao lado do berço. O pessoal está animado hoje. Daqui de

cima podemos escutá-los de lá para cá na cozinha. Eu começo a me

perguntar em que estado eles estão.

– Para mim, parece que está tudo bem – Marie diz. – Não tem por que

acordá-la.

Ela levanta batendo no casaco para tirar o pó.

– Eu vou voltar na semana que vem, assim nós poderemos conversar

direito sobre os seus benefícios. É um direito seu, Sally. Ninguém estará te

dando nada. E então, nos vemos na próxima semana?

– Tudo bem.

Eu sinto que estou sendo enquadrada pelo sistema, que o meu nome

está de volta aos registros oficiais, mas tanto faz. Daqui uma semana eu já

estarei bem longe daqui. Eu desço as escadas na frente dela. Por que será

que ninguém nunca se preocupou em arrumar uma chave para a porta da

frente? Se eu conseguisse abri-la, não precisaria passar com a Marie pelo

pessoal na cozinha. Isso não é nada bom. Não estava nos meus planos que

ela visse os meus “amigos” daquele jeito. Agora não há mais nada que possa

ser feito para consertar as coisas.

Eles estão com a lâmina, as colheres e as seringas prontas. Parece que,

esta noite, Vinny, Tom e Frank resolveram preparar um desastre para o

jantar.

ADAM

ão duas e vinte e nós estamos do lado de fora do prédio do Conselho.

Minha avó está fumando um último cigarro para dar coragem.

– Vó, o que a gente vai dizer? Você já pensou nisso?

Ela inclina a cabeça para trás e solta uma demorada nuvem de fumaça

para cima. Depois ela joga a bituca do cigarro no chão e pisa em cima.

– Pensei sim. E estou pronta. Venha, Adam. Vamos entrar logo nesse

lugar.

Além do casaco e da saia pretos, de algum tecido sintético bastante

suspeito, ela está usando um sapato de salto. Ele não é muito alto, mas já é

bem mais do que o chinelo que ela está acostumada a usar em casa. Dá para

notar que não está sendo fácil para ela andar. Ela se esforçou tanto para

arrumar o visual e parecer elegante, mas eu não consigo deixar de pensar

que, em uma primeira impressão, ela não é muito diferente de um travesti.

Ela ainda me fez vestir um jeans limpo e uma camisa da escola. O colarinho

não demora a começar a me incomodar e eu logo abro os dois primeiros

botões.

– Vó, era melhor usar as roupas normais. Eu estou me sentindo um

pateta desse jeito e você também não está nada...

– Silêncio, Adam – ela diz com o dedo indicador na frente da boca –,

agora nós já entramos.

As portas automáticas se abrem deslizando à nossa frente e nós

entramos em um saguão. No centro, há um terminal como uma tela sensível

ao toque mostrando algumas opções. Nós selecionamos “reuniões”, “14:30”

e, por último, “Vernon Taylor”. De repente, outro par de portas se abre e

S

nós entramos em uma sala de espera.

O lugar é todo iluminado, com cadeiras agrupadas ao redor de mesinhas

de café, com uma porção de revistas em cima. As paredes são quase todas de

vidro, e é possível ver as salas de reunião do outro lado delas. Por todo lado,

há telas penduradas passando depoimentos de pessoas que contam como o

Conselho Local já as ajudou. Entre os vídeos passa sempre a mesma vinheta

“Serviços do século vinte e um, para pessoas do século vinte e um”.

Eu olho ao redor, querendo saber quem são as outras pessoas do século

vinte e um que estão aqui hoje. Há uma mulher jovem sentada que olha

para o nada, enquanto o seu filho corre de um lado para o outro, entre as

cadeiras, gritando o mais alto que pode; também há um homem com uns

quarenta, cinquenta anos, que usa um roupão por cima da roupa e fica

falando sozinho. A sequência repetitiva dos depoimentos é interrompida e

aparece uma mensagem, seguida de uma voz robótica que sai dos alto-

falantes.

– Sra. Dawson. Sala de reuniões número 3.

Eu cutuco o braço da minha avó, ansioso.

– É a gente. Vem.

– Sala de reuniões número 3. Onde fica esse lugar, Adam?

A sala 3 fica no canto, à nossa direita. Através do vidro, nós

conseguimos ver que alguém já está lá à nossa espera, um homem usando

um terno todo amarrotado, combinando com a sua cara amassada. Ele meio

que se levanta quando nós entramos, tira a mão do bolso do paletó e a

estende na direção da minha avó.

– Vernon Taylor – ele diz.

– Valeria Dawson – minha avó responde, enquanto aperta sua mão. Ele

não me cumprimenta. Dentro da sala, não há nada além da mesa, três

cadeiras e um laptop.

– Sente-se, por favor, vocês dois. Pois bem, senhora... hum...

– Dawson – minha avó repete mais uma vez.

– Exato, Dawson. Em que eu posso ajudá-la?

Ela respira fundo e despeja a história toda em cima do sujeito na nossa

frente. Enquanto ela fala, cada palavra soa tão absurda quanto eu imaginava

que soaria. Fala sério, você acreditaria se alguém chegasse do nada e

contasse a minha história? Sentado ali, eu estou morrendo de vergonha por

nós três. Meus olhos começam a procurar ao redor por alguma distração. O

garotinho na sala de espera está olhando para nós. Ele está espremendo o

rosto contra a parede de vidro, sua bochecha mais parece uma lesma. Minha

avó e o tal do Sr. Taylor nem notam, mas mostro a língua para ele. Sua

expressão se transforma na hora. Ele se afasta tão rápido do vidro que

tropeça nos próprios pés, cai e começa a chorar. Ele fica ali, jogado no chão,

chorando, enquanto sua mãe continua a ignorá-lo.

Eu odeio a forma como ninguém presta a menor atenção nele e odeio o

fato de que foi o meu rosto que o assustou daquele jeito. Me viro

novamente para o Sr. Taylor. Minha avó está falando do assunto principal.

Ele faz algumas anotações no laptopenquanto ela explica a situação, mas

quando ela fala da data, primeiro de janeiro, ele para de digitar e seu olhar

passa da tela do computador para a minha avó e depois para mim. Eu tinha

visto o seu número quando nós entramos na sala, mas agora ele toma conta

dos meus pensamentos novamente. O Sr. Taylor é um deles, um 27. Só que

ele é um afogado. Dessa vez que ele me olha, eu vejo um pouco mais,

também escuto a água invadindo os meus ouvidos, sinto-a inundando os

meus pulmões e estômago, a correnteza me arrastando e me puxando para o

fundo.

Ele fica me olhando por um tempo e de repente, interrompe minha avó,

dirigindo-se diretamente a mim pela primeira vez.

– No dia primeiro de janeiro, o ano-novo, o que você acha que vai

acontecer?

– Não sei. Algo grande. Prédios vão desabar, incêndios enormes vão

começar. E tem água também, um monte de água. – Me sinto enjoado

enquanto conto essas coisas. Não sei por que, mas pelo tom da minha voz,

também me sinto como se estivesse fazendo fofoca ou dedurando alguém. –

E pessoas vão morrer. Um monte delas.

– Nada além disso? Nenhum detalhe? Nenhuma informação real?

– Mas tudo o que eu disse é real. Eu sei que não parece, mas é.

Minha avó se inclina sobre a mesa.

– Ele sempre viu esses números. Sempre. Mas eu já sabia que você não

acreditaria, então eu trouxe isso aqui. – Ela tira da bolsa a pasta com os

recortes de jornal que tinha me mostrado. – A mãe dele era igual, o senhor

vê? Ela podia ver os números também. Talvez você se lembre dela.

JemMarsh. Saiu em todos os jornais. Ela previu a bomba na London Eye, em

2009. Veja só, eu tenho as reportagens.

– Vó?

– Fique quieto, Adam. Isso vai ajudar. Esse senhor parece ser bastante

razoável, ele vai nos escutar.

Ela joga a pasta sobre a mesa. O Sr. Taylor procura um pouco pelos

óculos no bolso do paletó e depois começa a ler.

– É verdade – ele fala baixinho como se conversasse consigo mesmo, –

eu me lembro desse caso, sim. E essa aqui é a sua mãe? – Ele olha para mim

como se estivesse me vendo pela primeira vez.

– É – eu respondo.

– Mas ela negou tudo depois, não foi? Disse que tinha inventado a

história toda.

– Ela só disse isso para colocar um ponto final naquela confusão.

Ele se inclina para frente e mexe mais um pouco nos papéis. Tira os

óculos e se recosta na cadeira. De olhos fechados, ele fica ali parado um

longo tempo, sem dizer nada. Minha avó e eu estamos trocando olhares de

surpresa e dúvida, quando ele volta à realidade.

– Deixem-me explicar o meu trabalho – ele diz. – Tem pessoas como eu

trabalhando em todos os Conselhos ao redor do país. Nós criamos planos

para garantir que nossas cidades possam resistir a qualquer coisa que a

natureza nos mande: enchentes, epidemias, acidentes, ataques terroristas e

até guerras. Tudo se resume a avaliar riscos e a planejar com antecedência.

Participamos de reuniões regulares com os serviços de emergência, o

governo e as forças armadas e estabelecemos estratégias, planos e

procedimentos para cada tipo de eventualidade. – Ele está inclinado sobre a

mesa agora, apoiando os cotovelos, olhando bem para a minha avó. – Eu

gostaria que vocês entendessem que nós estamos preparados para lidar com

qualquer coisa que possa vir a acontecer no ano-novo. Gostaria que

pudessem sair daqui confiantes que o sistema está pronto para reagir. Vocês

não têm com que se preocupar, entenderam?

Ele junta os recortes e se abaixa para pegar alguns que caíram no chão.

Fica claro que nós estamos a ponto de ser dispensados. Ele está no piloto

automático agora.

– Nós temos centrais superavançadas, que se dedicam à prevenção de

catástrofes e ameaças, operadas pelo mais sofisticado sistema de

computadores. Nossos equipamentos podem prever eventos com uma

antecedência surpreendente. E mesmo que sejamos surpreendidos, seremos

capazes de atender imediatamente as mais complexas ocorrências. Como

vocês podem ver...

– Mas não sou só eu – o interrompo. – Mais gente sabe sobre o que vai

acontecer. Tem um grafite imenso, perto de Paddington. A garota que o

desenhou viu tudo em um sonho. E ela viu a mesma data que eu. Sem falar

nas milhares de pessoas na internet, que sabem que algo está prestes a

acontecer.

Ele continua enfiando os pedaços de jornal na pasta.

– Deve ser por causa de algum desses filmes ou de algo que apareceu na

televisão. Ficção científica. Essas coisas ficam na cabeça das pessoas. Vocês

nem imaginam como isso é normal. Uma espécie de histeria coletiva. Muita

gente acaba acreditando nessas histórias.

– Isso não tem nada a ver com nenhuma merda de filme, será que não

dá pra entender, seu babaca? A gente tem que dar um jeito de tirar as

pessoas de Londres. E tem que ser logo, senão todo mundo vai morrer.

– Adam!

– Está tudo bem, senhora... hum... Enfim, não tem problema. É normal

ele ficar preocupado. Sei que isso parece real para vocês, mas eu posso

garantir que está tudo sob controle. Não há motivos para pânico, não há

mesmo. Vocês podem deixar conosco daqui por diante.

– Quer dizer, então, que vocês vão fazer alguma coisa? Vão tentar tirar

as pessoas daqui? – Minha avó está tentando olhá-lo nos olhos, para apelar

para o pouco de humanidade que ainda deve restar ali, mas ele não se

sensibiliza. Seus olhos estão meio fechados e ele está vomitando o

discursinho oficial que decorou.

– Nós não temos motivos para tirar ninguém de lugar nenhum. Todos

os nossos sistemas estão a postos para lidar com qualquer eventualidade.

– Vocês precisam levar as pessoas pra outro lugar! – eu estou

praticamente gritando agora. – Não é seguro aqui. Será que você não...

– É essa a última coisa de que nós precisamos, pânico, pois assim não

vai ajudar ninguém. Vocês sabem bem como é a mídia. Eles podem

transformar uma história dessas em algo enorme em um instante e nenhum

de nós quer milhões de pessoas correndo por aí como baratas tontas, sem

saber o que fazer. Se todo mundo resolver deixar a cidade ao mesmo tempo,

o sistema de transportes vai entrar em colapso. Isso seria muito perigoso. Por

isso, eu insisto que vocês mantenham silêncio sobre isso e deixem esse

assunto na mão dos profissionais. – Ele se levanta e estende o braço na

direção da minha avó. – Muito obrigado por vir até aqui hoje.

Ela aperta a mão dele e lança um daqueles olhares. Ela o pegou agora e

posso perceber como ele está desconfortável.

– Então, quer dizer que vocês vão mesmo fazer alguma coisa? – minha

avó pergunta, devagar. – O senhor me garante que vão levar isso adiante,

que vão avisar a polícia, os bombeiros e todo mundo que for preciso?

– Sim, é claro que sim. Vou seguir os procedimentos de que nós

dispomos.

– Você vai mesmo? – ela ainda está segurando a mão dele. – Vai tomar

uma atitude?

– Vou, pode acreditar. Obrigado, Sra. Dawson. E se eu fosse você – ele

abaixa um pouco a voz –, pensaria em marcar uma consulta com um

médico. Ele está claramente agitado, com algum distúrbio. – Agora, o filho

da mãe está praticamente sussurrando. – Essas coisas podem destruir uma

família.

Minha vontade é gritar bem na cara dele, Eu estou bem aqui, na

mesma sala que você, imbecil, mas dessa vez eu fico de boca fechada. Eu só

quero sair logo daqui, ir embora dessa merda de lugar.

O garotinho e sua mãe já não estão mais na sala de espera. Eu consigo

vê-los em outra sala de reuniões. Ele está quieto agora, sentado no colo da

mãe e chupando o dedo. Ela está com os braços ao redor dele. Será que ela

se importa no fim das contas? Será que vai dar tudo certo para os dois? De

repente eu quero saber qual é o número dele? Eu quero saber se esse

garotinho vai sobreviver. Isso importa. Nossos olhares não se cruzaram

antes, bastou ele ver a minha cicatriz através do vidro para olhar para longe.

Minha avó me puxa pela manga da blusa.

– Vamos, Adam. O que você está olhando desse jeito? Vamos sair

daqui de uma vez.

Eu a deixo me levar para fora, para enfrentarmos o vento e a chuva que

está caindo nas ruas.

– Bom – ela diz enquanto caminhamos até o ponto de ônibus –, pelo

menos nós tentamos. Ninguém vai poder dizer que não fizemos nada.

– Aquele imbecil acabou de dizer na minha cara que estou maluco.

– Você acha mesmo? Você não achou que ele estava escutando?

– Sei lá, vó. Eu acho que ele só enrolou a gente, com todo aquele papo

de planos e sistemas.

– Planos são necessários, não é mesmo? – ela não parece muito

convencida do que está dizendo.

– Vó?

– Pode falar.

– E o que acontece se o cara responsável por lidar com as emergências

morrer junto com as outras pessoas?

Ela para de andar de repente e vira para mim.

– Você está falando sério? – Faço que sim com a cabeça. – Merda.

– O que vamos fazer, vó?

– Não sei, querido. Eu não sei. – Ali parada, eu a vejo só como uma

velhinha de novo e fico pensando Meu Deus, como nós vamos conseguir

fazer isso? Como vamos salvar o mundo? Uma velha e um moleque de

dezesseis anos. Nós estamos fodidos. O mundo inteiro está fodido.

– Mas eu sei bem o que vou fazer agora – ela diz. – Eu vou tirar essas

porcarias de sapatos. – Ela tira os sapatos e os carrega até passarmos por

uma lata de lixo. Então, ela os joga fora e segue na direção do ponto de

ônibus, andando a passos largos na ponta dos pés, tentando molhar as meias

o mínimo possível.

– Vó, você não pode fazer isso...

– Ah, não? E quem foi que disse?

Assim que nós chegamos ao ponto, um ônibus está encostando.

Sentado ao lado da minha avó, indo para casa, fico me lembrando dos

recortes sobre a minha mãe, amontoados sobre a mesa daquele tal de

Taylor.

SARAH

arie não diz nada. Nenhuma palavra. Ela não precisa: o seu rosto

diz tudo. Ela atravessa a cozinha sem olhar para os lados e sai

pela porta dos fundos. Eu saio correndo atrás dela. Por causa do

vento e da chuva ela está andando curvada, segurando a pasta contra o

peito.

– Espere, por favor. Espere! – eu grito. Ela para no portão e nossos

olhares se encontram. A chuva cai sem dó em nossos rostos.

– Eu estou limpa – eu digo. – Eu nunca usei drogas. Nunca. Nem quis

experimentar. Os garotos usam, mas eles não me envolvem nisso. Estou

segura aqui. Nós duas estamos.

– Quantos anos você tem, Sally?

– Dezenove.

Eu sei que ela não acredita em mim.

– Esse não é um bom lugar para uma menina de dezenove anos. E, com

certeza, não é um bom lugar para um bebê. Você tem consciência disso, não

tem?

– Esse é o nosso lar. É o lugar onde nós vivemos. E estamos muito bem

aqui, pode ter certeza.

– Desculpe, Sally, mas nós temos o dever de cuidar das crianças. E eu

não posso deixar de cumprir o meu dever. Você deve receber uma

notificação do nosso departamento em breve.

E então ela vai embora. A chuva está tão forte e gelada que começa a

machucar a pele do meu rosto. O portão está balançando com a força do

vento. Eu o agarro e bato com força. Eu queria bater a porta na cara do

M

mundo todo. Por que é que eles não me deixam em paz? O portão bate no

trinco e abre de novo.

– Merda! Mas que merda de vida! – minha voz some no meio da

tempestade.

Eu entro em casa. Vinny para de se ocupar com as suas coisas e olha

para mim.

– Quem era aquela sua amiga?

– Minha amiga, seu viciado idiota, era uma assistente social, do

Departamento da Infância. Ela trabalha no Conselho.

– Que bosta – ele diz.

– Pois é, que bosta. Um monte de bosta, para ser mais precisa. E vocês

jogaram tudo no ventilador. Agora, eu estou de bosta até aqui – eu digo,

levantando a mão até a altura da minha testa.

– Melhor a gente limpar tudo isso. – Eles começam a juntar suas coisas.

– É tarde demais, Vin. Agora é tarde para fazer qualquer coisa. Eles vão

voltar e vão levar Mia, eu tenho certeza que vão.

– Mia?

– Eles podem fazer isso para garantir que as crianças recebam os

cuidados adequados. Foi isso que ela ficou repetindo. Eles vão tirar minha

filha de mim.

– Não, Sarah. Nós não vamos deixar ninguém fazer isso. Esse pessoal

não vai entrar aqui de novo.

– E o que você acha que vai fazer? Vai erguer barricadas na frente do

portão? Vai ameaçá-los com o seu taco de beisebol? Nossa! Isso vai ajudar

muito...

– E o que você quer que eu faça? – Ele fica ali parado ansioso,

balançando os braços.

– Sei lá. Nada. Eu só sei que vou embora daqui. E você devia fazer isso

também. Vamos encarar os fatos, Vin. Agora estamos ferrados de vez.

Subo as escadas correndo e visto Mia com tantas camadas de roupa

quanto consigo e a levo para baixo. A deixo no carrinho e subo de volta,

para buscar nossas coisas.

Vinny está no banheiro, dando descarga em todo o seu estoque. Ele me

chama e eu paro no meio da escada.

– Para onde você está indo? – ele pergunta.

– Eu não sei. Vou arrumar algum lugar.

– Eu tenho um pouco de dinheiro – ele enfia a mão no bolso e tira de lá

uma porção de notas.

– Não, Vinny. Você já fez o bastante por mim.

– Pode aceitar – ele diz, enfiando o dinheiro em uma das sacolas. – Eu

vou sentir saudade, Sarah.

– Eu também vou. Nós duas vamos, pode acreditar. – Eu deixo as

sacolas em um dos degraus e passo os braços ao redor da cintura dele. Ele

beija o topo da minha cabeça, como se eu fosse uma criança, a sua irmã

mais nova. – É melhor eu ir agora.

Eu coloco as sacolas na parte de baixo do carrinho e o empurro pela

cozinha e depois para fora da casa. Não há tempo para pensar, nem para ser

sentimental, eu tenho que ir embora de uma vez, mas enquanto caminho

empurrando o carrinho contra o vento pela vizinhança, me pergunto se há

algum sentido em tentar fugir. Afinal de contas, o chip que eles

implantaram na minha filha vai dizer onde estamos. Aonde quer que eu vá

agora, o que quer que eu faça, a questão não é mais “se” eles vão nos

encontrar, mas sim “quando” isso vai acontecer.

ADAM

o meio do caminho, enquanto ainda estamos no ônibus,

percebemos que a cidade está sem energia novamente. Apesar de

estar começando a escurecer, as luzes da rua não acenderam e as

lojas estão fechando mais cedo. Os comerciantes sabem o que os espera

agora; os cortes de energia não têm durado menos de duas horas e já

chegaram a demorar quase um dia todo. Nenhuma razão para manter as

lojas abertas quando as caixas registradoras e as máquinas de cartão não

funcionam.

Quando o nosso ponto já está se aproximando, minha avó fecha a cara.

– Eu não consigo aguentar, Adam. Não quero ter que passar mais uma

noite em casa nessa escuridão.

– E para onde mais podemos ir?

Ela encolhe os ombros e me lança um olhar melancólico.

– Não sei. Nós podemos ficar no ônibus até ele passar por algum lugar

onde as luzes estejam acesas.

– Você quer mesmo fazer isso?

– Não – ela diz, desanimada. – Eu não tenho mais disposição para essas

coisas. E você vai ver: nós vamos chegar em casa, esperar um tempo e a luz

vai voltar. Ninguém avisou nada dessa vez, não é mesmo? Talvez seja só um

probleminha em algum lugar. Eles já devem estar resolvendo tudo agora.

Chegando em casa, vamos direto para a cozinha. Nós sempre temos

algumas velas à mão no armário. Depois de acender duas delas, nos

sentamos ao redor da mesa. O aquecedor está desligado e temos que vestir

os nossos casacos. Minha avó resolveu recorrer ao seu suprimento de

N

chocolates de emergência – duas barras de Snickers que vão substituir o

chá esta noite.

– Vó, eu acho que aquele sujeito, o tal de Taylor, sabe de alguma coisa.

– Sabe o quê?

– Ele não estava nem aí para você. Pelo menos não estava até você falar

sobre a data. Foi nessa hora que ele pareceu ter acordado.

– Fora isso, ele não disse nada demais, não é mesmo?

– É. Mas acho que ele não falaria de qualquer jeito, não para gente

como nós.

– Você acha que ele vai fazer alguma coisa, Adam?

– Acho que não. Ele foi bem claro sobre querer que mantivéssemos a

boca fechada para não causar pânico nas pessoas. Para mim, ele não vai

fazer absolutamente nada. Ele não tem a menor ideia do que vai acontecer,

vó. Eu tentei avisar...

– Eu sei que você tentou, querido. Nós dois tentamos. – Enquanto ela

fala e mexe a mão, a brasa vermelha do cigarro flutua na escuridão. – Não

importa o que aconteça, nós fizemos a coisa certa. Nós usamos os canais

apropriados.

– Mas não é o bastante, vó. Não é o bastante. Temos que fazer mais.

– Bom, você tem aquele seu amigo que veio aqui no outro dia. Ele não

ia ajudar?

– O Nelson. É verdade. Eu fico imaginando o que ele está descobrindo.

Nós ficamos em silêncio. Depois de um tempo, minha avó diz: – Sinto

muito querido, eu não aguento mais isso, estou morrendo de frio. Acho

melhor ir para a cama. – Ela pega uma das velas e sobe as escadas. Aperto o

botão do meu relógio para iluminar a tela: 18:32. Não consigo deitar e

dormir às seis e meia da tarde! Mas não dá para ficar aqui sem fazer nada

também.

Fico me lembrando da nossa ida ao conselho. Eu devia ter falado mais.

Devia tê-lo obrigado a me escutar. Como você consegue ser ouvido em

uma cidade como Londres? Se eu ainda estivesse em Weston, eu poderia

fazer algo na beira do mar, escrever uma mensagem enorme na areia ou

segurar uma faixa no píer, onde todos pudessem ver. Por que eu não posso

fazer uma coisa dessas aqui? Alguma coisa em campo aberto.

A janela está batendo com o vento – parece um cenário de terror – e

não suporto mais ficar aqui parado, olhando para o nada. Não me resta

outra opção. Pego a vela e vou caminhando devagar. Atravesso o corredor

e, quando chego perto da porta, apago a chama e deixo a vela no chão. Até

chego a pensar se não seria melhor avisar a minha avó que estou saindo,

mas eu já consigo escutá-la roncando lá em cima. Aposto que estarei de

volta antes de ela acordar e sentir a minha falta.

Do lado de fora, os faróis dos carros deixam rastros de luz na escuridão.

Os ônibus ainda estão rodando e quando um passa por mim, eu dou um

pique até o ponto, fazendo sinal para ele parar. Eu passo meu cartão na

catraca e procuro um lugar para me sentar. O ônibus segue o seu trajeto por

dez, vinte, trinta minutos – todo oeste de Londres está apagado.

Eu coloco o capuz para frente, cobrindo os meus olhos fechados. Eu não

sei para onde estou indo, nem me importa, na verdade. O som do motor, a

chuva batendo nas janelas e na lataria do ônibus, a tosse dos outros

passageiros, tudo isso vai me hipnotizando e eu pego no sono. Eu acordo

assustado quando o ônibus dá um tranco e o motor é desligado. As pessoas

estão todas em fila, saindo. Nós chegamos ao ponto final, MarbleArch, onde

todos os ônibus param. O arco em si está coberto de luzes, assim como toda

a Oxford Street, até onde meus olhos conseguem ver. As calçadas estão

cheias de gente se esbarrando. É como seu eu tivesse sido jogado em outro

planeta. Minha avó tinha razão, nós devíamos ter vindo para cá, nos

sentado em um café e agido como pessoas normais, só para variar.

Saio vagando pela Oxford Street no meio da multidão de gente

ansiosa para encontrar os presentes de Natal perfeitos. Eu fico com o capuz

levantado e a cabeça baixa. Não estou interessado em ver os números de

ninguém hoje. Só quero me sentir parte de algo, estar em um lugar onde eu

não me lembre de que as coisas estão prestes a sair do controle. Só por uns

minutos, eu posso fingir que vai ficar tudo bem, que Londres vai continuar

do mesmo jeito, com as pessoas trabalhando e comprando, comendo fora e

tomando uma bebida entre amigos, aproveitando os shows e as lojas

de West End.

A bolsa de uma mulher acerta a minha perna.

– Perdão – ela diz.

Instintivamente, eu olho para cima. Ela é um 27. Só tem mais quatro

dias de vida. Tudo aquilo que eu estava querendo esquecer invade de novo

a minha cabeça e, de repente, este é o pior lugar do mundo onde eu poderia

estar. Eu tenho que ir embora, preciso me afastar de toda essa gente. Estou

sufocando aqui.

Respire devagar. Se concentre e controle seus movimentos. Puxe o ar

pelo nariz e solte pela boca, devagar. Não olhe para mais ninguém, só para o

chão.

Tem gente por todo o lado, me empurrando para todas as direções. O

ar não está chegando aos meus pulmões. Ele trava na minha garganta. Meu

peito está se movendo rápido para frente e para trás.

Puxe o ar pelo nariz.

Não consigo. Tudo começa a girar, os prédios, os rostos das pessoas.

Olhe para baixo. Olho para baixo.

Até a calçada está se movendo sob os meus pés. Eu caio de joelhos, em

pânico. Eu vou ser pisoteado aqui, vou terminar esmagado no chão.

A não ser pelo fato de que eu não sou o único que está abaixado. Por

todos os lados, as pessoas estão se abaixando também e se ajoelhando

apoiadas umas nas outras. Estão todos no chão agora. A mulher com a

sacola de compras está gritando.

– Oh, meu Deus!

E, de repente, o que quer que esteja começando a acontecer,

simplesmente, para. Nenhum movimento, nenhuma vibração, tudo volta ao

normal. As pessoas começam a se levantar, como se nada tivesse

acontecido.

– O que aconteceu aqui?

– Nossa Senhora!

Não há mais gritos, só risadas tensas. Está todo mundo bem. Foi só um

tremor. Nenhum dano foi causado. Todos eles vão ter um assunto para

comentar quando chegarem em casa, logo mais.

Permaneço abaixado por um momento, respirando devagar, até sentir

que estou bem de verdade. Então me levanto com calma e olho ao redor.

Não parece que nada diferente aconteceu. Os prédios estão inteiros, não há

janelas trincadas, nem placas de publicidade caídas. As pessoas à minha

volta estão bem. Um pouco agitadas, mas não fora de controle.

Eu fico parado, enquanto a Oxford Street volta ao normal. O sangue

está circulando novamente pelo meu corpo agora, minha pele está toda

arrepiada.

É isso. É desse jeito que a coisa começa.

Eu devia estar pensando na minha avó, se ela sentiu o tremor em

Kilburn, se ele chegou a acordá-la. Mas não é ela que está na minha cabeça.

Há uma garota lá fora cujos pesadelos estão se tornando realidade. Se ela

sentiu o que eu acabei de sentir, então está tão apavorada quanto eu.

SARAH

ão sei para onde ir. Está chovendo tão forte que eu mal consigo

pensar. Preciso tirar Mia dessa confusão, isso é tudo, então vim

parar aqui no túnel. Pelo menos, estamos protegidas da chuva. Eu

também me sinto um pouco em casa aqui – é como se o túnel me

pertencesse depois de todo tempo que eu passei dentro dele. Mas quando

nós chegamos é difícil acreditar no que eu vejo. O lugar todo está mais

claro, mais limpo e então eu percebo o que aconteceu: alguém pintou por

cima do meu desenho. O túnel todo está pintado de branco. Ainda dá para

sentir o cheiro da tinta.

Ele não parece mais meu. É só um túnel sob os trilhos de novo. Um

lugar sem vida. Não quero ficar aqui, mas aonde mais eu posso ir? Ao menos

eu posso esperar aqui uns dez minutos para colocar as ideias em ordem. Mas

os dez minutos se transformam em vinte e então Mia fica com fome e eu

acabo me sentando no chão, sobre as sacolas plásticas, com as costas na

parede. Não dá para acreditar que acabou, minha convivência com o Vinny.

Só agora eu me dou conta do que eu tinha lá na casa dele. Um lar. O

primeiro lar da minha filha.

Eu não estou nem um pouco escondida aqui e com Mia mamando, eu

não tenho como ir a lugar algum. Sou um alvo fácil. Eu fico olhando para os

lados o tempo todo, prestando atenção se não aparece um carro ou alguém

a pé. Mas o que eu poderia fazer se visse alguém suspeito? Não há para onde

correr aqui.

Olho para Mia. Ela está bem agasalhada. Sua cabeça está dentro do

meu casaco, mas o resto do seu corpo está para fora. Ela está esfregando

N

suavemente um pé no outro. Foi bem ali que eles injetaram o chip: no seu

pé esquerdo. Ele está ali agora, invisível, silencioso, tão pequeno que

poderia passar pelo buraco de uma agulha. Fico enjoada de imaginar esse

negócio dentro da minha garotinha; ativo, vivo, se comunicando

diretamente com eles, os filhos da mãe que o enfiaram dentro dela. Eles

podem estar nos rastreando neste exato momento, de algum escritório em

Londres, Nova Deli ou Hong Kong. Mia pode ser só um ponto na tela de

alguém.

É só uma questão de tempo até eles nos encontrarem. E o que acontece

depois? Será que eles vão nos arrumar outro lugar para morar? Será que vão

nos mandar para a casa dos meus pais? Ou será que vão acabar nos

separando de uma vez?

Se eu não tivesse levado Mia até aquele hospital, tudo seria diferente.

Se não tivessem injetado aquela porcaria nela, nós poderíamos desaparecer

daqui. Pelo menos nós teríamos a chance de tentar.

Se ela não tivesse esse chip...

Ele deve estar logo abaixo da pele. Eu tenho uma tesoura na

minha nécessaire... Ela para de mamar um segundo e respira um pouco. Sua

mão surge de dentro do meu casaco, seus dedinhos rosados procuram algo

para se agarrar. Sua pele é tão fina, quase transparente. Como eu pude

chegar a pensar em rasgá-la, em machucá-la só para encontrar aquele chip

maldito? Eu desci ao nível deles agora. Estou com nojo de mim mesma.

Eu coloco a mão dela de volta dentro do casaco e a seguro com

firmeza. Desculpe-me, desculpe-me, querida. Eu nunca vou machucá-la e

nunca vou deixá-los fazer isso também. Eu juro.

Uma corrente de ar espalha o lixo pelo túnel. Eu me distraio,

observando uma embalagem que está dançando na minha direção. Depois

de alguns segundos, eu volto a mim e levanto um pouco a vista. Há mais

alguém ali comigo.

ADAM

em uma pessoa dentro do túnel, sentada no chão.

O túnel foi coberto de branco: o desenho, o pesadelo, a data, tudo

foi apagado. Ainda está escuro lá dentro, mas eu consigo ver que é

ela. Sarah.

Fui caminhando para a casa dela. Eu não ia bater na porta nem nada.

Sei lá o que ia fazer, só ia esperar na frente da casa, eu acho. Tanto faz, já

que eu só cheguei até a esquina, de onde vi uma van e três carros da

polícia parados. Meu Deus! Com certeza eles estavam na casa da Sarah, pois

eu os vi empurrando aquele amigo magrelo dela para dentro de um dos

carros, com os braços algemados nas costas. Dei o fora dali rapidinho. Não

preciso desse tipo de problema agora. Só que ainda havia sobrado a dúvida:

Será que eles pegaram a Sarah também?

Eu saí vagando sozinho pelas ruas e, é claro, acabei vindo parar no

túnel. E ela está aqui também. Da última vez que nos vimos, ela me

expulsou da sua casa. Antes, ela já tinha atirado uma pedra em mim, aqui

mesmo. Eu devia dar as costas e ir embora, mas eu simplesmente não

consigo. Não consigo ficar longe dela. Eu caminho na sua direção bem

devagar, mas com firmeza, para ela ter tempo de me ver ou me escutar e

poder ir embora se quiser. Mas ela não faz isso. Ela ainda está sentada no

chão quando eu chego perto.

É meio esquisito vê-la desse jeito – ela sentada, eu de pé –, então me

abaixo sem chegar mais perto. Ela está abraçando o bebê contra o peito e eu

demoro um pouco para me tocar que ela está dando de mamar. Não há

nada para ver ali, só sua filha enfiada no casaco, mas mesmo assim eu me

T

sinto um pouco envergonhado e começo a suar por baixo das minhas

roupas.

Ela está olhando para o chão, com o capuz na frente do rosto. Eu quero

que ela olhe para mim. Quero ver o seu número de novo. Quero aquela

sensação.

– Sarah – eu a chamo.

Ela continua olhando para o chão. Está fingindo que eu não estou lá.

Não é difícil ler a sua linguagem corporal, não sou um imbecil. Ela quer que

eu vá embora. Mas não vou. Não posso fazer isso.

– Sarah, sou eu.

Nenhuma reação.

– Fui até a sua casa e vi a polícia lá.

Nada. Eu não sei o que dizer agora. Eu digo o que estou pensando antes

mesmo que perceba que estou fazendo isso.

– Você sentiu o terremoto mais cedo?

Só então ela olha para cima e eu finalmente sinto o conforto que

esperava. Ela parece confusa.

– Que terremoto?

– A terra tremeu há mais ou menos uma hora. Eu estava na Oxford

Street. Todos se abaixaram, assustados, imediatamente, mas depois saíram

dando risada como se não fosse nada demais. Mas sei que era. Já começou.

– Não senti nada. Há uma hora eu estava aqui, e não senti porcaria

nenhuma.

– Eu não estou inventando essa história, Sarah.

– Não disse que você estava.

Ela está agressiva. Eu esperava por isso, mas ela também está infeliz.

Queria poder me aproximar mais dela, queria conseguir romper as barreiras

invisíveis que ela colocou entre nós.

– O que aconteceu? – eu pergunto. – O que aconteceu com você?

Ela está olhando para o chão de novo, mas pelo menos está falando.

– Recebi uma visita do serviço social. Eles resolveram encrencar

comigo.

– Babacas.

– Mas eles não apareceram só para encher o saco. Agora eles querem

tirar Mia de mim. Ela é tudo que tenho.

– Eles não podem fazer o que bem entenderem. Não é assim que as

coisas funcionam.

– Eles podem sim. E vão fazer. Eu estava morando em um squat, com

dois viciados e um traficante. Não acho que eles vão deixar isso passar. E

agora não tenho nenhum lugar para ir. E isso quer dizer que, no momento,

eu estou morando na rua.

– Você pode voltar para casa.

A menina já deve ter acabado de mamar, pois Sarah a tira de dentro do

casaco, a coloca no ombro e depois se levanta. Eu estico o braço para ajudá-

la, mas ela nem nota. Já de pé, ela coloca a garotinha no carrinho.

– Tchau, Adam – ela diz e sai andando, dando a entender que está

falando sério.

Ah, não. Eu não vou ser ignorado desse jeito. Afinal, eu estou tentando

ajudá-la.

– Eu só quis dizer que... você tem algum lugar para ir, um lugar que o

pessoal do Conselho aprovaria. – Mas antes mesmo que as palavras

terminem de sair pela minha boca, eu me lembro do pai dela me apertando

contra a parede. – Sarah, eu sinto muito.

Eu corro um pouco para alcançá-la.

– Escuta, eu sinto muito de verdade. Eu posso imaginar por que você

não quer voltar para casa. O seu pai...

Ela para e se vira para mim.

– O que tem o meu pai?

– Ele... parece ser um homem difícil de lidar.

– Você o conheceu? – ela me olha ansiosa.

– Conheci. Eu... eu fui até lá, quando você parou de aparecer na escola.

– Meu Deus, o que você é? Algum tipo de maníaco? Tudo bem, agora

você está oficialmente me assustando de verdade. Como se eu já não

estivesse assustada o bastante...

Ela começa a andar novamente, ainda mais rápido, dessa vez.

Eu sigo ao seu lado.

– Sarah, eu estava preocupado com você. Eu só fui até lá para ver se

você estava bem.

– Você não devia aparecer na casa dos outros. Não quando eles não te

convidam.

– E o que mais eu podia ter feito? Você me desenhou, Sarah, você me

desenhou.

– Era só um desenho idiota. Todo mundo na sala estava desenhando.

– Não era só um desenho e você sabe muito bem disso. Ninguém nunca

tinha olhado para mim daquele jeito antes.

Ela dá um impulso e começa a empurrar o carrinho de bebê ainda mais

rápido. O vento e a chuva ainda continuam. Eu quase tenho que gritar para

conseguir ser ouvido.

– Sarah, você se inclinou na mesa e me tocou. Tocou o meu rosto. Eu

não consigo simplesmente esquecer você. Não dá!

Sem parar de andar, ela olha para mim.

– Pois você devia esquecer – ela grita de volta. – Não posso mais

arriscar ficar perto de você. Tenho que proteger a minha filha. Não

interessa como eu me sinto com relação a você. Você não pode se

aproximar dela. Não posso deixar isso acontecer.

Como ela se sente sobre mim?

– Sarah, pare um pouco, por favor. Só um minuto.

Coloco a mão no ombro dela, tentando fazê-la parar, mas ela empurra

minha mão com força para longe.

– Sai de perto de mim! Me deixe em paz, Adam! Você me disse que

não podia lutar contra o futuro, não é mesmo? Mas é exatamente isso que

estou fazendo. Acho que você vai fazer alguma coisa contra a minha filha,

então eu vou fazer de tudo para não ter que vê-lo de novo. Estou tentando

mudar as coisas. Estou tentando fazer do meu jeito.

– Eu nunca faria mal a ela, Sarah. Nunca faria uma coisa dessas.

– E como você sabe? Você não tem como saber isso. Você vê o futuro

das pessoas, mas só consegue enxergar uma parte dele. Saia de perto de

mim, Adam. Se afaste de nós. Deixe-nos em paz.

Diminuo a velocidade e então paro.

– Para onde vocês estão indo? – eu grito para ela.

– Eu não sei. Para algum lugar seguro.

Ela está mais longe de mim a cada segundo. Nunca mais a verei

novamente. E de repente isso parece pior do que toda essa história da

cidade ser destruída sem eu poder fazer nada a respeito. Ficar sem ela parece

a pior coisa que poderia me acontecer na face da Terra. Eu tenho que fazê-

la parar.

– Sarah! – eu grito com toda força. – Eu sei sobre o seu pai.

Eu não sei de nada – só que ele é um babaca. Mas minha única chance

é inventar algo para chamar a sua atenção e eu tenho um pressentimento a

esse respeito.

Ela para de novo e se vira para mim. Eu a olho bem nos olhos.

– Ele abusou de você, é por isso que você não pode voltar para casa.

Ela olha para o lado, engolindo seco.

– É isso, não é? – eu digo. – Ele a machucou.

Está chovendo tanto que a água escorre pela ponta do nariz dela.

– É verdade, é verdade. Foi isso mesmo que ele fez – ela diz, quase que

para si mesma. Ela olha para mim rapidamente, querendo ver a minha

reação. É esquisito. Ela parece culpada, como se tivesse feito algo de errado

e eu a tivesse pegado em flagrante.

Eu quero dizer a coisa certa a ela, mas não tenho a menor ideia do que

seria certo dizer em um momento como esse. Sarah ainda é um mistério

para mim. Qualquer coisa poderia ser certa ou errada agora.

– Sarah, eu sinto muito.

– Não é culpa sua. Nem tem nada a ver com você. – Ela quer ficar

firme, mas aquele olhar continua lá, como se ela estivesse esperando que eu

a julgasse. Eu caminho até ela e coloco os braços ao redor dos seus ombros.

Essa, provavelmente, não é a melhor coisa a fazer, mas foi só o que eu pude

pensar. Seu corpo todo fica duro e eu penso Merda, eu estraguei tudo. Ela

me odeia.

– Eu nunca faria nada a você, Sarah. Nunca, mesmo – eu digo,

abraçando-a bem forte. – Eu juro pela minha própria vida.

Ela ainda está parada, como se fosse feita de pedra.

– Você não pode prometer coisas como essa. Ninguém pode fazer esse

tipo de promessa – ela responde.

– Posso, sim. Tenho certeza.

Nossos rostos estão tão próximos. A chuva nos cílios dela os fazem ficar

grudados. Eu quero tanto beijá-los, que chega a doer.

– Venha para casa comigo, Sarah.

– Não, não. Não posso.

– Você não tem para onde ir. Eu tenho um lugar. Pelo menos você

pode se secar e comer alguma coisa. Você tem que se alimentar.

Uma rajada de vento faz a chuva cair ainda mais forte sobre os nossos

rostos. Eu dou um passo para trás, para poder vê-la direito.

– Hoje é dia vinte e oito – eu digo. – O seu pesadelo é no dia primeiro.

Agora, nós estamos seguros. Vocês duas não correm perigo comigo. Venha

para a minha casa esta noite. Você precisa se proteger desta chuva, se secar,

planejar o que vai fazer.

Ela está tremendo de frio.

– Vem logo. Você dorme um pouco e amanhã vai embora. Nós

podemos pensar em algum lugar seguro para você. Longe de mim e longe

desta cidade.

Ela não diz mais nada. Sua expressão continua fechada e ela está

olhando com firmeza para Mia. Ela dá meia-volta no carrinho e nós

seguimos caminhando, um ao lado do outro.

SARAH

le nos ajuda a subir e depois a descer do ônibus e nós seguimos

caminhando, lado a lado, sem nos encostar. Isso é muito louco. Sou

louca por estar indo a qualquer lugar com ele. Mas para onde mais eu

posso ir? Quem mais, nesta cidade de oito milhões de pessoas, me deixaria

entrar em sua casa?

– Chegamos, finalmente – ele diz. – Ainda bem que a energia voltou.

– Aqui?

Ele parou na frente de um dos sobrados que se estendem, uns colados

nos outros, por todo o quarteirão. Três janelas estão iluminadas, uma no

andar de baixo e duas no de cima. É uma casa pequena. Há uma pequena

parede na frente e um portão de metal, com a tinta toda descascada. O

jardim da frente está cheio de enfeites – pequenos gnomos de pedra,

moinhos e essas coisas. Ele percebe que eu estou olhando.

– Isso é coisa da minha avó – ele diz. – A velha é meio pirada, não

repare.

– Até achei legal – eu respondo.

Ele abre o portão e eu empurro o carrinho pelo corredor. Ele tenta abrir

a porta da frente, mas ela está trancada e ele tem que pegar suas chaves.

Depois de abrir, ele entra e se abaixa na frente do carrinho para ajudar a

passá-lo pelo degrau. Eu penso novamente Meu Deus, como eu vim parar

aqui? Esse é o último lugar onde eu devia estar – ele é a última pessoa que

devia estar perto de mim. Ele olha para mim alcançando o carrinho; seu

rosto está pingando, assim como as suas roupas. Então ele sorri e eu

penso: Tudo bem ficar aqui e tudo bem ficar com ele. Mas só por esta noite.

E

ADAM

eixamos o carrinho de bebê na sala. Mia está dormindo, com os

braços levantados ao lado da cabeça.

– Será que posso usar o banheiro?

– Claro, é lá em cima, no final do corredor. Acho que minha avó está

dormindo por lá, então não se assuste com o seu ronco nada discreto.

– Tudo bem.

Enquanto ela está no banheiro, eu preparo um pouco de chá e procuro

freneticamente nos armários por algo para comer. Só o que eu encontro é

um pacote de biscoitos e uma lata de sopa de tomate.

Depois de alguns minutos, ela aparece de volta, com uma cara melhor

do que quando tinha subido.

– Meu cabelo tá todo fodido. Esse moicano espetado é ridículo. Eu

devia cortar tudo de uma vez.

– Você pode tomar um banho se quiser. Uma água quente ia cair bem.

Aí você lava o cabelo e decide o que vai fazer.

– Posso mesmo? Eu posso usar o seu chuveiro? A gente não costumava

ter muita água quente no squat.

Ela olha para o carrinho na sala.

– Ela vai ficar bem – eu digo. – Estarei aqui, caso ela acorde. – É claro

que eu não tenho a menor ideia do que fazer se ela acordar e começar a

chorar. – Você precisa de umas roupas limpas? Posso arrumar alguma coisa

se você quiser. Algo da minha avó, não meu. – Só de pensar nela usando as

minhas roupas, eu derreto por dentro.

– Não, não. Tudo bem. Só o banho está ótimo.

D

– Eu vou te ajudar, então – eu digo, antes de subir as escadas correndo.

No banheiro, eu derramo um pouco de espuma de banho na água quente

que corre da torneira, enchendo a banheira. Na mesma hora, o ambiente é

preenchido por um cheiro doce e industrializado. Eu remexo no armário e

tiro de dentro dele a melhor toalha que consigo encontrar. Pelo menos, ela

é grande e limpa.

– Muito obrigada – Sarah diz, encostada no batente da porta. Não

tinha nem percebido que ela tinha subido atrás de mim.

– De nada. Você está com fome? Encontrei uma sopa no armário lá em

baixo.

– Estou sim. Estou morrendo de fome, na verdade.

– Vou prepará-la para você. Quando você sair daqui, ela estará pronta.

Nós temos que nos espremer quando eu passo pela porta, mas não

consigo evitar de olhar para ela. Ela está com o cheiro da cidade, do trânsito

e da pele não lavada. Isso é tão excitante. Ela está tão perto de mim que eu

não precisaria me mover muito para dar um beijo bem no lugar em que o

seu pescoço encontra o ombro.

– Obrigada – ela diz de novo, e eu percebo que ela está se sentindo

encurralada e me quer fora do caminho.

Eu a deixo no banheiro e desço as escadas, tentando não pensar nela

tirando a roupa, entrando na banheira quente e fechando os olhos. Para me

distrair, tento fazer algo normal, como abrir a lata de sopa e jogar tudo em

uma panela. Mas eu coloco o abridor de lata de lado e me inclino, apoiando

os cotovelos no banquinho da cozinha e apertando as minhas partes contra

a porta aberta do armário. Está doendo. Não pense nisso. Não pense mais

nisso. Mas ele vai ficando duro e mais duro a cada segundo, enquanto eu

penso em como seria apertá-lo em outro lugar, um lugar mais macio e

irresistível. A minha boca enche de saliva e eu fecho os olhos para escutar

os barulhos lá de cima; a pele dela esfregando no plástico da banheira

quando ela muda de posição, o chuveiro ligando e desligando, até que eu

ouço o barulho da água sendo tragada pelo ralo e correndo pelo

encanamento.

A água correndo pelos canos. Merda! Ela terminou. Ela estará de volta

em um minuto.

Eu levanto rapidamente. Tão rápido que acabo ficando tonto. Haja

normalmente. Vai logo, prepara essa sopa de uma vez.

Eu acendo o fogo e só tenho tempo de pegar um pano de prato para

colocar em frente das calças quando Sarah aparece. Ela está com uma

toalha ao redor do corpo e outra na cabeça como um turbante. Ela parece

tão nova; sem nenhuma maquiagem, só o tom rosado da sua pele. E eu

estou vendo a pele das suas pernas, dos seus pés, dos seus braços, das suas

mãos. Não estava esperando por isso. Ela é como uma visão, um anjo que

apareceu na minha casa. Não consigo tirar os olhos dela.

Ela não parece estar notando o efeito que tem sobre mim.

– Você tinha razão – ela diz, esfregando o cabelo com a toalha –,

minhas roupas estão nojentas. Você não podia me emprestar alguma coisa?

Uma roupa sua velha já serve.

– Sim, claro. Eu já vou buscar algo para você vestir. – A sopa está

fervendo e pulando para fora da panela. Viro para servi-la. Meu pinto

continua querendo sair de dentro dos meus jeans, então continuo segurando

o pano de prato quando deixo o prato com sopa na mesa.

– Acho que nós não temos pão. Se você quiser, posso te arrumar umas

bolachas.

– Não precisa se preocupar. Assim já está ótimo. Você não vai comer?

– Não, não estou com fome. Agora eu vou subir para procurar alguma

coisa para você vestir.

No meu quarto, eu encontro uma camiseta e uma calça de moletom

limpas que acho que vão servir. Só não sei o que fazer com a roupa de baixo.

Eu não posso dar a ela uma das minhas cuecas. Eu também não posso

procurar na gaveta da minha avó. Em primeiro lugar, ela está dormindo. E,

além disso, eu preferia arrancar as minhas mãos do que colocá-las lá dentro.

Levo as roupas que consegui para baixo. Mia está acordada e Sarah está

com ela no colo, mostrando os enfeites da minha avó na prateleira sobre a

lareira. Os olhos dela estão arregalados. Suas mãozinhas estão alisando a

caixa de madeira que tem lugar de honra ali em cima. Sarah as tira dali.

– Não é para mexer aí, Mia, é só para olhar – depois me pergunta: –

Mas o que é isso?

– São as cinzas do meu bisavô. Minha avó não vai para lugar algum sem

elas.

Ela dá um passo para trás, fazendo uma careta.

– Eca!

– Aqui – eu digo, entregando as roupas a ela –, isso deve servir

enquanto lavamos as suas.

Mia virou a cabeça quando escutou a minha voz. Agora ela começou a

fazer um barulho esquisito, como se quisesse dizer alguma coisa. Nós somos

pegos de surpresa por isso. Sem pensar, eu estendo meus braços na direção

dela para pegá-la.

– Você não se importa? – eu pergunto à Sarah. Ela está tão surpresa

quanto eu.

– Não, tudo bem, eu acho.

Quando a pego do colo da Sarah, fico todo desajeitado, sem saber

direito como segurá-la.

– Coloque a mão nas costas dela para não deixá-la cair para trás. –

Sarah coloca a minha mão no lugar certo.

O rosto dela está perto do meu ombro. Afasto um pouco o rosto para

poder vê-la.

– Olá, mocinha, como vai você? – eu digo.

Ela olha para mim atentamente. Meu estômago embrulha quando seu

número aparece para mim de novo. Por que uma pessoinha tão nova, tão

bonita tem que morrer?

Com a mão, ela alcança o meu rosto do lado feio e dobra os dedos,

afundando-os na minha pele.

– Mia, não faça isso, assim você vai machucá-lo. Desculpe-me, Adam,

mas as crianças são assim. É melhor eu pegá-la de novo. – Sarah dá um

passo à frente, pronta para tirar Mia de mim.

– Não, tudo bem. Ela não está me machucando. – É mentira. Um dos

dedos dela acertou uma ferida, mas eu não quero entregá-la ainda. Nunca

segurei um bebê na vida. É mágico. Ou melhor, é só um bebê. Ela não tem

medo de mim, nem fica assustada com o meu rosto: ela só fica olhando.

Quando eu dou uma olhada para Sarah, ela está sorrindo. É a primeira

vez que ela sorri hoje. Na verdade, é a primeira vez que a vejo sorrindo. Seu

rosto fica completamente transformado.

– Você se deu bem com ela. Parece mesmo que ela gostou de você,

Adam. Normalmente, quando eu a entrego a alguém, ela já começa a

chorar e gritar.

– Eu nasci para isso – eu digo. É brincadeira, mas eu meio que me sinto

como um verdadeiro herói.

De repente, escutamos passos nas escadas e minha avó aparece. Ela

olha primeiramente para o carrinho e depois para Sarah enrolada nas

toalhas.

– Caramba – ela diz –, a casa está cheia hoje. O que está acontecendo

aqui?

Sarah começa logo a se explicar.

– Olá, meu nome é Sarah. Eu só...

– Você é a garota do hospital, não é mesmo? A mesma que fez aquele

desenho no túnel.

– Essa é a minha avó – eu digo, envergonhado –, Val.

Minha avó não dá sequer um sorriso. Ela só olha para mim de cara feia.

– Largue já esse bebê, Adam. O que você pensa que está fazendo?

– Tá tudo bem, vó. Ela gosta de mim.

– Largue esse bebê agora!

– Vó, para com isso.

Ela vem na minha direção, querendo tirar Mia dos meus braços. Mia

está com medo agora e esconde o rosto no meu ombro.

– O que deu em você, vó? Ela gosta de mim, não deu pra perceber?

– O que deu em mim? O que deu em você, seu desmiolado? Você viu o

desenho, já sabe o que acontece.

Nós dois olhamos para Sarah ao mesmo tempo.

– Eu sei, eu sei – Sarah diz –, mas agora está tudo bem. Hoje não tem

problema.

Minha avó começa a caminhar pela sala.

– Você quer que ela o reconheça, que confie nele, que vá correndo para

os braços dele no dia primeiro de janeiro? É isso que você quer?

O rosto da Sarah se contorce todo.

– Não, claro que não. Eu não sei. Não sei.

– Por que você está aqui? – A dureza das palavras da minha avó está

escondendo algo mais. Há medo ali também, mas não acho que Sarah

consiga notar isso. Minha avó consegue ser muito intimidadora quando

quer; e é exatamente isso que ela está querendo agora.

– Por que estou aqui? Os amigos com quem eu estava morando foram

presos. Não tenho mais ninguém. Não tenho para onde ir. Mas posso ir

embora se você quiser. Sem problema. A gente vai encontrar outro lugar.

Sarah se aproxima para tirar Mia do meu colo e seu braço esbarra no

meu. Sua pele é tão quente, tão macia. Eu consigo sentir seus ossos por

baixo dela. A sensação é a de uma descarga elétrica correndo pelo meu

corpo. Isso me desperta.

– Vó, a Sarah precisa de um lugar pra passar a noite. Eu disse que ela

podia ficar aqui. Ela pode ficar no meu quarto e eu durmo aqui no sofá. É só

uma noite e eu já tinha dito a ela que não tinha problema.

Minha avó fica me encarando daquele jeito que só ela sabe fazer. Por

um instante parece que a discussão ainda não terminou. Mas em seguida ela

relaxa e olha para Mia.

– Tudo bem – ela diz –, vocês venceram. Não posso mesmo jogar as

duas na rua. Mas saibam que isso é um grande erro. Eu sinto que é. – Ela dá

um passo na minha direção. – E essa aqui, quem é?

– Mia – Sarah, responde.

Ela se aproxima. Mia se encolhe, tentando se afastar, mas minha avó

não resiste em brincar com ela.

– Não fique com medo, bebê – ela diz, sorrindo e apertando sua

bochecha –, eu não sou uma bruxa malvada. Sou uma bruxa boazinha.

SARAH

alvada ou boazinha. Qual a diferença? Não são os dedos finos e

amarelados nem o cabelo roxo espetado que me assustam, mas

sim os olhos dela. Basta ela olhar direto para você com aqueles

olhos e você não tem mais escapatória. É como se tivesse sido hipnotizado.

Você só conseguirá olhar para outro lugar quando ela decidir que já é hora.

Depois de aparecer gritando conosco e deixar Mia morrendo de medo,

agora a avó do Adam está tentando fazer amizade com ela. Só que não está

dando certo. Mia se agarra em mim com força e sequer olha para ela. Então

Val resolve se ocupar comigo. Enquanto ela me olha de cima a baixo

franzindo as sobrancelhas, é como se um relâmpago atravessasse o meu

corpo. – Lilás, é claro – ela diz. – Mas também tem azul escuro. E tudo

banhado de rosa.

– Vó – Adam diz –, não começa, vai...

– O quê? O que é isso?

– É a sua aura – ela me diz baixinho.

– Minha o quê?

– Suas energias cósmicas – ela explica. – O rosa brilhante revela uma

grande sensibilidade e o talento para as artes; lilás é a cor dos visionários e

dos sonhadores; azul escuro quer dizer que você está cheia de medo.

De repente, eu me sinto nua. Eu, aqui, com essa mulher, uma completa

desconhecida, com a pele toda enrugada e o cabelo pelo menos três tons

mais claro do que deveria, sem nunca ter me visto parece saber exatamente

quem eu sou.

– Eu estou certa. É uma afirmação e não uma pergunta – ela diz séria.

M

– É... – eu dou um suspiro. – Você está certa.

– Sarah – ela diz e respiro fundo, imaginando o que me aguarda.

– Sim?

– Você é bem-vinda aqui. Você e sua filha são bem-vindas nesta casa.

De repente, me sinto protegida, envolta por um calor diferente, que

não estava sentindo antes. Não sei explicar muito bem. Não é só alívio –

embora eu também me sinta aliviada –, mas parece que tem alguma coisa

nova no ar da sala, alguma coisa real, física, como se fosse possível pegá-la.

Se você conseguisse engarrafar essa coisa, ficaria rico bem rápido. No rótulo

poderia estar escrito “conforto” ou “amor” ou “lar”. É isso mesmo, eu disse

“lar”. Não o lar de onde eu saí, mas sim aquele que todos deviam ter em um

mundo perfeito. O lugar onde você pode ser você mesma e se sentir segura.

Eu sinto vontade de chorar, como se não tivesse nada de errado em chorar

aqui, mas aperto os lábios e seguro as lágrimas. Já chorei o bastante nos

últimos dias. É hora de parar com as lágrimas.

– Obrigada – é só o que eu consigo dizer. – Acho melhor eu ir me

vestir.

Eu devolvo Mia ao Adam. Ela se assusta um pouco quando percebe que

eu estou entregando-a a alguém, mas então vê que é ele e relaxa, e parece

até que fica feliz com isso. A maneira como Mia o deixa segurá-la é tão

estranha. Ela nunca ficou assim com mais ninguém. Ela costuma ser tímida

e desconfiada. Quem sabe se o meu sonho não era só um meio disso

acontecer? Nós simplesmente estávamos destinadas a conhecer o Adam e

esse foi o jeito que o destino deu para nós o encontrarmos e nos

aproximarmos dele. Afinal, primeiro ele encontrou a minha pintura e depois

eu o encontrei. Será que é isso? Será que tudo tinha apenas esse propósito?

Será que há um final feliz nos esperando, em vez de um pesadelo?

No banheiro, eu visto a camiseta e as calças. Quando passo a camiseta

pela minha cabeça, paro um pouco e sinto o cheiro do tecido. É o cheiro

dele, do Adam. Eu queria que a camiseta estivesse com o seu cheiro, aquele

azedo suave, e ela está, bem de leve. Então, eu a estico no meu corpo. A

ideia do cheiro dele encostando na minha pele me faz ficar arrepiada nos

lugares que a camiseta toca.

Mais tarde, nós tomamos chá, assistimos TV e ficamos brincando com

Mia. Ninguém fala nada sobre datas de mortes, pesadelos ou auras. Ao

contrário disso, Adam não para de importunar Val que está sempre dizendo

“não enche, seu moleque”, mas eles fazem isso sempre sorrindo e piscando

para mim. Esses dois amam um ao outro de verdade. Eles podem não saber

disso, mas há muito amor nesse minúsculo e bagunçado lar.

Quando o noticiário começa, nós ficamos em silêncio por um tempo. É

o mesmo de sempre: enchentes, gente passando fome, guerra. O Japão está

com um problema sério: há três vulcões ameaçando entrar em erupção ao

mesmo tempo. O governo está evacuando as cidades agora. Em Londres,

está acontecendo um enorme protesto na Grosvenor Square, contra as

ameaças de guerra dos Estados Unidos contra o Irã. Todo mundo sabe que o

Irã tem armas nucleares. Um presidente tem que ser muito idiota para

querer mexer com eles. Será que eles não aprenderam com o que aconteceu

no Afeganistão, no Iraque e na Coreia do Norte? Bem no final, eles falam

sobre o tremor que Adam sentiu na Oxford Street, como se fosse uma

notícia sem muita importância. “E, por último...” Então eles mostram uma

gravação do celular de alguém e algumas entrevistas de quem estava lá na

hora.

Um seriado horroroso começa depois do jornal. Todos nós ficamos ali

sentados, olhando para a tela, mas ninguém está prestando a menor

atenção.

– Eu acho que vai ser um terremoto, vó – Adam diz. – Ou, então, pode

ser uma bomba, um monte delas.

– Os japoneses entenderam o recado que a natureza mandou, não foi?

Lá as cidades estão sendo esvaziadas – ela responde. – Eles não acham que a

natureza está só brincando.

– É. Mas eles têm aqueles vulcões. Só se estivessem loucos para não

evacuar as cidades.

– Sim, mas nós temos você. Temos você nos avisando sobre o que vai

acontecer. As pessoas deviam escutá-lo. Elas tinham que começar a dar o

fora daqui logo.

– Só que isso não é a mesma coisa. No Japão, eles sabem o que vai

acontecer, os sistemas de segurança avisaram, os vulcões começaram a

trabalhar. Como eu vou fazer para os outros me escutarem aqui? Eu estava

pensando mais cedo em uma forma de conseguir publicidade. Talvez

pendurar uma grande faixa em algum lugar. Eu bem que podia escalar o

Gherkin, a Tower Bridge ou qualquer coisa assim.

– Vai ser igual ao meu desenho – eu digo. – Ninguém vai dar bola. Só

vão achar que você é um maluco. Você tinha que conseguir aparecer nas

telas das ruas. Quantas estão espalhadas por aí? Mais de mil? Elas são

oficiais. As pessoas vão prestar atenção e levar a sério. Isso é serviço para

um hacker.

– Caramba, Sarah, você tem razão. Se o conselho e o governo não

querem tomar nenhuma atitude, eu é que tenho que fazer algo. Eu vou

invadir as telas.

– E você sabe como fazer isso?

– Não, mas eu conheço um cara que pode ajudar.

Ele está animado agora, batendo os pés no chão sem parar, com os

olhos brilhando.

– Eu vou tentar ligar para ele.

Eu o deixo em paz com a sua nova tarefa. Mia está pronta para dormir e

eu também. Adam me deu o seu quarto, dizendo que ficaria bem no sofá.

Isso me deixa meio sem jeito, mas ele insistiu. Dou a última mamada da

noite para Mia e depois a coloco em uma gaveta no chão, da mesma forma

que fazíamos no squat. Depois desligo as luzes e tento fechar os olhos. Fico

pensando no que fizeram com Vinny. Onde será que ele está agora? Adam

disse que o viu sendo preso. Só de pensar nele jogado em uma cela de

cadeia, eu tenho vontade de gritar. Ele não merece isso.

Penso na chuva e no vento e penso em nós duas – Mia e eu – nos

escondendo no túnel. Agora eu penso no Adam, em como o destino sempre

acaba nos reunindo. E agora estou aqui, no quarto dele. Não dá para

acreditar – eu prometi a mim mesma que o manteria bem longe de mim,

mas acabei fazendo exatamente o oposto disso. Pelo menos, não é o ano-

novo – ainda não. Por esta noite eu vou aproveitar que estou aquecida e

segura e dormir o máximo possível, até Mia resolver que é hora de acordar.

ADAM

grito dela invade o meu sono. Ele entra nos meus sonhos e me

suga de volta à superfície. É um grito horrível e cheio de pavor. Eu

sei que é Sarah antes mesmo de estar completamente acordado.

Eu jogo o cobertor para o lado e saio correndo, escada acima. Eu bato na

porta, mas ela não me escuta – ela está fazendo muito barulho.

Eu abro a porta e entro. Ela está sentada com as costas na parede e os

dois braços em frente ao corpo, como se estivesse se protegendo de algo.

Seus olhos estão abertos e ela está gritando o nome da Mia sem parar. Mia

está em uma gaveta no chão e, para a minha surpresa, continua dormindo.

Talvez esteja acostumada.

– Está tudo bem, Sarah – eu digo, ainda na entrada do quarto. – Mia

está bem aqui. Ela está bem.

Ela não se vira para mim, mas com certeza me escutou.

– Não! – ela insiste. – Ela está lá. Ela está lá sozinha. Eu preciso de

ajuda. Por favor! – Ela começa a soluçar. Seus olhos podem até estar

abertos, mas ela não está acordada, ela está falando comigo das profundezas

do seu pesadelo.

Eu caminho até a cama e me sento na ponta do colchão. Então, coloco

a mão em seu braço com cuidado.

– Sarah – eu digo –, isso é um sonho, só um sonho. Você precisa

acordar.

Ela ainda está chorando e soluçando, desesperada.

– Sarah – eu a chamo mais alto desta vez –, acorde. Basta você acordar

e tudo vai estar resolvido. É só um sonho. Eu seguro seu braço com mais

O

força e o balanço um pouco.

Então, ela vira o rosto para mim e engasga.

– Não – ela diz, assustada. – Você, não!

– Sarah, você está na minha casa, está tudo certo. Não tem nada de

mal acontecendo aqui.

– Adam – ela sussurra, esfregando os olhos como se não tivesse certeza

se está acordada ou se ainda está presa em seu pesadelo.

– Sou eu Sarah. Você está aqui comigo. Você teve um sonho ruim, mas

agora está segura. Está tudo certo.

Ela deixa as mãos caírem pesadamente na cama.

– Eu estava gritando?

– Estava. Mas só um pouco.

O bastante para levantar os mortos.

– Eu costumava acordar o Vinny também – ela diz, passando a mão no

cabelo. – No final, ele acabou se acostumando.

– Você estava gritando que Mia estava “lá”. Onde você está no seu

sonho?

– Eu não sei. Em algum tipo de construção, uma casa, mas ela está

desabando e pegando fogo e... – sua respiração está ofegante.

– Tudo bem, Sarah. Tudo bem. Você não precisa pensar nisso agora.

Está tudo bem.

– Eu estou tão cansada, Adam. Eu só queria dormir um pouco. Mas se

eu fechar os olhos tudo vai voltar novamente.

Eu me aproximo dela um pouco, mas sem tocá-la, e fico por ali para

protegê-la.

– Não, não vai voltar – eu digo. – Você vai ficar bem.

– Você vai ficar aqui comigo? Você vai me acordar se começar de

novo?

Vou ficar com você para sempre. Eu atravessaria a nado o Canal da

Mancha por você. Andaria sobre cacos de vidro...

– É claro. Fico com você. Aqui – eu digo –, chegue mais perto.

Estou bem do lado dela agora e ela se inclina e descansa a cabeça entre

o meu ombro e o meu peito.

Observo seus cílios se movendo enquanto ela fecha os olhos. Não

demora muito para ela dormir, mas eu fico acordado por séculos. É como se

eu a estivesse absorvendo; eu sinto o seu peso, seu perfume doce, a maneira

como o seu corpo se move suavemente contra o meu enquanto ela respira

fundo. Quero lembrar para sempre desta sensação, não quero perder

nenhum detalhe. Não quero me esquecer de nada.

Acho que devo ter caído no sono mesmo assim, pois, quando dou por

mim, estou acordando. Sarah continua ali. Ela levantou um pouco a cabeça

e está olhando para mim. Então, ela sorri.

– Bom dia – ela diz baixinho.

– Bom dia, Sarah.

Eu não preciso nem dizer que as coisas ficaram um pouco “duras” para

mim de novo. O calor do corpo dela tão próximo do meu é demais para

conseguir segurar.

– Dormiu bem? – eu pergunto.

– Dormi sim. – Ela está relaxada e contente. Estava apresentando um

ar de felicidade, que eu ainda não tinha visto nela. – Muito obrigada – ela

diz, me olhando nos olhos. – Foi muito legal você ter ficado aqui comigo a

noite toda.

Nós não paramos de nos olhar desde que eu acordei. O clima está tão

tranquilo, tão íntimo e intenso, tão bonito. Os olhos dela focam na minha

boca e depois nos meus olhos novamente. Ela está pensando nisso, eu sei

que está. E de repente eu também estou. É agora ou nunca. Então, eu me

curvo para a frente um pouco e a beijo.

Sua boca é tão macia. Metade da minha está endurecida pela cicatriz,

mas a dela é macia por inteiro. No começo, seus lábios estão fechados. Ela

me deixa beijá-los, mas não me beija de volta. Depois de alguns segundos,

entretanto, ela faz um barulhinho esquisito, algo parecido com um grunhido

ou um suspiro – e então fecha os olhos e abre a boca. Agora seus lábios

também estão se esfregando contra os meus e eu sei que ela me quer tanto

quanto eu também a quero.

Sua respiração tem o cheiro do hálito de alguém que acabou de acordar

e a minha também deve estar, mas não estou nem aí. Sinto o sabor do seu

beijo com a minha língua e quero mais, muito mais.

Ela coloca a mão na minha nuca e me acaricia. Ainda nos beijando,

mudamos um pouco de posição e fico um pouco mais por cima dela. Eu

acaricio o seu braço e então deixo minha mão deslizar um pouco. Seus

mamilos estão duros por baixo do tecido macio da minha camiseta. Ele

também está um pouco úmido e eu me dou conta que deve estar vazando

leite. Seus peitos não são macios como eu esperava. Eles também estão

duros e aquecidos, quase quentes.

– Cuidado – ela diz –, eles estão sensíveis. – Eu tiro a mão na mesma

hora, mas ela a segura com a sua e a coloca de volta no mesmo lugar. – Pode

colocar a mão, mas com cuidado.

Nós nos beijamos novamente. Ela coloca as mãos embaixo da minha

camiseta e as passa pelo meu peito e pelas minhas costas. Explorando o meu

corpo com as pontas dos dedos.

Eu faço o mesmo, deslizando minha mão por baixo da sua roupa pelas

suas costas até a curva do seu quadril. Ela parou de se mexer agora, seus

músculos estão tensos, mas eu quero mais, quero descobrir cada parte do

seu corpo. Eu deixo minha mão deslizar pela sua coxa e então... ela se

contorce com violência, tentando tirar minha mão de lá.

– Não! – ela diz alto o bastante para eu entender a mensagem. Há um

pouco de pânico na sua voz também.

– Sarah, desculpe, achei que você quisesse...

Ela me joga para o lado.

– Não, isso não. Sinto muito. Achei que podia, mas não posso.

Não consigo entender o que está acontecendo. Há poucos segundos ela

me queria. Foi ela mesma quem colocou a minha mão em seu corpo.

– Sarah...?

– Não! Deixa pra lá! Eu não consigo. Eu não quero. Não com você.

Não com...

Me levanto e me afasto da cama.

– Já deu pra entender – eu digo. – Eu sou nojento. Sou uma aberração

da natureza. Mas é claro que você não ia querer fazer isso justo comigo.

Mia está acordada agora e começa a chorar. Eu saio andando na

direção da porta. Atrás de mim, Sarah está dizendo: – Não Adam, não é

isso. Adam... – Mas eu não quero escutar suas desculpas. Foi uma completa

idiotice achar que uma coisa dessas poderia acontecer entre nós. Uma

idiotice achar que poderia acontecer com qualquer uma.

Eu saio do quarto, caminhando na direção da escada. Minha avó está

parada na porta do quarto dela, com o cabelo todo bagunçado e os olhos

ainda não completamente abertos. Ela me lança um olhar desconfiado.

– Adam, o que é que...

– Por favor, vó. Sem perguntas. Nem agora, nem nunca mais, tá bom?

SARAH

u não consigo fazer. Achei que conseguiria. Achei que queria fazer,

mas ainda não dá. Não sei nem se vou conseguir fazer algum dia. Sei

que o Adam é diferente. Ele gosta de mim de verdade e eu também

gosto dele, mas aquela sensação do seu peso sobre mim, das suas mãos

correndo pela minha pele me fez perder a cabeça. Não é uma questão de

lógica, essa reação não veio da minha consciência, porque ela queria o

Adam, ela estava excitada ali com ele. É algo que está programado no meu

corpo, como se ele reagisse sozinho, separado do resto.

Já faz bastante tempo que eu não sinto mais o corpo como se fosse meu.

Em casa, por anos, ele era Dele. Ele podia me ter, me pegar, quando Ele

bem entendesse. Agora, meu corpo pertence a Mia. Como em um passe de

mágica, ele fez tudo o que era necessário para ajudá-la a crescer, para trazê-

la ao mundo e alimentá-la. Eu não sabia que era capaz de fazer isso,

simplesmente aconteceu. O meu corpo é que sabia.

Algum dia, ele será meu novamente. Mas só Deus sabe quando vai ser e

com quem e como eu vou me sentir. Enquanto isso, Adam saiu do quarto

puto da vida comigo. Ele chamou a si próprio de aberração da natureza. Eu

o fiz achar que ele é repulsivo, mas não é esse o problema. Não é,

mesmo. Não é você, Adam, sou eu. Meu Deus, isso é um tremendo clichê,

mas é a pura verdade. Eu nunca quis ofendê-lo. O que ele vai pensar de

mim agora? Que eu sou uma vadia?

– Parece que é melhor a gente ir embora de uma vez, querida – eu digo

a Mia. – Eu estraguei tudo, não é?

Eu arrumo as nossas coisas antes de descer as escadas. Adam está no

E

sofá, todo encolhido, com os olhos bem fechados. A TV está ligada, mas ele

não está assistindo. Val está sentada em um banco na cozinha, que está

cheia de fumaça. Eu paro na porta. Tem muita fumaça ali para Mia e muito

Adam na sala para mim. Não temos para onde ir, mas o melhor é irmos logo

embora.

– Eu só desci para deixar Mia aqui no carrinho – eu digo –, vou buscar

o resto das nossas coisas.

– Por quê? Aonde vocês vão? – Val pergunta e apaga a bituca de

cigarro no cinzeiro.

– É muito gentil de sua parte nos deixar ficar, mas acho que agora nós

devemos ir e encontrar outro lugar.

– E você tem algum lugar em mente? – Ela olha para mim,

atentamente.

– Tenho sim. Há alguns lugares que posso tentar. – É claro que é

mentira. Mas não quero ninguém sentindo pena de mim, nem se sentindo

obrigado a me receber em sua casa. Só quero ir logo. Eu não devia nem ter

vindo para cá, para começo de conversa. Nós vamos dar o fora de Londres e

se por acaso eu for pega, bom... eu simplesmente vou ter que lidar com isso.

Eu sigo até o carrinho e tento colocar Mia dentro dele deitada, mas ela

não parece estar muito a fim de cooperar. Como eu insisto, ela dá um grito

para mostrar que está irritada.

– Por favor, Mia. É só você deitar aí um pouco. Isso não está nos

ajudando em nada.

Ela continua gritando, mas eu a prendo no carrinho e subo atrás das

nossas coisas. Quando eu volto, Val está do lado do carrinho, tentando

brincar com ela. É claro que não está dando certo.

– Tudo bem – eu digo –, nós vamos embora agora. – Eu enfio as coisas

na parte de baixo do carrinho e coloco o meu casaco.

– Vocês não precisam ir – Val diz, para a minha surpresa.

Atrás dela, lá no fundo, no sofá, Adam continua de olhos fechados, mas

é impossível que ele ainda esteja dormindo depois de toda essa gritaria.

– Ela está partindo, Adam. – Val fala para ele. – Você não vai nem se

despedir? – Ele abre os olhos e olha direto para mim. Sua expressão é vazia.

Eu sinto como se tivesse matado uma parte dele.

Eu dou um passo à frente. Isso não pode terminar desse jeito. Com um

monte de mal-entendidos acumulados entre nós.

– Adam – eu digo –, não é você. Não é você, sou...

Ele bate com força a mão no sofá.

– Pode parar por aí – ele grita. – Não diga isso. Nunca mais tente me

dizer isso de novo.

– Tudo bem, tudo bem. Estou indo. – Não vai adiantar nada tentar

conversar com ele. Eu o ofendi tanto que é melhor deixá-lo em paz. Vou até

a porta da frente e a deixo aberta para poder passar com o carrinho de bebê.

Tento me virar para passar com ele pelo degrau. Mia ainda está chorando,

mas eu não posso pegá-la no colo antes de nós estarmos a uma boa

distância. Me viro para fechar a porta atrás de nós e de repente Adam está

ali. Eu não tenho a menor ideia do que ele vai fazer – gritar comigo, me

bater, me dar um beijo. Dá para sentir a energia pulsando no seu corpo, por

todos os seus poros. Ele está com as mãos fechadas. Ele estende um dos

braços na minha direção.

– Toma – ele diz. Então ele vira a mão para cima e abre os dedos. Tem

algumas notas e moedas ali.

– Não. Não seja estúpido.

– Aceite logo, Sarah. Vá embora de Londres. Ainda faltam três dias.

Tire Mia daqui. Leve-a para longe de mim.

Ele olha para baixo enquanto fala. Mas quando fala “mim”, ele levanta

a vista e seus olhos se encontram com os meus e, dessa vez, eles não estão

vazios ou sem vida. O brilho está de volta e é um brilho que eu conheço.

Uma pontada de medo dançando em seus olhos.

– Pegue – ele diz de novo, enquanto coloca sua mão em cima da minha.

Seu toque é tão quente. Meu corpo reage a ele instantaneamente, sinto

minha pele ficando mais quente. Sinto o calor se espalhando e um

incômodo gostoso no meio das minhas pernas. Não quero mais ir embora.

Quero ficar aqui e enfrentar o que quer que esteja querendo nos separar.

Quero acariciar a parte queimada do seu rosto, quero beijá-la, para que ele

saiba que eu não dou a mínima.

– E o que você vai fazer?

– Eu vou começar tentando fazer um pouco de barulho. Preciso tirar as

pessoas daqui.

– E você vai fazer isso sozinho?

– É, sei lá, tanto faz.

Agora, nós dois estamos ali, parados, como se tivéssemos algum negócio

não terminado para resolver. Já peguei o dinheiro, mas ele ainda não tirou a

mão da minha. Eu também não quero que ele tire.

– Posso ajudá-lo – eu digo.

Nós estamos olhando um para o outro agora e, por um segundo ou dois,

eu me pergunto se ele está pensando o mesmo que eu – que nós fomos feitos

um para o outro, que podemos fazer isso juntos.

Ele tira a mão de cima da minha, leva-a ao meu rosto e toca-o

gentilmente, da mesma maneira que eu toquei o dele um dia.

– Não – ele diz com a voz baixa, mas ainda assim firme. – Você tem que

ir embora daqui. Essa é a melhor coisa que você pode fazer. Leve Mia para

um lugar seguro.

Ele tem razão. E eu sempre soube disso. A única forma de escapar do

futuro e do meu pesadelo é ficar bem longe do Adam, para começar.

– Está certo – eu digo. – Vou embora. Mas vou manter contato, pode

ser assim? Talvez quando isso tudo acabar nós possamos...

Não consigo nem imaginar o que vai acontecer depois do ano-novo.

Não sei o que vai ser do mundo. Não sei nem se algum de nós vai estar vivo.

Adam sabe. Ele viu o meu número.

– Adam...?

Sim.

De repente, eu me dou conta que não quero saber se ainda tenho uma

semana, um mês ou ano. Ele disse que nunca me contaria e ele tem razão. É

melhor que seja assim. Não quero saber a minha própria sentença de morte.

– Se cuida.

Dou um passo para a frente e dou um beijo em sua bochecha – a que

tem a cicatriz. Ele fecha os olhos e eu caminho rapidamente pelo

corredor. Não olhe para trás. Não olhe para trás. Não consigo evitar; dou

uma olhada por cima do ombro e ele ainda está parado na porta. Seus olhos

estão abertos agora e ele está me observando. Ele levanta o braço e esfrega

os olhos com a manga da blusa e seu rosto se distorce e expressa um sorriso,

que não é bem um sorriso. Eu não consigo olhar para ele chorando. Me viro

e sigo caminhando.

ADAM

la está indo embora e talvez isso seja o melhor para nós dois, talvez

seja o melhor para todos. Minha vontade é gritar “Sarah, volte!”,

depois sair correndo atrás dela, virá-la para mim e lhe dar um abraço.

Mas uma parte de mim, a minha parte boa, está contente com a sua partida,

porque assim ela e Mia estarão seguras. E se por acaso elas não estiverem,

não serei eu quem lhes fará mal.

Nós estamos conseguindo, eu penso. As coisas não têm que terminar

como nós vimos. Nós vamos mudar o futuro.

Eu entro em casa de novo e coloco uma roupa.

Aonde você vai? – minha avó pergunta.

Vou dar um pulo na Churchill House – eu digo –, preciso conversar

com alguém a respeito de algumas telas.

Ela alcança o seu casaco.

– Não, vó. Você fica aqui. Vou fazer isso sozinho. – Toda essa história

está me fazendo ferver por dentro agora: a possibilidade de mudar as coisas;

a chance de salvar vidas, centenas, milhares de vidas.

Ela ainda está com o casaco na mão.

– Vó, não vou demorar. Só vou encontrar com o Nelson e depois voltar

para casa.

– Não sei, Adam. Sinto como se estivesse se aproximando. Não quero

perder você de vista. Já cometi esse erro antes e deixei o seu pai partir sem

mim...

Enquanto fala, ela está torcendo o casaco com as mãos. Antes que eu

perceba, vou até ela e dou um abraço rápido. Seus braços me envolvem e

E

me abraçam de volta, me segurando ali por mais tempo do que me parece

necessário.

– Volto logo, pode acreditar.

Ela finalmente me deixa ir.

– Tudo bem – ela diz –, vejo você mais tarde. – Ela dá as costas para

mim, mas não vai para o seu lugar habitual no banquinho da cozinha,

preferindo sentar-se no sofá e ficar de olho nas notícias. Saio de lá e sigo

caminhando rapidamente pelas ruas. No fundo eu tenho esperança de

alcançar a Sarah, mas não há nenhum sinal dela por onde eu passo.

A Churchill House fica a uns cinco minutos de caminhada da minha

casa. Quando chego lá, entretanto, me dou conta de que não sei o número

do apartamento do Nelson. Eu entro no saguão. O lugar é enorme; quinze

andares com trinta apartamentos em cada um deles. Eu pego o meu celular

e tento ligar para o número dele novamente.

– Nelson, sou eu, o Adam.

– Adam.

– Oi. Eu estou no seu prédio, aqui no saguão. Qual o número do seu

apê?

– Você está aqui?

– Sim. Eu preciso trocar uma ideia com você.

– Eu não sei, Adam. Não acho que essa seja uma boa.

– O quê?

– Não acho que você deveria estar aqui.

– Qual é, Nelson? O que houve com você?

– As coisas andam um tanto... difíceis... esquisitas. Nós não devíamos

nem estar falando pelo telefone.

– É por isso mesmo que eu estou aqui. Para conversarmos cara a cara.

– Eu não tenho certeza...

Esse papo já foi longe de mais para mim.

– Nelson, para de foder com tudo, vai. Vou conversar com você nem

que eu tenha que sair batendo em todas as portas deste lugar. Qual é o

número do seu apartamento?

Ele faz uma pausa de alguns segundos e eu chego a pensar que desligou

na minha cara.

Mas, então: – Nove dois sete. Nono andar.

– Certo. Valeu. Já estou subindo.

O elevador não funciona, então eu tenho que subir pelas escadas. Eu

ultrapasso três grupos de pessoas enquanto subo – dois carinhas da minha

idade, depois uma mulher de mãos dadas com um garotinho e carregando

um bebê no colo e, por último, uma velhinha com um carrinho de compras.

Todos eles vão partir no dia primeiro. Ninguém vai se salvar. Esse prédio vai

desabar sobre eles.

Subir os primeiros quatro ou cinco andares é até tranquilo, mas estou

quase tendo um ataque quando chego ao nono. O número 927 fica no final

de um corredor aberto do lado. A porta está um pouco aberta, mas presa

com o trinco. Nelson está esperando atrás dela, fora da vista de quem passa

pelo lado de fora.

– Pode entrar – ele sussurra para mim –, rápido.

– Oi Nelson, prazer em vê-lo.

Ele mal parece estar me escutando enquanto fecha a porta atrás de nós.

– Alguém viu você? – ele pergunta, ainda em voz baixa.

– O quê?

– Alguém te viu entrar aqui?

– Eu sei lá. Passei por algumas pessoas nas escadas, mas não tinha

ninguém no seu andar. Por que você está falando desse jeito? Por que está

tão desconfiado?

– Eu estou sendo vigiado. Eles estão atrás de mim.

– Eles quem?

– Sei lá. O MI5, provavelmente.

Não há uma luz sequer ligada e as cortinas estão fechadas, mas, mesmo

nessa escuridão, eu consigo ver os espasmos no canto da sua boca e seus

olhospiscando freneticamente, olhando para todos os lados, menos para

mim.

– Do que você está falando, Nelson? Que história é essa?

– Soltei a informação na rede paralela, como eu disse que faria, Adam.

E ela se espalhou bem rápido. Há toneladas de coisas lá sobre o ano-novo.

Toneladas! Todo mundo quer ler sobre isso. As pessoas querem descobrir o

que está havendo. Há evidências demais agora. Você tem razão, Adam,

alguma coisa grande está prestes a acontecer.

– Mas o que vai acontecer exatamente, Nelson? Você sabe?

Ele faz que não com a cabeça.

– Pode ser algum desastre natural. Tem havido muita atividade sísmica

recentemente. Várias. Ontem mesmo, um pequeno tremor atingiu a região

da Oxford Street. Além disso, parece que os níveis de radônio andam

bastante elevados.

– Você pode traduzir, por favor?

– Radônio é um gás liberado pelo rompimento das rochas subterrâneas.

Quando os seus níveis estão altos quer dizer que há atividade. Esse sujeito,

um professor, tem postado as medições de radônio na rede paralela, mas de

uns tempos para cá, o tiraram do ar. Só que eles não podem nos impedir de

saber o que está acontecendo com os vulcões. Você viu na TV, Adam? Os

vulcões são a notícia do momento.

– É, eu vi. Mas esses vulcões estão no Japão. Nós não temos nenhum

vulcão por esses lados.

Nelson suspira.

– Em que série você está, Adam? Será que você ainda não aprendeu

nada sobre as placas tectônicas?

Minha mente gira como um espremedor de frutas. Placas tectônicas,

geografia, a escola. Parece que isso foi há um milhão de anos. Não tem a

menor chance de eu me lembrar de qualquer coisa sobre esse assunto. Mas

não quero parecer um completo idiota.

– Sim, claro.

– Pois bem. O Japão está na outra extremidade da placa eurasiana – ele

diz.

– É verdade, eu sabia disso.

– Então, se algo acontece em uma das extremidades da placa, é bem

provável que algumas coisas possam acontecer também na outra. Nesse

caso, na Europa – principalmente na Grécia, na Turquia, na Itália e também

aqui. Um terremoto, por exemplo. Daí os níveis elevados de radônio. E nós

já tivemos um tremor.

– Mas e o fogo?

O tique do Nelson agora faz o seu rosto inteiro se contorcer. Ele engole

seco, tentando se controlar.

– Costumam haver incêndios depois de terremotos. O encanamento de

gás se rompe, as instalações elétricas entram em curto. Em São Francisco,

em 1906, os incêndios continuaram por três dias, depois dos tremores. Mais

pessoas morreram queimadas do que esmagadas pelos desabamentos.

Nós ainda estamos parados no corredor de entrada do apartamento e

minhas pernas estão começando a fraquejar – nove andares de subida e uma

conversa sobre o fim do mundo não costumam ser uma boa combinação.

– Nelson, será que a gente não podia entrar e sentar um pouco? – Eu

começo a andar, esperando que ele me leve até a sala ou a cozinha, mas, em

vez disso, ele entra na minha frente e bloqueia a passagem.

– O que você está fazendo? Você não pode entrar aqui. Minha mãe está

na cozinha e meus irmãos estão em casa.

– Você não pode receber seus amigos em casa?

– Não. Não você. Eu não quero que eles o vejam. Eu já estou metido

em problemas demais com as coisas como estão agora.

– Que tipo de problemas?

– Eles rastrearam os meus posts na rede. Descobriram que era eu, e

então recebemos algumas visitas de gente do governo. Agentes

antiterrorismo, o pessoal do Departamento da Infância e também da

Imigração.

– O quê?

– É isso mesmo. Vieram todos de uma vez. Entraram no apartamento

como um enxame de insetos. Entrevistaram meu pai e minha mãe. Ela ficou

apavorada.

– Mas eles são ilegais – o seu pai e a sua mãe?

– Claro que não, mas eles vieram para cá há vinte anos, quando ainda

não existia essa história de cartões de identidade e tudo mais, então a

documentação está toda atrasada. Mas eles não fizeram nada de errado.

– Então está tudo bem com eles? Não aconteceu nada demais, não é? O

governo só decidiu fazer uma busca por aqui.

– Eles não estão bem. Eu não estou bem. Levaram o meu

computador, Adam. Recebi uma advertência.

– Mas como assim? Você não fez nada ilegal.

– Não fiz? “Conspiração para promover o medo”, foi isso que fiz,

segundo eles.

O quê?

Está na legislação antiterrorista de 2018. Conspiração para promover o

medo. Eles podem me prender, Adam. Por até dez anos. Será que deu para

você entender a gravidade desse assunto agora?

Ele está nervoso, isso está mais do que na cara. Está com os nervos à

flor da pele. E a culpa é toda minha, mais uma vez.

– Nelson – eu digo –, sinto muito, cara. Eu não sabia.

– Nem eu. Eu não tinha a menor ideia em que estava me metendo

quando comecei com isso.

– Eu não devia ter pedido ajuda a você. Vou embora. Vou te deixar em

paz. É só que...

Ele finalmente olha para mim e seu número invade os meus

pensamentos de novo. 112027. Essa merda de número. Ele não merece um

destino desses.

– O quê?

– Queria que você me prometesse que vai embora desse lugar.

– Não posso ir para lugar nenhum sem a minha família.

– Leve eles com você, então.

– Não é tão fácil assim...

– Mas você tem que fazer isso, Nelson. Você precisa ir embora daqui, é

perigoso demais.

– Vou tentar. Vou tentar levá-los para longe.

Me movimento para sair.

– Adam – ele me chama. – Para que você veio até aqui hoje?

– Eu queria conversar com você sobre algo.

– E o que é?

Não posso pedir para ele me ajudar com as telas. Nelson já se envolveu

demais com tudo isso.

– Nada demais. Não é muito importante.

– Mas é alguma coisa, pode falar.

– É, mas agora não faz diferença, deixa isso para lá.

– Pode falar, Adam. Já estou mesmo encrencado. Se eu puder fazer

alguma coisa, se houver alguma forma de me vingar daqueles filhos da mãe,

eu quero ajudar.

– Nelson!

– Eles são uns babacas, Adam. Eles assustaram a minha mãe. Isso não é

certo. Quem deu a eles esse direito?

– Eu só estava pensando se nós não poderíamos fazer alguma coisa com

as telas de informação espalhadas pelas ruas. Invadir o sistema ou alguma

coisa assim.

Ele dá um sorriso.

– Mas é claro. É claro que a gente pode fazer isso.

– Só que vai ser difícil sem um computador, não é?

– Tem computadores em todos os lugares, Adam. Até mesmo fora de

Londres, pelo que eu ouvi dizer...

– Mas você não precisa... você já fez muita coisa. Você tem que cuidar

de si mesmo agora. De si mesmo e da sua família também. O tempo está

acabando.

– Não preciso ajudar, mas eu quero. Milhares de pessoas vão morrer e

eles não estão nem aí, Adam. Isso não é certo. Isso não é justo...

– Você vai ter que tomar cuidado, cara.

Eu fecho a mão e levanto o braço na direção dele. Ele olha para ela por

alguns segundos, então limpa a garganta e faz o mesmo e nossos punhos

fechados se encontram. Eu me pergunto se ele já fez isso antes. E me

pergunto se poderá fazer de novo.

– Falou, Nelson – me despeço.

Escuto a porta batendo atrás de mim. Eu não sou muito de rezar, mas

enquanto caminho pelo corredor, olho para o céu acinzentado de

Londres. Por favor, permita que ele se salve. Não deixe nada de ruim

acontecer ao Nelson. Talvez nada aconteça mesmo, pois ele pode ser

quieto e pode não ser mais que um nerd da escola, mas agora sei que ele tem

mais coragem do que muito valentão por aí.

SARAH

stou apenas a alguns minutos de caminhada da casa do Adam,

quando eles me pegam.

A velocidade com que tudo acontece é chocante; em um momento

estou tranquila, empurrando o carrinho de bebê pela calçada, e, no segundo

seguinte, um carro está parado ao meu lado e sou enfiada no banco de trás,

enquanto alguém tira Mia do carrinho e a ata a uma cadeirinha perto de

mim. Duas pessoas se sentam, uma do meu lado e outra do lado da Mia. As

portas do carro são fechadas e trancadas e ele começa a andar.

O carrinho e nossas coisas são, simplesmente, deixados para trás.

– Mas que merda é essa? Quem são vocês?

O homem do meu lado abre a carteira e praticamente esfrega a sua

identificação na minha cara.

– Departamento da Infância. A Viv, ali do outro lado, é da polícia, da

delegacia da família.

– E por que é que vocês me prenderam no meio da rua? Eu achava que

esse aqui era um país democrático.

A mulher entra na conversa.

– Nós tivemos que vir até você porque você estava fugindo de nós.

Você não estava mais no endereço residencial que nós tínhamos. E ninguém

por lá sabia dizer aonde você tinha ido.

– Vocês podem rastrear o chip da Mia. Já fizeram isso antes. Então não

tem necessidade de fazer todo esse drama.

– Ah, tem sim. Toda a necessidade. Nós prendemos os seus colegas de

casa por posse de drogas classe A com intenção de tráfico. Na noite passada,

E

você estava na casa da viúva de um dos mais notáveis assaltantes a mão

armada, cujo bisneto, como se não bastasse, está suspenso da escola por ter

realizado um ataque selvagem e violento, além de ser alvo das investigações

de um assassinato. Quem sabe para onde você iria agora? Precisávamos

intervir. É o nosso dever.

Isso tudo não parece mesmo muito bom quando ela fala desse jeito.

– E para onde estamos indo agora?

– Para a delegacia de Paddington Green, onde você será interrogada

sobre as atividades no seu primeiro endereço. Louise será entregue aos

cuidados de um lar adotivo. Já temos um esperando por ela neste exato

momento.

– Vocês vão tirá-la de mim? Vão entregá-la a outras pessoas? Não. Isso

não pode ser. Vou até a delegacia e conto tudo o que vocês quiserem, não

tenho nada a esconder. Mas não vou permitir que levem a minha filha.

Vocês não têm esse direito!

– Não é você quem decide isso, Sally. Nós temos uma ordem do juiz.

Sua filha precisa crescer em um ambiente seguro e estável.

– Mas ela ainda está mamando no peito – eu digo, de forma

desesperada. Os dois ficam em silêncio e eu penso Consegui. Eles não

podem tirá-la de mim agora. Mas então a tal de Viv diz: – Nós cuidaremos

para que ela seja bem alimentada e bem tratada. Ela está sendo

encaminhada a pessoas muito responsáveis e experientes.

E, de repente, eu percebo como esse mundo é frio e cruel e como são

igualmente frias e cruéis as pessoas com quem eu estou lidando – como se

eu já não soubesse disso antes.

Você acha que pode escapar, mas não pode.

Você chega até a acreditar que pode ter algum controle sobre a sua

própria vida, mas isso não passa de uma ilusão ingênua.

No final, eles acabam te pegando. Sempre.

O carro não está muito rápido, mas estou cercada, sem a menor chance

de alcançar nenhuma das portas. Não tenho escapatória. Tudo o que posso

fazer é ficar aqui sentada e esperar enquanto sou levada para a delegacia,

onde eles vão me separar da minha garotinha.

Nós saímos da rua principal e passamos por uma rampa que leva a um

estacionamento subterrâneo. Durante todo o tempo fico segurando a mão

da minha filha. Uma parte de mim ainda não consegue acreditar que eles

vão mesmo fazer uma coisa dessas. Mas eles vão.

Eles nos tiram do carro. Eu peço para segurar a Mia uma última vez e

eles me deixam fazer isso. Ela está agitada depois de sair do carro. Tento

conversar com ela. – Esse não é o fim, Mia. Vou vê-la de novo, em breve.

Prometo. – Mas ela está com os olhos fechados, agitando as mãos para um

lado e para o outro. De qualquer forma, as palavras não saíram direito da

minha boca: elas saíram borradas, interrompidas por soluços e misturadas

com lágrimas. Isso tudo está errado. Alguém nos alcança e coloca os braços

entre os meus e o corpo dela e, finalmente, eles a tiram de mim.

Tudo o que posso ver são duas pessoas se afastando apressadas; uma

carregando a cadeirinha do carro e a outra levando Mia no colo. O policial

ao meu lado diz: – Por aqui, por favor – e coloca a mão no meu ombro para

me virar de costas para essa cena. Só consigo pensar Tire essas mãos

imundas de mim, mas não digo isso com palavras. Solto um grito, um urro

selvagem e cravo as minhas unhas no seu rosto com toda a força. Agora é

ele quem está gritando; um grito agudo, apavorado. Quando ele coloca as

mãos nos cinco arranhões, saio correndo.

Escuto um carro dando a partida do outro lado do estacionamento. É o

carro que está levando Mia embora. Corro na direção dele. Eles me viram –

o carro canta pneu acelerando na rampa. Há um portão de metal e eles têm

que esperá-lo abrir. Ainda posso alcançá-los. O portão desliza para o lado.

Estou quase lá. Estico o braço e meus dedos raspam o porta-malas. As luzes

de freio se apagam e o carro começa a se mover... e já era. Ele se junta ao

fluxo na Edgware Road. Tento ir atrás dele, mas logo o perco de vista.

Diminuo a velocidade e paro, me inclinando para frente, com as mãos na

cintura, enquanto tento recuperar o ar.

Dou uma olhada para trás e tem meia dúzia de policiais saindo

apressados da delegacia. Fico olhando, meio fora do ar, e então me dou

conta que estão atrás de mim.

Tenho mais de cem metros de vantagem, mas eles estão se

aproximando rápido. De repente, a ideia das mãos deles em cima de mim,

me pegando, é demais. A raiva toma conta de mim novamente, junto com

uma enxurrada de adrenalina. Não sei para onde estou indo, mas não vou

ficar aqui parada, esperando eles me pegarem. Meu casaco está me matando

de calor, então eu o tiro e deixo cair no chão. Parto a toda velocidade, com

os braços e pernas livres, os pés batendo na calçada, mergulhando nas poças

d‟água. Eu passo por becos e ruas laterais, corto caminho por uma loja de

carros e pelos fundos de um bar. Não olho para trás, nenhuma vez sequer.

Só sigo em frente, um pé depois do outro. Meu peito começa a doer, mais

parece que meus pulmões vão explodir, mas eu não paro. Atravesso um

mercado, que exala cheiro de folhas de couve molhadas e fritura de

hambúrguer que fica impregnado as minhas narinas. Até que, finalmente,

encontro um caminho à beira do canal. Caminhando por ali, eu não paro de

olhar ao redor. Ninguém por perto. Há uma pilha de velhos dormentes da

ferrovia ao lado do caminho. Paro de correr e me sento neles.

Só o que tenho são as roupas do corpo. Não sobrou mais nada. Quando

levaram Mia, eles tiraram também a minha vida. Malditos! Malditos!

Malditos! Eu só consigo pensar nela, em sua ausência, em como os meus

braços sentem falta do seu peso, em como os meus seios estão quentes e

cheios de leite que ela nunca mais vai beber. Ficar ali sentada, sem tê-la

junto de mim, é insuportável. A vontade é de sair correndo de novo, fazer

alguma coisa, me mexer, mas eu não consigo. Mesmo sentada, as pernas não

param de tremer. Elas não vão me levar a lugar algum por enquanto. Isso

quer dizer que eu vou ter que ficar aqui, sozinha com o meu desespero.

Absolutamente sozinha.

ADAM

ão vou direto para casa quando saio do apartamento do Nelson.

Eu deveria fazer isso. Deveria ir para casa, arrumar as minhas

coisas e entrar no primeiro ônibus para longe de Londres, com ou

sem a minha avó. Mas, lá no fundo, não quero deixar tudo nas mãos do

Nelson. Quero tentar fazer alguma coisa, tipo aquela história

do Gherkin ou da Tower Bridge. Então vou para o centro da cidade, para

uma última tentativa de abrir os olhos das pessoas.

Eu acabo na Oxford Street novamente, ouvindo uma espécie de canto

em algum lugar distante. Resolvo seguir o barulho. É uma voz explodindo

através de um megafone, apoiada por uma multidão de gente. No começo

não consigo entender o que eles estão dizendo, mas depois, quando

compreendo as primeiras palavras, percebo onde estou. Essa deve ser a

Grosvenor Square. É o protesto que nós vimos na televisão na noite

passada.

– Abaixo a guerra! Abaixo a guerra! Abaixo a guerra!

O som ecoa pelos prédios, até nas ruas mais distantes. Na praça ele é

ensurdecedor. Há policiais fardados por toda parte. Resolvo me meter no

meio da multidão. O cara com o megafone está à frente, em algum lugar –

eu não consigo vê-lo, mas eu estou escutando-o bem, e de repente sei

exatamente o que tenho que fazer. Eu tenho que alcançá-lo e tenho que

pegar o megafone. Nem passa pela minha cabeça me perguntar se vou

conseguir. Só sigo em frente com o plano.

É uma multidão enorme, mas a atmosfera é incrível. Há vários jovens,

mas também famílias com crianças pequenas e até pessoas de idade, mais

N

velhas até do que a minha avó. Todos estão ali pela mesma razão. Todos

acreditam que se muita gente gritar alto o bastante, as outras pessoas vão

escutar.

Abro caminho no meio da multidão, chegando cada vez mais perto do

lugar de onde vem o som, e então finalmente consigo vê-lo – o homem com

o megafone. É um homem de meia-idade, um tipo que não consegue admitir

o destino do próprio cabelo e, apesar de não ter quase nada no topo da

cabeça, deixa o que resta nas laterais crescer até passar dos ombros. Vou

desviando das costas, ombros e braços ao meu redor até estar bem ao lado

dele. Eu poderia simplesmente arrancar o megafone da mão dele se quisesse,

mas esse é o plano B. Primeiro eu vou tentar o plano A.

Eu bato em seu ombro. Ele vira para mim, levando um susto quando vê

minha queimadura, e em seguida solta um botão que faz o megafone

desligar.

– Tudo bem contigo, companheiro? – ele pergunta.

– Tudo legal – eu respondo. – Qualquer um pode falar também?

Ele não tem muita certeza. Esse sujeito pode não gostar da guerra, nem

dos americanos, nem do governo, mas, com certeza, ele gosta de ter o

controle sobre o megafone.

– Eu quero fazer como você, cara – eu digo. – Quero mudar o mundo.

Um grande sorriso se abre em seu rosto.

– É claro que você quer. É isso aí! Vá em frente, carinha! – Ele mostra

o megafone para mim. – Aperte o botão vermelho e mantenha-o

pressionado enquanto você fala. Não precisa ter vergonha. Pode gritar,

senão eles não vão escutá-lo. Eu vou apresentar você ao pessoal.

Ele se vira, segura o megafone em frente ao rosto e aperta o botão

vermelho.

– Eu estou aqui com um jovem que também quer lutar pela paz. Eu

gostaria que vocês dessem as boas-vindas calorosas ao nosso amigo... – ele

faz uma pausa e se abaixa um pouco na minha direção.

– Adam – eu digo a ele.

– Adam! Vamos ouvir o que o Adam tem a dizer, então.

A multidão aplaude entusiasmada. Eles não têm a menor ideia de quem

sou eu, mas aplaudiriam qualquer coisa – essa é a manhã perfeita e o tipo

perfeito de público para mim. Eu seguro o megafone. Ele é um pouco mais

pesado do que eu estava esperando, mas eu respiro fundo, o seguro na frente

da minha boca e aperto o botão.

– Abaixo a guerra! – eu grito. – Abaixo a guerra! – eu paro de falar e

escuto a multidão fazendo eco, gritando as mesmas palavras. Eu continuo

por um tempo com esse papo da guerra, para ter certeza de que eles estão

me escutando. O careca cabeludo me dá um tapinha nas costas e estende a

mão, esperando que eu devolva o megafone, mas eu ainda não terminei. Na

verdade, estou só começando.

– Ninguém quer essa guerra estúpida – eu grito. – Minha voz

amplificada pelo megafone se espalha pela praça e é uma sensação incrível.

– Ninguém quer essa guerra, isso é certo, mas em três dias Londres vai

enfrentar uma catástrofe. A cidade inteira vai ser destruída. – A multidão

vai ficando em silêncio e eu começo a escutar gente zombando de mim. – O

tremor de ontem foi só o começo. Algo muito pior está prestes a acontecer.

Algo muito, muito pior. Nós precisamos sair da cidade se quisermos proteger

as nossas vidas e das pessoas que amamos. Precisamos dar o fora daqui antes

do ano-novo.

Mais gente está gritando besteiras de volta para mim e há também

algumas vaias agora.

– Garantam a sua própria segurança e a das suas famílias. Saiam de

Londres. Vão embora daqui hoje. Vão embora agora, se puderem!

Por toda parte, as pessoas estão tentando gritar mais alto do que eu.

– Não!

– Cai fora, moleque!

– Abaixo a guerra!

O careca está tentando arrancar o megafone da minha mão, mas eu o

seguro com toda força.

– Muita gente vai morrer aqui, mas nós temos a chance de nos salvar.

Salvem-se. Salvem suas famílias. Saiam de Londres!

Mais pessoas estão tentando arrancar o megafone da minha mão agora.

Alguém consegue tirá-lo de mim e eu dou um soco sem direção. Eles estão

se amontoando ao meu redor e eu não sei bem em quem estou batendo, mas

pode crer que eles não estão deixando barato – braços e pernas me atingem

sem parar. Coloco os braços na frente do rosto, mas isso deixa o meu corpo

totalmente vulnerável e alguém me acerta em cheio no estômago. O ar

começa a faltar nos pulmões e eu caio para frente, me apoiando em alguém.

A violência está tomando conta da multidão a essa altura. As pessoas

de trás empurram as da frente tentando chegar até mim, mas são

empurradas de volta por elas e o clima de pânico está no ar de uma vez.

Gasto todas as minhas energias tentando me manter em pé. Preciso sair logo

daqui. Então abaixo a cabeça e tento abrir caminho. É bem difícil, pois nós

estamos completamente encurralados pela pressão que vem de todos os

lados e as pessoas ao meu redor ainda estão tentando me agarrar feito

loucas, mas, depois de alguns minutos, consigo chegar a um lugar um pouco

mais tranquilo.

À minha frente, eu vejo uma fileira de botas brilhantes. Eu levanto um

pouco a cabeça e me deparo com uma parede de homens da tropa de

choque.

– Deixem-me passar – eu grito. – Eu preciso sair daqui antes que essa

gente toda me mate! – Eles não se movem um centímetro sequer. –

Deixem-me passar! Deixem-me passar!

Dou um passo para frente e acerto um soco em um dos homens. O que

está ao lado dele se move na minha direção. Isso! Uma brecha. É a chance

de sair daqui. Mas então um cassetete me acerta no ombro. Uma pancada é

o bastante para me mandar direto para o chão. Eles não batem mais, não há

a menor necessidade. O cara que me acertou, simplesmente, dá um passo

para trás e a parede está fechada novamente. Meus rosto está direto no

concreto e, por alguns segundos, eu não sei mais o que está acontecendo

nem onde estou nem se estou vivo ou morto. Eu devia fazer alguma coisa,

devia me mover e me levantar. Mas está além das minhas possibilidades.

Não sei direito nem qual é o lado de cima.

As pessoas ao meu redor, aquelas que estavam me dando socos e

pontapés, resolveram mudar de estação agora. Eles estão gritando, rosnando

e xingando a polícia.

– Onde estão nossas liberdades civis?

– Seus brutamontes covardes de uma figa, queria ver do que vocês

seriam capazes se não estivessem armados!

– Fascistas! Vamos tirar fotos deles e anotar seus números de

identificação!

Há mãos por todo o meu corpo novamente, mas não me empurrando e

apertando como antes, e sim me segurando e tentando me tranquilizar.

– Tudo bem com você, carinha? Você consegue me escutar?

Eu abro os olhos bem devagar. Pelo menos uma meia dúzia de lentes

está apontada para mim, com uma porção de rostos atrás delas, o que

significa uma enxurrada de números invadindo a minha mente.

– A gente filmou tudo, cara. Eles não vão sair impunes dessa. Qual é o

seu nome? Quantos anos você tem? Isso vai aparecer no jornal da hora do

almoço.

Não quero todo esse rebuliço. Só quero cair fora daqui e ir para minha

casa, ver minha avó e arrumar minhas coisas. Mas então o meu cérebro

começa a processar direito as palavras. Está tudo filmado. Jornal da hora do

almoço. E me lembro por que estou aqui.

– Vai ser no dia primeiro de janeiro – eu digo, olhando para a câmera

mais próxima. – Vocês têm que ir embora dessa cidade. Saiam de Londres.

Tudo vai acontecer no ano-novo.

Agora eles estão querendo me fazer calar a boca de novo. Não era isso

que eles queriam ouvir, mas eu sigo em frente com a minha mensagem.

– Londres está em perigo. Ontem foi só o começo. Vai ser muito pior

que aquilo. Dez vezes pior. Cem vezes pior. Muita gente vai morrer aqui.

Vão embora. Deixem Londres agora. Não há tempo a perder!

As câmeras continuam apontadas para mim enquanto algumas pessoas

me ajudam a levantar. Escuto uma onda de perguntas, uma atrás da outra.

Quem me bateu? Quantas vezes? Qual foi o motivo? Eu não estou nem aí

para isso e não respondo nenhuma delas, só prossigo com o meu próprio

roteiro. O sangue escorre pelo meu rosto e entra na boca, mas eu não paro.

Essa é a chance. Esse é o meu momento. Minha imagem e minha voz estão

sendo transmitidos para o país inteiro. Tomara Deus que a nação me escute.

Eles nos mantêm na praça por seis horas. Ninguém entra ou sai. Quem

quiser fazer xixi, tem que fazer ali mesmo onde está. As mulheres se

abaixam, enquanto seus amigos fazem uma barreira ao redor delas. Nós

pedimos água: ninguém traz. Nós pedimos para nos deixarem sair, sem

nenhuma algazarra e com calma: eles dizem que estão nos mantendo presos

para a nossa própria segurança.

De tempos em tempos alguém perde a cabeça. Eles começam a discutir

ou tentam forçar a passagem pela barreira de policiais. É claro que recebem

o mesmo tratamento que eu – cassetetes e pontapés até caírem no chão – e

em seguida a parede se reconstrói no mesmo lugar.

Já que as câmeras se cansaram de mim, eu tento conversar com as

pessoas, só uma ou duas por vez. O negócio é que gosto desse pessoal. Antes

eu nem os notava e até zombava deles – para mim, não passavam de hippies

cabeludos achando que podiam mudar o mundo. Mas escutando eles agora,

percebi que pensam sobre as coisas, que se preocupam de verdade com

assuntos importantes – o futuro do planeta, as pessoas em outros países

passando fome e sendo oprimidas. Eles se importam. Me sinto como se

tivesse passado a vida inteira com os olhos fechados.

Vários deles são do dia primeiro de janeiro. Eu digo a todos que

precisam dar o fora. Saio andando pela multidão tendo a mesma conversa

uma porção de vezes.

– Sair da cidade? A gente não consegue nem sair desta praça.

– É, eu sei. Mas quando nós sairmos daqui, vá para casa, arrume as suas

coisas e se mande desse lugar.

– Por que você está dizendo isso?

– É o que eu vejo, cara. Consigo ver o futuro.

Eles não sabem como lidar comigo. Alguns deles me escutam com

gentileza; acham que eu sou só um louco e que, se me tratarem bem, vou

deixá-los logo em paz. Outros só balançam a cabeça e esperam eu dar o fora.

– Prometa – eu digo. – Prometa para mim que você vai embora de

Londres. – Algumas pessoas prometem. Não sei se é porque as estou

assustando ou se elas só estão zoando com a minha cara. Mas enquanto

caminho pela multidão conversando com as pessoas, posso prever quem vai

dizer que vai deixar a cidade – e nenhuma dessas pessoas é um 27. Eu

começo a ficar um pouco obcecado. Tenho que fazer um 27 dizer que vai

partir. Mas pouco importa a minha insistência, eles nunca dizem. Está

ficando frustrante demais e acho que estou um pouco agitado. Sei que estou

começando a perturbar as pessoas, mas não dá para parar. Até que,

finalmente, alguém me para.

Estava falando com uma mulher. Ela é bonita, tem uns vinte e poucos

anos, mas só uma semana de vida pela frente.

– Por favor – eu estou dizendo. – Você precisa me prometer que vai

embora desse lugar. Só restam alguns dias agora. Você tem que ir para um

lugar seguro. Um monte de gente vai morrer aqui, entende?

Ela não queria fazer contato visual, olhando para longe o tempo todo.

Em seguida, alguém aparece. Um sujeito enorme, muito maior que eu e sem

nenhum cabelo na cabeça.

– Ela não quer falar com você, sacou? Deixe-a em paz, moleque. Você

tá assustando a coitada. Já é ruim demais ficar aqui desse jeito e você ainda

quer ficar enchendo o saco dos outros? Qual é a sua? Por que você não

fecha essa merda de boca e dá um tempo pra todo mundo?

Se fosse outro dia, em outro lugar, talvez eu o enfrentasse. Mas eu já

apanhei demais por hoje.

– É uma questão de vida ou morte, cara – eu digo, levantando os dois

braços em sinal de rendição. – Eu estou tentando salvar vidas. – Então eu

dou as costas para os dois e olho através da multidão, na direção da parede

de policiais que está nos mantendo aqui.

Vai demorar até eles nos liberarem. Muita gente começa a sentar,

mesmo sabendo que a umidade no chão não é água, e sim urina. O som das

pessoas conversando – umas duas mil, talvez – vai diminuindo à medida que

vão se sentando. Só nos resta esperar.

No final das contas, as coisas acontecem sem muito drama. Alguns

minutos antes de escurecer totalmente, a polícia vai embora sem grandes

confusões. Nenhum aviso, nenhuma instrução. Em um minuto eles estão ali

e no minuto seguinte estão descendo as ruas laterais e entrando em suas

vans.

Olho ao meu redor. As pessoas exaustas vão se levantando. Elas estão

bravas pela maneira como foram tratadas, mas estão cansadas e doloridas

demais para fazer algo além de resmungar enquanto ficam de pé e saem

andando. Minhas pernas estão completamente moídas. Quando me levanto

mais parece que elas vão rachar ao meio. Apoio o peso em uma e depois na

outra, tentando fazer o sangue voltar a circular direito, enquanto meus pés

não param de formigar.

Me arrasto para fora da praça e sigo na direção do ponto de ônibus. É só

quando a fila começa a andar no ponto e tem apenas duas pessoas na minha

frente, que eu coloco a mão nos bolsos e percebo que eles estão

completamente vazios – sem carteira nem passe de ônibus. Em algum

momento, durante as últimas seis horas, algum desses sujeitos maravilhosos

e cheios de boas intenções deve ter me roubado. Eu ainda estou com o meu

telefone e mais vinte e cinco centavos. Mas para quem eu vou ligar? Minha

avó? Ela não vai poder fazer nada. Vou ter que ir andando.

Eu procuro nos bolsos mais uma vez, mas não há nada de útil neles e eu

estou segurando a fila. As pessoas atrás de mim estão começando a

reclamar. Então alguém simplesmente passa na minha frente e o resto das

pessoas faz o mesmo. Eu não posso reclamar de ter sido posto de lado. Seria

uma perda de tempo e não tenho mais energias nem para me incomodar.

Todo mundo está exausto. Foi um dia muito longo e eles só querem ir para

casa. Eu também quero. Me afasto do ponto de ônibus e começo minha

longa caminhada. São vários quilômetros até a casa da minha avó, mas eu

nem penso nisso, só coloco um pé na frente do outro e sigo em frente, com a

cabeça baixa, passando por ruas e praças, entre lojas e prédios de

apartamentos. Só o que eu vejo é concreto e asfalto, pernas e pés em

movimento. E é assim que eu quase deixo passar. Um milagre, a única coisa

que poderia fazer um sorriso se abrir no meu rosto no fim desse dia

interminável.

Eu chego a um lugar em que as pernas não estão se movendo. Uma

pequena multidão está reunida na calçada. Eu tenho que olhar para cima

para saber para onde ir e então eu vejo o que os fez parar. Há uma

mensagem piscando nas telas de informações públicas penduradas sobre a

calçada: “URGENTE. ALERTA DE EVACUAÇÃO.” E depois uma outra:

“DEIXEM LONDRES IMEDIATAMENTE. INCIDENTE DE GRANDES

PROPORÇÕES PRESTES A ACONTECER: SAIAM DA CIDADE”.

– Meu Deus, ele conseguiu! – Eu quero gritar e comemorar, mas em vez

disso, fico observando os rostos ao meu redor. As expressões são de dúvida e

também de medo.

O telefone no bolso começa a vibrar. É uma mensagem de texto. Eu a

abro e é a mesma coisa. As mensagens das telas estão sendo enviadas para o

meu celular. Todos ao redor parecem estar recebendo também. Por toda

parte, as pessoas estão olhando para os seus celulares e depois para as telas

no alto.

Eu disco o número do Nelson, mas a ligação cai direto na caixa postal.

A excitação faz a minha voz falhar e gaguejar enquanto eu deixo uma

mensagem.

– Nelson, cara... você é demais! Você conseguiu! Não sei como, mas

você conseguiu! Valeu mesmo! Se cuida por aí.

As pessoas estão começando a se mover de novo. Algumas delas saem

correndo, esbarrando e empurrando as outras. Eu estava acabado quando

deixei a Grosvenor Square, mas agora me sinto renovado, com meu corpo

funcionando a todo vapor. Eu também saio correndo. Quero chegar logo em

casa para arrumar as coisas e sair desta cidade maldita hoje mesmo com a

minha avó.

SARAH

oi uma idiotice deixar o meu casaco para trás. Vou congelar até

morrer aqui. Uma parte de mim não está nem aí. Não tenho nenhum

motivo para continuar viva. Eles tiraram minha filha de mim e não

vão querer devolvê-la. Eles vão mandá-la para algum lugar com um berço

limpinho e brilhante, em uma casa limpinha e brilhante, com um pai e uma

mãe adotivos que vão alimentá-la com alguma porcaria industrializada em

vez do meu leite.

É a última parte que me deixa pior. É claro que eu quero que minha

filha fique segura e confortável e que seja bem cuidada. Ela devia estar

comigo, mas se não está, eu quero que ela tenha o melhor. Mas pensar nela

tomando leite de uma garrafa me mata por dentro. Dei de mamar para ela

desde o início. É uma coisa só nossa, é o que nós fazemos juntas. Agora essa

ligação entre nós vai ser cortada.

Como eles têm coragem de fazer uma coisa dessas? Como eles podem

tirá-la de mim quando nós temos uma necessidade física uma da outra? É a

atitude mais cruel que eles poderiam tomar.

Escorrego pelos dormentes até o chão e fico lá, toda encolhida,

abraçando os meus joelhos. Eu estou tremendo muito, mas isso pouco me

importa. A dor no corpo não conta. É a dor na cabeça que vai me matar –

essa sensação de perda, a ausência da minha garotinha é muito pior do que

qualquer coisa que eu já tenha sentido na vida.

Estou tão fria que até paro de tremer. Meu corpo está imóvel e rígido.

Sei que devia me mexer, tentar ir para outro lugar, algum que fosse mais

protegido e aquecido. Pelo menos eu poderia sair andando pela noite, para

F

manter meus braços e pernas em movimento e fazer o sangue circular. Mas

eu já passei dessa fase agora, já perdi a chance de usar o bom senso e tentar

me levantar – o frio levou o pouco de juízo que eu tinha embora. Agora

estou presa aqui.

Meus braços estão dobrados no peito. Uma das minhas mãos está no

pescoço. Eu consigo sentir o sangue pulsando nas minhas veias bem devagar

e sem aquela força habitual. Eu devia sair daqui, só que não consigo. Devia

me levantar, mas o chão está me puxando para baixo. Devia gritar e tentar

pedir ajuda, mas minha garganta está seca e cheia de poeira. O pulso sob os

meus dedos vai ficando devagar e devagar. Ao menos se eu pudesse contar

as batidas... mas não consigo mais me lembrar dos nomes dos números. Não

consigo me lembrar...

SARAH

mais rápido ir pelo caminho do canal. É mais direto e não tem

ninguém, pelo menos não a essa hora da noite. Eu corro o tempo

inteiro, com a adrenalina inundando o meu corpo. Algumas partes

do caminho são iluminadas pelas luzes dos prédios do outro lado, mas a

maior parte é escura, então eu só consigo ver alguns metros à minha frente.

Estou em um trecho bem escuro agora, me aproximando do beco que

desemboca na avenida já pertinho de casa. Tem alguma coisa no chão logo

à frente, parece uma pilha de roupas ou algo assim. Mas logo eu percebo um

pé e alguns centímetros de pele clara entre os sapatos e a barra da calça.

Meu estômago começa a revirar. Que negócio é esse? Deve ser um

manequim velho, saído da vitrine de alguma loja falida. Que bizarro.

Eu me dou conta que parei de correr. Na verdade, eu brequei de uma

vez só. Definitivamente, eu não quero chegar perto daquilo. Isso está me

assustando de verdade.

Não seja idiota, eu digo para mim mesmo. É só um monte de plástico,

uma boneca, talvez.

Eu me obrigo a continuar andando. Mas parece tão real. Quando eu me

aproximo, consigo ver os braços e a cabeça. Uma das mãos está sobre o

queixo, escondendo uma parte do rosto. Ele está vestindo apenas uma

camiseta, então dá para ver os braços quase inteiros. O plástico que o

envolve é claro e liso, quase branco.

Meu estômago revira novamente. Eu nunca vi um manequim parado

nessa posição. Um calafrio sobe pela minha espinha. É um corpo. Eu

encontrei uma pessoa morta. Mas que merda! Dou mais um passo e chego

É

bem perto. Metade do cabelo está rapado e há uma linha de fios espetados

no topo da cabeça.

– Sarah! – o nome dela salta da minha boca e eu engasgo.

Não é ele, e sim ELA! Ela está sozinha nesse lugar escuro e frio. Não

há nenhum sinal da Mia.

Ela não pode estar morta. Seu número é 2572075. Os números não

mudam. Ou será que mudam? Seria ela a prova de que eles mudam?

Me abaixo perto dela e encosto em sua mão. Está praticamente

congelada. Eu a tiro da frente do seu rosto e a seguro entre as minhas mãos,

tentando aquecê-la, depois a levanto até a minha boca e beijo os seus dedos.

– Sarah. Sarah! – Eu a chamo sem parar. O ar sai pela minha boca e

passa pelo meio dos dedos dela parecendo fumaça por causa do frio. Eu olho

para o seu rosto – com os olhos fechados, ela parece tão jovem. Eu fico

olhando e olhando até a imagem começar a se desfazer. Meus olhos estão

cheios de lágrimas e os contornos dos seus lábios estão ficando borrados. Eu

pisco, fazendo as lágrimas correrem pelo meu rosto, para poder enxergá-la

melhor, mas sua boca continua borrada, como se tivesse uma espécie de

névoa ao redor dela.

E é mesmo uma névoa! Cacete! Eu coloco sua mão no chão com

cuidado e me inclino para frente. Então ponho os dedos na frente da sua

boca e sinto o ar quente saindo por ela. Eu tiro o casaco e o coloco por cima

do seu corpo. Apressado, eu procuro o celular no meu bolso e digito o

número da emergência. Nada acontece. Quando eu olho para a tela do

telefone, o sinal de bateria fraca está piscando e, de repente, a imagem some

e o celular desliga de uma vez. Não posso deixá-la aqui enquanto vou

procurar ajuda – ela mal está viva agora. Eu passo o braço por trás das suas

costas e a levanto para poder colocar o meu casaco nela direito. Então

coloco os braços dela dentro das mangas como se estivesse vestindo uma

criança. Depois eu a abraço forte, o mais perto de mim possível, esfregando

seus braços e suas costas, tentando passar o calor do meu corpo para o dela.

– Sarah! Sarah! Volte. Você tem que voltar para mim. Por favor!

Seus olhos ainda estão fechados e agora quem está congelando sou eu.

Eu só estou aqui há alguns minutos e já estou tremendo. Por quanto tempo

será que ela ficou aqui largada?

Eu coloco um braço esticado atrás das costas dela e o outro embaixo

das suas pernas. Levanto-a até o meu colo, ponho uma perna para frente e

começo a cambalear, tentando me manter de pé. Nós balançamos

descontroladamente por alguns segundos até eu conseguir retomar o

equilíbrio. Tenho que ficar atento, pois a água está apenas a um passo ou

dois de distância de nós. Ela é um peso morto em meus braços, com a

cabeça e os braços balançando. Eu uso toda a minha força para levantá-la

mais um pouco, de modo que sua cabeça fique apoiada no meu ombro,

então sigo caminhando o mais rápido que posso.

Alcanço o beco e logo estou na avenida. Meio correndo, meio andando,

eu sigo em frente pela calçada. As pessoas ao redor ficam olhando, mas

ninguém oferece ajuda. Pelo menos, eles também não tentam me parar.

Estão todos cuidando das suas próprias vidas. Quando eu chego à rua de

casa, o portão está aberto e a porta, fechada apenas com o trinco. Eu passo

pelo vão e entro na sala. Minha avó está lá, aflita.

– Santo Deus, Adam, o que é isso?

– Só sai da frente, vó. Eu tenho que colocá-la no sofá.

Ela se levanta e deito Sarah no sofá.

– Meu Deus do céu, olhe só para ela!

– Eu sei. Precisamos de uns cobertores.

Em poucos segundos, minha avó sobe as escadas e desce trazendo o

edredom da minha cama. Ela o enrola ao redor de Sarah, garantindo que

cada centímetro do seu corpo, fora a cabeça, fique coberto.

– Você também precisa se agasalhar – ela diz. – Espere aqui.

Ela volta com uma blusa bem grossa.

– Vou colocar a água do chá para esquentar. Você fica aqui e se senta

perto do fogo.

Faço exatamente o que ela diz. A TV está ligada, mas levo algum

tempo para reparar que a imagem que eles estão mostrando é da Grosvenor

Square. Mesmo assim, a ficha só cai quando um rosto aparece estampado na

tela – um garoto com os olhos arregalados e o rosto ensanguentado,

gritando algo para a câmera.

– Muita gente vai morrer aqui. Vão embora. Deixem Londres agora!

– Você apareceu na televisão o dia inteiro. – Minha avó me entrega

uma caneca cheia de chá quente. – Cuidado, o chá está pelando. Eu fiquei

aqui o tempo todo, assistindo você na TV, imaginando quando o veria de

novo. Aqueles filhos da mãe prenderam vocês lá o dia inteiro. Porcos!

Está tudo lá, na tela; o protesto, meu corpo sendo atingido pelo

cassetete e desabando no chão. Sei que sou eu e sei que isso tudo

aconteceu, mas assistir a essas coisas na TV da minha avó é a coisa mais

esquisita do mundo. Para começar, sou uma figura um tanto esquisita. O

rosto arrebentado, os olhos arregalados. Sem falar nas coisas que estou

dizendo – pareço um completo maluco. Coloco a caneca no chão, ao meu

lado, e inclino o tronco para frente, segurando minha cabeça com as mãos e

suspirando.

– O que foi, Adam? Está se sentindo mal? Quer alguma coisa?

– Não é nada. É só que... eu... – Não consegui expressar o que estou

sentindo com palavras. Não sei dizer como isso tudo é grande, como é uma

tarefa sem esperança tentar ajudar a salvar as pessoas, como é frustrante ser

eu mesmo, preso neste corpo, com essa cara deformada.

– Termine o seu chá. Você só bebeu metade. Logo, logo você se sentirá

melhor.

Eu alcanço a caneca no chão. Enquanto volto para o lugar, olho para

Sarah no sofá. Ela está acordada. Ao menos seus olhos estão meio abertos e

seu número, seu precioso número, está lá. Eu coloco o chá de volta, vou até

ela sem me levantar do chão, e fico ajoelhado ao seu lado.

Eu acaricio a sua testa.

– Sarah, você está em casa conosco. Eu a encontrei e a trouxe para cá.

Não tenho certeza se ela me escutou. Ela não responde nada, só olha

para o nada. É como se algo estivesse morto dentro dela.

– Sarah – eu digo, devagar –, está tudo bem agora. Você vai ficar bem,

pode confiar.

Quero que ela olhe para mim, mas ela não olha. Ao contrário, ela fecha

os olhos, mas dessa vez seus lábios é que se abrem. Eu me aproximo mais

para escutar o que ela está dizendo.

– Ela se foi – Sarah sussurra. – Eles a levaram. Mia. Ela se foi.

SARAH

emora um pouco para eu conseguir explicar. Estou entorpecida por

causa do frio e também por causa de tudo que aconteceu nas

últimas horas. É só depois de tomar um pouco de sopa instantânea

e de sentir o calor da lareira penetrar completamente no meu corpo que

consigo dizer aos dois o que houve. Adam e sua avó me escutam em

silêncio.

Assim que eu termino, Adam diz, de forma determinada: – Nós vamos

trazê-la de volta, Sarah. Pode crer que sim. Você vai recuperar sua filha.

– Eles não vão devolvê-la assim tão fácil.

– Como assim? Você é a mãe dela. E você é uma boa mãe, eu vi como

você se preocupa. Por que eles não a devolveriam para você?

– Para começar, para eles, eu sou apenas uma garota de dezesseis anos

que arrumou confusão em cada escola por onde passou e depois fugiu de

casa e foi morar com um traficante. E, como se não bastasse, ainda ataquei

um policial. Eu arranhei o rosto dele dos olhos até o queixo, com toda a

minha força. O cara ficou em pânico na hora.

– Você deve ter suas razões para ter feito tudo isso. – Val diz enquanto

acende mais um cigarro calmamente. O Adam não deve ter ideia do quanto

é sortudo por ter alguém como ela em sua vida. Ela não está me julgando,

nem dizendo o que eu devia ter feito.

– Conte a ela o resto, Sarah – Adam diz. – Conte sobre o seu pai.

Não posso. Ela pode ser uma mulher fantástica e compreensiva, mas

isso já é demais. Não a conheço o suficiente. Não para falar sobre isso. Eu só

balanço a cabeça.

D

– Você se importa se eu contar?

Eu acabo concordando e ele diz a ela. O cigarro queima sozinho

enquanto ela escuta.

– E Mia...?

– Mia é Dele – eu respondo. – Bom, Ele é o pai dela. Mas ela não é

“Dele” nem nunca vai ser. Ela é minha.

– Querida, vá até o Conselho. Conte a sua história e não pare de

repeti-la até eles a escutarem. Ela é sua filha. Ela deve estar com você. Nós

dois podemos ir junto, se você quiser. Nós vamos ajudá-la, não é mesmo,

Adam?

– É claro. Claro que sim.

– Então é isso que nós vamos fazer – ela diz, decidida, inundando o ar

ao nosso redor com fumaça. – Nós vamos até aquela porcaria de Conselho e

vamos recuperar a sua garotinha. Não vamos deixar esses filhos da mãe

vencerem mais uma vez.

Mas é claro que eles vencem. Pois, no dia seguinte, quando eu vou ao

escritório do Conselho e finalmente consigo conversar com uma assistente

social, a polícia aparece e sou levada novamente para a delegacia, acusada

de agressão contra aquele maldito policial.

O pior é que eles estão usando o meu nome verdadeiro agora. A cortina

de fumaça que eu pensava ter levantado ao redor de mim mesma e da

minha filha foi, simplesmente, assoprada para longe. Eles pegaram o casaco

que eu deixei para trás durante a minha fuga de Paddington Green, e é claro

que o meu cartão de identificação estava lá. Não dá para acreditar que eu

fui tão estúpida assim. Eu devia ter picado aquela merda e a jogado no lixo

há muito tempo. Por que eu guardei aquele cartão comigo? O que eu

achava que estava fazendo? Alguma parte de mim ainda conseguia acreditar

que eu voltaria para a vida antiga um dia?

Agora a polícia e os babacas do Departamento da Infância acham que

estão entendendo toda a minha história. Eles colocaram todas as peças do

quebra-cabeça no lugar: minha casa, a escola, o squat na Giles Street,

Mia... A não ser pelo fato de que ninguém a chama assim. É claro que

Vinny e os outros não disseram nada. Por isso eles continuam chamando-a

de Louise. Pelo menos isso me restou. O seu nome verdadeiro. Quem ela é

de verdade.

E entre todas as perguntas, o vai e vem de uma sala para outra e a

espera interminável, Mia continua ocupando os meus pensamentos – seu

rosto, sua pele macia tocando a minha, seu cheirinho de bebê, seu sorriso.

Dói muito pensar nela, mas essa é a única coisa que me mantém firme no

meio de tudo isso.

Agora que eles me pegaram, não querem mais me deixar ir embora.

Estão considerando todas as possibilidades: um lar adotivo, um centro de

detenção juvenil ou... a minha casa.

– Nós avisamos os seus pais que você foi encontrada. Eles estão a

caminho agora.

Sinto como se estivesse sendo sugada por um buraco negro.

– Não! Não! Não quero que eles venham aqui! – A mulher que me dá a

notícia fecha a cara. Ela tem uns cinquenta e poucos anos e parece que já

nasceu com essa idade.

– Eles são os seus pais. E você só tem dezesseis anos.

– Eu fugi de casa, será que não deu pra sacar? Eu fugi de perto deles.

– Você fugiu porque estava grávida.

– Não, não foi isso. Tudo bem, foi isso também, mas não do jeito que

você está pensando.

– O que foi, então? Por que você não me conta? Talvez eu possa ajudá-

la.

Não consigo. Não aqui nessa sala de interrogatório, com essa completa

desconhecida. Não dá para falar assim sobre o meu pai e sobre o que Ele me

fez. Sei que Ele cometeu um crime e que esse é o lugar aonde se vai para

denunciar crimes e que essas são as pessoas para quem eu devo denunciá-lo,

mas não consigo. É uma coisa íntima demais.

– Diga a ela, Sarah, vai ser melhor assim. – Val está sentada do outro

lado da sala e se inclina na cadeira, ansiosa para me ouvir contar tudo.

Não me sinto nada à vontade nesse lugar. Eu simplesmente me fecho

em mim mesma. A assistente social continua fazendo perguntas e

permaneço em silêncio, pensando o tempo todo que minha mãe e meu pai

estão em algum lugar, dentro da Mercedes preta dele, se aproximando cada

vez mais. É isso que aumenta a pressão dentro da minha cabeça. É isso que

finalmente me faz falar alguma coisa.

– Sei que fiz uma porção de coisas erradas – começo a dizer. – Sei que

não devia ter machucado aquele policial. Sou culpada por isso e sinto

muito, de verdade. Posso pedir desculpas para ele, cara a cara, se você

quiser. Escrevo uma carta ou qualquer outra coisa. É que eles tinham tirado

a minha filha de mim e eu estava realmente nervosa.

Estão todos escutando.

– Preciso vê-la. Preciso estar com ela. Se ela estiver com uma mãe

adotiva, talvez eu possa ir até lá também. Vocês podem me vigiar vinte e

quatro horas por dia, não me importa. Assim vocês vão ver como eu me

comporto com ela e eu vou provar que sou uma boa mãe. Consegui me virar

até agora. Vocês podem não acreditar, mas nós nos demos muito bem esse

tempo todo.

Estou implorando a eles agora. Me odeio por estar fazendo isso, por

estar rastejando aos pés dessa gente desse jeito, mas eu faço qualquer coisa

para ter Mia de volta. Qualquer coisa.

– Louise está segura agora e a segurança dela é a nossa prioridade

número um. – É o que a assistente social responde. – Você tem levado uma

vida um tanto... instável. Ela precisa de estabilidade, rotina. É claro que

enquanto você estiver sendo... ajudada por nós, se for possível mantê-la

com a família, essa vai ser a melhor solução.

– Com a família?...

– Sua mãe e seu pai. Os avós de Louise. É uma boa opção, uma que nós

discutiremos com os dois assim que eles chegarem.

– Meus pais? Você está maluca?

– É a melhor opção de que nós dispomos. Quando clientes... pais como

você estão ajustando as coisas, os avós costumam ser de grande ajuda.

– Isso só pode ser uma merda de brincadeira de mau gosto.

– É evidente que você tem um relacionamento difícil com eles, mas

eles...

Eu me levanto violentamente e a cadeira cai para trás.

– Será que a minha opinião vale alguma coisa aqui?

– Sente-se, Sarah, por favor. – Continuo de pé. – É claro que nós

vamos escutar as suas opiniões, acontece que a última palavra será do júri

da infância, aconselhado pelo Magistrado. Nós temos que pensar em Louise

acima de tudo.

– Não posso ficar aqui nem mais um segundo. Não quero ver aqueles

dois. Se vocês vão me prender, façam isso logo. Prefiro ficar em uma cela do

que nesse lugar.

– Nós não vamos prendê-la. Você vai poder pagar uma fiança pelo

ataque ao oficial McDonnell e nós vamos procurar um lugar adequado para

você ficar, uma vez que você não parece querer voltar para casa.

– Pra lá, eu não volto. Eu me mato antes de pôr os pés naquela casa de

novo. – Ela olha para mim espantada e me dou conta, tarde demais, que

esse não é exatamente o tipo de coisa que se diz a uma assistente social. –

Não é sério – eu tento me corrigir rápido –, eu não vou me matar.

– Ela pode ficar na minha casa. Eu tomo conta dela.

– Sra. Dawson, eu não estou certa que...

– Escute. Ela não vai a lugar nenhum, não vai nem pensar em fugir sem

o bebê. Ela precisa de um lugar limpo e aquecido, com comida caseira. Eu

estou acostumada com adolescentes. Já criei alguns.

– Não é esse o problema, Sra. Dawson, é o pai.

– O pai?

– O seu bisneto, Adam Dawson. O pai de Louise.

Val está pronta para cair na gargalhada agora. O rosto dela se contorce

e ela começa a dizer: – Adam? Não, ele nunca... – mas então ela olha para

mim. Estou com os olhos arregalados tentando fazer um sinal com a cabeça.

Ela relaxa os músculos do rosto e diz:

– Certo... é isso mesmo... Adam... e Sarah...

– Ele andou envolvido em certos problemas. – A mulher olha para a

tela do computador. – Problemas sérios, na verdade.

– É verdade, ele se meteu em confusão. Mas que garoto de dezesseis

anos não fez isso? Mesmo assim, ele é um bom garoto. Ele é bom para o

bebê. Você não precisa se preocupar com ele.

Acho que não deve ser fácil encontrar um lugar para adolescentes

problema como eu, já que, uma hora mais tarde, eles acabam concordando

que eu posso ficar na casa da Val e do Adam. Assino uma porção de

formulários e ela também.

No caminho para fora da delegacia, passamos por uma outra sala de

interrogatórios. A porta está meio aberta e eu dou uma olhada nas duas

pessoas do outro lado da mesa. Lá estavam os dois. Minha mãe parece

menor e mais velha do que eu me lembro, mesmo tendo se passado apenas

três meses desde que eu saí de casa. Meu pai, entretanto, continua o

mesmo. Vê-lo, ainda que por uma fração de segundo, me faz querer vomitar.

Sou obrigada a engolir com força para evitar que um mar de bile saia pela

minha boca. Ele mexe a cabeça e nossos olhares se cruzam por um segundo.

Não há nada ali, nenhuma faísca de afeição ou mesmo de ódio. Ele não

parece me reconhecer. O que será que ele vê quando olha para mim? Não

sei e também não estou nem aí. Mas a ideia dele vendo Mia e a pegando no

colo me faz virar do avesso.

– Eu preciso sair logo daqui – eu digo a Val, enquanto a puxo pelo

braço.

– Eram eles? – ela pergunta.

– Eram sim.

– Minha vontade é ir lá e arrancar a pele daquele safado, pelo que ele

fez a você. Você tem que contar aos outros. Eles precisam saber disso.

– Eu não consigo, Val. Não consigo. Só vamos embora daqui, tudo

bem? Por favor.

Do lado de fora, sou obrigada a parar para vomitar.

– Isso não é certo – Val continua dizendo. – Isso não pode continuar

assim. Não é justo.

Não consigo dizer nada, nem depois de limpar o rosto um pouco.

Seguro no braço dela, enquanto nós caminhamos na direção do ponto de

ônibus. Gosto do fato de ela estar tão puta da vida – é bom saber que tem

alguém do meu lado. É bom saber que essa pessoa é a Val.

Sentada ao meu lado, no ônibus, ela tem tato o bastante para não falar

nada sobre aquela história do Adam, mas eu não sou tão controlada assim.

Essa mulher tem algo de especial. Ela entende tudo tão bem.

– Val – eu digo. – Muito obrigada.

– Por quê?

– Por me deixar ficar na sua casa. Por ficar firme ao meu lado. Por não

dizer nada sobre o Adam. Eles tinham encontrado um desenho dele

no squat. Dizer que ele era o pai da Mia foi a primeira coisa em que

consegui pensar.

– Tudo bem. Ele daria mesmo um bom pai. Ele vai ser um bom marido

para alguém um dia, pode acreditar. Não tem como dar errado com um

Dawson. Eles podem ser meio selvagens e desmiolados às vezes, como o meu

Cyril e o Terry, mas eles são firmes por dentro. Homens de fibra. – Ela olha

direto para frente, suas mãos apertando as alças da bolsa. É claro que ela

ficaria muito mais feliz se estivesse segurando um cigarro.

– Val?

– Diga, querida.

– Ele sabe, não sabe? Adam sabe o seu número e o meu, e o da Mia

também.

Ela suspira.

– É, ele sabe sim, coitado.

– Não seria melhor eu saber também?

Ela olha para cima agora.

– Não, Sarah. Que bem isso poderia fazer? O melhor é poder viver a sua

vida como você bem entender, aceitando o que cada dia tem a oferecer.

Ela tem razão, é claro, mas enquanto o ônibus segue em frente e não

posso evitar pensar nesse assunto: o número 112027. Adam. Val. Eu. Mia.

Algum de nós vai ver o dia seguinte nascer?

ADAM

ocê conseguiu, Nelson. Você é o cara! Você conseguiu!

– Você também, Adam; você apareceu na TV e nos

jornais. Foram mais de quarenta milhões de acessos no

YouTube.

Quarenta milhões? Isso é gente demais.

– É isso aí, cara. A gente está conseguindo!

– Eu tenho que desligar agora, Adam. Eu só queria ver como você está

e dizer adeus...

– Onde você está, Nelson? Você está seguro aí?

– Eu não posso dizer. Também não posso ficar falando muito pelo

telefone. Eu acho que eles devem ter grampeado essa linha.

– Mas você está fora de Londres?

– Ainda não.

– Nelson, você tem que dar o fora desta cidade. E tem que ser logo.

– É, eu vou. Mas você também tem que dar o fora, não é mesmo?

– Com certeza. Só falta resolver algumas coisas. Mas nós vamos sair

daqui o quanto antes. E Nelson...

– Pode falar.

– Valeu mesmo, cara.

– Tudo bem. Nós fizemos uma coisa boa. Nós...

De repente, a linha cai. Eu tento ligar de novo várias vezes, mas não

escuto nada do outro lado, nem mesmo a caixa postal.

– Era o seu amigo? – minha avó pergunta.

– Era sim, mas a ligação caiu.

– V

– Acontece, não é mesmo?

– É, eu acho que sim. Mas ele disse que estava sendo vigiado, que

deviam estar escutando a nossa conversa. Você acha que eles podem ter

pegado ele?

– Não, isso é só o maldito sistema de telefonia. Não faça tempestade em

copo d‟água, querido.

– Não queria que algo de ruim acontecesse com ele. Ele entrou nessa

por minha causa.

– Você não pode se preocupar com ele agora. Nós temos coisas mais

urgentes e mais próximas para resolver.

Ela aponta com a cabeça para Sarah. Ela está sentada feito um zumbi

no sofá, com os olhos presos na TV, embora não esteja prestando a menor

atenção. Ela está desse jeito desde que as duas voltaram da delegacia.

Minha avó tem tentado animá-la um pouco e eu também, mas ela está

muito para baixo, mal fala alguma coisa.

– Vamos trazê-la de volta, Sarah. Pode acreditar. Se eles não a

devolverem, pelo menos você vai visitá-la e então nós podemos... apanhá-la

e fugir.

Minha avó agita as mãos freneticamente, tentando me fazer calar a

boca. Sarah olha para mim.

– Eles não vão nem me deixar vê-la – ela diz, com desprezo na voz. –

Não vão deixar por um bom tempo. Talvez, para sempre. E não sei ao certo

onde ela está.

– Nós podemos pensar em alguma coisa...

Então ela me lança um olhar que diz “Cala essa boca” tão claramente

como se ela tivesse gritado essas palavras na minha cara. E é isso mesmo que

eu faço. Sento em uma cadeira e finjo estar vendo TV. Sarah deixou em um

canal de notícias que está mostrando imagens de terminais de ônibus,

estações de trem e rodoviárias por toda a cidade. Todos superlotados. Há

uma informação não confirmada de que alguém caiu nos trilhos do metrô

em uma estação. O pânico está se espalhando por Londres.

– Não queria que fosse assim. Não queria que as pessoas se

machucassem, e e sim que se salvassem..

Agora eles estão mostrando o lado de fora da estação de metrô de

King‟s Cross. Um corpo está sendo carregado em uma maca, com o rosto

coberto.

– Meu Deus do céu! Isso não está certo. Não está certo. Por que tem

que ser assim?

– Não é culpa sua, Adam – minha avó diz. – Você não pode se

responsabilizar por essas coisas.

O nervosismo me fez levantar da cadeira antes mesmo que eu pudesse

perceber.

– Mas é claro que é minha culpa! Eu fiz isso. Eu fiz toda essa gente

resolver sair da cidade ao mesmo tempo.

– Cada um tem que saber cuidar da própria vida. Você não pode fazer

nada se algumas pessoas resolveram sair por aí fazendo besteira.

Dou dois passos e estou bem na frente da minha avó.

– Cala a boca, vó! Não diz mais nada, beleza? E se os outros estiverem

certos e tudo isso não passar de uma confusão da minha cabeça? E se eu for

um doente, um maluco? E se nada acontecer no dia primeiro? Agora as

pessoas estão se matando por nada, tentando fugir de algo que nunca vai

chegar.

– Fique calmo, querido. Fique calmo.

Tudo o que ela diz só consegue deixar as coisas ainda piores. Eu achava

que ela entendia, mas ela não entende. Se entendesse, não me diria para

ficar calmo.

– Não adianta nada dizer para eu me acalmar! Isso não sai da minha

cabeça, vó. Está dentro de mim. Toda essa história. Eu pensei que estava

fazendo uma coisa boa, mas parece que acabei causando o mal. Não quero

que seja assim! Não quero que as pessoas morram! Por que elas estão

morrendo? Por que as pessoas estão morrendo, vó?

Ela está se afastando, mas eu não consigo parar de gritar. Tem raiva

demais guardada dentro de mim. É como se tivessem aberto uma tampa que

liberou tudo.

– Estou matando gente, vó. Essa pessoa que morreu no metrô só

morreu por culpa minha. Não era a minha intenção. Eu...

– Adam, olha só pra isso! – diz Sarah. Sua voz interrompe o meu acesso

de fúria. – Olha só quem vai falar agora.

A imagem da estação de King‟s Cross dá lugar ao Primeiro Ministro em

pessoa.

– Meu Deus do céu, ele não – minha avó resmunga.

– Shh...

– Ele não fez nada de bom da primeira vez que foi eleito. Não consigo

entender por que diabos as pessoas votaram de novo nesse babaca metido a

certinho.

– Vó, cala a boca. Quero escutar.

Eu sento no braço do sofá em que Sarah está.

– Povo da Grã-Bretanha, já me acostumei a conversar com vocês no

ano-novo para refletir sobre o que se passou nos últimos doze meses e

também para olhar adiante, para o ano que se inicia. Desta vez, contudo,

estamos conversando um pouco mais cedo, pois preciso lhes pedir que

tenham calma. – O rosto dele está vermelho, sua careca brilha com as luzes

da TV. – Eu sei que todos ouviram rumores de que Londres está

enfrentando uma crise. Quero garantir a vocês que isso não é verdade.

– Olhem só as mãos dele. Ele não consegue parar de mexer. É claro que

está mentindo.

– Cala essa boca, vó!

– Esse é só um boato criado por pessoas mal-intencionadas que querem

apenas espalhar o terror pela nação. Pois essas pessoas não vão conseguir

atingir seus objetivos. Eu posso assegurar a todos vocês que vamos encontrar

os responsáveis por isso e que eles vão sentir os rigores da justiça britânica.

Nós temos o mais avançado sistema de monitoramento do mundo e o mais

sofisticado serviço de inteligência. Para garantir a integridade dos cidadãos

de bem, eu acabo de elevar o nível de segurança do país para vermelho, o

que significa que todo pessoal que trabalha no governo está totalmente

engajado em manter a ordem e a segurança. Insisto que todos vocês cuidem

dos seus assuntos cotidianos tranquilamente. Londres é um lugar seguro.

Ninguém precisa abandonar a nossa capital. Estarei aqui hoje, no meu

escritório, trabalhando normalmente. E amanhã também. A melhor coisa

que nós podemos fazer, por nós mesmos, pelas nossas famílias e pelo nosso

país é manter a calma e seguir em frente. Muito obrigado.

O canal volta para a programação normal. Minha avó alcança o

controle remoto e coloca a TV no mudo.

– Para ele, deve estar tudo bem mesmo – ela resmunga. – Na certa deve

haver um abrigo subterrâneo embaixo da residência oficial.

– Será que alguém vai levar a sério o que ele disse?

– Sei lá. Se alguém votou nesse idiota, então é possível que também

escute o que ele está dizendo, por mais safado e mentiroso que ele seja.

Estou agitado. Um milhão de coisas passando pela minha cabeça.

– Agora eu não tenho mais certeza se quero que as pessoas vão embora

ou fiquem na cidade.

– A gente quer que elas deixem a cidade, não é isso? Você viu tudo,

Adam. Você e a Sarah. Vocês sabem o que vai acontecer. Vocês não são

dementes. Vocês têm um dom que dá a vocês a chance única de fazer

diferença. E de qualquer maneira, você não pode fazer mais nada a essa

altura, querido. Você rolou a bola e agora ela está seguindo o seu próprio

destino. Está fora do seu controle.

Sarah se arruma no sofá.

– Eles vão encontrar e punir os responsáveis – ela repete as palavras do

Primeiro Ministro. – Ele estava falando de nós, não estava?

– Nós e o Nelson.

– O que vai acontecer agora? O que eles vão fazer conosco? – A

pergunta dela fica no ar e, de repente, alguém bate na porta. Sarah engasga.

Minha avó começa a rezar e eu fecho os olhos. O que vem agora? Como eu

queria que tudo isso simplesmente desaparecesse.

– Abram a porta! É a polícia!

– Merda! É melhor atender – minha avó diz com desânimo na voz. –

Adam, é melhor você abrir a porta, antes que eles a derrubem.

Me levanto, fecho a corrente de segurança da porta e a abro o bastante

para ver o que está acontecendo do lado de fora. Tem meia dúzia de

policiais uniformizados no jardim.

– Adam Marsh? – um deles me pergunta.

– Sou eu.

– Abra a porta, por favor.

– O que foi?

– Abra, por favor, senhor.

Eu encosto a porta para abrir a corrente. Estou prestes a abri-la

novamente quando eles a empurram para cima de mim e uma mão agarra o

meu pulso e coloca uma algema nele.

– Mas que porra...?

– Adam Marsh, eu tenho um mandado de prisão contra você, pelo

assassinato de Júnior Driscoll em seis de dezembro de 2026.

SARAH

les o levaram embora. Simples assim. Val foi junto e eu fiquei aqui

sozinha. Já era ruim o suficiente ficar aqui sem Mia, mas pelo menos

com Adam e Val ao meu lado. Ficar sem os dois de uma vez só, é dez

vezes pior. Eu fico sentada, sem saber direito o que fazer, e então me arrasto

até a cozinha para procurar alguma coisa para comer, mas não há nada nos

armários nem na geladeira. Esvazio o cinzeiro da Val no lixo, depois o lavo e

o seco com algumas toalhas de papel.

De volta à sala, a TV passa sempre a mesma coisa – gente querendo sair

da cidade, gente criticando o governo, o governo cancelando as férias de

todos os policiais e os mandando para as ruas, o exército de prontidão. A

história do Adam não tem tanta prioridade assim. A coisa toda ficou maior

do que ele. Mesmo assim, eles mostram as imagens dele sendo preso e

caminhando pelo jardim da frente da casa da Val, sendo observado por um

exército de gnomos silenciosos.

Deixo a televisão ligada e subo as escadas. Acabo indo parar no quarto

do Adam. Eu me sinto tão inútil. Não sei onde Mia está. Não sei o que está

acontecendo com ela ou com Adam. Fico andando de um lado para outro,

dando batidinhas na parede e depois a soco com força, gritando.

Eu não sei ao certo quanto tempo fiquei desse jeito. Perdi

completamente a cabeça. Toda essa raiva me deixa assustada, mas uma vez

tendo começado, eu não sei mais como parar. De repente, eu pego a cadeira

embaixo da janela e a arremesso. O encosto se quebra quando ela acerta a

parede. Eu continuo andando, batendo e gritando, até a adrenalina abaixar

e eu perceber como isso tudo é patético, como eu sou patética.

E

Desabo no chão perto da cama do Adam e me apoio em sua mesinha de

cabeceira. Não é uma posição nada confortável, mas eu estou exausta

demais para me mover. Minha garganta está doendo por causa de toda a

gritaria. Como sou idiota! Que bem isso tudo me trouxe? Que diferença esse

ataque histérico fez? Isso não me ajudou a me aproximar nem um

centímetro sequer da minha filha. Ela continua lá fora, em algum lugar, sem

mim. Será que ela sente a minha falta no fim das contas? Será que ela

percebeu que não estou mais lá?

Procuro ao redor por algo, qualquer coisa que me ajude a não pensar na

miséria de ser eu mesma. É um quarto cheio de coisas de meninos – pôsteres

na parede, pilhas de roupas velhas, tênis jogados pelo chão. Tem alguma

coisa no chão, embaixo da cama, tipo um livro ou algo assim. Uma revista

pornô, na certa – não é isso que os garotos guardam embaixo da cama?

Estico o braço e puxo o objeto misterioso para perto de mim. Não é um livro

nem uma revista – é um caderno. O mesmo caderno que eu vi Adam

carregando no primeiro dia na escola.

Eu o pego e o coloco na palma de uma das minhas mãos, tentando

abanar a poeira de cima da capa com a outra.

Sei que é dele.

Sei que é pessoal.

Eu não devia olhar.

Mas, mesmo assim, eu abro a capa.

Suas anotações são uma bagunça. As palavras estão todas coladas umas

nas outras e ele sempre escreve até o limite da página, diminuindo o

tamanho da letra quanto mais perto está do final. As linhas horizontais já

vieram impressas da fábrica, mas ele também fez linhas verticais, dividindo

as páginas em colunas, em que anotou nomes, datas, descrições e outras

datas. São páginas e mais páginas só disso.

Uma das notas chama a minha atenção.

– Júnior. 04/09/2026, na escola. Violência; uma faca; cheiro de sangue;

ânsia de vômito. 6/12/2026.

Júnior. Adam foi preso por causa da morte dele. Ele descreveu sua

morte nesse caderno no dia quatro de setembro, três meses antes do crime

acontecer.

Isso é dinamite pura. Honestamente, eu não sei se o Adam matou esse

garoto ou não, mas isso poderia incriminá-lo facilmente.

Eu viro a página e tomo um susto quando vejo o nome na coluna da

esquerda.

– Sarah.

ADAM

ão dá para acreditar. Faltam só dois dias e estou enjaulado. No

fundo, eu já sabia que eles iam me acusar pela morte do Júnior. E

como eles não fariam isso? Eu tenho a data exata anotada – no

computador da escola, no laptop do meu pai e no meu caderno. Está lá,

para quem quiser ver. Não tenho como negar. E agora, como vou explicar

que, embora eu soubesse o que ia acontecer, eu não planejei nada? Quem

vai acreditar em mim?

Eu sabia que eles iam me pegar, eu só não esperava que fosse tão cedo.

Eu achava que agora estaria com a minha avó e com a Sarah, ajudando as

duas, tentando encontrar Mia, mantendo-nos em segurança. É como se eu

tivesse decepcionado as duas. Não estou mais lá para tomar conta delas.

Os policiais disseram que eu vou ser apresentado ao tribunal amanhã e

que, como se eu já não soubesse, os juízes vão decidir por me manter preso

até a data do julgamento. Só Deus sabe quanto tempo eu vou ter que

esperar até esse dia chegar.

E os homens de terno estão de volta. Logo que eu fui trazido para cá, os

dois apareceram na sala de interrogatório – o velhote barrigudo e o sujeito

de cabelo ruivo.

– Aparecer daquele jeito na Grosvenor Square não foi muito inteligente

da sua parte – o gorducho fala logo de cara. Você viu bem o pânico que

acabou criando. Você e os seus „amigos‟, na verdade. Nós já sabemos quem

são eles: Sarah Halligan, Val Dawson e Nelson Pickard. Sarah e a sua avó

nós sabemos onde estão.

Meu estômago começa a revirar e o pânico vai crescendo dentro de

N

mim.

– Mas quanto ao Nelson, onde ele está, Adam? Onde ele se escondeu?

Eu só balanço a cabeça.

– Você não sabe ou você não quer nos dizer? Você está bastante

encrencado, não é? Quem sabe nós não possamos... ajudá-lo.

Um último raio de esperança. Talvez isso me ajude a voltar para casa.

– Vocês vão me tirar daqui?

– Isso vai ser impossível. Você está sendo acusado por assassinato,

Adam. Nem mesmo nós podemos tirá-lo daqui. Mas, pelo menos, nós

podemos fazer as coisas ficarem mais fáceis para você, quem sabe transferi-lo

para um hospital. Com essa coisa de ouvir vozes, ver números, sem falar no

seu histórico familiar, o caso da sua mãe e tudo mais... Nós podemos

conseguir para você uma pena um pouco mais tranquila de se enfrentar.

Olho para o lado.

– E você só precisa nos dizer onde o Nelson está. Nada mais.

Eu tenho nojo do que eles estão me dizendo e estou com medo do que

pode acontecer ao Nelson, afinal, fui eu quem o envolveu nessa história.

Olho nos olhos do gorducho à minha frente.

– Não vou dizer nada. Nelson é um herói. Um herói de verdade. Ele

vale mais do que uns dez de vocês juntos. Ele conseguiu fazer as pessoas

escutarem, as fez sair daqui. Vocês não fizeram nada. Vocês sabiam sobre o

que está para acontecer, mas não fizeram nada. Não vou contar porcaria

nenhuma, nem se vocês me torturarem.

Ele responde com uma risada.

– A gente não faz essas coisas. Não neste país. – Ele para um segundo. –

O que é uma pena.

Os dois babacas trocam sorrisos. Quer dizer que é essa a ideia que eles

têm do que é fazer uma piada? Eu queria mesmo arrancar esses sorrisos

idiotas dos rostos deles. Queria que eles sumissem daqui de uma vez.

– Não entendo por que vocês estão perdendo tempo aqui comigo – eu

digo, olhando os dois nos olhos, primeiro um depois do outro. – Vocês

deviam estar nas estradas, como todo mundo. Vocês já não têm mais tanto

tempo sobrando.

O mais velho fecha a cara.

– Isso está soando como uma ameaça.

– Eu não estou ameaçando ninguém, cara. Só digo o que vejo.

Ele arrasta a cadeira para trás e caminha até a porta.

– Leve esse garoto daqui – ele diz para o policial do lado de fora. – Leve

ele logo.

SARAH

al chega em casa pouco depois da meia-noite. Ela está visivelmente

exausta, com duas olheiras enormes e sem nenhuma expressão no

rosto.

– Ele ficou detido. Disseram que vão levá-lo para um centro de jovens

infratores a vários quilômetros daqui. Só Deus sabe como eu vou fazer para

chegar até lá.

Eu a ajudo a tirar e pendurar o casaco e coloco uma chaleira no fogo. O

caderno está em cima da mesa. Ela nem percebe, só o que a preocupa agora

é acender o cigarro que está em sua boca. Seu isqueiro está praticamente

sem gás e ela tenta fazê-lo acender um milhão de vezes, com mais e mais

força.

– Por favor – ela resmunga com o cigarro pendurado no canto da boca.

– Acende logo, filho da mãe. Por que você não acende?

– Vi outro isqueiro em algum lugar... Aqui! – Eu o pego de cima do

micro-ondas, acendo a chama e o seguro na ponta do cigarro dela. Ela está

segurando o velho com tanta força, que mais parece que quer esmagá-lo. Eu

o tiro delicadamente da sua mão e o coloco sobre a mesa, ao lado do

caderno do Adam. É só então que ela o vê.

– Onde você encontrou isso?

– Encontrei por acaso, embaixo da cama dele. Eu não estava

procurando nada. De repente, algo lá embaixo chamou a minha atenção, e

era esse caderno.

– Você sabe o que é isso?

Aqueles olhos enormes estão tentando me fazer falar, com cuidado.

V

– Sei sim.

– Você leu?

Não consigo mentir. Ela está vendo dentro de mim.

– Um pouco. – O bastante. Demais. Meu número e o da Mia. – E

você, já leu?

Ela balança a cabeça.

– Não. Eu não quero ler. Bom, eu quero, mas não vou.

Eu sei exatamente o que ela quer dizer.

– Sarah – ela diz –, deixe esse negócio para lá.

– O quê?

– Nós temos que esquecer esse caderno com o que está escrito nele.

Adam já tem problemas demais com as coisas do jeito que estão. Não vai

ajudar nada se eles encontrarem isso. Aqui... – Ela pega o isqueiro novo e o

segura na minha frente. Ela quer que eu queime o caderno.

– Mas é do Adam. É particular.

– Tem alguma coisa aí sobre o tal de Júnior?

Violência; uma faca; cheiro de sangue; ânsia de vômito. 6/12/2026.

– Tem.

– Então é melhor você ir em frente. Queime logo isso, Sarah. Eu sei que

ele não fez nada de errado. Ele disse que não fez e acreditei. Acho que eles

já encontraram algo no computador dele, mas isso aí vai mandá-lo direto

para a cadeia. Isso poderia condená-lo à morte. A pena de morte é aplicada

a partir dos dezesseis. Eles podem matá-lo, Sarah. O meu garoto. O meu

neto querido.

Pego o isqueiro da mão dela e olho em volta. A lata de lixo é de

plástico, então não é uma boa ideia usá-la. Não posso sair por causa dos

repórteres esperando do lado de fora. Não estou nem um pouco a fim de

chamar atenção, nem de ser pega queimando provas. Vai ter que ser na pia

mesmo.

Eu seguro o caderno com uma das mãos e, com a outra, coloco o

isqueiro em baixo dele, concentrando a chama no canto. Não demora muito

para ele começar a pegar fogo. Eu o seguro por tanto tempo quanto consigo,

mas quando as chamas começam a atingir a ponta dos meus dedos, eu deixo

o caderno cair dentro da pia. Eu e Val ficamos ali, observando as folhas se

curvarem com o calor, até sobrar apenas um punhado de cinzas. Depois eu

as junto com as mãos e jogo tudo no lixo.

– Pronto – ela diz. – Obrigada, Sarah.

Coloco as mãos embaixo da torneira e as esfrego bem, tentando tirar

delas os restos de cinzas grudados na minha pele. Se pelo menos eu pudesse

me livrar do que eu li naquele caderno tão fácil assim. Mas está tudo na

minha cabeça agora, assim como isso tudo esteve na cabeça do Adam

durante todo esse tempo – sentenças de morte, números, o meu próprio

número e o da Mia também.

1/1/2027

Meu... Deus.

ADAM

a parte da frente do tribunal há três pessoas com expressões sérias,

sentadas atrás de uma espécie de mesa em uma plataforma elevada

– dois homens e uma mulher. A mulher está no meio e, pelo que

parece, é ela quem está no comando. Ela veste um casaco vermelho e a

armação dos seus óculos parece o olhar do diabo em pessoa.

Em frente aos juízes há algumas mesas e no fundo da sala, uma divisória

e algumas fileiras de cadeiras atrás dela. Tem um cara com um caderno

sentado ali e também minha avó e a Sarah.

Não estava esperando encontrá-las aqui. Nunca passou pela minha

cabeça que elas pudessem aparecer.

Não quero que elas me vejam desse jeito.

Não consigo nem olhar para elas.

Minha avó levanta a mão e começa a agitá-la, mas viro para o outro

lado e passo direto.

Eles me levam até uma cadeira ao lado da minha defensora. Ela sorri

para mim enquanto eu me sento e dá uma batidinha no meu braço.

– Tudo certo? – ela pergunta.

Não consigo responder. Me sinto entorpecido. Não dá para acreditar

que isso está acontecendo comigo.

Então a juíza diz: – Tudo bem, podemos começar – e um sujeito usando

um terno gasto levanta e começa a me fazer perguntas.

– Nome? Endereço?

Eu respondo em voz baixa e em seguida eles leem a acusação.

Assassinato.

N

Eles falam mais alguma coisa, mas eu não sei direito do que se trata. –

Ordem de prisão... aguardar o julgamento... audiência preliminar...

Todos então se levantam, os guardas voltam e é hora de sair de novo. E

agora? O que está acontecendo?

Minha advogada se inclina na minha direção. – Nos vemos em

Sydenham. Amanhã ou depois, no máximo. Lá nós vamos poder conversar

com calma e planejar a sua defesa.

– Sydenham? Onde fica isso? O que está acontecendo?

– É uma instituição para adolescentes infratores – ela explica. – Você

vai ficar lá até o julgamento. Tente ficar calmo, Adam. Não faça nada

precipitado. Vejo você amanhã.

Minha avó se levanta e fica parada na frente da divisória enquanto sou

levado. O guarda entra na frente dela, me empurra para frente e eu quase

tropeço.

– Adam... Ela me chama, mas não há mais tempo. Sou levado para fora

e depois para a cela. Os guardas tiram minhas algemas, batem a porta e

escuto os seus passos ecoando no corredor.

– O que está acontecendo? O que está acontecendo comigo?

Bato nas grades. Eles disseram que eu seria levado para outro lugar, mas

depois me trouxeram de volta para cá.

Os passos param.

– Pode ficar calminho aí, moleque. Você vai ser transferido quando a

van estiver pronta. Está um caos em Londres hoje. É melhor você ficar aí

sentado e em silêncio.

Como eu posso ficar calmo? O tempo está acabando. Sinto os segundos

indo embora, uma contagem regressiva na minha cabeça. O relógio no

tribunal estava marcando onze e meia. Pouco mais de vinte e quatro horas

para o ano-novo. O que será que minha avó e a Sarah estão fazendo agora?

E o que eu vou fazer aqui, enfiado nesta merda de cela?

SARAH

o último dia do ano. Val e eu passamos a manhã no fórum e a tarde

no telefone. Estou ligando para o Departamento da Infância,

tentando descobrir onde está Mia. Val está ligando para a polícia,

para a advogada do Adam e para todo mundo em quem ela consegue

pensar. Para nós duas, é como falar com as paredes. Só o que nos dizem é

que há procedimentos a seguir e que procedimentos como esses levam

tempo.

Eles me dizem que agendarão uma entrevista comigo “a partir da

próxima semana”. Amanhã é feriado, então eles só estarão de plantão para

atender emergências.

– Mas o meu caso é uma emergência.

– Não, senhora. A sua filha está bem. Há pessoas cuidando dela. Depois

do feriado, nós entraremos em contato para marcar uma entrevista. Ela

provavelmente será a primeira de uma série. Nós precisamos conhecer

exatamente quem você é, as suas atuais condições de vida, a sua experiência

como mãe. Para ser realista, uma reunião com o juiz só vai acontecer em

fevereiro e a decisão dele deve sair algum tempo depois disso.

– Algum tempo? Eu preciso ver a minha filha agora. Eu preciso vê-la

amanhã. Não dá pra esperar!

– Sinto muito, mas é assim que o nosso sistema funciona.

– Mas eu não posso nem vê-la? Eu só quero encontrar com ela, ver

como ela está. Não importa se mais alguém estiver junto.

– Depois da sua primeira entrevista, nós vamos poder considerar a

possibilidade de você visitá-la. Até lá, você terá que ser paciente.

É

– Pelo menos, me diga onde ela está.

– Ela está bem. É isso o que importa.

– Por favor.

– Sua filha está em segurança, você pode ficar tranquila. Nós

entraremos em contato depois do feriado. Boa tarde e feliz ano-novo.

E o telefone fica mudo. Isso é tudo. Dispensada mais uma vez. Só me

resta “ficar tranquila”. Ficar aqui parada por uns dias, esperando. Ficar

parada enquanto o mundo desaba ao nosso redor. Ficar parada enquanto

Londres é reduzida a pó. Olho sem esperanças pela janela da cozinha. Já

está ficando escuro. As janelas dos prédios ao nosso redor estão iluminadas.

Cada luz quer dizer que tem alguém em casa, mas há menos luzes acesas do

que seria de se esperar. Parece que muita gente já saiu da cidade.

Val também não teve nenhum sucesso na tentativa de se encontrar

com o Adam ou de tirá-lo da instituição para onde eles iam mandá-lo. Fico

parada na porta da cozinha escutando enquanto ela fala ao telefone. Dá

para perceber que as coisas não estão indo bem, o que se confirma quando

ela desliga o aparelho e solta uma enxurrada de xingamentos e palavrões

que a gente não espera ouvir de uma senhora como ela.

– Eles não querem nem me deixar vê-lo, Sarah. Disseram que vou ter

que esperar duas semanas. O Adam é só um garoto. Ele vai enlouquecer

naquele lugar. Conheço o meu neto. Ele deve estar se mordendo de

preocupação com você e Mia e comigo também. Sabe-se lá o que ele pode

acabar fazendo se ficar nervoso com toda essa situação.

– E o que nós podemos fazer?

– Eu não tenho nenhuma ideia, querida. Nenhuma.

Esquentamos algo para comer, mas nenhuma das duas come mais que

duas ou três garfadas. Sentamos na sala e ficamos olhando para a TV

enquanto ela passa as últimas notícias, depois uma retrospectiva do ano que

está terminando e, enfim, um especial da virada de ano, gravado há várias

semanas, em algum estúdio com uma porção de relógios no fundo.

– É claro! Só agora me lembrei de que hoje é véspera de ano-novo,

querida. Nesse mesmo dia, no ano passado, eu estava sozinha...

– Eu estava em casa. Quer dizer, na casa dos meus pais.

– Você quer beber alguma coisa? Eu acho que vou servir um pouco de

vinho.

– Na verdade, eu não bebo.

– Então só coloco um gole.

Ela vai até a cozinha e volta um minuto depois, com duas taças com um

líquido denso e escuro dentro de dada uma e uma garrafa debaixo do braço.

– Um gole de xerez – ela diz, me passando um dos copos.

– Obrigada. Eu dou uma cheirada. Só o vapor desse negócio é o

bastante para deixar o meu nariz irritado. Fico segurando a taça sem a

menor intenção de beber. Val não perde nenhum segundo e praticamente

vira tudo de uma vez.

– A gente não devia se preparar? – eu digo. – Para amanhã?

– E o que você acha que vai acontecer? Um terremoto? Uma bomba?

Talvez nós devêssemos ir para alguma estação do metrô. Foi isso que as

pessoas fizeram na Segunda Guerra Mundial.

– Será que a gente faz isso então? Vamos acampar em uma estação?

– Não sei. Acho que não ia ser tão bom assim. É meio claustrofóbico lá

dentro. E se nós não conseguirmos sair de novo? Eu vou apostar as minhas

fichas aqui mesmo. Vou me esconder embaixo da mesa da cozinha ou algo

assim. E você, o que quer fazer?

Vou apostar minhas fichas... Eu vi o número dela no caderno do

Adam. E vi o meu também. Vai dar tudo certo para nós duas. Não importa

o lugar onde estivermos quando acontecer – nós vamos sobreviver.

Já o caso da Mia é diferente. Ela só tem mais algumas horas. Minha

filha. Meu bebê.

– Tenho que encontrar Mia.

Ela serve mais um copo de xerez para si mesma, olha para mim sem a

menor surpresa e coloca o copo na mesa.

– Andei pensando sobre isso – ela diz. – Acho que você sabe onde ela

está.

– Como assim?

– Está no seu pesadelo, na sua visão. Você a viu várias e várias vezes.

Deve haver uma pista de onde vocês estão. Me conte mais sobre o sonho.

– É só o fogo e uma construção desabando ao nosso redor. Nós estamos

presos. Adam está lá. Ele toma Mia de mim e a leva para o fogo.

– Isso é o que acontece, mas onde vocês estão? Pense, Sarah. Pense.

Está lá.

Ela está olhando para mim, tentando me ajudar a lembrar. Olho nos

seus olhos e eles me fazem mergulhar em mim mesma.

– Pense, Sarah. Concentre-se. Feche os olhos agora. O que você vê?

ADAM

impossível sair daqui. Não dá para, simplesmente, atravessar a

janela. Não dá para atravessar as paredes e as grades. Minha única

chance vai ser quando eles me transferirem.

Quando eles me trouxeram, eu estava algemado em uma van com

vários outros garotos. Vai ser difícil derrubar um guarda e fugir com as mãos

algemadas. Será que os outros não ajudariam? A melhor hora é quando eles

forem me enfiar na van, no caminho da cela até lá. Eu fico andando de um

lado para o outro, pensando em cotovelos, joelhos e pés e no estrago que eu

poderia fazer usando os meus. Se eu for levado para Sydenham, vou me

ferrar. Vou passar o ano-novo atrás das grades. Não posso deixar isso

acontecer. Não posso terminar preso em uma cela. Sem ver, sem ouvir e

sem saber o que está acontecendo. Talvez meu destino seja ser esmagado

pelas paredes. Meu leito de morte vai ser uma merda de prisão. Isso não vai

acontecer. Não vou deixar.

Eles tiraram o meu relógio e o celular quando me prenderam, então eu

não tenho ideia de quanto tempo tive que esperar até virem me buscar.

Acho que umas dez, doze horas, já que nesse tempo me trouxeram duas

refeições – se é que é possível chamá-las assim – e, além disso, a minúscula

janela da minha cela já está escura.

Só que não é como eu esperava. Dessa vez eu sou algemado a um

policial. Um gordão imbecil com um tremendo de um bigode. Com mais

quatro policiais nos acompanhando – dois à nossa frente e dois atrás – antes

que eu me desse conta, nós atravessamos o pátio e já estávamos trancados

na van. Sem perder tempo, o motorista dá a partida no motor e nos põe em

É

movimento.

Que maldição! Perdi a chance. Que diabos vou fazer agora?

– Que horas são, amigo? – eu pergunto ao bigodudo.

– Quinze pra meia-noite.

– Merda!

– Qual é o problema? Vai perder alguma festa? Você e eu também. É a

merda da véspera de ano-novo e os filhos da mãe resolvem cancelar todas as

licenças.

– E por que eles fizeram isso?

– Onde você estava, garoto? Escondido em uma caverna? A cidade

inteira pirou. Uma multidão de gente está entupindo as estradas para sair da

cidade e quem ficou está tratando a coisa toda como se fosse a virada para o

ano 2000. Tiveram que montar um hospital de campanha na Trafalgar

Square para lidar com tantos bêbados. Meu Deus, as pessoas desta cidade

são insanas.

– Eu bem que queria me juntar a elas. É sério, cara, tenho que sair

daqui.

Ele olha para mim, desconfiado, e eu vejo o seu número. Primeiro de

janeiro. Estou algemado com um sujeito que vai morrer nas próximas vinte

e quatro horas. O estranho é que eu não vejo mais nada. Seu número está

vazio. Nenhuma sensação, nenhum flash.

– Não comece com isso – ele diz.

– É muito importante. Preciso encontrar a minha família.

Ele balança a cabeça.

– Hoje não, garoto. Esta noite você vai para Sydenham e ponto final.

Nós estamos sobre o rio agora, chegaremos lá em quinze minutos, no

máximo. Não tem a menor chance de você sair daqui.

– Eles não param para nada?

– Nada. Sem cigarro, sem banheiro, direto até o destino final.

– E se eu acertasse você?

Ele dá uma fungada.

– Primeiro, eu bateria em você de volta tão forte que você não ia nem

conseguir entender o que aconteceu. Nada pessoal, eu sou treinado,

entende? Segundo, tem uma câmera ali. O pessoal na frente consegue ver

tudo o que está acontecendo aqui. Basta você pensar em aprontar qualquer

coisa para eles ligarem a sirene e pisarem fundo até a delegacia mais

próxima e aí você vai tomar a surra da sua vida. – Mas eles teriam que abrir

a porta para fazer isso, não teriam? – Você tem que ser realista nessas horas,

não vale a pena, garoto. Só vai piorar as coisas e...

Fecho a mão com toda a força, tomo a distância que a algema permite e

acerto um soco do lado da sua cabeça.

Ele dá um pulo para o lado e alcança o cassetete preso ao seu cinto.

– Seu merdinha! – ele grita. Então tenta me acertar, mas me levanto

rápido e dou com o meu calcanhar em cheio no seu saco. Ele se curva para a

frente e eu tiro o cassetete da sua mão e o acerto na nuca. O som da

pancada vem junto com um estalo, como se alguma coisa tivesse rachado.

Meu estômago revira: 112027. Será que já passou da meia-noite? Será que

sou eu quem vai matá-lo?

Eu largo o cassetete e coloco a mão no pescoço do guarda,

pressionando sua pele para tentar encontrar o pulso. Ele ainda está vivo.

Então, a sirene começa a tocar. Um barulho ensurdecedor toma conta

do interior da van e todos nós damos um tranco para trás quando o

motorista acelera de repente. Tenho que tirar essas malditas algemas. O

guarda está com o tronco caído para frente, a cabeça entre os joelhos. Eu o

levanto e o deixo encostado na lataria do carro, então fico de joelhos e

procuro desesperadamente nos seus bolsos. Não há nenhuma chave dentro

deles.

O cassetete rolou até o outro lado. Eu tento alcançá-lo, trazendo o

braço do policial comigo e esticando os meus dedos ao máximo, até que

finalmente consigo pegá-lo. Então eu me ajoelho novamente e trago o braço

do policial até a ponta do banco. Eu coloco a minha mão o mais longe

possível da mão dele, deixando a corrente da algema bem esticada. Eu bato

com o cassetete na corrente, mas isso só amassa um pouco o metal.

– Merda! Merda!

A van está avançando a toda velocidade, balançando para um lado e

para o outro. Ela dá um tranco e eu caio para trás, batendo a cabeça no

chão. Antes que consiga me recuperar já sou jogado para o outro lado. A

coisa está bem instável agora.

– Parem essa coisa! – eu grito, mesmo sabendo que eles não dariam a

menor atenção, mesmo que pudessem ouvir a minha voz atrás do barulho da

sirene. – Devagar aí, pelo amor de Deus!

Me arrasto até a frente, trazendo o gordão comigo e bato com o

cassetete na parede que nos separa dos outros.

– O seu amigo precisa de ajuda! Vocês têm que nos levar para um

hospital!

A van dá mais um solavanco e sou jogado para cima do banco de

novo. Mas dessa vez ela não volta ao normal – não pode ser só uma curva

ou um buraco na pista. Com a sirene ainda tocando, nós viramos de ponta-

cabeça e, de repente, a parede é o chão e o chão vira parede e nós somos

jogados de um lado para o outro. Em um momento, o meu companheiro de

viagem está em cima de mim, esvaziando todo o ar dos meus pulmões, e no

momento seguinte, nós damos mais uma volta e ele fica por baixo. A van

está virando e batendo e um estrondo contínuo toma conta dos meus

ouvidos, quando, finalmente, bato com o queixo no chão – que podia ser

muito bem uma parede ou o teto – e apago de vez.

SARAH

u fecho os olhos. A TV está fazendo a contagem regressiva. – Seis,

cinco, quatro... – Eu não consigo ver nada. Não consigo chegar lá. –

...três, dois, um... – Os sinos do Big Ben tomam conta da sala. –

Feliz ano-novo! – Do lado de fora, os fogos estouram fazendo parecer que

nós estamos no meio de um campo de batalha.

– Pense, Sarah. Tente se lembrar.

As chamas estão por todo lado. E não estou achando Mia. Eu não

consigo encontrá-la. Um rangido chama a minha atenção, alguma coisa está

rachando. Meu Deus, o teto está prestes a desabar. O calor é insuportável.

A tinta está fazendo bolhas no corrimão da escada. O corrimão. O

corrimão. Eu reconheço as curvas suaves da coluna de madeira, gasta pelas

mãos que giraram ao seu redor tantas e tantas vezes enquanto as crianças

saltavam os três últimos degraus da escada. As crianças, nesse caso, eram eu

e os meus irmãos.

Eu abro os olhos.

– É a minha casa! Ela está com os meus pais. Os malditos a entregaram

a eles, Val.

Ela continua olhando para mim, e seus olhos estão cheios de simpatia e

força.

– Então é para lá que nós temos que ir. É lá que nós vamos encontrar a

sua garotinha. Vamos logo, Sarah, a hora é agora.

– Agora?

– Isso mesmo. Só vou pegar a minha bolsa na cozinha.

E então, de uma hora para outra, a TV desliga e a casa afunda na

E

escuridão.

– Puta merda, de novo, não!

Os fogos continuam estourando por um tempo, mais brilhantes que

nunca, mas logo param de vez. Está escuro, mas tem alguma coisa misteriosa

nessa escuridão. Eu olho pela janela da cozinha atrás da Val.

– Meu Deus do céu!

– Tudo bem contigo?

– Eu estou bem. É o céu. Olha lá.

Com a falta de eletricidade, não há luzes atrapalhando a nossa visão.

Os blocos de apartamentos lá fora parecem torres negras rebatidas sobre um

céu completamente fora de controle. Faixas de luz verde e amarela estão

surgindo e desaparecendo no ar. Elas se alternam bem na frente dos nossos

olhos, brilhando e sumindo, se dissolvendo e voltando a aparecer.

– Mas que negócio é esse...?

– Isso é incrível, Val. O que está acontecendo?

– Não faço ideia, querida. Eu nunca vi nada como isso. Você percebeu

uma outra coisa?

– O quê?

– O maldito cachorro parou de latir.

Ela tem razão. O dia inteiro nós o escutamos latir sem parar, mas agora

ele está quieto. Tudo está quieto.

– Obrigado, Senhor, por essas pequenas bênçãos que o Senhor nos

reserva – ela diz. E nós ficamos quietas novamente, até que um uivo

pavoroso interrompe o silêncio.

– Acho que agradeci cedo demais, querida. Meu Deus, esse bicho é um

tormento. Eu não sei o que a Norma tinha na cabeça quando pegou esse...

Então o som da voz dela é cortado pelo maior estrondo que eu já

escutei na vida. O chão se ergue do nada sob os meus pés, me arremessando

para longe, e eu não entendo mais o que está em cima e o que está embaixo.

Só o que chega aos meus ouvidos são mais estrondos, sons de rachaduras e

de vidros estilhaçando, até que minha cabeça e meus ombros acertam

alguma coisa dura e uma mancha vermelha entra na frente dos meus olhos e

depois mais nada.

ADAM

m lado do meu corpo está frio e molhado. Eu sinto um calafrio e

me sento. Lá em cima, o céu está explodindo; rojões e mais rojões

estouram como se fossem balas de canhão, uma chuva de estrelas

cai a cada explosão. Dá para ver as cores refletindo na minha frente –

parece que eu estou cercado. É como se eu estivesse no meio de um campo

de batalha. Bonfire Night é sempre assim, eu penso. Mas então eu olho

para cima de novo. Hoje não é cinco de novembro. É meia-noite na

véspera de ano-novo. Ou melhor, já passou da meia-noite. É primeiro de

janeiro.

Eu apoio as mãos no chão para levantar. Uma pulseira de metal

escorrega pelo meu braço até o meu pulso. Uma pulseira? Eu não costumo

usar essas coisas. Eu sinto algo molhado sob as minhas mãos e então me dou

conta de que estou na lama. Na verdade, eu estou do lado de um rio. A

água está correndo a um ou dois metros de mim.

Eu olho ao redor. Mais um rojão corta os céus e o clarão me ajuda a ver

uma van capotada, batida contra o muro. A cabine está esmagada e a

porta de trás está aberta.

Eu me levanto ainda atordoado e me contorcendo todo com a dor

atravessando cada centímetro do meu corpo. Eu dou alguns passos na

direção da van, recobrando a memória dos últimos acontecimentos. A

sirene está em silêncio agora. Tem um amontoado de alguma coisa perto

dela. É uma pessoa. Um corpo. O meu guarda. A outra metade da algema

ainda está em seu pulso, a corrente deve ter quebrado na batida.

– Foi mal aí, cara. – Eu não consigo pensar em nada melhor para dizer.

U

Eu me arrasto até a cabine. O chão ensopado está afundando sob os

meus pés, me fazendo perder o equilíbrio. Mais dois corpos dentro dela.

Os airbags até chegaram a se abrir, mas não foram o bastante para salvá-

los.

Eu viro de costas.

Onde será que estou?

Dou alguns passos para frente, tateando cegamente, até minhas mãos

encontrarem uma superfície gelada, dura e pegajosa – é o muro à margem

do rio Tâmisa. Eu sigo caminhando ao lado dele, tropeçando em lixo e em

Deus sabe mais o que pode estar abandonado ali. Enfim, eu chego a uns

degraus e deixo o meu corpo cair sobre eles, respirando fundo e tentando

me manter concentrado.

A essa altura, os fogos já estão diminuindo, só se vê alguns foguetes ao

longe. Mesmo assim, eu ainda posso ver reflexos coloridos na água. É a coisa

mais estranha. Eu olho para cima e vejo faixas verdes e amarelas brilhando

intensamente e depois sumindo no céu.

– Mas que porra...? – eu digo baixinho a mim mesmo e então escuto o

maior estrondo que já ouvi na vida e o chão se ergue embaixo sob o meu

corpo, me arremessando pelos ares. Eu caio na parte rasa do rio, com água

na altura dos tornozelos. O céu continua cheio de cores brilhantes e agora

essa é a única luz que existe.

Todas as outras se apagaram.

A cidade inteira está na mais completa escuridão.

Tudo está quieto também. Sem barulho de carros, nem sirenes, só

alguns gritos ecoando do outro lado do rio.

A água ao meu redor é tragada para o centro, levando um pouco da

lama debaixo de mim. Sinto como se estivesse sendo puxado para baixo,

como se fosse ser engolido pelo leito do Tâmisa. É como na praia, em

Weston, por exemplo, quando você fica parado de pé no raso e as ondas

vêm e vão, levando junto a areia debaixo dos seus dedos, fazendo você

perder um pouco o equilíbrio.

A água se foi agora, inteirinha. Só há lama ali, nenhum rio. Eu começo

a andar de volta para onde eu acho que o muro está. Se nós já atravessamos

o rio, eu vou ter que voltar para a outra margem antes de ir para a casa da

minha avó. Mas, espere um minuto: não há mais água aqui. Posso

simplesmente atravessar andando. Não preciso encontrar a ponte. Me viro e

começo a andar na direção do rio, mas depois de dar alguns passos, uma

vozinha na minha cabeça me faz voltar para Weston novamente.

As ondas vêm e vão.

Não é possível que a água tenha simplesmente desaparecido. Não existe

nenhum ralo no fundo do Tâmisa. Ele é um rio, e um do tipo que varia

junto com as marés. Quem disse que eu não lembro nada das aulas de

geografia? Ele pode ter esvaziado agora, mas logo a água deve voltar.

E, de uma hora para outra, eu me lembro das centenas de 27 que eu vi

morrendo na água, com os pulmões cheios, se afogando sem esperanças.

Me viro de novo e tento correr, mas a lama está tão pegajosa que mais

parece que eu estou em câmera lenta. À minha esquerda, eu escuto um

som, uma espécie de ronco. Vai logo, vai logo. Tento avançar a todo custo,

puxando com as mãos uma perna e depois a outra. Preciso urgentemente

encontrar a escada e sair daqui. Depois ainda tenho que subir em alguma

coisa, tentar alcançar algum lugar alto para escapar do que se aproxima.

Só que é tarde demais para mim. Dou uma olhada por cima do ombro.

Não dá para ver nada, na verdade, mas dá para escutar em alto e bom som.

Toneladas de litros de água enchendo o rio novamente, explodindo suas

margens – um monstro raivoso correndo na minha direção. Eu paro de

andar e tento tomar fôlego, mas a enxurrada chega antes que eu estivesse

pronto. Ela me atinge enquanto estou sugando o ar e me arrasta sem dó

nem piedade. Tudo o que consigo fazer é fechar a boca e os olhos enquanto

meu corpo é levado como um pedaço de lixo no mar. Prendo a respiração

até o meu pulmão começar a querer explodir. Não dá mais para segurar.

Preciso respirar.

Vou ter que abrir a boca.

Não posso fazer isso.

Mas preciso.

SARAH

stou toda dolorida, dentro e fora da minha cabeça. Não sei muito

bem onde estou. Acho que estou caída de frente. Meus braços estão

se mexendo, mas não as pernas. E tem alguma coisa na minha boca,

tipo cabelo ou poeira, pegando na língua, me fazendo engasgar. Eu tento

tossir e cuspir, mas não adianta muito.

Alguém está gritando na escuridão.

– Adam? Adam?

É a Val. Ela está viva e não muito longe, mas eu não consigo vê-la.

Tento gritar de volta, mas minha voz não sai direito.

Minhas pernas estão embaixo de alguma coisa. Tento virar e estender

os braços na direção delas, para descobrir o que é. Eu não enxergo nada,

mas parece que é uma das poltronas – ela não é muito pesada, mas fica

difícil afastá-la dessa posição. Eu coloco as duas mãos nela e empurro. Ela se

move um pouco e eu consigo girar o corpo e ficar sentada direito. Mais um

empurrão e escuto o som de alguma coisa arrastando e depois quebrando, e

assim consigo liberar minhas pernas. A dor toma conta delas, como se

alguém estivesse me espetando com mil agulhas enormes.

– Cacete! – Não posso evitar o grito. Pelo menos minha voz voltou.

– Quem está aí? – Val pergunta, em um tom desconfiado e com a voz

mais rouca que o normal.

– Sou eu, Sarah!

Ninguém diz mais nada por alguns segundos. Então, ela pergunta: –

Quem é você? O que você está fazendo na minha casa?

– Sou eu, Val. Sarah, a amiga do Adam.

E

– Seja lá quem você for, será que pode me dar uma ajudinha aqui?

Estou me sentindo como uma maldita barata com as pernas pra cima. Isso

está acabando com as minhas costas.

Parece que ela está a apenas alguns metros de distância. Não estou

botando muita fé nas minhas pernas, então prefiro engatinhar na direção de

onde vem o som da sua voz. Debaixo de mim, as coisas se quebram, saem do

lugar e afundam, conforme eu avanço. Todos aqueles enfeites da Val estão

jogados e destruídos; todas as suas lembranças, todas aquelas coisinhas de

que ela parecia gostar tanto. Tento não pensar muito nisso enquanto

esmago mais uma das bugigangas com o meu joelho.

Tateando cegamente à frente, eu encontro uma coisa macia.

– É você, Adam?

– Não, Val. Sou eu, a Sarah.

– Sarah...

Ela diz o meu nome para si mesma, como se estivesse vasculhando em

sua memória, tentando lembrar de quem se trata.

– Sarah, a amiga do Adam que apareceu aqui com o bebê – eu digo. –

Sarah, a que desenha.

– Sa-rah. – Agora parece que ela está lembrando. – Sim, a garota do

bebê.

– Isso. É isso mesmo.

– Meu Deus do céu, eu lembro agora... Onde está o Adam?

– Eu não sei, Val. Ele foi preso, lembra?

– Que droga. O meu garoto. O meu netinho querido.

– Você consegue se mexer? Está machucada? A gente tem que sair

daqui logo. Acho que a casa pode desabar a qualquer momento.

O prédio está rangendo e estalando ao nosso redor.

– Val, você se machucou?

– Não. Eu não sei ao certo. Ajude-me a levantar.

Nossas mãos se encontram no escuro, as dela estão tremendo. Elas se

agarram às minhas como se não quisessem soltá-las nunca mais. Nós nos

apoiamos uma na outra para ficar de pé.

– Vamos sair logo daqui – eu digo.

– Isso mesmo, querida. Onde está a porta?

– Nós não precisamos de porta nenhuma, Val, é só seguir em frente.

– Como assim?

– A frente da casa já era.

– Não seja boba. Foi só um susto. Nós ainda estamos aqui, não é? Então

a casa também está.

– Nós até estamos aqui, mas metade da casa não está mais. Vamos

andando e você vai ver só.

De braços dados, nós seguimos em frente no meio dos destroços. Há

uma meia-lua sobre nós, iluminando o bastante para se ver algumas formas

na escuridão, mas é impossível enxergar os detalhes. Alguém na rua está

carregando uma tocha, que nos ilumina por alguns segundos. E então nós

conseguimos ver: uma montanha de entulho no lugar em que costumava

ficar a parede da frente, tomando conta do jardim também. Nós temos que

escalá-la e depois descê-la de novo para conseguir sair, mas é o único jeito.

A luz da tocha se afasta e nós temos que caminhar às cegas novamente.

Seguimos andando, nos equilibrando sobre os destroços até

atravessarmos a montanha de entulho. Um pedaço da parede do jardim da

frente ainda está de pé e nós nos sentamos nela um pouco, olhando para

trás, para o lugar de onde nós acabamos de sair.

O ar está cheio de poeira, mas a luz da lua que consegue atravessar a

nuvem que se formou basta para termos uma ideia do que aconteceu. As

paredes da frente de todas as casas do quarteirão desabaram. É como se

fosse uma casa de bonecas maluca, em que se pode ver dentro dos quartos.

– Nós tivemos sorte de sair vivas dali – eu digo.

– Sorte – Val repete. – Tivemos muita sorte.

Alguma coisa se move no chão, do meu lado. Eu percebo o movimento

pelo canto do meu olho e solto um grito de susto.

– O que foi?

Estou esperando ver uma mão, um braço ou qualquer coisa assim, mas

não parece ser humano. É uma coisinha preta se agitando e se contorcendo

toda. De repente, ela solta um barulho, entre um grunhido e um gemido de

dor. Desço da parede e me abaixo perto dela. Quando coloco a mão,

primeiro sinto a poeira, mas embaixo dela tem alguma coisa macia e quente.

A coisa responde levantando a cabeça e, sob a luz da lua, eu vejo seus olhos

brilhando.

– É um cachorro, Val.

– Um cachorro? – ela pergunta. – A pestinha da Norma?

Passo a mão nas costas dele e ele se contorce todo. Deve ter alguma

coisa errada. A parte de trás do seu corpo está caída, as patas estão esticadas

para trás.

– Vem aqui, cãozinho – eu tento fazê-lo se mover. – Vem. – Dou um

passo para trás e estalo os dedos, esperando que ele venha. Ele se arrasta na

minha direção só com as patas da frente, parecendo um soldado rastejando

no chão. – Tem algum problema nas pernas dele, Val. Elas não estão

funcionando.

Val se ajoelha ao meu lado.

– Vamos dar uma olhada – ela diz. – Melhor avisar a Norma. Onde será

que ela está?

Nós olhamos para a porta da vizinha e o que se vê é só mais um monte

de entulho. Ao contrário da casa da Val, ali o teto também desabou. A casa

toda foi destruída.

– Mas que merda – ela diz. Não consigo ver a expressão em seu rosto,

mas sua voz já diz tudo. – Santo Deus, coitada da Norma. Bem que o Adam

avisou. Ele disse que estava chegando algo ruim. Eu sempre acreditei nele,

mas nunca imaginei que seria desse jeito... – Ela passa a mão no rosto e dá

uma fungada. – Nós vamos ter que dar um fim nele. Não podemos deixá-lo

para trás nesse estado, Sarah.

Ela quer que eu mate o cachorrinho. O cabelo da minha nuca se arrepia

todo.

– Não posso, Val. Não consigo fazer uma coisa dessas. – Ela se abaixa e

eu a escuto remexendo os destroços. Quando se levanta, ela está com algo

na mão.

– Tudo bem, tudo bem. Bom garoto, você é um bom garoto.

Eu a vejo se mover na escuridão, levantando o braço acima da sua

cabeça. Então ela abaixa rapidamente e, com força, dá uma pancada seca. É

só isso: uma pancada. Sem dizer nada, ela pega o corpo e começa a

caminhar na direção da casa novamente.

– O que você está fazendo?

– Eu vou enterrá-lo onde é o lugar dele: junto com a Norma.

Eu a alcanço e, juntas, nós empilhamos alguns pedaços de concreto e

tijolos sobre o corpo do cãozinho morto. Depois nós voltamos para a parede

e nos sentamos de novo.

– Muito obrigada – Val diz, de repente. Ela encontra a minha mão e a

segura com força. Ficamos sentadas desse jeito por um tempo. Estou

passada. Ainda não consigo entender direito o que aconteceu. No começo,

tudo estava silencioso, mas agora as ruas estão sendo preenchidas por sons

de sirenes e gritos. Tem gente gritando aqui mesmo nesta rua, pessoas

pedindo ajuda desesperadas, e então eu penso se a pessoa que está com a

Mia não está gritando desesperada também. Será que eles estão presos

embaixo de alguma montanha de entulho ou será que estão seguros? Ela

está chorando ou está dormindo tranquilamente, no meio de toda essa

agitação? Ou será que ela já está morta? Seu número está impresso na

minha mente desde que eu o vi no caderno do Adam: 112027. É hoje. É

aqui. Pode ser tarde demais para mim.

– Val – eu a chamo. – Eu preciso encontrar Mia. É só isso que importa

agora.

– Mia – ela diz, puxando pela memória. – O bebê!

– Isso mesmo. Tenho que encontrá-la.

– É claro. Nós temos que ir agora mesmo. É só que... é só que...

– Qual o problema?

– Eu não queria partir sem a caixa do Cyril.

Cyril? A caixa do Cyril? Quero dar um grito. Ela está preocupada com

as cinzas de alguém que morreu há anos e anos, enquanto em algum lugar

dessa cidade minha filha precisa de mim?

– Val, por favor, deixa isso para lá. Nós nunca vamos conseguir

encontrá-la no meio de tudo isso. Por favor, eu preciso encontrar a Mia.

– Mas é tudo o que me sobrou dele...

Parece que a minha cabeça vai explodir. Não interessa. Ele

morreu. Mas, para ela, isso interessa sim.

– Val, eu não acho que seja seguro voltar para lá. Além disso, você

nunca vai conseguir encontrar a tal caixa, não nessa escuridão.

– Logo, logo, amanhece. Nós podemos esperar um pouco até termos

alguma luz.

Eu tento ficar calma, mas minha frustração aumenta a cada segundo

que passa.

– Val, a gente tem que ir, mesmo.

– Mas vai ser difícil ir muito longe nessa escuridão. É mais seguro ir de

dia...

Olho para a rua. Com a luz da lua e agora que os meus olhos se

acostumaram, até que não está completamente escuro. Resolvo caminhar

um pouco pela calçada e, de repente piso em falso. A calçada não está mais

lá. Meu pé vai para baixo e eu começo a agitar os braços, procurando algo

para me agarrar e tentando me equilibrar. Quando finalmente eu consigo

ficar reta, meu pé bate em alguma coisa.

– Merda! – eu solto um grito.

E, de repente, Val está lá.

– Sarah? Sarah? O que aconteceu?

Ela consegue encontrar o meu ombro e eu sinto seus dedos finos e

ossudos me segurando e depois me apertando.

– Eu caí em algum lugar.

Ela me ajuda a subir de volta.

– Não vá, Sarah, por favor. É perigoso ir nessa escuridão.

Do outro lado da rua, alguém está gritando.

– Minha mulher. Ela está lá dentro. Me ajudem, me ajudem!

Meu coração está pulando dentro do meu peito. Sei o que vou ter que

fazer, e isso está me matando.

– Fique aqui, Val. Vou tentar ajudar essas pessoas e assim que aparecer

o primeiro raio de sol, vamos buscar o seu querido Cyril e depois dar o fora

daqui.

– Também posso ajudar – ela diz, satisfeita por ficarmos até o dia raiar.

Por segurança, vamos engatinhando até o outro lado da rua, onde ajudamos

o vizinho a remover os pedaços de pedra, tijolos e vigas de madeira. Então

todos ajudam a tirar a mulher do meio dos escombros. Ela não está muito

machucada, mas está em choque. Seu marido, vestido de pijamas e roupão,

senta-se ao seu lado na calçada e a abraça.

Com a vista acostumada à escuridão, nós mal reparamos quando

começa a amanhecer e o céu vai se transformando de preto em cinza. Eu

fiquei esse tempo todo inclinada para frente, com a cabeça baixa, mas agora

minhas costas estão doendo tanto que sou obrigada a me levantar e olhar ao

redor.

– Meu Deus, Val! Olha só para isso.

– O que foi, você encontrou alguma coisa?

– Não. Veja com os seus próprios olhos.

Ela também se levanta. Depois coloca as mãos na cintura e estica as

costas. Olha pela rua e um som sai da sua boca, algo entre um suspiro e um

assobio.

– Jesus Santíssimo...

As casas ao nosso redor estão destruídas, mas não é isso o mais

chocante. É a rua, ou melhor, a cratera aberta no lugar em que a rua

costumava ficar. Foi ela que eu encontrei mais cedo. Deve ter uns dez

metros de largura e cem, duzentos, trezentos metros de comprimento; é

como se alguém tivesse rasgado a terra com uma faca gigante.

E é como se essa faca estivesse me cortando também. Depois de me

deparar com essa cena, sei que não posso ficar aqui nem mais um minuto.

Minha filha está longe de mim, do outro lado desta cidade em pedaços.

– Val, por favor, por favor, nós precisamos ir embora daqui.

– Tudo bem, Sarah, nós vamos. Só vou dar um pulinho ali em casa, não

vai demorar.

– Não, Val, olha só pra isso. Não é seguro você entrar ali.

Ela começa a caminhar na direção da sua casa desabada do mesmo

jeito. Eu a alcanço.

– É melhor você esperar aqui, então. Eu vou – digo.

– Você sabe o que está procurando, não sabe? Uma caixa de madeira.

Estava na prateleira, em cima da lareira.

– Sei sim, pode deixar. Vou encontrar.

Sigo em frente e atravesso a montanha de entulho. É difícil manter o

equilíbrio pisando nos pedaços de concreto e tijolos soltos. Mas eu vou em

frente, tropeçando, quase torcendo o meu tornozelo umas três ou quatro

vezes. A parede do fundo da sala continua de pé, as paredes laterais

também. O teto também continua no lugar, por enquanto. A prateleira

onde a caixa costumava ficar está pendurada na parede, presa apenas de um

lado. O tapete desapareceu embaixo de uma camada de pedaços de móveis

e enfeites destruídos. Tudo está coberto de poeira. Eu me abaixo e começo a

procurar a caixa no meio de tudo aquilo.

Sobre a minha cabeça, o teto está ameaçando cair. Depois de escutá-lo

rachar, eu sinto uma chuva de poeira cair em cima de mim.

– Você já encontrou? – É a voz da Val, vinda do outro lado da

montanha de destroços.

Eu não respondo. Meus dedos já estão arranhados e doloridos por causa

da ajuda que dei para resgatar a vizinha de madrugada e estou machucando-

os ainda mais agora. É uma tarefa sem esperança. Eu não gosto de dar o

braço a torcer e me entregar desse jeito, mas a cada novo barulho que a casa

faz eu sinto um frio na barriga e meu coração parece que vai sair pela boca.

Não quero acabar soterrada neste lugar.

– Sai daí, Sarah! – ela grita. – Deixa para lá. Isso não tem tanta

importância assim.

Não tem jeito, eu não consigo encontrar. Então eu levanto e começo a

me virar para ir embora, quando algo me chama a atenção, algo branco e

brilhante, embaixo de um porta-retratos. Eu me abaixo de novo para ver o

que é – um cisne de porcelana, ainda inteiro, sem nenhum arranhão sequer.

Eu o coloco no bolso e começo a caminhar para fora dali.

Mas Val veio ao meu encontro. Ela coloca a mão no meu braço e o

aperta.

– Meu Deus, Sarah, eu achei que tinha acontecido alguma coisa com

você. Já estava imaginando você soterrada sob um monte de entulho.

Nunca me perdoaria. Onde é que eu estava com a cabeça para te pedir para

entrar aqui? Como fui egoísta.

Atrás de mim, as rachaduras nas paredes continuam aumentando e

fazendo barulhos apavorantes.

– É melhor a gente sair daqui de uma vez por todas – eu digo.

O medo faz o caminho de volta ser mais rápido do que tinha sido na

vinda.

– Desculpe-me por não ter encontrado o Cyril – eu digo quando nós

chegamos à rua. – Mas eu encontrei isso aqui, se serve de consolo. Está

inteiro.

Eu enfio a mão no bolso e tiro o cisne de dentro dele. Depois, eu o

coloco na palma da mão da Val. Ela o observa por alguns segundos e alisa

cada uma de suas curvas com os dedos.

– Nós compramos isso na nossa lua de mel – ela diz em voz baixa,

falando mais consigo mesma do que comigo. – Uma semana em Swanage,

na costa sul. Aquele homem parecia um bicho no cio naquela semana. Meu

Deus, eu pensei que não ia conseguir andar nunca mais! – Ela deve ter

percebido como eu estou desconfortável, pois começa a rir meio sem jeito,

até que sua risada mais parece uma tossida. – É muita informação para você,

querida?

Faço que sim com a cabeça, envergonhada demais para dizer qualquer

coisa.

– Obrigada – ela diz, sorrindo novamente. – Já é alguma coisa, não é

mesmo? Desculpe-me por ter insistido na história da caixa.

– Era só um monte de cinzas, Val. Não era o seu marido de verdade. –

Estou me esforçando para dizer a coisa certa, se é que há alguma coisa certa

a se dizer em uma hora como essa.

– Eu sei disso, querida – ela responde tranquilamente –, mas eu

também guardei oito mil libras lá dentro.

Eu fico de boca aberta.

– Oito mil? O que você fez, roubou um banco?

– Não fui eu, meu anjo, foi o Cyril. Dinheiro para alguma emergência,

ele dizia.

– Você quer que eu volte?

Nós duas olhamos para a casa em ruínas e de algum lugar lá dentro vem

um outro barulho. É a chaminé que desaba.

– Merda! Agora vai cair de vez.

Cinco segundos depois é o teto inteiro que despenca lá de cima,

atravessando o quarto e se espatifando no chão da sala. Tem entulho

voando para todo lado. Instintivamente, dou as costas para a casa e abraço a

Val. Parece a explosão de uma bomba. Nós estamos no meio de uma nuvem

de poeira agora. Fico de cabeça baixa e olhos fechados ainda por um bom

tempo. Quando abro os olhos e me viro novamente, a casa inteira está

reduzida a uma montanha de destroços.

Val está branca, como um fantasma.

– Virgem Santíssima! Você podia estar lá agora...

– Mas eu não estava. Estava aqui com você. – Eu a abraço novamente e

a aperto, tentando não parecer muito abalada, mas estou tremendo, meus

braços e pernas estão se agitando, totalmente fora de controle. Ela me

aperta também, envolvendo-me em seus braços e me embalando

suavemente, para um lado e para o outro. Depois ela me solta um pouco e

limpa a poeira do meu rosto.

– Não adianta chorar pelo leite derramado – ela diz. – Agora nós temos

um bebê para encontrar, não temos? Vamos, querida. Vamos embora daqui.

Vamos encontrar a sua garotinha.

ADAM

or sorte, quando eu abro a boca para respirar, a minha cabeça chega

à superfície. Acabo engolindo uma mistura de ar e água que me faz

tossir e engasgar.

Afundo novamente, mas dessa vez já sei o que fazer. Empurrando a

água com as mãos, forço meu corpo a subir. Tusso e cuspo e então puxo o

máximo possível de ar, o que me ajuda a boiar. Eu viro de costas e fico com

o rosto fora da água, recuperando o fôlego. Lá no alto, as luzes verdes e

amarelas quase desapareceram totalmente, mas há ainda uma meia-lua que

ilumina o bastante para eu enxergar os contornos da cidade de cada lado do

meu corpo. Não tenho a menor pista de onde estou. Também não sei

quanto tempo fiquei embaixo da água. Mas dá para perceber que o rio ainda

está me levando.

A correnteza está forte. O que quer dizer que eu não tenho escolha.

Sou obrigado a deixá-la me levar. Por um instante chego até a me sentir

confortável ali boiando, mas então uma onda me acerta e me faz afundar

novamente. Agora estou sendo arrastado pela água, sem conseguir ter

nenhuma reação. Meu braço raspa em alguma coisa, algo duro que acaba

rasgando a minha blusa. Depois, é a vez do meu pé bater em algo e ficar

preso. Tento puxar, mas não adianta. Estou imobilizado e a água não para

de correr e querer me arrastar.

Tento me curvar e alcançar o meu pé, mas a água não deixa. Meu rosto

atinge a superfície e consigo tomar algum fôlego, então mergulho

novamente e tento entender o que está acontecendo com o meu pé. Ele

está enfiado em uma grade, o meu tênis ficou preso. A força da água é tanta

P

que está acabando com as minhas energias. Sei que estou ficando fraco.

Subo mais uma vez, atrás de mais ar, depois mergulho de novo. Dessa vez,

eu me esforço para colocar os dedos na parte de trás do tênis. Meu pé não

quer sair, mas eu tento mexê-lo um pouco e soltar o cadarço do tênis até

que, de repente, eu estou livre. Livre para ser arrastado pela água

novamente.

Se há uma grade aqui, então quer dizer que a água invadiu as ruas. Ela

deve estar mais rasa também. Talvez eu consiga sair. Começo a bater as

pernas e a girar os braços por cima da minha cabeça e dentro da água. No

começo, parece que não vai dar certo, mas então eu sinto que meu corpo

está se movendo e que a água está menos funda. Eu continuo nadando –

não para, Adam, você consegue, é só você não parar – até que as pontas

dos meus dedos começam a raspar o chão. Então eu paro de nadar e me

levanto. A água está na altura dos meus joelhos. Ela continua se movendo,

mas a correnteza está suave, então posso me sentar sem correr o risco de ser

levado de novo.

Meu peito está se movendo para trás e para frente com violência. Nossa

senhora, como dói. Não acredito que consegui. Escapei de mais uma. Estou

vivo. Se eu ia morrer hoje, não há dúvida de que essa era a chance que a

morte estava esperando para me pegar. Nunca consegui nadar nem os meus

25 metros direito na escola. O pessoal costumava rir da minha cara:

“Moleques negros não sabem nadar.” Eu jamais imaginei que conseguiria

fazer isso um dia.

Tento ficar de pé, e assim caminhar para fora da água, mas minhas

pernas estão fracas demais, então eu me arrasto um pouco e depois começo

a engatinhar. De repente, esbarro em alguma coisa que flutua para longe de

mim – uma forma escura na água, com duas mãos pálidas iluminadas pela

lua. Depois de engatinhar mais um pouco, a água só está a poucos

centímetros do chão e eu já posso me levantar novamente e começar a

caminhar.

Não demora muito para eu perceber onde estou. Depois de dez minutos

de caminhada, eu consigo ver um enorme círculo escuro contra o horizonte

– a London Eye. Isso me faz pensar na minha mãe.

Não vá para Londres. Não deixe sua avó levá-lo para lá...

Onde será que minha mãe está agora? Será que ela está tomando conta

de mim? Será que ela estava lá comigo, me dando aquele último impulso de

energia que me ajudou a sair do rio? Nós ignoramos o que ela disse – eu e a

minha avó. Minha avó, porque é uma velha rabugenta que gosta de

contrariar. E eu, porque conheci a Sarah e tive que tentar ajudá-la. Nós

ignoramos o que a minha mãe disse e agora estamos sofrendo as

consequências; e só Deus sabe o que está acontecendo com a Sarah e com a

minha avó. No meu coração, sinto que elas estão bem, afinal de contas, eu

vi os seus números. Sei que as duas vão sobreviver. Mas, mesmo assim, fico

preocupado e começo a correr. Preciso atravessar essas ruas escuras e chegar

logo até a minha casa.

Demora horas para eu chegar. Antes de mais nada tenho que atravessar

o rio, mas metade das pontes de Londres não existe mais. Tem um grupo de

policiais na Vauxhall Bridge, impedindo as pessoas de passar por motivos de

segurança, mas eu furo o bloqueio e corro pela ponte o mais rápido possível,

até chegar ao grupo de policiais que está fechando o outro lado.

Já está amanhecendo quando chego à avenida perto de casa, mas

quando olho para a rua da minha avó eu não consigo acreditar nos meus

olhos. Metade da rua desapareceu. Tem um buraco enorme, com centenas

de metros de comprimento. As casas desabaram. Demoro um tempo para

entender qual delas é – ou era – a da minha avó. A frente não existe mais

e o teto desabou. Só o que sobrou foram algumas paredes e um monte de

entulho. Alguns dos gnomos do jardim estão jogados na frente do monte,

como se fossem pequenos corpos.

– Minha Nossa Senhora – eu digo em voz alta. Se elas estavam dentro

da casa quando isso aconteceu, é impossível que tenham sobrevivido. E

onde mais elas poderiam estar senão na casa? Não entendo. Eu achava que

as duas iam sobreviver. Eu achava que a Sarah era o meu futuro.

Minhas pernas não estão mais aguentando o peso do meu corpo.

Desabo no chão e fecho os olhos. Isso não está certo. Não pode estar.

– Elas saíram da casa.

– O quê?

Eu olho para cima e lá está um senhor de pijama e com um roupão por

cima. Ele repara na algema no meu pulso, mas não diz nada sobre ela.

– Sua avó e uma garota. Elas saíram antes do teto desabar.

– Você tem certeza disso?

– Tenho, sim. Elas me ajudaram a resgatar a minha esposa. Foram

verdadeiras heroínas.

A boa notícia parece trazer um novo ânimo para mim.

– E elas estavam com um bebê? Tinha alguma criança junto com as

duas?

Ele faz que não com a cabeça.

– Não, só vi as duas mesmo.

– Para onde elas foram agora?

Ele balança a cabeça de novo.

– Desculpe, mas não sei dizer. Não faz tanto tempo assim que elas

foram embora. Vinte minutos, meia hora, no máximo. Mas não disseram

para onde estavam indo.

Vinte minutos. Isso não é nada. Posso alcançá-las. Posso encontrá-las.

Se pelo menos eu soubesse para onde elas estão indo... Pensa, Adam.

Coloca essa cabeça pra funcionar. Fecho os olhos de novo. Tento me

concentrar na Sarah, tento pensar no que ela estaria pensando agora. Se

elas não estão com a Mia, então ela deve estar desesperada para encontrá-

la. Onde ela está? Onde está a Mia?

Os pais da Sarah estavam na delegacia no dia em que eles a pegaram.

Ela viu os dois. Eles podem ter levado Mia para casa naquele dia mesmo,

com a autorização dos assistentes sociais. E por que motivo eles não

autorizariam Sarah a ver Mia? Dois cidadãos exemplares. Uma casa boa em

Hampstead. Um carro bom. Uma vida boa.

– Tudo bem com você, filho? – o velho de pijama ainda está olhando

para mim.

– Tudo bem, sim – eu respondo. – Eu estou bem. Só tenho que

encontrar duas donzelas em perigo.

– Ah, cherchezlesfemmes – ele diz. – Boa sorte, garoto. – Então ele

pisca para mim e vai embora.

Meu corpo inteiro está doendo; meu braço está todo roxo, meu pulso

está dolorido, os tornozelos estão torcidos e arranhados e meu peito está

ardendo. Mas é o meu pé, ou a sola dele, que está querendo me derrubar de

vez. Eu dobro a perna e viro o pé para dar uma olhada. Vou tirando a sujeira

toda com a mão – pedaços de tijolos e pedras, um monte de poeira, cacos de

vidro e lascas de madeira. Eu esperava que estivesse ruim, mas mesmo assim

me assusto. Há cortes bem profundos ali.

Nunca vou conseguir ir andando até Hampstead desse jeito. Preciso de

um sapato. Olhando ao redor, vejo uma cortina ainda presa ao trilho, em

cima dos destroços. Vou até lá, escalo a montanha de entulho e a pego.

Depois eu rasgo o tecido em tiras compridas e começo a amarrá-las no pé.

Minhas mãos estão tremendo, mas não posso parar agora. Me concentro e

as faço obedecer às minhas ordens. Eu enrolo e enrolo, do dedão até o

tornozelo. Para terminar, eu faço um nó na frente e pronto. Agora o meu pé

está todo coberto por uma espécie de bota de tecido. Genial. Respiro fundo,

me levanto e suporto o peso em um pé só, para experimentar o meu novo

sapato. Ainda dói bastante, mas não tanto quanto antes. Parece que vai

servir.

Começo a caminhar devagar e tudo vai bem, então acelero o passo e

me afasto praticamente correndo da casa em que o meu pai cresceu e que

foi a minha casa também por um tempo. Não sobrou nada dela, mas não me

sinto mal por isso, pois são as pessoas que fazem um lar, e não as coisas. E as

três pessoas que fizeram desse lugar um lar para mim, não estão mais lá.

Mas eu vou encontrá-las. Vou encontrá-las nem que essa seja a última

coisa que eu faça nesta vida.

SARAH

pressadas, nós cruzamos as ruas da cidade, só que esse lugar não é

mais Londres, pelo menos não é a Londres em que fui criada. Nada

é como costumava ser. Tudo está completamente diferente. O

nosso caminho só não é totalmente silencioso por causa dos alarmes de

carros, casas e lojas soando sem parar, e também graças às sirenes ecoando

ao longe, mas o som contínuo e abafado do trânsito não está mais lá. Esse

som que você escutava todos os dias antes de dormir e que ainda estava lá

quando você acordava, simplesmente desapareceu.

Minha cabeça está tentando brincar comigo. Enquanto nós

caminhamos, minha mente insiste em querer enxergar os lugares como eles

costumavam ser e eu me sinto completamente desorientada quando só vejo

o horizonte distante no lugar em que devia haver um arranha-céu enorme

ou uma pilha de entulho onde devia haver paredes e asfalto. Pelo caminho,

nós encontramos mais dois buracos como o que havia na rua da casa da Val.

Um deles está atravessando a rua em que estamos indo e é grande demais

para conseguirmos pular, então nós somos obrigadas a voltar alguns

quarteirões e tentar um caminho diferente.

Por onde passamos há pessoas gritando e pedindo ajuda. Alguns grupos

tentam fazer alguma coisa no meio desse cenário em que não parece haver a

menor razão para ter esperanças; famílias inteiras, vizinhos, completos

desconhecidos unem-se para vasculhar os destroços e resgatar os

sobreviventes. Eles formam filas a partir dos montes de entulho, passando

tijolos, blocos de concreto e enormes pedaços de ferro e madeira uns para os

outros. Não há nenhum sinal da polícia, dos bombeiros, nem mesmo do

A

exército. Não aqui, não em Kilburn. Este canto da cidade foi abandonado.

Nós estamos sozinhos. Se não fizermos as coisas por nós mesmos, nada será

feito.

Nós também queremos ajudar, mas já são quase oito horas da manhã e

Mia é tudo o que importa. Eu e Val concordamos quanto a isso.

Nós passamos pelo primeiro incêndio há alguns quarteirões. Os

apartamentos em cima de uma galeria de lojas estão pegando fogo, as

chamas escapam pela janela de um deles. Duas figuras estão em outra

janela, no último andar. Elas estão cercadas pelo fogo e não podem sair. Na

calçada, algumas pessoas fizeram uma pilha de caixas de papelão, roupas e o

que mais tinham à mão, e estão gritando: – Pulem! Pulem!

Nós ficamos olhando enquanto as duas pessoas lá em cima sobem no

parapeito da janela e, de mãos dadas, se lançam nos ares. Elas até

conseguem aterrissar no colchão improvisado, mas ele não é o bastante.

Depois de cair, elas continuam ali imóveis, com as mãos entrelaçadas e os

pescoços quebrados. Nós permanecemos no lugar por tanto tempo quanto

achamos que deveríamos ficar, enquanto as pessoas cobrem os dois corpos

com as roupas que deviam ter amortecido a queda. Depois nós nos viramos

e seguimos caminhando, sem falar mais nada, atordoadas pelo horror

daquela cena.

As ruas estão cheias. Todos que conseguiram sair com as próprias forças

fizeram isso, e ninguém parece querer voltar para dentro de casa. Não há

mais muita gente para ser tirada de dentro dos prédios e os que ainda estão

de pé não inspiram muita confiança. Algumas pessoas estão vagando sem

destino, outras estão sentadas na rua com as mãos na cabeça. A maior parte

se junta aos grupos de resgate, indo até onde eles são necessários, atendendo

aos gritos de socorro que vêm de todos os lados.

É claro que nem todos estão tentando ajudar: alguns estão apenas

ajudando a si mesmos. Nós passamos por uma porção de lojas com as

vitrines arrebentadas. A natureza certamente se encarregou de quebrar

algumas delas, mas pés de cabra e bastões de beisebol devem ter completado

o serviço. As pessoas entram e saem das lojas freneticamente, como se fosse

época de liquidação. Com a diferença que ninguém está comprando nada. É

só entrar e levar.

Olho para o relógio sem parar. Nós só avançamos alguns quilômetros e

já são nove e quinze da manhã. Eu paro de novo.

– Val, isso não é nada bom. Nós não vamos conseguir chegar a tempo.

O que podemos fazer agora?

Você não quer continuar sem mim, querida? Vai ser mais rápido assim.

Era exatamente nisso que eu estava pensando, mas, ao mesmo tempo,

não parece uma ideia tão boa.

– Na verdade eu não quero – respondo. – Quero chegar logo, mas por

outro lado, não quero estar sozinha. – Então eu tenho uma ideia. – Val,

você sabe andar de bicicleta?

– É claro que eu sei! Sei que é difícil de acreditar, mas já fui jovem um

dia.

Tem uma porção de bicicletas enfileiradas nas ruas, daquelas que você

pode pegar em um lugar, ir aonde tem que ir e depois entregar em outro.

Algumas foram destruídas, mas a maioria está inteira.

– Então, vamos nessa – eu digo, e nós corremos para as bicicletas. Tiro

alguns trocados que tenho no bolso e estou prestes a colocar um Euro na

máquina quando escuto Val soltando um grito de surpresa. Me viro para ver

o que é. Tem mais gente gritando também e um som crescendo ao fundo,

um estrondo, como se fosse um trovão. Só que esse som não está vindo de

cima e sim debaixo de nós e de todos os lados. De repente, eu vejo o que as

outras pessoas já estavam enxergando: uma onda tomando conta da rua.

Não é uma onda de água cobrindo o asfalto, é a própria rua que se

transformou em um mar, o asfalto sobe e desce, como se fosse um tecido

flexível.

Não dá mais tempo de correr. Rapidamente, eu abraço a Val e caímos

juntas no chão. Assim que atingimos o asfalto, nós somos jogadas para cima

novamente. Eu solto um grito de dor quando alguma coisa me atinge nas

costas. Tudo o que não está preso no chão está sendo jogado de um lado

para o outro agora: carros, bicicletas, pessoas.

Ao nosso redor, as janelas estão se estilhaçando, uma chuva de vidro

quebrado cai sobre nós e os prédios que ainda continuavam de pé depois do

primeiro tremor começam a desabar.

– Fique abaixada! – eu grito. – Ainda não acabou! – mas acabou de

fato. Tão rápido quanto veio, o terremoto foi embora. Foram mesmo só

alguns segundos? O barulho ainda continua por algum tempo e eu o espero

desaparecer completamente antes de abrir os olhos e levantar a cabeça. Ao

meu lado, Val está fazendo o mesmo.

– Mas que merda! – pelo menos a voz dela ainda está lá.

– Tudo bem com você? – eu pergunto.

– Acho que sim – ela responde. – E com você?

– Eu não tenho certeza.

Isso tudo acabou comigo, não fisicamente, talvez, mas mentalmente,

com certeza. Eu não sei se consigo continuar com isso. Eu não sei nem se

eu devia estar fazendo isso.

– Vamos, Sarah. Nós temos uma garotinha para encontrar. Mia está

esperando por nós.

As lágrimas começam a rolar pelo meu rosto quando eu escuto o nome

da minha garotinha.

– Olhe para mim. Olhe para mim, Sarah. Nós vamos conseguir – ela

diz. – Nós vamos conseguir, Sarah. Podemos mudar as coisas. Mas não aqui.

Nós precisamos encontrá-la antes.

– Será que não é melhor continuarmos longe dela? Se o Adam não

estiver lá e eu também não, talvez o futuro seja diferente, talvez o número

dela mude. Eu li, Val. Eu vi o número da Mia no caderno do Adam.

– É hoje, não é?

Ela sabe. Mas como?

– Você disse que não tinha lido o que estava escrito no caderno.

– E não tinha mesmo. Adam me contou.

– Ele contou a você? Não acredito. Ele disse que nunca contava os

números dos outros.

– Foi depois de ver o número dela pela primeira vez. Ele estava tão

chocado quando chegou em casa, que acabou soltando...

– De qualquer forma, isso não importa. Eu tenho visto toda noite desde

que fiquei grávida dela. O fim. Como vai ser.

– Só que não vai ser como no seu pesadelo, já que o Adam não está

aqui. Isso quer dizer que já está sendo diferente, Sarah. E,

independentemente do que aconteça, você tem que estar ao lado dela. Ela é

a sua filha. Eu não estava lá com o Terry e me arrependo por isso mais do

que qualquer coisa...

Nós duas estamos chorando agora.

– Vamos logo, Sarah. Vamos fazer isso direito.

Ela solta um gemido quando se levanta e eu me pergunto se são apenas

as dores de sempre ou se ela se machucou agora. Ela está com uma

expressão séria e determinada no rosto enquanto caminha na direção das

bicicletas.

– Você indica o caminho – ela diz. – Eu vou seguindo, logo atrás.

Nós levamos perto de meia hora para chegar a Hampstead. Quando

estamos nos arredores, eu começo a ficar mais e mais ansiosa. Eu estava

temendo esse momento, mas a paisagem não está tão ruim assim. Nós

atravessamos quarteirões inteiros que estão intactos. Se você ignorar as

placas caídas aqui e ali e três ou quatro árvores fora do lugar, quase parece

que o terremoto não esteve aqui. Quase.

Mas, de repente, eu vejo uma coluna de fumaça subindo dos telhados, a

três ou quatro ruas acima. Eu paro a bicicleta e fico olhando, sentindo meus

órgãos derreterem dentro do corpo.

– É ali? – Val para do meu lado.

Eu coloco a mão na frente da boca e balanço a cabeça.

– Não consigo fazer isso – eu digo, e minhas palavras não são mais que

um sussurro. – Acho que não vou aguentar.

Ela estica o braço e segura meu ombro com firmeza, sacudindo

levemente.

– Mas você tem que ir até lá. Ela é a sua filha.

– A casa... Meus pais...

– Estarei lá com você. Olha só até onde a gente já conseguiu chegar. Já

estamos aqui. É só seguir em frente mais um pouquinho.

Eu engulo seco.

– Tudo bem – eu digo. – Vamos lá.

ADAM

las não podem estar muito longe. Se eu fosse um cachorro, ainda

poderia sentir o seu cheiro. Eu queria poder ser um cachorro – então

eu teria certeza se estou tomando o rumo certo.

Estou morrendo de dúvida. E se eu estiver cruzando a cidade para

chegar ao lugar errado? E se toda a ação estiver acontecendo em algum

outro lugar que nem passou pela minha cabeça? Enfim, eu resolvo que o

melhor é não pensar muito nisso. Eu já decidi o que fazer – só me resta ir até

o fim.

Enquanto eu estava indo para a casa da minha avó, estava tão escuro

que não dava para ter ideia do tamanho do desastre. Agora que está claro, é

possível ver melhor o que o terremoto fez com a cidade: é impressionante.

Algo que parecia tão forte, tão grande, tão complexo – uma cidade inteira –

é só uma pilha de entulho. Com tantos prédios no chão, o céu está mais

aberto em Londres. E hoje o dia está ensolarado – o primeiro dia claro em

semanas. Claro demais, para ser honesto. Já é difícil o bastante decidir qual

caminho tomar sem o sol ofuscando a sua vista.

Ando com a cabeça baixa, tentando manter os olhos longe do céu e das

pessoas reunidas aqui e ali, além dos corpos espalhados pelas ruas. Tem

milhares de histórias acontecendo por onde eu passo. Eu as vi chegando,

elas viveram na minha cabeça por meses, e, de uma hora para outra, tudo

virou realidade. Será que isso devia me deixar satisfeito? Afinal, eu não

estava maluco. Mas não me sinto nada bem. Só sinto o horror que tomou

conta da cidade rasgando o meu corpo, se infiltrando nos ossos. Me sinto

vazio e inútil. Tentei ajudar, mas não adiantou nada. As pessoas morreram

E

do mesmo jeito. Milhares e milhares de pessoas. E elas continuam morrendo

neste exato momento.

Mas, mesmo assim, eu não quero parar de tentar. Não quero desistir.

De vez em quando levando a cabeça para saber se não as alcancei. Estou me

aproximando da vizinhança da casa da Sarah. Algumas das casas parecem

bem e eu começo a pensar que tudo pode dar certo. Eu vou chegar lá e vou

encontrá-las, minha avó, Sarah e Mia, e talvez elas estejam discutindo com

os pais da Sarah. Talvez minha avó esteja dizendo umas verdades... Mas

então eu vejo a fumaça, uma coluna preta crescendo na direção do céu.

E eu lembro...

O pesadelo da Sarah.

As chamas.

O calor.

O terror.

Eu paro por um momento e levo as mãos até a cabeça. As chamas. O

calor. Eu já estive lá antes. Eu sei como é. Mesmo suando por causa da

corrida, estou congelado por dentro.

A fumaça continua subindo e eu penso Esse é o único lugar aonde eu

não devia ir. É só eu virar as costas e ir embora e talvez Mia consiga se

salvar. Mas é o covarde dentro de mim quem está falando. Estou com medo

do fogo. Estou com medo de morrer. Mas sei que tenho que ir em frente.

Sarah viu, ela já sabia como ia acontecer. Estou lá com ela em seu pesadelo.

Ela está apavorada. Está com ódio de mim. Estou tirando Mia dela.

Mas eu não estou aqui para fazer mal a ninguém. Estou aqui para ajudar

a salvar a Mia. Odeio os malditos números. Eu quero poder mudá-los.

Quero acabar com eles, e se não conseguir, vou morrer tentando.

SARAH

udo o que eu quero, a única coisa que eu consegui querer desde que

eles tiraram Mia de mim, é vê-la mais uma vez. Segurá-la nos meus

braços.

Quando eu vejo a fumaça subindo dos telhados, sei que é na minha

casa, e de repente mergulho de novo no meu pesadelo. Tive que conviver

com ele se repetindo dentro da minha cabeça durante todo o último ano,

enquanto, do lado de fora, no mundo real, a vida seguia se divertindo às

minhas custas: Esta é a sua filha, este é o Adam, está chegando, está se

transformando em realidade. Sei que é esse o momento em que os dois vão

se encontrar, fantasia e realidade, futuro e presente. Mas está tudo muito

esquisito, inesperado. Estou aqui com a Val. Não há nem sinal do Adam.

Mas, com ou sem ele, vou ter que continuar. Vou ter que entrar no meu

pesadelo.

Começo a me sentir enjoada.

Não sei nem se Mia está viva ou morta. Eu sinto que ela está viva, mas

talvez isso seja só o que eu desejo que seja a verdade. Já sei qual é o número

dela agora. Vi a sua sentença de morte.

Enquanto nós duas pedalamos em direção da minha casa, me sinto

como se estivesse vendo tudo de fora, assistindo a um filme... ou um sonho.

Os músculos da minha perna estão duros, minhas mãos sangram e latejam,

segurando o guidão da bicicleta, mas não estou sentido nenhuma dor. O

cheiro forte da fumaça já tomou conta do ar – casas em chamas, móveis em

chamas, pessoas em chamas. Os sons são apenas os das pessoas e o do

incêndio, nada de carros passando, nada de aviões cruzando os ares, só o

T

fogo estalando e gente gritando de desespero.

Não tenho tempo de pensar que estou voltando para casa. Não tenho

tempo de notar que a rua continua mais ou menos do mesmo jeito, a não ser

por duas ou três árvores e um poste de iluminação caídos. Os portões de

casa estão abertos.

A estrutura de madeira do telhado está coberta de chamas e lançando

uma fumaça negra pelos ares, estalando e soltando faíscas.

Eu largo a bicicleta no meio do caminho e corro na direção da casa.

Tem um grupo de pessoas reunido ali na frente. Eu entro no meio e vou

abrindo caminho. Logo vejo Marty e Luke. Eles estão sentados no chão,

cercados por um mar de pernas. Me abaixo perto deles, no caminho de

pedras.

No começo, eles não parecem perceber que sou eu. É claro, eu raspei a

maior parte do meu cabelo depois que fui embora e ainda não deu tempo de

crescer muito.

– Luke, Marty, sou eu, Sarah.

Os dois pares de olhos começam a me encarar como se estivessem

procurando alguma coisa, então Marty dá um pulo na minha direção e me

abraça, enquanto Luke começa a chorar.

– Onde estão a mamãe e o papai? – eu pergunto.

– Lá dentro.

– Tinha algum bebê na casa com vocês?

Marty faz que sim com a cabeça.

– Ela veio ficar um tempo com a gente. Mas ela é muito chata. Desde

que chegou, não parou mais de chorar.

– Ela está dentro da casa também?

– Está.

– Onde? No andar de cima? No andar de baixo?

Ele não sabe dizer. Olho para a casa. O quarto da frente desabou sobre

a sala no andar de baixo.

– Eles estavam na parte da frente? Na sala de estar?

Ele só encolhe os ombros.

Alguém dá uma batidinha nas minhas costas. Eu olho para cima e vejo

uma mulher, a Sra. Dixon, que mora algumas casas adiante.

– Sarah? É mesmo você? – Ela me olha como se eu tivesse acabado de

chegar de outro planeta.

– Sou eu sim. Estou de volta.

Por onde você...? Seus pais... seus pais, Sarah. – Quando ela olha na

direção da casa, nós ouvimos uma explosão lá dentro e uma das janelas é

arremessada para fora com a moldura e tudo.

– Afastem-se. Afastem-se todos!

– Sra. Dixon, a senhora pode tomar conta dos garotos para mim? É

melhor levá-los para a rua. Aqui está muito perigoso.

Ela faz uma careta.

– Claro que sim, mas aonde você vai...?

A frente da casa está sendo consumida pelas chamas, então eu saio

correndo pelo lado, tentando proteger meu rosto do calor com os braços. A

cozinha fica no fundo. Espiando pelo vidro da porta, eu vejo um homem

caído, com o rosto virado para o chão.

– Meu Deus! – É o meu pai, eu tenho certeza.

– O que foi? – Val aparece do meu lado.

– Nada. Tem alguém ali, no chão.

– Jesus Santíssimo.

– Val, saia daqui. Vá para um lugar seguro.

– Eu não vou a lugar nenhum. Vim aqui para ajudar.

Não há tempo para ficar discutindo com ela. Tento girar a maçaneta,

mas a porta está trancada. Então eu pego um vaso de flores e jogo no vidro,

depois eu alcanço a chave do lado de dentro e abro a porta. Estou dentro.

Meu pai está largado no chão, completamente imóvel. Me abaixo e

coloco a mão no pescoço Dele. Está gelado. Eu aperto um pouco, tentando

sentir o pulso. Nada. Ele se foi. A cozinha está uma bagunça, mas não há

nenhum indício de que ele tenha sido derrubado por alguma coisa. Parece

que ele simplesmente caiu ali onde está.

Mesmo morto, Ele me dá medo. Eu sinto como se ele pudesse abrir os

olhos de repente, agarrar o meu braço e começar a gritar comigo.

Deixa disso, Sarah. Deixa Ele pra lá. Ele morreu. Onde está Mia? É isso

que importa agora.

Val está parada ao meu lado.

– Ele...?

– Sim – eu respondo.

Eu ando pelo corredor e começo a gritar: – Olá? Olá? Tem alguém aí? –

O corredor está bloqueado por uma parede que desabou. Não tem como

passar. Não vou poder chegar até a escada.

Eu faço uma concha com as mãos ao redor da boca e grito novamente:

– Olá! Tem alguém aí?

Nenhuma resposta, só a madeira rangendo sobre as nossas cabeças e o

som dos destroços e da poeira caindo do outro lado do corredor. E tem o

calor também, que parece estar vindo do andar de cima.

Mas então eu consigo escutar. Eu fico totalmente parada, prestando

atenção em cada barulhinho, e escuto. É um som que eu conheço tão bem

que mais parece que ele faz parte de mim. Val está atrás de mim no

corredor. Ela está gritando também. Eu me viro e coloco a mão no seu

braço.

– Shh. Escute.

– Está muito perigoso aqui, Sarah. A gente devia ir lá para fora.

– Você não está ouvindo? É a Mia!

Ela para e presta atenção por alguns segundos.

– Não, Sarah, sinto muito, mas não estou ouvindo.

Então um estrondo enorme vem lá de cima e depois o som de madeira

rachando. Nós agarramos uma o braço da outra e começamos a andar

abaixadas de volta para a cozinha, tentando proteger nossas cabeças com o

braço que ficou livre.

Uma coisa grande me acerta no ombro e eu solto um grito. O barulho

parece durar para sempre; uma chuva de entulho cai ao nosso redor.

Quando finalmente acaba, eu abro um pouco os olhos e tento espiar pelo

espaço no meio do escudo que fiz com os braços. Mal dá para ver o corredor

agora. Mais um pedaço do teto caiu, trazendo o lustre e metade da escada

junto com ele. Agora não é só a parte da frente que está pegando fogo, o

fundo também está. As chamas estão por toda parte, ao redor de nós.

Levanto um pouco e olho para cima. No telhado, a uns três ou quatro

metros, há um buraco e lá está o céu azul. As chamas estão sendo sugadas

pela abertura e se lançando para fora.

– Que merda! – Val diz. – A gente tem que sair daqui, Sarah. E tem

que ser agora.

O cabelo dela está coberto de poeira e cinzas, que continuam caindo lá

de cima e se acumulando no seu rosto, nos seus cílios e sobrancelhas.

– Mas escutei alguma coisa, Val. Era ela – eu digo, sem saber o que

fazer. Ela olha para o telhado e depois para mim de novo. Seus olhos estão

arregalados de medo.

– Não acho que você tenha escutado – ela diz. – Eu acho que

você queria ter escutado.

– Você acha que não conheço a voz da minha própria filha?

– Não é isso. É só que...

– Ela está viva, em algum lugar. Eu sei disso.

Ela coloca as mãos no meu ombro.

– Metade dessa casa já era. Ela pode estar em qualquer lugar.

– Ela está por perto. Eu a escutei. Não posso simplesmente largá-la

aqui. Ela precisa de mim.

– Mas não é seguro, querida. Nós temos que sair.

– Não posso ir.

– Sarah, se ela estiver ali embaixo – ela aponta com a cabeça para o

monte de destroços na direção de onde a sala de estar costumava ficar –,

então nós não vamos conseguir chegar até ela por aqui. O único jeito de

chegar seria por cima. Nós temos que sair daqui enquanto ainda é possível.

De repente, escutamos outro estrondo vindo do andar de cima.

– Por favor, Sarah!

Nós duas olhamos para trás, para o caminho de onde nós viemos. Tem

uma parede de fogo bloqueando a porta da cozinha, chamas amarelas e cor

de laranja subindo pelo teto, encontrando o céu lá em cima. Mas no meio

delas é possível ver uma forma mais escura, uma sombra. Os contornos

borrados começam a ficar mais definidos e nós duas tomamos um susto. É

um homem, caminhando na nossa direção, no meio das chamas.

O meu pai. Meu pai está aqui.

– Mas não pode ser. Ele está morto. Eu O vi. Eu senti a frieza da morte

no Seu pescoço. Não é Ele, é o...

– Adam? – Val sussurra. – Oh, meu Deus, é o Adam, ele está aqui.

Ela dá um pulo para frente e cai nos braços dele, quando ele surge do

meio das chamas. Ele está diferente. Parece mais velho, talvez. Eu pisco e o

meu pesadelo toma conta dos meus pensamentos. O estranho com a

cicatriz no rosto tira minha filha de mim e depois entra com ela no meio das

chamas.

Minha filha. Minha filha. Onde ela está?

– É só dar quatro passos para lá e você atravessa o fogo – Adam está

gritando para ser ouvido no meio do barulho. – Vai logo lá pra fora, vó. Eu

estou aqui agora. Eu vou resolver as coisas aqui dentro.

Ela segura seus braços com força, seus olhos penetrantes olhando direto

nos dele.

– Vó, não vou discutir. Vai logo. Quatro passos e você está fora. Nós

estaremos atrás de você.

Ela concorda. – Tudo bem. Mas, Adam...?

– Não agora. Só vai embora desse lugar. Vejo você lá fora em um

minuto.

Ele passa o braço ao redor dos ombros dela e a vira suavemente

apontando a direção certa. Ela olha para ele novamente e então meio anda

e meio corre na direção da cozinha. Ela se transforma em uma sombra por

um momento e depois desaparece de vez.

– Adam... – eu o chamo, mas depois paro de falar. Eu escuto um choro

fraco novamente, parece até um filhotinho de algum animal. Desta vez,

Adam ouve também. Eu percebo no seu olhar.

O som está abafado e parece vir do nosso lado. Nós dois olhamos ao

mesmo tempo para a porta do armário embaixo da escada. Ela tem um

puxador pequeno com um botão no meio que você tem que apertar para

abrir. Eu alcanço o botão primeiro e o aperto. Ele queima a ponta do meu

dedo quando eu o toco. Eu abro a porta e deixo escapar um grito enquanto

levo a mão até o nariz. Um fedor horrível sai lá de dentro: vinagre, bebida e

sei lá mais o que.

Está escuro dentro do armário, por isso demora alguns segundos para

meus olhos se acostumarem, mas então eu consigo vê-las. Mia, viva, com a

pele avermelhada, se contorcendo no colo da minha mãe. Um lado do

rostinho dela está coberto de sangue, mas ele não é seu. No topo da cabeça

da minha mãe há uma ferida bem grande e mais uma porção de arranhões

em seu rosto. O sangue escorreu por ele e começou a sujar Mia, mas ela não

percebeu. Seus olhos estão abertos e ela está olhando bem na minha

direção, mas sem conseguir ver nada. Ela está morta.

Eu entro no armário engatinhando e me aproximo das duas. O chão

está cheio de cacos de vidro, garrafas quebradas e o que tinha dentro delas –

picles, uísque, gin. Como uma porção de facas afiadas, os cacos de vidro

cortam a minha calça e a pele dos meus joelhos e da minha canela. Quando

chego até as duas, tiro Mia delicadamente dos braços da minha mãe.

– Tudo bem. Está tudo bem agora, querida – eu falo baixinho no

ouvido dela. – Nós encontramos você.

Eu a abraço forte e dou um beijo no seu rostinho, sentindo o calor do

seu corpo e o seu cheirinho de bebê. Ela está ardendo. A roupinha está bem

molhada no lugar da fralda e ela está cheirando a xixi e vômito. Mas esse

vômito e esse xixi são os dela e eu sinto o cheiro deles com o maior prazer.

A minha garotinha.

Minha vida.

Viva e de volta aos meus braços.

ADAM

arah mergulha dentro do armário. Não consigo ver direito o que está

acontecendo.

– Ela está aí? Você a encontrou? – estou gritando, mas parece que ela

não está ouvindo. As vigas de madeira queimam lá no andar de cima, e é

possível sentir aqui embaixo o calor. Eu estou tentando me manter calmo,

estou me esforçando para pensar e não só sentir, para ficar no comando da

situação e tomar as decisões certas, mas eu já estive aqui antes. Meu corpo

se lembra do que todo esse calor é capaz, minha pele está gritando para

mim: Você já sabe como é. De novo não! É melhor ir embora. Vai

logo! Estou ensopado de suor. Cada som, cada movimento acima da minha

cabeça me faz dar um passo para trás e querer desistir. Agora já era. Vai

cair tudo em cima de mim.

– Sarah! – eu dou outro grito que soa exatamente como ele é: um grito

de terror. – Sarah! Ela está aí? Traz logo ela pra cá!

Estou escutando o choro. Me abaixo e coloco a cabeça para dentro do

armário, tentando ver algo na escuridão. Tem três pessoas espremidas ali:

Mia, Sarah e a mãe dela.

– Meu Deus! – A mãe da Sarah está morta, metade da sua cabeça está

afundada.

Sarah está pegando Mia. Ela continua chorando, mas pelo menos está

viva.

– Pelo amor de Deus, Sarah, vai logo. A gente tem que sair daqui

agora!

Eu me afasto para dar espaço para ela sair e então escuto um som de

S

alguma coisa quebrando em cima de mim. Eu olho rápido e tem uma

madeira despencando na minha direção.

– Cacete!

Eu pulo para dentro do armário e dou um encontrão no corpo da mãe

da Sarah. O corpo tomba para o lado, ao mesmo tempo em que a viga de

madeira se espatifa no chão, a meio metro de distância do meu pé. O

estrondo e o grito apavorado da Sarah se misturam.

– Meu Deus do céu! Meu Deu do céu! – Me viro e vejo o que

aconteceu atrás de mim. O pedaço de madeira em chamas está caído no

meio do corredor, mandando calor e chamas na nossa direção. Outros

destroços caem em cima dele e as partes que não estavam queimando logo

começam a pegar fogo também.

Sarah não para de gritar. Nesse espaço minúsculo em que nós estamos,

ela está fazendo quase tanto barulho quanto Mia. Eu olho novamente para

o fogo. As chamas estão praticamente bloqueando a saída. Nós estamos

presos. Está esquentando cada vez mais aqui e não vai demorar muito para o

batente começar a pegar fogo também e as chamas passarem para o lado de

dentro. Laranja, amarelo e branco. É luz demais, brilho demais para os meus

olhos, mas não consigo parar de olhar. Vejo um rosto no meio das

chamas. Júnior está cambaleando para trás, apertando a barriga com as

mãos e eu estou caído. As chamas estão por todo lado... O calor está

derretendo a minha pele, assando o meu corpo.

A primeira chama surge na parte de cima do batente. Eu me afasto dela

tanto quanto posso, pisando em cacos de vidro, até estar bem na frente da

Sarah. A boca dela está bem no meu ouvido e ela ainda não parou de gritar.

– Sarah – eu grito de volta. – Você tem que parar. A Mia está

assustada!

Seus gritos se transformam em palavras.

– O fogo! Já está aqui. Estamos presos!

– Eu sei.

– E o que a gente vai fazer?

Olhar para fora do armário é como olhar para uma fornalha. É loucura

entrar ali. O melhor a fazer seria eu me virar de costas para o fogo, colocar

os braços ao redor da Sarah e da Mia e abraçá-las até o fim chegar. Eu devia

aproveitar essa última chance de dizer a elas o quanto as amo, então fechar

os olhos e nunca mais abrir. E quando os bombeiros chegassem aqui, eles

encontrariam quatro corpos.

– Adam? Adam!

Ela está olhando para mim, esperando uma resposta. Não tenho

nenhuma. Não consigo pensar em nenhum plano e estou tão apavorado

quanto ela. Mas então o seu número acende na minha cabeça e eu me

lembro do que ele significa. Nós vamos envelhecer juntos. Ela vai partir

tranquilamente. Nosso destino não é morrer aqui. O número dela é um que

eu não quero mudar. Eu me apoiei nele desde a primeira vez que a vi, foi

isso que me ajudou a aguentar tudo o que aconteceu nos últimos meses.

Vou me apoiar nele de novo, para continuar.

– A gente vai ter que atravessar o fogo. – Essa é a nossa única opção.

– Não consigo. Não vai dar.

– Vou primeiro para ver qual é a situação do outro lado. Quando eu te

chamar, você vem atrás de mim. Nós vamos sair desta situação juntos.

Ela não está mais gritando, mas sim chorando, soltando gemidos e

soluçando.

– A gente vai conseguir, Sarah. A gente vai conseguir!

Sei como eu vou me sentir. Já estive aqui antes.

Não pense. Você não precisa pensar em nada, só fazer. É só fazer. Vá

em frente. Vá em frente agora!

Eu dou um passo à frente e coloco as mãos na parte de baixo do batente

da porta, uma de cada lado. A tinta está se desfazendo. Eu dou um impulso

para frente e saio de dentro do armário, tentando me manter abaixado. O

calor não me deixa respirar direito. Parece que nós estamos cercados pelas

chamas. Sei que o corredor está bloqueado, então nossa melhor aposta é

voltar para a cozinha, de onde nós viemos e para onde eu mandei minha

avó. O fogo está tão perto que não consigo ver o que tem do outro lado.

Será que o teto da cozinha desabou ou será que o caminho está livre? Não

há tempo para se pensar nem ter certeza de nada. Meu cabelo começa a

chiar. Eu estou queimando aqui dentro.

– Sarah, a gente tem que ir agora!

Ela fica me encarando da escuridão do armário como se fosse um

animal acuado, sem se mexer um centímetro sequer.

– Não consigo.

– Minha avó já passou, lembra? Vai dar certo. Mas você tem que ir

agora. Rápido!

Então ela engatinha na minha direção, segurando Mia com um dos

braços, deixando-a bem perto do seu corpo. Eu coloco a mão embaixo dos

seus cotovelos e a ajudo a levantar. Seus olhos estão vermelhos. Ela se

esforça para mantê-los abertos, apesar do brilho ofuscante, da fumaça e do

calor.

– Meu Deus, Adam. Não consigo.

Ela se abaixa.

– Só quatro passos e você está fora. Quatro passos, Sarah.

– Não vai dar certo. Não vai dar.

– A gente não tem tempo pra isso!

Estou tentando cobri-la, colocando meu corpo entre ela e as chamas.

Sinto a pele das minhas costas queimando.

– Me dá o bebê, Sarah. Passa ela pra cá.

Então ela olha para mim. Eu vejo as chamas refletidas em seus olhos e,

no meio de todo esse caos, tudo fica quieto por um instante. Nós dois

sabemos que fomos lançados pelo destino no centro do seu pesadelo.

Então é assim.

É assim que vai ser.

Ela hesita por um, dois segundos. As costas da minha blusa estão

pegando fogo, eu posso sentir.

– Sarah! Deixe a Mia comigo!

Finalmente, Sarah passa Mia para mim. Ela se agita um pouco nos meus

braços, mas eu consigo segurá-la.

– Agora vai logo!

Ela dá um passo para longe de mim. Por uma fração de segundo, seu

corpo é só uma sombra no meio das chamas, e então ela desaparece. Mia

está chorando. Eu também estou chorando agora. Eu achava que sabia o

que era sentir dor. Eu achava que conhecia o terror. Mas eu estava

enganado.

Isso é dor.

Isso é terror.

Eu seguro Mia bem junto ao meu corpo, me curvando ao redor dela,

tentando cobri-la com os braços.

Ela está tão quente quanto eu e, enquanto eu a seguro, seu corpo fica

rígido e seus olhos viram para dentro da cabeça. Seus braços e pernas

começam a se contrair. Ela está tendo uma convulsão.

Mia. Mia. Não agora. Não hoje. Resista, Mia, você tem que resistir.

Eu a aperto ainda mais contra o meu corpo e entro com ela no fogo.

SARAH

le me diz que são somente quatro passos. Um, dois, três, quatro. Os

números ficam na cabeça enquanto me afasto dele, enquanto me

afasto da minha filha. Minha mente grita os números enquanto o

calor vai tomando conta do meu corpo. Eu fecho os olhos e vou em frente.

Um, dois, três, quatro.

Abro os olhos, mas ainda estou no meio do incêndio. O fogo está

consumindo tudo ao meu redor. Ele mentiu! Ele mentiu para mim! Confiei

nele e ele me enganou. Agora ele está lá com a minha garotinha e eu nunca

mais vou vê-los de novo.

Dou meia-volta e fico ali parada. Preciso voltar. Eu nunca devia ter

deixado Mia. O calor me obriga a fechar os olhos e, em vez de vê-la, eu vejo

o Adam, seus olhos castanho-escuros, olhando direto para mim, olhando

dentro de mim. Sinto seu rosto como na primeira vez que eu estendi o braço

e o toquei do outro lado da mesa na escola, sua pele era tão macia. Adam.

O garoto que veio atrás de mim – uma, duas, três vezes... Que me levou

para casa... Que me deu sua própria cama... Que me salvou quando eu

estava prestes a morrer de frio à beira do canal... Que ficou em Londres por

minha causa, quando ele devia ter ido embora... Que me beijou!

De repente, alguém agarra a minha mão e me vira novamente para o

outro lado. Sinto os ossos dos dedos finos que estão apertando os meus e me

puxando.

– É por aqui. Só mais alguns passos, querida.

Eu mantenho os olhos fechados e começo a andar. O chão está uma

bagunça e, a cada passo que eu dou, os meus pés tropeçam em algo. Eu

E

tento levantá-los mais enquanto ando, esperando conseguir passar por cima

das coisas no chão – tudo de olhos fechados.

E, de repente, o calor não está mais lá. O som da destruição sumiu dos

meus ouvidos. O corredor acabou e eu estou na cozinha.

Há um espaço vazio no lugar em que o corpo do meu pai estava e uma

trilha no meio dos destroços até a porta. Pessoas entram correndo. Mãos me

batem nos lugares onde minha roupa está pegando fogo e me puxam para

fora. Vozes disparam uma enxurrada de perguntas. O ar fresco invade os

meus pulmões, forçando passagem através da fumaça que estava dentro

deles.

Tento me livrar das mãos e das vozes. Quero voltar. Tenho que

encontrar Adam e Mia. Preciso buscá-los.

De repente, as vozes se unem em um coro surpreso.

– Olhem!

Eu me viro e vejo Adam passando pela porta da cozinha. Ele está

pegando fogo, as chamas se agitando em sua roupa e em seu cabelo,

enquanto ele caminha.

– Meu Deus do céu!

No instante seguinte, ele está cercado de gente. E eu não consigo mais

vê-lo atrás daquela parede de costas, pernas e pés.

– Adam! – eu grito. – Adam!

A parede se abre e eu o vejo, caído no chão, embrulhado em alguma

coisa dos pés à cabeça. Eles o estão rolando de um lado para outro. E no

meio de toda essa agitação, dos gritos e chamados, meus ouvidos percebem

a voz que eu precisava ouvir: a voz que eu amo tanto que virou parte de

mim. Mia. Ela está chorando. Ela está viva.

Saio correndo no meio da multidão e passo pela abertura pela qual eu

estava olhando para ele. Eles estão desenrolando o cobertor agora. As

pessoas ficam em silêncio quando o seu corpo aparece; sua cabeça, seus

ombros, seu peito. Ele está virado de lado, com as costas para mim. Todo o

cabelo da parte de trás da sua cabeça se foi, suas roupas foram queimadas.

Sua pele está toda repuxada, derretida.

Ele está de olhos fechados, mas a parte da frente, seu rosto e seus

braços não estão tão ruins. Foram as suas costas que tiveram que suportar

todo o calor. Ele ainda está com Mia nos braços. Os braços e pernas dela

estão duros, de um jeito esquisito.

– Pode deixar ela comigo agora – eu digo, colocando cuidadosamente

as mãos embaixo do corpo dela e a tirando dos braços dele. Assim que eu a

pego, seu corpinho inteiro relaxa. O choro começa a diminuir e, depois de

mais alguns soluços, ela para e abre os olhos.

– Mia – eu digo. – Mia.

Ela fica me observando com seus olhos azuis – o azul mais vivo que eu

já vi.

– Mia. Você está segura agora. Está tudo bem. A mamãe está aqui.

– Tudo bem com ela?

A voz do Adam não é mais do que um sussurro. Seus olhos também

estão abertos agora.

– Sim – eu respondo –, ela está bem. Olhe só, ela está bem. Você a

salvou.

Eu a seguro perto do seu rosto, para ele poder vê-la, mas ele fecha os

olhos de novo.

– Eu não posso – ele diz. – Não posso olhar.

– Pode sim. Olhe só. Ela está bem.

Mia da um gritinho e estende os braços na direção dele. Os pelinhos em

sua pele estão queimados, mas a pele em si está rosada, saudável e perfeita.

Ela consegue tocar o rosto dele e isso o faz abrir os olhos.

– Meu Deus – ele suspira.

– O que foi?

– Mia – ele diz.

E depois de dizer o nome dela, ele começa a chorar.

ADAM

convulsão não a matou. Ela está nervosa, mas está bem e de volta

aos braços da Sarah, onde ela devia estar.

Só tem uma coisa que está diferente e que está me deixando

confuso. É estranho demais. Eu não consigo entender.

Meus olhos se enchem de lágrimas. Eu tento me livrar delas piscando.

Não quero parar de olhar para o rosto dela, para os seus olhos.

– Está tudo bem – Sarah fica dizendo. – Ela está bem. Você a salvou.

É, eu consegui. Ao menos é isso que parece. Mas ainda não consegui

entender. É estranho demais...

Ela está tão perto de mim. Sua mãozinha está no meu rosto, me

tocando. Ela não sorri. Ela só me olha, toda séria. Ela está mais calma agora

e continua olhando para mim e eu olho para ela.

Me lembro de escutar as pessoas falando sobre almas velhas, mas nunca

entendi muito do que se tratava. Agora eu acho que talvez saiba o que isso

quer dizer. Tem alguma coisa intemporal na pessoa que está olhando para

mim. Ela não pode ter só um mês de idade; ela viu coisas, passou por

lugares. Ela sabe. Ela entende.

O rosto dela é a última coisa que eu vejo antes de desmaiar. E ele

continua lá, enquanto eu sinto o corpo afundando e apago de vez. Seu

rostinho de bebê flutua na minha frente, atravessa os meus olhos e entra na

minha cabeça. Ele se transforma dentro de mim; de colorido, passa para

preto e branco, depois vira um negativo, o que era claro fica escuro e vice-

versa. Ele vira do avesso, seus traços se separam e começam a dançar, depois

se juntam de novo, mas na ordem errada, como se quisessem me desafiar a

A

dizer como um rosto deveria ser. É um jogo. Eu sei que é só um jogo, mas

quero, mais do que tudo no mundo, que esse rosto volte a ser como devia.

Os pedaços têm que se encaixar de uma maneira que faça sentido. Se eu

não conseguir encaixá-los, tudo vai começar a ir mal de novo. Se eu não

conseguir, talvez acabe até morrendo.

Antes havia muito barulho – estalos, chiados, rachaduras, estrondos,

gritos, choros.

Mas não há mais nenhum barulho agora, só um silêncio que soa como

um grito desesperado.

SARAH

como se fosse um filme, um filme de desastre. Estou nele, mas

também estou assistindo às cenas que se desenrolam ao meu redor.

A casa está completamente tomada pelas chamas agora. Não há

mais nada para salvar. No jardim dos fundos, as pessoas estão amontoadas

em grupos; um ao redor do Adam, outro ao redor de mim e da minha Mia.

Todas as coisas que se costuma ver no jardim de uma casa como a minha

continuam lá; um par de balanços, um escorregador, uma cama elástica. O

corpo do meu pai está caído a um metro de uma bola pula-pula. Ela era

minha e depois ficou para os meninos. Os olhos e o sorriso pintados nela

estão me encarando. O rosto do meu pai está coberto. Alguém se aproxima

e coloca um casaco em cima do seu corpo, mas as mãos e as pernas ficam

para fora.

Olhando para ele, me pergunto como deveria me sentir. Eu não sinto

nada, ainda não. É só um corpo debaixo de um casaco. É mais perturbador

pensar na minha mãe enfiada no armário embaixo da escada. As chamas

devem ter chegado até ela a essa altura. Ela está sendo cremada. É horrível

pensar nisso.

Eu olho para a casa novamente.

– Obrigada – eu digo, dentro da minha cabeça. – Eu amo você, mãe. –

Será que amo mesmo? A mulher que preferiu fechar os olhos? Eu a amava?

Eu a amo nesse momento, depois de tudo o que passei? As chamas estão

rugindo agora, como um tipo de animal, lançando faíscas e fumaça pelos

ares. Curvo minha cabeça para trás e olho para cima, tentando ver onde a

nuvem de fumaça termina, mas não consigo.

É

– Nós estamos perdendo ele – alguém grita. As palavras me trazem de

volta à terra firme. É o Adam. Eles estão falando dele.

Ele ainda está deitado de lado, mas seus olhos estão fechados agora. A

pele das suas costas e dos seus ombros está pálida – as queimaduras ficaram

brancas.

– Ele entrou em choque!

Todas essas semanas e meses, no meu pesadelo, eu me desesperava por

causa da Mia. Meu pânico, meu terror se concentravam nela. Era isso que

me assombrava: eu tinha certeza que ela ia morrer.

Eu nunca pensei que podia ser o Adam.

– Não vá, Adam. Não vá!

Ele não reage. Nenhum movimento. Seus olhos estão abertos agora,

mas eles estão fixos em um único ponto. Seu rosto começa a relaxar. Ele

está praticamente morto.

Coloco Mia no chão devagar, então seguro o rosto do Adam com as

duas mãos, me abaixo e fico quase deitada, com meu rosto bem na frente do

dele.

– Adam, olhe para mim. Olhe para mim, agora.

Seus olhos estão abertos, mas ele não está me vendo. Não há nenhuma

conexão entre nós.

– Adam. Por favor, por favor.

Eu me aproximo mais e o beijo suavemente. Sua boca está com gosto de

fumaça. Ele não me beija de volta.

– É o fim – alguém diz.

– Não! Não pode ser! – Eu estico o pescoço um pouco e beijo seus

olhos. Quando me afasto novamente, as lágrimas rolam do meu rosto e

caem nos cílios dele, elas se derramam como pingos de chuva.

ADAM

u costumava odiar essa coisa de ver os números. Eles sempre me

deram medo. Eu não sabia por que tinha recebido esse dom, essa

maldição. Mas é um número que me salva agora – o da Sarah.

Eu estou em um túnel, um longo tubo feito de escuridão, mas há uma

luz no final; luz, calor e alguém esperando por mim. Minha mãe. A

aparência dela é a mesma com que me acostumei a vida toda, não a dos

últimos dias de luta contra o câncer. Ela está com a mão estendida na

minha direção. Tento alcançá-la, mas nossos dedos não se tocam. Ela está

sorrindo. Como é bom poder vê-la novamente. Nunca pensei que isso

aconteceria. Ela está falando comigo, mas seus lábios não se movem. Estou

escutando os seus pensamentos.

– O que você está fazendo aqui, meu amor? Não é a sua hora ainda.

Eu consigo escutar outras vozes também, chamando, gritando, mas elas

estão a quilômetros de distância.

– É o fim.

– Não! Não pode ser!

E então alguém está perto de mim, bem perto, eu abro os olhos, mas

não consigo ver quem é. Eu só consigo ver a luz – de alguma forma, a luz é a

minha mãe e minha mãe é essa luz. Isso é tudo que quero ver. Senti tanta

saudade dela.

Alguma coisa cai nos meus olhos, algo que os irrita um pouco. Eu pisco

e agora estou vendo outro rosto: Sarah. Na mesma hora, o número dela

inunda meu corpo e eu me sinto como na primeira vez em que a vi na

escola. É meio chocante para mim pensar como alguém é capaz de deixar

E

esse mundo tão tranquilamente, cercado de amor e luz. E eu sei que vou

estar lá também. Vou estar com ela, vou abraçá-la e caminhar ao seu lado.

Eu sou parte de tudo isso, parte da vida dela. O que significa que eu não

posso partir agora. Tenho que ficar.

O túnel desapareceu, minha mãe desapareceu, mas tudo bem. Só vê-la

já foi o bastante, por enquanto.

SARAH

le está piscando. Uma, duas, três vezes. E então ele olha para mim.

– Adam – eu digo. – Volte. Volte para mim.

E no mesmo instante, na mesma fração de segundo, ele está comigo

de novo. Queria tanto poder guardá-lo comigo e nunca mais deixá-lo se

afastar. Esse sentimento é forte demais, é como uma dor, mas sei que só o

que eu posso fazer agora é olhar. Tudo o que tenho são meus olhos olhando

para os dele e os dele olhando para os meus. E tudo mais desaparece. Somos

só nós dois de novo. Nós temos o agora, esse minuto, esse segundo.

– Volte para mim, Adam. Preciso de você.

Sua boca está se mexendo agora. Eu me esforço para escutar suas

palavras.

– Eu te amo, Sarah.

– Eu te amo também. Sempre amei. O problema é que eu estava com

medo.

– Estou com medo agora...

Ele está tentando dizer mais alguma coisa, procurando dentro de si

força o bastante para fazer as palavras saírem.

– Não se preocupe, meu querido – eu digo. – Depois você me diz. Nós

temos todo o tempo agora.

– Os números... – ele sussurra.

– Não se preocupe. Não pense neles. Não agora.

– Mas, Sarah, você não entende.

– O quê? O que foi?

– O número da Mia...

E

Eu congelo. O número dela era o dia de hoje. Meu Deus do céu.

Não! Eu me inclino um pouco mais e meu ouvido fica bem na frente da

boca dele. Sua voz e sua respiração se misturam. Parece que ele está

tentando me falar uma lista de números. Não estou entendendo direito.

– Dois. Vinte. Dois...

– Adam? Adam, o que você está tentando dizer?

– O número da Mia – ele diz, sua voz não é mais que um suspiro –, ele

mudou.

– Oh, meu Deus. Você quer dizer que ela está mesmo salva? Ela vai

ficar bem?

– Eu não sei ao certo. Não estou entendendo o que aconteceu.

– Por quê? Se não é hoje, então ela vai ficar bem, não é? Adam, diga-

me. Qual é o número da Mia?

– 2022054 – ele sussurra. – Agora ele é o mesmo que o da minha avó.

Eu tenho que dizer isso a ela. Onde ela está? Onde está minha avó?

Eu me levanto e procuro na multidão de rostos que estão nos

observando. Ela devia estar por perto, mas eu não a encontro. Eu fico na

ponta dos pés, tentando olhar de cima, depois me abaixo e tento ver no

meio das pernas ao nosso redor.

E, de repente, eu me dou conta de que eu não a vejo desde que o Adam

colocou o braço ao redor do seu ombro e mostrou o caminho através das

chamas. Ela não estava no jardim quando eu saí. Mas escutei sua voz lá

dentro. Eu senti sua mão pegando a minha e me guiando no corredor

quando saí de lá. Não senti?

– Sarah? – Adam está olhado direto para mim agora. – Sarah, onde está

a minha avó?

SARAH

le não vai abandoná-la no meio dos destroços. Ele está machucado,

muito machucado. Nós precisamos levá-lo ao hospital para eles

tratarem as queimaduras nas suas costas. Mas ele não quer ir.

– Ela está lá – ele diz, olhando na direção da casa. – Minha avó está lá.

Não vou a lugar nenhum.

Se ele tivesse forças, já teria voltado lá para dentro, mas o fogo está

muito intenso e, além disso, ele está muito mal. Ele só teve energia para

escapar com a própria vida. A própria vida e a da Mia também.

Nenhuma equipe dos bombeiros apareceu para combater o fogo, só um

monte de vizinhos curiosos, olhando sem poder fazer nada, enquanto a casa

é incinerada. Um por um, eles vão embora para suas próprias casas

destruídas ou em busca de ajuda. Nós continuamos no jardim – Adam,

Marty, Luke, Mia e eu – esperando e observando. Nós esperamos até as

chamas acabarem e a coluna de fumaça diminuir até quase sumir. Passamos

a noite acampados, enquanto, a poucos metros, as cinzas brilham.

De manhã, conseguimos ter a ideia de como nossa tarefa não tem

esperança. A casa inteira desabou, foi reduzida a uma pilha de cinzas,

madeira queimada e metal... e, em algum lugar, ossos humanos. Minha mãe

está lá – e a Val também.

Adam fica olhando os restos incandescentes.

– Adam – eu digo –, nós não podemos.

Quero ir embora daqui. Quero encontrar ajuda para ele. Durante a

noite, a pele das suas costas inchou e criou bolhas. Ele diz que não está

doendo, mas dói em mim só de olhar para aquilo. Eu não sei como alguém

E

queimado desse jeito consegue sobreviver. Mas estou feliz que ele esteja

vivo. É verdade o que dizem: você não dá valor ao que tem até que perde. E

eu estive bem perto de perdê-lo. Acho que cheguei a perdê-lo por alguns

instantes. Mas então ele voltou para mim.

– Ela se foi – eu digo, da maneira mais gentil possível. – Sinto muito,

Adam.

– Nós não podemos deixá-la aqui.

De repente, eu estou de volta à rua Carlton Villas e Val está olhando

para a montanha de entulho que costumava ser a sua casa. Ela não queria

deixá-la para trás, mas eu a fiz vir comigo. E agora, eu vou ter que fazer

Adam deixá-la para trás e vir comigo também.

– Não há mais nada que nós possamos fazer por ela – eu digo. – Nós

precisamos de um médico. Você precisa de um médico.

– Por quê?

Eu achei que ele estivesse perguntando sobre as suas queimaduras. Ele

não pode vê-las direito sozinho, então não sabe exatamente quão ruins elas

estão. Mas então ele diz: – Por que ela morreu, Sarah? Como o número dela

mudou?

– Eu não sei. Ela achava que você podia mudar os números. Ela me

disse isso e eu acho que você conseguiu, Adam. Não sei quantas pessoas

foram embora da cidade, mas devem ter sido milhares. Você as salvou. E

você salvou a Mia.

Então, ele olha para mim.

– Não tenho certeza sobre as milhares de pessoas que saíram, eu não sei

qual era o número delas, mas Mia... Mia é diferente. Eu sabia qual era o

número dela.

– É verdade. Eu o vi no seu caderno.

– Eu estava errado. Os números que vi estavam errados.

– Não. Você os viu certo, mas eles mudaram. Você os fez mudar.

Ele olha para o lado e seus olhos se enchem de lágrimas.

– Eu queria ter salvado a Mia, mas eu nunca... nunca...

Ele nem precisa dizer o resto. Eu sei. Ele nunca quis que algo

acontecesse com a Val.

– Fui eu quem fez isso, Sarah? Matei a minha vó?

– Não, claro que não. Você salvou pessoas, você... – Eu paro. Ele está

olhando para mim de novo e seus olhos estão cheios de angústia. Eu queria

poder dizer a coisa certa, fazer as coisas melhorarem. Mas tem vezes em que

a merda insiste em sair.

– Adam, eu não sei. Não entendo nada sobre os números. Não faço a

menor ideia de quais são as regras deles. Talvez tenha sido você. Talvez

tenha sido ela mesma. Ela queria ajudar. Ela o amava demais, Adam, e era

uma mulher poderosa.

– Eu a odiei, Sarah, a odiei de verdade... mas também a amei. Eu nunca

disse isso a ela.

– Você não precisava. Ela sabia de qualquer jeito.

– Sabia?

– É claro que sim.

Ele balança a cabeça e olha para o lado.

– Adam – eu digo –, você salvou milhares de vidas. Você é um herói. –

Ele não olha de volta para mim. Não responde. Mas uma lágrima cai de um

olho e escorre pela pele cicatrizada no seu rosto.

ADAM

ós permanecemos em Londres por semanas. Primeiro no hospital

de campanha que eles montaram na Trafalgar Square. Depois,

quando eles disseram que eu estava fora de perigo e as

queimaduras estavam melhorando, nós nos mudamos para o acampamento

de Hyde Park. Não sei muito bem o que estamos esperando. Acho que, no

fundo, queremos acreditar que as coisas vão voltar ao normal em breve.

Mas, enquanto os dias se transformam em semanas, nada parece mudar, a

não ser pelas filas que só aumentam e pelas porções diárias de comida que

diminuem.

A cidade fica escura à noite. A rede elétrica ainda não funciona. Temos

geradores aqui, mas eles apagam as luzes às dez e nós mergulhamos na

escuridão, até o amanhecer.

Estamos em cinco na barraca, mas parece que são quinhentos depois de

mais uma noite com os garotos bagunçando, indo de um lado para outro e

chorando. Não é culpa deles. As coisas que a Sarah via em seus pesadelos

fazem parte da vida de todos nós agora, até dos garotos. Principalmente

deles. Quando um deles começa a chorar, o outro também acorda e chora, e

não demora muito para estarem todos acordados na barraca. Sarah está

tentando fazer o melhor que pode, mas não é dela que eles precisam no

meio da noite. Eles querem a mãe. Mas ela nunca mais vai poder dar

carinho a eles novamente.

Eu também tenho pesadelos. Vejo a mesma coisa repetidamente – uma

figura frágil se afastando de mim no meio das chamas. Eu não consigo

alcançá-la. Ela não responde aos meus chamados. Ela nunca se vira para

N

mim. Só me resta ficar ali parado, olhando, enquanto as chamas tomam

conta dela.

Sarah mal consegue dormir, tendo que cuidar dos garotos e da Mia. A

verdade é que Mia não dá dor de cabeça. Ela não chora. Ela mama, dorme e

então mama um pouco mais. Qualquer um pensaria que um bebê de três

meses ia ser o maior problema de todos em um lugar como esse, mas ela é

um amor: calma, controlada, feliz até. Quando estou com os nervos à flor da

pele, quando penso que não vou mais conseguir aguentar, eu a pego e a

abraço, e então começo a me sentir humano de novo.

Os soldados que estão cuidando do acampamento começam a regular

até a água e então eu sei que é hora de sair daqui.

– E para onde vamos? – Sarah me pergunta.

– Sei lá. Algum lugar em que as pessoas plantem alguma coisa para

comer. Algum lugar perto de um rio, que nos forneça tanta água quanto for

preciso. Algum lugar perto de um bosque, assim nós vamos poder fazer uma

fogueira para nos aquecer.

Ela suspira.

– Você quer ir para o campo. Não tem nada lá, Adam. A gente vai

morrer de fome.

– E você chama isso aqui de viver? Tem gente com cólera no

acampamento. Eles estão mantendo a doença em segredo, mas escutei que

três pessoas já morreram. Temos que tirar as crianças deste lugar, Sarah.

Este acampamento é ruim para elas. É ruim para qualquer um.

Ela faz uma careta e abraça Mia.

– Os números dos garotos são ruins, Adam? Quais são os números

deles?

Meu estômago começa a revirar. Nós não conversamos mais sobre os

números. Eu tentei bloqueá-los, não olhar mais, não pensar mais sobre isso,

porque, quando eu penso, minha cabeça sai dos eixos. Agora eles estão

invadindo meus pensamentos novamente, como uma maldita explosão.

– Os números não importam, Sarah! – sem me dar conta, eu estou

gritando. – Você não pode confiar neles. Os números mudam. Um número

ruim pode se transformar em um bom. E um bom pode ficar ruim.

Ela estica a mão e sacode o meu braço.

– Tudo bem, Adam. Tudo bem. Pode ficar calmo. Nós vamos partir.

Vamos embora daqui.

Tento controlar minha respiração e parar de balançar para frente e para

trás.

– Desculpe-me, Sarah. Eu não queria ficar desse jeito. É só que... eu...

– Eu sei, eu sei – ela fala suavemente. – Está tarde para irmos agora.

Amanhã nós partimos.

Quando amanhece, nós arrumamos em silêncio as poucas coisas que

ainda nos restam.

– Estamos fazendo a coisa certa? – Sarah pergunta assim que nós

deixamos o acampamento. Ela tem círculos escuros ao redor dos olhos e seu

rosto está tão magro. Mesmo assim, continua linda. Não consigo evitar ficar

olhando para ela e, enquanto ela me observa esperando uma resposta, seu

número inunda o meu corpo novamente e eu quero que essa sensação seja

real. O número dela significa esperança, amor e luz. O número dela me faz

querer acreditar em finais felizes.

Seguro sua cabeça com as duas mãos e a beijo com carinho.

– Sim, Sarah – eu digo. – Nós estamos fazendo a coisa certa. Vai dar

tudo certo, você vai ver.

Quero acreditar nisso. Eu acredito. De verdade.

Damos uma última olhada ao redor, então Sarah coloca Mia no sling,

pede para os garotos lhe darem as mãos e pego nossas bolsas. E então,

seguimos em frente.