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O SAFARI CHINÊS

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O SAFARI CHINÊSPequim à conquista do continente negro

Fotografias de Paolo Woods

Tradução de Manuel Marques

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capítulo 2

os chineses encontraram o seu faroeste

«Todos nós nos ocupamos de várias coisas, é esse o segredo

do nosso sucesso. Vocês faziam o mesmo, há cinquenta anos

na Europa, quando ainda tinham vontade de trabalhar, não

é verdade?»

Benjamin Chen, Lagos, Abril de 2007.

Dois carros azuis da polícia sobem esforçadamente a torrente de carroçarias formada pelos engarrafamentos de Lagos, uma lava solidificada mas ainda fumegante. Sirenas, movimentos bruscos e ultrapassagens pela berma: pouco importa o método, desde que se avance, metro a metro, na direcção da península de Lekki. Depois da ponte de Falomo, entre dois enormes outdoors de uma rede de telemóveis, um outro veículo da polícia, bloque-ado no sentido inverso, dirige -lhes uma saudação hesitante. Tal deve -se certamente ao facto de o condutor do veículo dianteiro, um Mercedes todo -o -terreno, não ser um polícia negro fardado, mas um homenzinho de negócios chinês com óculos.

Jacob Wood, nascido em Xangai há 59 anos, leva -nos a visitar o estaleiro dos 544 pavilhões cuja construção uma das suas empre-sas, a Golden Swan Nigeria Ltd, está a ultimar a 25 quilómetros dali. Depois das últimas manobras para escapar aos veículos aglu-tinados à saída da megalópole de 16 milhões de habitantes, ele roda a boa velocidade na via rápida de Lagos a Epe. À esquerda

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sucedem -se os supermercados e os armazéns de materiais de construção. À direita, a sede do número um mundial do petróleo, a Exxon -Mobil, é uma fortaleza parda flanqueada por quatro tor-res. «Eu sou o primeiro chinês da China continental que veio tra-balhar para a Nigéria», diz ele. «O meu pai teve de fugir de Xangai em 1949, por causa da vitória de Mao. Eu era bebé. Ele passou por Hong Kong antes de, em 1953, abrir uma fábrica de têxteis em Lagos, que era ainda colónia britânica. Durante toda a minha adolescência, não tive direito a mais que uma carta dele por semana, obviamente aberta pela polícia. Com a morte de Mao em 1976, a pressão abrandou e eu pude finalmente sair do país. Vim para cá no ano seguinte, para conhecer finalmente o meu pai.»

O reencontro será de curta duração: o filho é de imediato enviado para Toronto, onde permanecerá três anos para estu-dar Economia. Aprende inglês, trabalha encarniçadamente e consegue um passaporte canadiano. Algumas horas antes de ele subir para o avião de regresso à Nigéria, o pai organizou -lhe uma pequena surpresa. Jacob tem um encontro num café com uma rapariga que não conhece, Amy, nascida numa boa família de Hong Kong e que está então a começar os seus estudos no Canadá. Os pais de ambos os lados consideraram que eles fariam o par ideal e, de facto, o jovem fica logo apaixonado. Será, no entanto, necessário esperar cinco anos e multiplicar os telefone-mas intercontinentais até que ela se lhe junte. Enquanto espera, e desde a sua chegada a Lagos em 1980, Jacob Wood assume a direcção do restaurante Shangri -La, no topo do hotel Eko, um lugar que então pertencia ao «multimilionário vermelho» Armand Hammer, patrão da Occidental Petroleum. «Um homem extraordinário», avalia o jovem chinês, que terá a oportunidade de servir uma fiada de personalidades, entre as quais George Bush pai, quando era vice -presidente de Ronald Reagan.

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No começo dos anos 90, quando a Nigéria mergulha nas horas mais negras da ditadura militar e o hotel decai por falta de clien-tes estrangeiros, Jacob Wood constrói um restaurante na cidade, o Golden Gate (1500 lugares sentados), especializado em ban-quetes para as grandes fortunas do país, lançando depois uma empresa de construção. É também nessa época que a China se torna uma potência económica mundial. É verdade que a ele sempre repugnou a ideologia comunista, mas descobre nessa altura que pode apoiar -se no seu país de origem para investir em África e recrutar engenheiros de grande qualidade para cada um dos seus projectos industriais. Está hoje à cabeça de um grupo que emprega mais de 1500 pessoas, entre as quais 300 chineses, e presta tantos serviços ao governo nigeriano que recebeu, entre outras, permissão para colocar em toda a sua frota de veículos todo -o -terreno matrículas de polícia. «É muito prático para os go slow [expressão do pidgin english – o inglês local – para desig-nar os engarrafamentos]», sussurra ele, «e não pago nada por isso. Tenho apenas de organizar, uma vez por ano, um banquete para a associação das mulheres dos oficiais da polícia. A cada ano aumenta o apetite delas, mas continua a ser um bom negócio.»

Festins cujo preço não se justifica somente pela possibili-dade de dispor de uma passagem na megalópole asfixiada pelos engarrafamentos. Circular rodeado de polícias armados serve sobretudo para evitar imprevistos no país mais populoso, e sem dúvida mais perigoso, de África. A Nigéria, o primeiro produtor de petróleo do continente, conhece uma taxa espectacular de criminalidade, mais a mais reforçada pela existência de guerri-lha no delta do Níger, onde se concentram os poços de petróleo. A cada semana, ou quase, os guerrilheiros dos MEND (Movimen-tos para a Emancipação do Delta do Níger) raptam expatriados das grandes companhias de petróleo, como os britânicos da Shell e os italianos da ENI, que no entanto mantêm verdadeiros exér-

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citos privados para a sua segurança. O gigante petrolífero chinês CNOOC chegou já tardiamente à Nigéria, mas com um investi-mento maciço de 2,3 mil milhões de dólares, em Janeiro de 2006, numa concessão gerida pela companhia francesa Total. Quatro meses depois, por ocasião de uma visita do presidente Hu Jin-tao, a CNOOC assinou contratos de exploração de quatro blocos petrolíferos suplementares, contra a promessa de investir quatro mil milhões de dólares nas infra -estruturas nigerianas.

A reacção da guerrilha não se fez esperar. Três dias depois da passagem do presidente chinês, em Maio de 2006, explodiu um veí-culo armadilhado em frente da refinaria de Warri, no Sul da Nigéria, com a seguinte mensagem: «Os cidadãos chineses que encontrar-mos nas instalações petrolíferas serão tratados como ladrões.» Ao longo dos dois anos que se seguiram, o movimento capturou reféns chineses por três vezes, libertando -os contra resgate.

Chegados à elevação onde fica a sede nigeriana da Chevron Texaco, no meio a península de Lekki, os dois veículos viram à esquerda e penetram num matagal de casinhas, todas parecidas. No seio desse bairro que poderia ter brotado no Dubai ou na Cali-fórnia, Jacob Wood detém -se num átrio juncado de cabos eléc-tricos e ferros para betão armado. Um engenheiro chinês abre a porta de um barracão rudimentar, onde a mobília são três mesas. Chama -se Reagan Zhu. Trabalhou numa empresa estatal na China antes de se lançar à aventura. Depois de ter estendido 185 quiló-metros de linhas de alta tensão no Suriname e passado três anos no Kuwait, estabeleceu contacto com Jacob Wood, que dispõe de um gabinete de recrutamento em Xangai. Em Lagos, supervisiona o acabamento dos 544 pavilhões (construídos em menos de dois anos), na expectativa de que o seu patrão consiga uma extensão do projecto: mais 500 moradias. «Já está tudo vendido», diz ele a sorrir. «A Chevron ficou com a maior parte para o seu pessoal nigeriano.»

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Advertência para aqueles que julgam que, em África, os chine-ses não se interessam senão pelas matérias -primas como contra-partida de empreitadas gigantes de infra -estruturas financiadas pelo seu governo: são também eles os novos empreendedores e os novos investidores no continente negro, em negócios priva-dos e assaz prósperos. Por que razão se aventuram os chineses nos lugares onde os ocidentais se abstêm por excesso de pru-dência ou por indiferença? Porque os chineses se sentem nos apertos como em casa, porque a África se lhes apresenta como uma terra virgem, repleta de promessas, e porque não têm medo dos pequenos investimentos, muito pelo contrário: um salão de massagens, um restaurante, uma pequena oficina de costura, uma farmácia, tudo é bom para fazer frutificar rapidamente o dinheiro que, muitas vezes, toda uma família na China reuniu para enviar um dos seus à aventura. Num continente subdesen-volvido a procura é elevada e a concorrência fraca ou mesmo ine-xistente. Os governos africanos compreenderam -no bem, pois multiplicam as zonas francas em que investidores e industriais chineses beneficiam de isenções fiscais e não têm de se preocu-par com o impacte ambiental. A Nigéria conta já com três dessas zonas, entre as quais Calabar, na fronteira com os Camarões, é a mais importante. A região depende do muito dinâmico governa-dor do estado de Cross River, que efectuou já visitas numerosas à China.

Harry Broodman, economista sénior no Banco Mundial1, com quem nos encontrámos em Washington em preparação para as viagens que constituem este livro, nunca ouvira falar de Jacob Wood. É pena: os bons negócios do segundo fornecem uma ilus-tração perfeita das teorias do primeiro. «Se examinar os valores

1 Harry Broadman, Africa’s Silk Road, Banco Mundial, 2007.

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absolutos dos investimentos chineses na África subsariana, é cla-ramente o petróleo a dominar. Porém, se se concentrar no petró-leo, passará ao lado do essencial do que os chineses fazem em África. Eles investiram nos sectores mais fundamentais: as infra--estruturas, as telecomunicações, o têxtil, o turismo, a indústria alimentar.» Eis aí investimentos que possuem as «virtudes multi-plicadoras» com que sonham os economistas liberais, aos olhos deles mais fomentadoras de empregos, estabilidade e transferên-cia de tecnologia que a ajuda humanitária.

Separado do Banco Mundial por algumas avenidas, Mauro de Lorenzo, investigador no seio do muito conservador think tank American Enterprise Institute, vai ainda mais longe. «Os chine-ses estão em vias de nos mostrar que se pode fazer dos negócios em África negócios rentáveis», diz ele, «ao passo que nós, oci-dentais, sofremos de uma visão humanitarista. É a moda: Bono, o cantor, e todo o seu bando querem pôr pensos nas chagas dos africanos, ajudá -los, chorar com eles porque têm sida, porque são pobres e puros. Mas o humanitarismo é também um método de controlo: alimenta uma relação de domínio.»

«De resto», continua o analista americano, «as únicas histó-rias africanas que temos o direito de contar são derivadas de O Coração das Trevas, de Joseph Conrad: genocídios, doenças pavorosas, violações de rapariguinhas no Leste do Congo, lim-pezas étnicas por todo o lado, ou seja, as piores atrocidades que homens podem infligir a outros homens. Os chineses não têm essas limitações mentais. Eles vão para África fazer negó-cios. Contanto que isso nos abra os olhos e que nós procedamos do mesmo modo! É que o nosso humanitarismo fez estragos consideráveis.»

* * *

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O auxílio humanitário constitui, de facto, a última preocu-pação de Jacob Wood. Ele recorda os polícias que lhe servem de guarda -costas e põe a tónica noutro componente do seu impé-rio industrial. «O têxtil era um bom negócio», diz ele. «Pense -se que são necessários sete metros de tecido para fazer um trajo africano! Não é como a minha t ‑shirt… Mas a fábrica do meu pai decaiu devido às importações chinesas demasiado baratas. Em 2003, o Governo nigeriano tomou medidas proteccionistas e com razão. O que é preciso é produzir em África! Importar equi-vale a desperdício para todo o mundo. Vejam -se as motorizadas. Em 2005, a China vendeu 300 000 à Nigéria por 100 milhões de dólares. No ano seguinte, vende 600 000 pelo mesmo preço! Toda a gente fica contente, sobretudo as províncias chinesas que querem valorizar -se aos olhos da capital graças às suas estatísti-cas de exportação. Pondere -se, porém, todo o metal e electrici-dade que é preciso para fabricar uma moto, enquanto a China tem tanta necessidade de metal e de electricidade! Eu tenho acesso às mais altas autoridades em Pequim, mas quando afirmo isto tomam -me por louco.»

A sinceridade do senhor Wood é tanto mais tocante quanto, dois dias depois, viríamos a descobrir que o grande importador de motos chinesas para a Nigéria é ele.

De momento, leva -nos a entrar numa fábrica de máquinas de construção, a Golden Eagle Ltd, cujo hangar principal abriga dezenas de operários nigerianos que cortam, perfuram e sol-dam as peças que formarão betoneiras, separadoras de gravilha, misturadoras e placas vibradoras. Só o motor dessas máquinas é importado – da China. A máscara de soldar deixa por vezes antever um encarregado ou um técnico chinês, a trabalhar entre os nigerianos nas peças delicadas, mas também para man-ter a cadência. Na parede, um regulamento estipula que uma falta por mês implica a perda do prémio de 1500 nairas (nove

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euros), que uma segunda falta conduz à redução de salário e uma terceira ao despedimento. «Que é que querem», suspira Jacob Wood, que aprendeu muita coisa no Canadá, mas não a correcção política. «Os africanos são preguiçosos, muito pre-guiçosos. Ficam à espera de ter fome para subir a uma árvore e colher uma manga.»

Mais longe, no mesmo recinto, ergue -se a Golden Ever Ltd, que fabrica janelas e lambris em PVC. «Utilizo uma parte destas janelas nas minhas construções e vendo as restantes como pãezi-nhos quentes», afirma ele diante dos operários que carregam um camião. «Sabem que, em média, são necessárias 17 portas para uma casa? Também abri uma fábrica de portas.»

Jacob Wood é, sem dúvida, um caso particular. É proveniente de uma antiga família de empreendedores e a duração da sua permanência na Nigéria permitiu -lhe construir uma rede for-midável. Em 2001, doou uma escola para 4000 alunos no bairro de Ikeja, próximo do aeroporto de Lagos, o que lhe valeu o título de chefe africano, bem visível no seu cartão de visita. A participação na reunião mensal dos chefes tradicionais «em que se fala de negócios e beneficência» não é, de resto, a sua única concessão aos costumes nigerianos: tornou -se também bígamo. Amy, a sua primeira esposa, aquela que tanto amou, não pôde ter filhos. Desposou então uma segunda, mais jovem, também ela chinesa, que lhe deu um rapaz que tem hoje sete anos. O interessado nunca diz «tenho duas mulheres», mas apresenta sem embaraço uma e depois a outra. E não se pode deixar de pensar que esta situação convém na perfeição à estru-tura dos seus negócios: a segunda esposa ocupa -se do Golden Gate, o seu hotel em Abuja, a capital política, enquanto que a primeira dirige o Millenium Inn, o seu hotel em Lagos, coração económico do país.

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Um caso particular, mas longe de ser o único homem de negó-cios chinês que tem importância na Nigéria. Muitos outros vie-ram de Hong Kong nos anos 80. O mais importante, o senhor Li Wenlong, dirige a empresa Hongkong Huachang. Abriu cerca de 40 fábricas e oficinas na Nigéria, sobretudo em Kano, no Norte, onde um milhar de chineses e três vezes mais nigerianos produzem cimento, aço e principalmente sandálias de plástico que calçam quatro pessoas em cada dez na África Ocidental. O senhor Chu está instalado em Lagos, onde possui uma série de empresas que vão da pastelaria industrial às fundições de aço. Sem esquecer os representantes da nova geração, originários da China comunista, tão jovens quanto determinados.

Roy Zhang, 26 anos, nascido na província do Hunan, é secre-tário da Associação dos Produtores Chineses de Lagos, que conta com cerca de 200 membros. «Vim para cá há sete anos, depois de uma passagem pela África do Sul. Comecei, como toda a gente, por vender quinquilharia chinesa. Quando o Governo limitou as importações, montei uma pequena fábrica de sapatos que conta actualmente com 70 empregados.» De seguida, Roy reúne capital e, em Março de 2007, abre um restaurante de luxo, o Mr. Chang, em Owolowo, a principal artéria comercial de Lagos. Os mate-riais são nobres, o decorador é célebre em Xangai, o cozinheiro é reputado pelos seus pratos do Hunan. O lugar torna -se imediata-mente ponto de encontro para os políticos e as grandes fortunas nigerianas.

Esta noite, Roy Zhang recebe os seus colegas da associação dos empresários chineses. O novo cônsul, Guo Kun, está pre-sente, bem como o repórter do West Africa United Business Weekly, primeiro jornal chinês da Nigéria, que chega a uma tiragem de 7000 exemplares e de que Roy é um dos fundadores. Preparou, para os seus convidados, uma ementa pantagruélica e dezenas

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de garrafas de bai jiu (forte bebida alcoólica chinesa). Depois de sair, por fim e a cambalear, o último conviva, Roy deixou -se ficar a acompanhar -nos numa última cerveja. «Vocês, ocidentais, são muito paternalistas. Quando aqui chegaram, falaram aos africa-nos dos direitos do homem, dos direitos de reprodução, de toda a espécie de direitos. Vocês olham -nos de cima. Nós vamos direi-tos ao assunto, falamos de negócios.»

Jane, a esposa dele, é também natural da província do Hunan. Ela tranca a porta do restaurante, apaga as luzes do salão e traz três cervejas para a nossa mesa.

– França é uma grande nação – prossegue o marido. – Adoro fazer compras em Paris. Mas quando vejo como os nigerianos que pedem um visto são humilhados no consulado! Não é sagaz da vossa parte; alguns são até bastante ricos.

– O consulado chinês faz melhor?– Decerto! Distingue os bons e os maus. Quando persiste a

dúvida, consulta -nos, faz -se uma pesquisa. Se o fulano é impor-tante, se tem bons negócios, terá o seu visto de bandeja. Nem imaginam tudo o que o consulado faz por nós e tudo o que faze-mos por eles. E vocês, com todas as informações que recolhem, espero que a embaixada de França vos pague bem…

– Ah, não, nada! Nós somos jornalistas. A embaixada nem sequer respondeu às questões que lhe colocámos por e ‑mail.

– Isso não é inteligente. Assim não me espanta que a Alcatel ou a Bolloré tenham perdido tanto mercado na Nigéria. O nosso Governo ajuda -nos por todos os meios ao seu alcance. Informa-ções, aconselhamento jurídico, créditos sem juros. E quando regressarmos à China, vender -nos -á terrenos por preços irrisó-rios, pelos serviços que prestámos em África.

Roy Zhang acabara de resumir, em poucos palavras, a com-plementaridade dos esforços chineses, privados e públicos, para conquistar uma posição de primeiro plano em África. Os aventu-

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reiros avançam e investem. Durante esse tempo, o Estado chinês assina contratos avantajados para infra -estruturas e exploração de matérias -primas. Pode apoiar -se numa diáspora chinesa cada vez mais numerosa e organizada, a qual, em contrapartida, é encorajada pelo voluntarismo de Pequim.

* * *

«Em Setembro de 2006, o nosso presidente, o Senhor Hu Jin-tao, deu -nos ordem para abrir linhas em África, onde quisésse-mos. Encarregaram -me de encontrar um bom destino.» Jiang Nan fuma cigarros chineses Panda e narra a sua história com um sorriso triunfante, mergulhado na poltrona de couro do seu escri-tório de Victoria Island, o bairro de negócios de Lagos. Até esse dia em que recebeu as instruções do seu chefe de Estado, ele era director comercial da China Southern Airlines no Dubai, a maior companhia aérea chinesa, aquela que aguarda com impaciên- cia os cinco Airbus A380 que encomendou. Informa -se então sobre o Cairo e Nairobi, mas ouve falar de Lagos e vem fazer a sua pequena prospecção. «Descobri que havia 50 mil chineses na Nigéria e que os maiores projectos chineses no país iriam trazer muitos mais milhares.»

Jiang Nan é o primeiro a citar estatísticas relativas ao número de chineses na Nigéria: nem os homens de negócios nem mesmo o consulado puderam ou quiseram fornecer -nos tais números. Quanto aos grandes projectos de que fala, trata -se sobretudo da construção de uma linha férrea entre Lagos e Kano, que fará vir 11 mil técnicos chineses, bem como uma central hidroeléctrica de 2600 megawatts (três vezes a actual produção eléctrica nacio-nal) no planalto de Mambilla.

A ligação trissemanal Pequim -Lagos, via Dubai, abriu então a 31 de Dezembro de 2006 e foi a primeira de uma companhia

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chinesa em África. As taxas de ocupação são satisfatórias (60 por cento), e brevemente virá reforçá -la uma linha Cantão -Lagos. «Vamos também criar uma primeira classe, pois a comercial não satisfaz os africanos», acrescenta a rir o seu chefe de vendas, Hoffman Chang Chongqing. Próxima abertura para a China Sou-thern: Pequim -Luanda. «O nosso maior concorrente em África são os Emirados», reconhece Jiang Nan. «Mas vamos engoli -los. Temos uma enorme vantagem no nosso mercado e nem imagi-nam quantos chineses querem vir para África!»

Isso não impede que o êxito dos chineses na Nigéria conti-nue a ser um mistério, até mesmo para Pat Uomi, considerado o melhor economista do país, candidato vencido às presiden-ciais de Abril de 2007 e director da Lagos Business School. «Não percebo como eles fazem. Os nossos empresários fecham as suas fábricas, enquanto eles não param de abrir mais. Pedi um relatório aos meus estudantes.» Estes ficariam bem inspirados se fizessem uma visita à fábrica de biscoitos Newbisco, proprie-dade do senhor Chu, em Ikeja, próximo do aeroporto de Lagos, fundada por um britânico antes da descolonização que, por sua vez, a cedeu a um grupo nigeriano nos anos 70, passando rapida-mente para as mãos de um homem de negócios indiano. Quando o senhor Chu, que não deseja revelar senão as iniciais do seu primeiro nome, Y. T., tomou conta dela no ano 2000, estava em ruína e falida. Yechang Wang, o seu engenheiro -electricista vindo da China há 15 anos, foi encarregado de a recuperar. «Substituímos metade das linhas de produção por máquinas chi-nesas, quatro vezes mais baratas que as equivalentes europeias. São também as únicas ainda compatíveis com o material inglês dos anos 50», diz ele. «Instalámos também um gasoduto por nossa conta, somente para a fábrica, para substituir os fornos a gasóleo. Construímos este hangar para podermos ter muita fari-

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nha, óleo e açúcar armazenados, para nunca termos de atrasar ou parar a produção. Fizemos análises de qualidade muito exigen-tes e motivámos os 700 operários, que trabalham agora em duas equipas de doze horas.»

A fábrica produz actualmente mais de 70 toneladas de biscoi-tos por dia, que servem sobretudo de pequeno -almoço às crian-ças das escolas de todo o país. E deseja expandir -se. Pela manhã, na sua casa virada para o porto de Lagos, mobilada à maneira rural inglesa, Y. T. Chu discorreu incansavelmente acerca da diferença entre os chineses de Hong Kong, «abertos, educados, sofisticados» e os do continente, que é ainda preciso educar. Após a visita à fábrica, convida os seus dois engenheiros, Yechang Wang e Benjamin Chen, originários da China comunista, a par-tilhar café e alguns biscoitos num gabinete do andar superior. E percebe -se a que ponto aqueles dois são sobretudo dedicados: a par da produção dos biscoitos, Yechang Wang ocupa -se tam-bém dos problemas técnicos das duas fundições do grupo. Está modestamente alojado no bairro e não vai à China senão uma vez por ano, para ver a mulher e o filho. Quanto a Benjamin Chen, responsável pelas compras de farinha e açúcar, compra também os equipamentos da fábrica de material eléctrico, os desper-dícios de aço e todas as máquinas chinesas. «Todos nós temos múltiplas actividades, é esse o segredo do nosso êxito», diz ele. «Vocês faziam o mesmo na Europa, há cinquenta anos, quando ainda tinham vontade de trabalhar, não é verdade?» A mulher já veio visitá -lo, mas ele prefere que ela permaneça na China a cui-dar do filho. «Não existe escola chinesa na Nigéria, embora nós sejamos dezenas de milhares», intervém de novo Yechang Wang. «E está muito bem assim. Não é nossa intenção instalarmo -nos definitivamente. Estamos aqui pelos negócios. Não pretendemos impor uma cultura. Não somos colonos.»

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Alguns minutos depois de encher as chávenas, a assistente nigeriana volta para dar a assinar ao seu patrão uma ficha em quatro exemplares: 512 nairas (três euros) pelo café. O trabalho com afinco não é o único segredo do sucesso chinês, há também a parcimónia! No hotel Millenium de Jacob Wood, encontrámos também, na mesa -de -cabeceira, um documento plastificado que apresenta o preço dos 35 objectos existentes no quarto, a fim de que o cliente saiba quanto lhe custará levar ou quebrar o fervedor eléctrico (3000 nairas, 17,50 euros), o cinzeiro (300), o televisor (32 000), as cortinas (3500), o tapete da banheira (1200), o apli-que (1500) ou o cofre (12 000).

Contudo, não é o dinheiro aquilo que falta aos chineses de Lagos. Para o avaliar, não existe balanço anual, montante de facturação ou matéria colectável. Os critérios disponíveis são a dimensão das fábricas, o número de empregados, a frota de viaturas e os projectos em curso. Por altura da nossa passagem, Jacob Wood estava em vias de construir uma fábrica de monta-gem de televisores na zona franca de Calabar, próximo da fron-teira com os Camarões, onde possui já uma unidade que monta aparelhos de ar condicionado. Por seu lado, Roy Zhang vai lançar -se na hotelaria em Lagos. «África é, de facto, uma vasta oportunidade que nos vem mesmo a calhar», afirma ele. «É o último lugar assim no planeta, onde ainda é possível fazer tantos negócios.» Jacob Wood vai mais longe: «Vou dizer -vos a verdade. A China utiliza África para chegar ao nível dos Estados Unidos e depois ultrapassá -los. Para isso, está pronta a tudo, como cons-truir um caminho -de -ferro nigeriano que será sempre deficitário [contrato de 8,3 mil milhões de dólares assinado em Novembro de 2006, nota nossa] e até mesmo colocar em órbita um satélite nigeriano [algo que foi feito em 14 de Maio de 2007].»

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Outro meio de avaliar a fortuna dos chineses da Nigéria: observar a dos seus clientes nigerianos. Certa noite, Amy Wood convidou -nos para a festa do 70.o aniversário de Anthony Mog-bonjula Soetan, o presidente do Senado, que havia alugado todo o último andar do Golden Gate de Lagos para, no mínimo, 300 convidados, dos quais alguns haviam vindo expressamente de Londres ou Baltimore, perto de Washington, para a ocasião. Todos transpiravam petrodólares: quilos de relógios suíços nos pulsos e ouro a envolver os pescoços, trajos de uma riqueza ina-creditável nas imponentes mulheres, no meio das quais Amy Wood parecia um ratinho. Abundava a comida nos bufetes chi-nês, nigeriano e continental, tudo regado com champanhe e Saint -Émilion. No seu discurso, Anthony Soetan lamentou que os filhos de um homem tão patriota como ele estejam todos ins-talados nos Estados Unidos e em Inglaterra, onde frequentam as melhores universidades. Depois agradeceu aos proprietários do Golden Gate. «Oferecemos -lhe toda esta recepção», murmurou--nos então Amy Wood. «É que ele é um amigo.»

De facto, os chineses são inimitáveis em não fazerem política, mas estarem sempre do lado dos vencedores. Y. T. Chu considera--se amigo pessoal do antigo presidente Olusegun Obasanjo. No seu salão, uma fotografia mostra -os a ambos à sombra de uma árvore. «Fui também convidado para os três dias de celebração do aniversário dele em Abril», declara. «Só que nessa altura estava em Londres e fui lá no dia seguinte entregar -lhe o presente, à quinta dele, que não fica longe da minha fundição de aço.» Essa proximidade entre a fábrica e a residência presidencial tem outra vantagem, que é a de poder fazer pequenas visitas imprevistas: são ambos alimentados pela mesma linha eléctrica de alta ten-são. «Como nunca ninguém se atreverá a mergulhar o presidente na escuridão, a minha oficina tem sempre corrente», sorri Y. T.

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Chu. O seu amigo Jacob Wood, por seu lado, é conselheiro do antigo presidente em matéria de pequenas e médias empresas, encontrou -se com ele muitas vezes e gosta de trabalhar com o novo, Umaru Yar’Adua.

Esta familiaridade com o poder permite não perder as oca- siões cruciais para os negócios que constituem o arranque de cada nova administração. «Há um novo presidente e novos gover-nadores. Vão lançar muitos projectos, para despender o máximo de dinheiro logo à partida e obter um máximo de comissões. É agora que tudo se decide e nós estamos prontos!», afirma Jacob Wood. O seu amigo Y. T. Chu lamenta a época dos repetidos gol-pes de Estado militares. «Cada novo ditador anulava os projectos do precedente e lançava novos», conta ele. «O aço que recuperá-vamos das construções interrompidas era de grande qualidade; fundíamo -lo e voltávamos a vendê -lo a preço de ouro!»

* * *

Mais uma viatura da polícia, mais um trajecto na megalópole. Desta vez é de noite. Amy Wood aborrece -se. O marido está em Abuja. Ela quer mostrar -nos Lagos à noite. «A primeira vez que vim à Nigéria», recorda, «viajei em primeira classe no voo da Swissair. Foi em 1985. Ao meu lado vinha um homem que res-sonava ruidosamente. Acordei -o. Ele podia ter ficado arreliado, mas demo -nos bem. Quando desci, a hospedeira disse -me: “Sabe quem ele é?” Eu não fazia a mínima ideia. “O general Obasanjo”, segredou -me ela. Vemo -lo muitas vezes nesta linha!»

Nessa época, o futuro presidente está na reserva da República. Em 1976, decorrido um ano sobre o primeiro golpe de Estado militar, exerce as funções supremas, mas em 1979 vai entregar o poder a um civil democraticamente eleito. Que por sua vez será

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derrubado quatro anos depois. Os ditadores sucedem -se, mas nenhum chegará ao nível de crueldade e corrupção do general Sano Abacha, que se apodera do poder em 1993. Obasanjo que-bra então o seu silêncio e critica abertamente a repressão que se abate sobre grande parte do país. Isso valer -lhe -á uma estadia na prisão, de onde sairá pouco antes de ser eleito presidente em 1999.

«Após a minha chegada a Lagos, reencontrámos Obasanjo», continua Amy Wood. «E eu tornei -me muito amiga da esposa dele, que levei várias vezes à China. Também a ajudei a gerir um hotel em Lagos.» Stella Obasanjo, considerada a principal esposa do futuro chefe de Estado, faleceu a 24 de Outubro de 2005, quando se submetia a uma operação de cirurgia estética em Málaga, Espanha.

Entramos pela Rua Idowu Tailor, na ilha Victoria. «É o bairro das lanternas vermelhas», diz Amy Wood num jogo involuntário de palavras para se referir ao red light district de Lagos. Com efeito, as prostitutas são numerosas, mas afastam -se à aproximação do nosso carro de polícia. Aguarda -nos um ajuntamento diante do Tower Casino, que conta com um karaoke, um casino e um restaurante chinês. No meio da multidão ruidosa, um asiático corpulento grita e empurra um negro bastante mais franzino. Informados, ficamos a saber que o chinês abriu a porta do seu automóvel sem se acautelar; o nigeriano estava a chegar numa okada (moto -táxi) com a mulher e a filhinha. Os três voaram por vários metros e a pequenita não se está a sentir bem. O nige-riano exige algum dinheiro para ir ao hospital ver se está tudo bem. O chinês recusa qualquer responsabilidade no acidente e acusa a multidão de se querer aproveitar de ele ser chinês. Sozi-nho contra todos, manda a sua mulher calar -se e prepara -se para o pugilato. «Não precisamos de gente como vocês por cá!», grita

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um nigeriano. «Vocês são piores que os colonos! Vocês, chineses, deviam era ficar na China!» Amy Wood empurra a porta do karao- ke enquanto nós tentamos separar os potenciais lutadores. O chinês espuma de raiva, parecendo ansioso por sovar o pequeno nigeriano que já fez cair da moto. Deveras contrariado, deixa -se convencer a ir esperar -nos no interior, enquanto nós acalmamos os espíritos africanos. Sentada junto de uma árvore, a mãe segura a criança nos braços e chora. A moto está caída um pouco mais à frente. O pai implora ao céu, mas não diz mais nada. Três pessoas entre a assistência tentam então contar mais uma vez toda a história, em simultâneo e representando por ges-tos o automóvel imobilizado, a porta que se abre, a moto a che-gar e a família que é catapultada e rola por terra. São precisos uns bons dez minutos de palavras para definir o montante de uma indemnização honrosa.

No casino repleto de fumo encontramos duas roletas ingle-sas, um bacará e três mesas de black ‑jack. O patrão é chinês, os croupiers são chineses e a maioria dos clientes é chinesa, com excepção de um libanês de estatura descomunal e que transpira abundantemente. Porém, o responsável pelo alvoroço à porta do Tower não está lá. Ao fundo, uma pequena porta conduz ao karaoke. A senhora Wood, no seu fato saia -casaco cor -de -rosa com flores, já ingeriu alguns gin ‑tonic e prepara -se para cantar uma romança chinesa cujas primeiras imagens surgem no ecrã: dois amantes dão as mãos diante de um regato com mil reflexos do sol. A sala é vasta, cheia de recantos onde se enlaçam casais monocromáticos (não há qualquer mistura entre os chineses e os africanos). Mas o nosso homem não está lá. É no restaurante que o encontramos, em frente da esposa e de uma montanha de massa salteada. Ouve -nos de boca cheia e tira 50 dólares do bolso. «Vou recuperá -los no casino!», diz ele, levantando -se para nos aplicar uma tremenda palmada amigável nas costas.

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De regresso ao karaoke, foi preciso cantar «Yesterday, all my troubles seemed so far away» antes de retomar a estrada e poder colocar uma questão algo directa a Amy Wood, que se divertiu muito.

– Todos esses trabalhadores chineses, na Nigéria, como é que se arranjam em matéria de raparigas?

– Existem algumas prostitutas chinesas, mas não que che-guem para toda a gente! Esperam uma visita à esposa na China, uma vez por ano.

– E eles não frequentam africanas?– Ah, isso nunca! Nem por uma noite, nem para casar com

elas. Não conheço senão muito poucos casais mistos.– E porquê?– Ora, porque não gostam delas!O motorista nigeriano de Amy Wood, um homem calmo e

sorridente que responde pelo nome próprio de Monday, não pode deixar de virar a cabeça ao escutar esta última réplica. A sua patroa chinesa, que cantarola enquanto olha pela janela, não tem consciência de que acabou de pronunciar palavras que ferem. Para aligeirar o ambiente, dirigimo -nos ao motorista:

– E o senhor, aceitaria uma esposa chinesa?– Certamente que não. Como costumamos dizer, Monkey no

fine, but eem mama like am. (Inglês pidgin para «com macacos não está certo, mas gosto das minhas mamãs».)

– O que é que isso quer dizer?– Quer dizer que ninguém vai visitar uma mamã cuja sopa não

é doce. A melhor mulher vem da nossa aldeia, trabalha muito e cozinha bem.