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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CURSO DE HISTÓRIA LUCIANO ACIOLLI RODRIGUES DOS SANTOS O SANTO, O DEMÔNIO E A BESTA FERA: MODERNIDADE E IMAGINÁRIO APOCALÍPTICO NO SERTÃO DO SERIDÓ. MEMÓRIA E ESCATOLOGIA EM CRUZETA/RN (1950-1970) NATAL/RN 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

CURSO DE HISTÓRIA

LUCIANO ACIOLLI RODRIGUES DOS SANTOS

O SANTO, O DEMÔNIO E A BESTA FERA:

MODERNIDADE E IMAGINÁRIO APOCALÍPTICO NO SERTÃO DO SERIDÓ.

MEMÓRIA E ESCATOLOGIA EM CRUZETA/RN (1950-1970)

NATAL/RN

2014

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LUCIANO ACIOLLI RODRIGUES DOS SANTOS

O SANTO, O DEMÔNIO E A BESTA FERA:

MODERNIDADE E IMAGINÁRIO APOCALÍPTICO NO SERTÃO DO SERIDÓ.

MEMÓRIA E ESCATOLOGIA EM CRUZETA/RN (1950-1970)

Monografia apresentada ao Curso de História

da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

sob a orientação da professora Dr. Lyvia

Vasconcelos Baptista, para avaliação da disciplina

Pesquisa Histórica II.

NATAL/RN

2014

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SANTOS, Luciano Aciolli Rodrigues dos.

O Santo, o Demônio e a Besta Fera: modernidade e

imaginário apocalíptico no sertão do Seridó. Memória e

escatologia em Cruzeta-RN (1950-1970) – Natal, 2014.

161 f.

Monografia (Graduação em História). – Universidade

Federal do Rio Grande do Norte.

Bibliografia f...

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LUCIANO ACIOLLI RODRIGUES DOS SANTOS

O SANTO, O DEMÔNIO E A BESTA FERA:

MODERNIDADE E IMAGINÁRIO APOCALÍPTICO NO SERTÃO DO SERIDÓ.

MEMÓRIA E ESCATOLOGIA EM CRUZETA/RN (1950-1970)

Monografia apresentada ao Curso de

História da Universidade Federal do Rio Grande

do Norte, para avaliação da disciplina Pesquisa

Histórica II.

Aprovado em: 10/06/2014.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

Profa. Dra. Lyvia Vasconcelos Baptista

(Orientadora – DH/CCHILA/UFRN)

____________________________________________________

Prof. Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior

DH/CCHILA/UFRN

____________________________________________________

Prof. Raimundo Nonato Araújo da Rocha

DH/CCHILA/UFRN

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AGRADECIMENTOS

Construir o conhecimento é aprender que o outro também faz parte deste edifício. É

compreender que fazemos parte de uma teia de relações onde os fios do saber estão

constantemente interligados. Não construímos o modo de ver o mundo sozinho. No exímio

desta arte existirá sempre a parcela que recebemos do outro.

Este trabalho é fruto de um projeto iniciado em 2009 quando ainda era estudante do curso

de Licenciatura em História do Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES-UFRN). De lá

para cá jazeram cinco anos. Todo este tempo foi suficiente para que pudesse amadurecer na

configuração deste intento que só pode tomar corpo em 2011 quando já me encontrava egresso

no curso de Bacharelado em História do Campus Central da UFRN. Neste percurso de quase

três anos não foram poucos os que contribuíram para a realização deste trabalho. Consciente,

portanto, do quanto foram decisivas as contribuições e as presenças de algumas pessoas no

decorrer desta empreitada, não resta senão, por reconhecimento e justiça agradecer-lhes.

A minha mãe, inicialmente, pelo apoio incondicional e pela compreensão e ternura com a

qual tem se voltado para mim sempre sem jamais ter duvidado de minhas capacidades. A meu

pai Antônio e meus irmãos Neto e Ana Amélia pelo apoio dispendido durante toda minha

caminhada acadêmica. Aos amigos Raí, Mirella e especialmente a João Paulo por ter

contribuído com nossas longas conversas “científicas”. Ao geógrafo Alexsander Pereira por ter

gentilmente me presenciado com a bela cartografia que ilustra estas páginas.

Agradeço especialmente ao professor Francisco Santiago Junior que primeiro aceitou o

desafio de me orientar na execução desta monografia e a professora Lyvia Vasconcelos que com

muita gentileza aceitou dar continuidade aos trabalhos de orientação. A vocês meus maiores

agradencimentos pelas preciosas considerações que tanto contribuiram para que fosse

estabelecido um melhor norte ao meu estudo. Aos professores do CERES que cultivaram em

mim o prazer pela pesquisa histórica. Ao professor Luiz Carvalho de Assunção pelas suas

discussões proveitosas sobre “Cultura Popular”. Com igual apreço, agradeço ao professor

Raimundo Nonato por ter dedicado uma parte de seu precioso tempo à examinar as modestas

páginas deste trabalho.

Sou particularmente grato a minha tia Alexandrina Campus pelas informações e conversas

inestimáveis sem as quais muito pouco teria dito sobre a história e a memória do meu “lugar” e

aos meus narradores que com suas experiências de vida enriqueceram de cores, sonhos,

sentimentos e fantasias este estudo.

E por fim, a gratidão maior a Deus, pela graça da co-autoria desta obra.

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RESUMO

O avanço da civilização moderno-urbana ocidental capitalista sobre os sertões seridoenses

trouxe consigo novos símbolos de cultura até então desconhecidos por seus habitantes que

tiveram que ser apreendidos para tornarem-se compreendidos. Neste processo de apropriação

simbólica o imaginário apocalíptico popular, exerceu uma função capital ao fornecer imagens e

sentidos que puderam ser aliciados para traduzir este “outro” desconhecido. Em meio a isso, a

“memória ativa” desempenhou um papel fundamental tecendo as conexões entre a tradição e a

própria experiência do vivido. Utilizando-se deste mecanismo, atuaram os poetas populares e os

romeiros do Padre Cícero ao se apropriarem das “novidades da história” a partir deste

patrimônio simbólico, colocando-as à maneira de profecia na voz do “Santo Padrinho”. Este

processo traduzido na experiência do “choque cultural”, não implicaria no fim ou no

enfraquecimento do imaginário religioso tradicional construído em volta das crenças no fim do

mundo, mas sim, numa transformação operada no interior dos seus processos de produção. Esta

monografia destina-se primeiramente a contribuir com os estudos históricos sobre cultura

popular na historiografia brasileira. Como meta primordial, este trabalho consiste em fornecer

um estudo acerca do imaginário apocalíptico popular no sertão do Seridó norte-rio-grandense

por meio da investigação de como este fora agenciado por uma coletividade de sujeitos para

compreender o avanço da modernidade e as transformações sociais fomentadas pelo processo

de modernização na região e no município de Cruzeta em particular, entre as décadas de 1950 e

70. Buscando propor uma visão da história a partir da versão da “cultura popular”, nossa

pesquisa se baseia sobre memórias e vivências que remetem às experiências vividas por

“indivíduos comuns” através da aplicação da metodologia da história oral.

.

Palavras-chave: Imaginário Apocalíptico; Modernidade; Fim do Mundo.

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ABSTRACT

The advancement of modern urban-capitalist civilization on the western hinterlands of Seridó, a

region in the backlans of Rio Grande do Norte, Brazil, brought new symbols of culture that are

unknown to its inhabitants and because of that, they had to be seized to become understood. In

this symbolic appropriation process, the popular apocalyptic imagery exerted a capital role in

supplying images and meanings that might be enticed to translate this "other" unknown.

Through it, the "active memory" played a key role weaving connections between tradition and

the experience of living. Utilizing this mechanism, the popular poets and pilgrims acted Padre

Cicero to appropriate the "news story" from this symbolic heritage, placing them in the manner

of prophecy in the "Holy Godfather" voice. This process known as the experience of "culture

shock" does not imply the end or the weakening of traditional religious imagery built around

the beliefs of the end of the world, but rather a transformation in the interior of its production

processes. This monograph is intended primarily to contribute to historical studies of popular

culture in Brazilian historiography. The primary goal of this research is to provide a study of the

popular apocalyptic imagery in the backçands of Serido, in Rio Grande do Norte, Brazil,

through research like this out touted by a collectivity of individuals to understand the advance

of modernity and promoted social change the process of modernization in the region and the

municipality of Cruzeta particularly between the 1950s and 70s. We seek to offer a view of

history from the version of "popular culture", our research is based on memories and

experiences that recall the experiences of "ordinary individuals" through the application of the

methodology of oral history.

Key-words: Apocalyptic imagery; modernity; End of the World.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 9

OS “INCÓGNITOS” DO SUBTERRÂNEO DA HISTÓRIA LOCAL 16

CAPÍTULO 1. PROFETAS E APOCALÍPTICOS NOS SERTÕES DO “NOR(DES)TE”: O

SERIDÓ NA SENDA DOS MEDOS ESCATOLÓGICOS

1.1. A “TERRA SEM MALES” DOS “PROFETAS” INDÍGENAS: O “PROFETISMO” TUPI-

GUARANI 25

1.2. MISSIONISMO E PROFECIA: JESUÍTAS, CAPUCHINHOS E “ALDEIAS TAPUIAS” NOS

SERTÕES NORDESTINOS 27

1.3. A MENSAGEM “APOCALÍPTICA” DOS CAPUCHINHOS E AS “SANTAS MISSÕES

POPULARES” 30

1.4. BEATISMO NOS SERTÕES DO NOR(DES)TE: O APOCALIPSISMO POPULAR

SERTANEJO 38

CAPÍTULO 2. “ATÉ MIL E TANTOS A DOIS MIL NÃO CHEGARÁ”: O SERIDÓ NO

DESCAMBAR DAS ERAS

2.1. O TERRENO “MOVEDIÇO” DO IMAGINÁRIO APOCALÍPTICO POPULAR SERTANEJO

44

2.2. OS SINAIS DO FIM DAS ERAS 52

2.3. A ESTRUTUTA IMAGINÁRIA DOS MEDOS ESCATOLÓGICOS 66

2.4. O IMAGINÁRIO APOCALÍPTICO POPULAR NA ESTEIRA DA “CULTURA DE MASSA”

72

CAPÍTULO 3. “O MUNDO EM DESMANTELO”: MODERNIZAÇÃO E ESCATOLOGIA EM

CRUZETA (RN)

3.1. NA SENDA DO PROGRESSO 91

3.2. O MULTIFÁRIO DA BESTA FERA 102

3.3. “BOM TEMPO NINGUÉM MAIS VER”: A “AURA” PROFÉTICA DAS SANTAS MISSÕES

DE FREI DAMIÃO E DO MOVIMENTO DOS ROMEIROS DO PADRE CÍCERO 1277

5. CONCLUSÃO 1377

6. FONTES E BIBLIOGRAFIA 1411

ANEXOS – ÁLBUM DE DOCUMENTOS 1522

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INTRODUÇÃO

“Vivi no sertão típico, agora desaparecido. A luz

elétrica não aparecera. O gramofone era um

deslumbramento. O velho João de Holanda, de Caiana,

perto de Augusto Severo, ajoelhou-se no meio da estrada e

confessou, aos berros, todos os pecados quando avistou,

ao Sol-se-pôr, o primeiro automóvel”.

Câmara Cascudo. Vaqueiros e Cantadores.

“O Desconhecido faz surpresas ao espírito do homem”.

Victo Hugo. Os trabalhadores do Mar.

As últimas décadas do século XX foram marcadas por diversas especulações apocalípticas

acerca de um fim iminente para a humanidade, que atravessaram o segundo milênio da Era

Cristã e subsistem nos dias atuais.

Expressas nas imagens e representações veiculadas principalmente pela mídia televisiva,

cinematográfica e eletrônica que evocam ou disseminam o caos, o medo, o cataclismo cósmico,

bélico ou natural que sobrevirá contra a humanidade num lapso de um porvir mais próximo, a

crença no apocalipse revela um estado de desconforto e angústia do homem diante do seu

tempo alimentando a perspectiva de que se as coisas vão mal, tudo, portanto, caminha para um

colapso ainda maior e definitivo. Ela contribui para a compreensão de como os diversos

sujeitos, sociedades e grupos sociais do passado fizeram a leitura do mundo em que viveram e

de suas existências, moldando e direcionando seus valores, atitudes e crenças ao expressar de

múltiplas maneiras os sentimentos, medos e aflições diante das incertezas do mundo.

Que a crença na escatologia1 humana ainda permanece incutida no imaginário do homem

contemporâneo é algo que não se duvida. Lembremos, pois, de quantas vezes não se vaticinou

para o ano de 2012 à luz do maianismo (profecia Maia) o dia último da humanidade inspirando

o cataclísmico 2012 de Roland Emmerich (2009).2 E o que dizer, então, da renúncia recente de

Bento XVI ao pontificado de S. Pedro que repercutiu como sinal apocalíptico na mente de

muitos cristãos fazendo vim à tona profecias seculares.3

Não há dúvidas de que vivemos em tempos apocalípticos, ou melhor, em momentos de

1 Utilizamos o termo escatologia no sentido atribuído pela doutrina judaico-cristã para designar “o corpo de

crenças relativas ao destino final do homem e do universo” (LE GOFF, 1994, p.323) e para referir-se a “qualquer

discussão ou apresentação do fim dos tempos, tanto mítica como teológica”. (RUSSELL, 2007, p.6). 2 Cf. PETRY, André. O Fim do Mundo em 2012. Veja, São Paulo, 04 nov. 2012. p.90-99.

3 Cf. RINCON, Maria Luciana. Renúncia do Papa Bento XVI desperta rumores sobre o apocalipse. Suposta

profecia do século 12 prevê que o próximo pontífice a assumir o posto será o último da igreja católica. 15 fev.

2013. Disponível em: <http://www.megacurioso.com.br/>. Acesso em: 05 mai. 2014. Ver também Profecia de

São Malaquias: sucessor de Bento XVI já tem nome e será o último. Brasil de Fato, 11 mar. 2013. Disponível

em: <http://www.brasildefato.com.br/node/12259>. Acesso em: 05 mai. 2014.

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efusiva circulação e propulsão deste imaginário pelo mundo. A televisão anuncia diariamente

tempestades solares que ameaçam atingir a terra. O jornalista comunica os efeitos sinistros do

aquecimento global. A revista divulga vaticínios de cientista ou profeta tal. O cinema exibe em

movimento o caos de uma catástrofe cósmica. Cidades inteiras, civilizações, monumentos e

construções, tudo será tragado pela tsunami avassaladora. Do espaço astral, a ameaça surge em

forma de meteoros colossais. Trincheiras abissais se abrem no solo sobre o estampido de

tremores titânicos e de sua superfície o magma abrolha como uma avalanche de fogo.

Presunção científica ou imaginação criativa? Absorvido pela cultura de massa, o apocalipse do

novo milênio trás um traço bastante específico: o de apoiar-se mais na ciência que na religião, o

que não significa pensar que a sua versão tradicional tenha sido abduzida dos lares cristãos na

atualidade. Pelo contrário, J. B. Russell (2007) fala de um retorno contemporâneo aos

fundamentos da apocalíptica embora este seja mais vivido com veemência no seio das

comunidades evangélicas das quais as Testemunhas de Jeová e as igrejas pentecostais são os

exemplos mais expressivos.

De qualquer forma, no início do século XXI assistimos a uma poderosa assimilação pelos

veículos de comunicação de massas das crenças apocalípticas, o que nos leva a admitir a

pujante inspiração que o livro bíblico homônimo ainda provoca em muitas mentes mesmo

depois de quase dois mil anos. Reelaborado constantemente pela indústria do entretenimento

para atender a demanda de seus diferentes públicos e fornecendo uma abundante e rica

produção de imagens e alegorias para os mais diversos fins, o Apocalipse cristão seculariza-se

ao converter-se em produto das massas. Nos dias atuais e mesmo recuando às últimas décadas

do século XX, é inegável que tenha deixado de ser exclusividade dos guetos cristãos para

ganhar a “cultura popular” no sentido mercadológico do termo.

Mas, que lugar ocupa neste quadro escatológico toda visão beatífica de anjos alados a

tocar trombetas ao redor do trono divino e abrasar vingativos os campos e cidades enquanto

diabos acossam em algazarra os “amancebados” virados em bestas que antes habitava férvido o

imaginário apocalíptico do sertanejo nordestino? Quanto a este imaginário não podemos negar

que tem se volvido cada vez mais no mundo moderno numa “fantasia de velhos”.

A verdade é que cada época e sociedade experimentam uma maneira própria de viver e

conceber o apocalipse - e por que não dizer as suas angústias diante do seu tempo -, na qual a

tendência homogeneizante do “apocalipse científico” na sociedade atual globalizada é um

exemplo bastante presente no imaginário do homem contemporâneo.

O Apocalipse é um livro sempre atualizado por seus leitores. Cada leitor em sua época

tenderá a interpretá-lo de modo diferente determinado pelas suas experiências pessoais e

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coletivas e decodificado pela bagagem cultural que transporta.

Estas circunstâncias nos apontam para a existência de uma propínqua relação entre

“identidade apocalíptica” e “tempos de crise”, já que é deste enlace que as sociedades buscam

encontrar suas respostas para as agudas tensões em curso, sendo, por isso, “produto de

momentos de crise em que há a necessidade de dar resposta a uma situação limite”.4 É no

interior desta problemática geral que o estudo do imaginário apocalíptico nos serve como

paradigma cognoscível para entendermos a crise contemporânea que está na base da

compreensão desta pesquisa, principalmente no que tange ao “rompimento” e a “fragmentação”

da cosmovisão de uma “cultura camponesa” herdeira do que chamamos do apocalipsismo

judaico-cristão, isto é, do sistema de conceitos e símbolos mobilizado pelos judeus do pós-

exílio e pelos cristãos primitivos por meio dos quais estes codificaram a sua identidade e

coferiram expressão à sua interpretação da realidade adotando “a perspectiva da escatologia

apocalíptica como estratégia de esperança e sobrevivência”.5

Alterado, (re)significado e (re)inventado pela Cristandade Ocidental ao longo dos

séculos, este sistema simbólico seria catalisado pelo chamado “catolicismo popular” do

Nordeste brasileiro medrado às margens do amplo processo de cristianização do Ocidente,

culminando no que a tradição historiográfica e mais comumente sociológica convencionou

chamar de “milenarismo” ou “messianismo rústico” e que o sociólogo Duglas Teixeira

Monteiro (1974) denominou de a “Grande Tradição judaico-cristã”. São as reminiscências deste

patrimônio simbólico entendido na acepção do texto como a apropriação dos vestígios

(elementos, símbolos, sentidos, posturas e significados) do que uma vez pertenceu ao sistema

de crenças da tradição escatológica judaico-cristã alterado e/ou transformado no decurso dos

tempos que nos interessa mais de perto neste trabalho. Nesta categoria incluímos, por exemplo,

as estruturas mentais, a visão de mundo, a produção iconográfica e o imaginário, este último de

maior importância para a compreensão deste estudo.

O interesse pelo tema do imaginário apocalíptico partiu inicialmente de uma curiosidade

de adulto sobre a fantasia de menino. Quando despertei para a tenra infância na passagem dos

anos 1980 para os anos 90 a cultura irresistível do “fim do mundo” já havia ganhado amplos

domínios em minha imaginação de menino. É desta época que me recordo ter ouvido na calçada

de casa e pela boca dos vizinhos as primeiras alusões às misteriosas “profecias de Pe. Cícero e

Frei Damião” que finalizavam quase sempre numa aterradora resolução: “do ano 2000 o mundo

não passa”.

4 MACHADO, Jonas, 2009, p.11.

5 Idem, op. cit., p.83.

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Por durante muito tempo convivi com a ideia de que haveria no futuro próximo um fim

último para a humanidade e minha fértil imaginação de menino pintava com cores vibrantes (e

sombrias) as cenas que precederiam o Juízo Final e desfaria o mundo em rastros de poeira e pó.

Naquele tempo minha mãe já me dizia: “o mundo não se acaba, não. Quem se acaba são as

pessoas que nele vivem”. Era uma visão revolucionária nas vias de um imaginário milenar.

Destina-se primeiramente esta monografia a contribuir com os estudos históricos sobre

cultura popular na historiografia brasileira. Como meta primordial, o trabalho consiste em

fornecer um estudo acerca do imaginário apocalíptico popular no sertão do Seridó norte-rio-

grandense por meio da investigação de como este fora agenciado por uma coletividade de

sujeitos, para compreender o avanço da modernidade e as transformações sociais fomentadas

pelo processo de modernização na região e no município de Cruzeta, em particular, entre as

décadas de 1950 e 70.

Os silêncios historiográficos que pairaram em torno de muitas experiências vividas pelos

homens ao longo de sua história suscitaram em diferentes pesquisadores o desejo de arrojar-se

em direção a outros espaços e realidades pouco visitados ou explorados pelos estudiosos do

passado.

A historiografia do século XX, sobretudo aquela que surgiu a partir de sua terceira década

com a Escola dos Annales e as novas formulações marxistas, foi testemunha de uma autêntica

diversidade de temáticas e de problemas que tornaram possíveis ao historiador pensar de forma

inovadora seus objetos, práticas e domínios e junto a estes o tratamento diferencial com as

fontes, provocando uma “revolução” na forma de tratar a escrita da história. As mudanças

ocorridas também se fizeram sentir nos eventos históricos que deixaram de ser apenas

acontecimento de curta duração abrindo espaço para a abordagem de outras temporalidades (a

média e longa duração, por exemplo).

Com os Annales, a história passou a privilegiar novos objetos e novos atores sociais,

deixando de lado a preocupação com os feitos heróicos de políticos e homens eminentes e

começa a dedicar-se ao estudo das massas e dos sujeitos anônimos da sociedade, de todas as

expressões humanas, das mentalidades, do comportamento humano e suas formas de agir,

pensar e dominar. Tal me parece ter sido este o itinerário percorrido pela história do imaginário

no século passado que, insurgindo do campo das mentalidades, especialmente com a terceira

geração dos Annales, soube bem erigir-se sobre domínios e bases particulares.

A clivagem operada no interior da história das mentalidades que permitiu a emergência

dos estudos do imaginário e estendeu a dimensão do real para o mundo das “representações” e

dos “símbolos”, tornou possível a sua depreensão como parte da realidade presente tanto quanto

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se entende por “vida concreta”, importando, agora, desvelar as relações que as produções do

imaginário mantêm com as estruturas sociais nas quais este circula e as interconexões

empreendidas entre ambos.6 A história do imaginário passou a preocupar-se também com a

análise das representações criadas pelos sujeitos históricos, como meio de interpretar as

realidades sociais vivenciadas pelos diversos grupos “populares”. Ao tratar do imaginário

social, Gilbert Durant (2001) o concebe como parte inerente do mundo real e do cotidiano das

pessoas, não os tratando como partes independentes e separáveis.

Das últimas décadas do século XX aos dias atuais, principalmente com a insurgência da

chamada Nova História Cultural nos anos 80 e o espaço que esta alargou à propalada “história

vinda de baixo”, o campo do imaginário passou a ser um terreno fértil para aqueles

historiadores que desejavam investigar a articulação entre as imagens verbais, visuais e mentais

cunhadas por um determinado grupo ou sociedade e a própria vida que nela flui, revelando os

modos como as coletividades humanas as utilizavam para imaginar e conceber a própria

existência e o mundo em sua volta.

Em vista disto, a história contemporânea do imaginário coletivo seguiu o veio de duas

tendências teóricas: uma que enfatiza os processos de permanência e privilegia o estudo das

sociedades ou dos níveis sociais ainda tradicionais com maior enfoque para o espaço rural, e a

outra que expande sua análise para as novas sociedades nascidas da urbanização industrial e

para o desenvolvimento da mídia, irrompendo, deste modo, com os grilhões que a mantinha

presa à limitação primeira.7 Buscando atender uma necessidade de ordem teórico-metodológica,

nossa pesquisa se desenvolveu na interface crítica destas duas tendências.

Para fins de análise deste estudo, compreendemos o imaginário conforme conceito

definido por Hilário Franco Júnior como

um conjunto de imagens visuais e verbais gerado por uma sociedade (ou uma

parcela desta) na sua relação consigo mesma, com outros grupos humanos e

com o universo em geral [...] resultante do entrecruzamento de um ritmo

histórico muito lento (mentalidade), com outro bem mais ágil (cultura) [...]que

exerce função catártica e construtora de identidade coletiva ao aflorar e

historicizar sentimentos profundos do substrato psicológico de longuíssima

duração.8

Com base neste conceito mais amplo, entendemos por imaginário apocalíptico popular o

conjunto de imagens e símbolos verbais, visuais e mentais produzidos e mobilizados pelos

sujeitos para codificar suas crenças, sentimentos, cosmovisões acerca das revelações dos

6 BARROS, José D’Assunção, 2008.

7 PATLAGEAN, Evelyne, 1993, p.308.

8 FRANCO JUNIOR, Hilário, 1998, p.16;71.

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últimos acontecimentos do mundo, conferindo expressão e tradução a sua interpretação da

realidade e do tempo, mas que não possui relações de dependência com a doutrina

institucionalizada pela Igreja docente, embora ambos bebam na fonte da mesma crença.

Outro importante conceito que procuramos discutir neste trabalho é o de modernidade

com base em dois enfoques teóricos: um que aparece no discurso da elite associado à ideia de

progresso, evolução e desenvolvimento material, técnológico e científico e o outro encontrado

no discurso e na produção imagética das classes “iletradas” associado ao estranho, ao

desconhecido, à “coisa” diabólica. Adotado pelo discurso historiográfico, ele se aproxima do

discurso da elite diferentemente daqueles para quem a noção de “modernidade” não existia.

Para discutirmos esta relação tomaremos como base teórica o conceito de modernidade

formulado por Jacques Le Goff (1994) que a define como um conjunto amplo de modificações

constatadas nas estruturas sociais do Ocidente provocada a partir de um processo longo de

racionalização da vida, que tanto atinge as esferas da economia, como da política e da cultura. É

este processo nascido especialmente do espírito capitalista e racional em pleno

desenvolvimento no país e no mundo ocidental que penetra às bases tradicionais do modus

vivendi de povoados, vilas e comunidades rurais do sertão seridoense gerando um “choque de

identidade”, entendido aqui como a experiência em que um grupo social não reconhece como

parte de seu sistema simbólico elementos ou condutas que antes não faziam parte de seu

sistema cultural de crenças, saberes e valores, condicionando-o a uma reação adaptativa.

A pesquisa permite ainda uma investigação problematizada de duas abordagens

extremadas até hoje não superadas: a que defende uma imutável resistência do sertanejo diante

do avanço da modernidade e aquela que sustenta sua passividade resoluta diante do mesmo

processo, procurando, com isso, rastrear as flexibilidades e as condutas hesitantes que se

deixam escapar. Ademais, o trabalho oferece uma alternativa de como romper com a antiga

dicotomia de valores arquitetada ao redor dos espaços litoral – “progressista e civilizado” - e

sertão – “arcaico e inculto” – ou entre as categorias “desenvolvimento” e “atraso” que

costumam vir atrelados aos estudos do apocalipsismo no Nordeste brasileiro e que serviram de

alicerce para a construção de velhos preconceitos. Neste ponto, é importante esclarecer ainda

que não se trata de penetrar no universo já muito estudado e abordado dos “messianismos

rústicos brasileiros” tal como aparecem nas pesquisas sociológicas e com menor intensidade na

historiografia brasileira, embora admitamos que pertençam ao mesmo sistema simbólico

sertanejo. Trata-se de adentrar em um universo menos explorado pelos pesquisadores e, por isso

mesmo menos conhecido: o do imaginário das crenças apocalípticas populares que se formaram

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em torno do problema da “modernidade” nas sociedades de “tradição conservadora” em

processo de “modernização”.

Diante disso, não podemos negligenciar no tocante aos sertões seridoenses, a fundamental

importância que exerceram na constituição deste imaginário as profecias populares que

circundaram as figuras “proféticas” do padre Cícero Romão Baptista e de Frei Damião de

Bozzano, transmitidas oralmente pela grande massa de seus devotos e “afilhados” espalhados

pelas comunidades sertanejas locais. Reverenciados como modelos de virtude cristã e estimados

pela sensibilidade e atenção que dedicavam aos mais pobres e marginalizados, entre as massas

de sertanejos católicos eles se tornam nos “padrinhos Ciço e frei Damião”, os “conselheiros” do

povo humilde do sertão. A aura de santidade que os debitavam fariam deles taumaturgos,

profetas e mediadores diretos entre Deus e os homens capazes de obter favores e graças divinas,

de predizer o futuro, de realizar milagres e prodígios sobre-humanos e guiar as almas com seus

“avisos” e “conselhos”.

No escopo do nosso trabalho não trataremos de abordar precisamente a influência “direta”

tecida pelo contato físico das populações sertanejas com estes “santos homens”, alvo de muitos

objetos contemplados por outras pesquisas. Mas cuidaremos de enfatizar as suas “presenças"

não menos reais expressas nas profecias populares atribuídas aos “padrinhos” que chegaram até

nós através da tradição oral de grupo e que atestam a “santidade” destes homens entre os

sertanejos seridoenses. Aquela segunda posição seria praticamente impossível dentro do recorte

temporal estabelecido por nossa pesquisa, porque não compreende o período de vida

correpondente ao do “Santo do Juazeiro” falecido no longínquo ano de 1934, embora tenhamos

na segunda metade do século XX uma maior projeção do missionário capuchinho frei Damião

de Bozzano junto às populações sertanejas do Nordeste. Isso não significa dizer que a

influência do taumaturgo do Juazeiro tenha se arrefecido com sua morte. Pelo contrário, muitos

estudos vieram confirmar que à morte do “santo padrinho” correspondeu a um período de

ascensão das crenças populares em derredor de sua figura, já que entre as massas de sertanejos

rurais supersistiu a convicção de que o “Padinho Ciço” continuava “vivo” e “operante” no meio

do povo, pelo menos no imaginário de seus devotos.9

9 Cf. a este respeito estudo já clássico realizado por VALENTE, Valdemar. Misticismo e região: aspectos do

Sebastianismo nordestino. Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisa Sociais: Recife/PE, 1963. p.107-117. Ver

também BRAGA, Antônio Mendes da Costa. Padre Cícero: sociologia de um Padre, antropologia de um Santo.

Bauru/SP: Edusc, 2008. p.308-332 e BARBOSA, Francisco S. de Alencar. O juaseiro celeste: tempo e paisagem

na devoção ao Padre Cícero. São Paulo: Attar, 2007. Sobre o “santo de Juazeiro” escreveria Cascudo cinco anos

depois de sua morte: “hoje, o Padre Cícero é o centro de formação duma gesta, soma de episódios fantásticos, de

milagres tradicionais, de intervenções fulminantes, outrora pertencentes a outros personagens impressionadores da

multidão”. (CASCUDO, Câmara, 1939/2000, p.131). 9 ARRUDA, Gilmar, 2000.

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16

Ao tratarmos de um objeto de natureza impalpável como definimos o imaginário, surge-

nos logo a dificuldade em estabelecermos limites temporais bem definidos. A solução para isso

está na necessidade do “esgarçamento” da temporalidade e da historicidade para abordarmos a

nossa temática. A periodização das representações sociais do imaginário como também as suas

mudanças significativas nos quadros mentais, visuais e textuais – não acompanham a

temporalidade sugerida por outros campos da historiografica como o da economia ou da

política.10

Numa relação dialética entre o problema da modernidade e do imaginário apocalíptico

popular sertanejo, situa-se o espaço temporal compreendido entre o momento em que os

“símbolos do mundo moderno” começam a penetrar os espaços dos sertões seridoenses na

segunda década do século XX e um outro momento em que este imaginário passa a ser

retratado a partir da intromissão de novas influências11

advindas dos “meios de comunicação de

massa” (o rádio, a televisão e a imprensa) entre as décadas de 1950 e 70, interferindo na via

tradicional por onde este anteriormente pulsava (a tradição oral e o folheto de cordel, para citar

os mais importantes). Tendo em vista que a maior disponibilidade de fontes pertence ao

segundo período deste recorte e é de melhor confiabilidade, optamos por enfatizar em nossa

pesquisa este momento de transição. Mas, antes de adentrarmos nesta história, façamos uma

breve paragem para conhecermos os atores de nossa trama.

OS “INCÓGNITOS” DO SUBTERRÂNEO DA HISTÓRIA LOCAL

Palmilhar as veredas da história local e regional no Brasil Contemporâneo continua sendo

um exercício árduo e desafiador para qualquer historiador da cultura, principalmente quando

seu trabalho de investigação aprecia um objeto pouco retratado pela tradição historiográfica.

Este desafio torna-se ainda mais acentuado à medida que seu lócus de pesquisa desloca-se dos

centros de produção e reprodução da cultura para as localidades mais distantes destes onde a

tradição de se organizar arquivos, centros de documentações ou bibliotecas é ainda inexistente

ou pouco consolidada. Esta circunstância desanimadora, mas, mais ainda desafiante, acaba

10 Idem.

11 Por influências entendemos como um desenvolvimento na forma de como o homem enxerga seu universo que

implica numa “mudança intrínseca e inconsciente de sua cultura e de sua própria maneira de encarar sua existência

no mundo, que é motivada por uma plena identificação de semelhanças entre sua forma de pensar e agir com a

ideologia que lhe é apresentada com uma variada gama de soluções na doutrina “alienígena” para fazer frente aos

seus próprios problemas”. Estas por serem, muitas vezes, resultados de diversas ações implementadas ao longo de

vários anos, tornam-se geralmente imperceptíveis àqueles que as sofrem ou praticam. (JORGE BERGO, Miriam

Reis, 2008, p. 65).

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revelando em muitos aspectos o(s) motivo(s) que têm levado muitos historiadores da

contemporaneidade a buscarem na análise de depoimentos de homens e mulheres simples cujas

experiências de vida não puderam ser guardadas em outro registro que não a memória, um

recurso para deixar vir à tona outras vozes, existências, cosmovisões e pontos de vista não

acessíveis por meio de fontes arquivísticas processuais. Daí porque a emergência de se

recuperar as experiências de sujeitos sociais ditos “anônimos” tem impelido a realização dos

chamados trabalhos de “história oral” no Brasil e no mundo.

“Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral

ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas

minoritárias e dominadas, se opõe à “memória oficial”12

, esta convertida geralmente em objeto

de primazia da chamada “historiografia tradicional ou positivista” centrada na abordagem dos

fatos, datas e personagens considerados “notáveis”, para o período em estudo. Em vista disso

[...] é pela oportunidade de recuperar testemunhos relegados pela História que

o registro de reminiscências orais se destaca, pois permite a documentação de

pontos de vista diferentes ou opostos sobre o mesmo fato, os quais omitidos ou

desprezados pelo discurso do poder, estariam condenados ao esquecimento”.13

Neste sentido a história oral “possibilita a participação de agentes históricos antes

desconsiderados, pois geralmente em diferentes espaços sociais só mereciam serem lembrados

os que se destacavam e impunham sua habilidade no campo político e social” ficando o restante

da sociedade destinado a exercer um papel secundário no drama da história.14

Ao eleger a

entrevista como recurso essencial para a sua fabricação, a história oral exige algumas

observações a respeito de sua metodologia.

Antes de tudo importa dizer que a história oral utiliza como matéria-prima os relatos orais

(depoimentos), e, por conseguinte, as memórias coletadas através do recurso das entrevistas que

são produzidas a partir de uma metodologia própria. A respeito de sua aplicação no Brasil,

estudos demonstram que esta tem sido aplicada desde o início dos anos 1970, embora se

constate que em outras partes do mundo sua utilização tenha alcançado um vasto

desenvolvimento no período do Segundo Pós-guerra. De modo geral,

[...] os defensores da história oral apóiam-se na crença de que o recurso aos

depoimentos poderia “resgatar” do esquecimento as experiências históricas das

classes populares, dos “deserdados”, única forma de se fazer a “história” de

grupos sociais iletrados ou não contemplados na documentação tradicional.15

Visto desta maneira, a história oral emerge desde a metade do século XX como uma

12 POLLAK, Michael, 1989, p.4.

13 FREITAS, Sônia Maria de, 2006, p. 48.

14 MOTA JUCÁ, Gisafran Nazareno, 2003, p.27.

15ARRUDA, op. cit., p.38.

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forma de oferecer oportunidades para que os próprios sujeitos históricos antes invisíveis e

ausentes nos processos de produção do historiador tomem parte efetiva na própria fabricação de

sua história a partir daquilo que hoje ela oferece de mais precioso e singular – a subjetividade

dos diversos atores sociais – uma vez que através desta podemos contar “menos sobre eventos

que sobre significados”.16

Diante disso, é possível marcar duas fases importantes no processo de produção da

história oral no Brasil e no Mundo: a primeira verificada entre os anos 1960 e 1980, perpassada

por duras críticas quanto a objetividade e, portanto, a legitimidade de sua fabricação (para os

críticos deste período, os relatos puros e simples não podiam se constituir na própria história,

tendo em vista que a memória é passível de subjetividade e porquanto incapaz de oferecer um

relato objetivo e fidedigno sobre os fatos) e a segunda, que começou a se estabelecer nos anos

1990 e vem se consolidando nos dias atuais pautada na discussão de que o problema não deve

se incidir mais sobre a possibilidade dos depoimentos oferecerem informações “verídicas” ou

não sobre os fatos estudados, mas no valor residente nas interpretações que elas fazem abrolhar.

Arrimado neste discurso, é necessário deixarmos claro que não pretendemos aqui chegar a

uma “verdade” absoluta ou global dos fatos analisados. Apenas buscamos recuperar outras

memórias acerca do problema da “modernidade” e sua “captura” pelo imaginário apocalíptico

popular a partir de outros ângulos ou pontos de vista, contrapondo-nos ao modelo de história

convencional que ainda perpassa a produção da história local fundamentada “em noções

extremamente restritas do que (e de quem) importa na história, e de como (e por quem) é gerada

a mudança histórica”.17

Basta um breve relancear entre as páginas do livro “Noções de

Geografia e história do município de Cruzeta”, publicado pela professora Terezinha de Jesus

Medeiros Góes em 1971, para se perceber o lugar em que ocupam na tradição historiográfica

local aqueles personagens cujos “feitos prosaicos” não mereceram ser inscritos nos livros de

história. São estes indivíduos quase sempre homens e mulheres do “povo”, roceiros,

pescadores, operários, agricultores, artistas populares, donas de casa, artesãos, benzedeiras,

curadores. Numa única passagem em que a autora tece uma alusão a estes sujeitos assim os

referenciaria em sua obra:

De igual importância nos princípios do nosso povoado foi a colaboração dos

homens humildes, incógnitos, que em centenas aqui alojados, sob os ardores

de um sol causticante, com seus rostos banhados de suor, construíram os

alicerces desta cidade que os homens mais esclarecidos do passado

edificaram, a qual os homens do presente amoldam às exigências atuais, para

16 PORTELLI, 1997 apud. ARRUDA, Gilmar, 2000, p.39.

17 THOMSON, Alistair, et. al., 2006, p.75.

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os do futuro aperfeiçoarem-na. [Grifos nossos].18

Ocupando um papel de coadjuvantes da história, suas vivências em solo cruzetense

estariam perpassadas de silêncios.

A respeito de sua narrativa histórica, a obra enfatiza o caráter a-histórico de seus

personagens ao abduzir suas ações das circunstâncias históricas em que foram produzidas e

revesti-las de um poder personalístico e atemporal. São narrativas quase sempre biográficas de

“homens públicos” que procuram exercer na memória social a função de sua natureza exemplar

revelando uma visão de sujeito histórico ancorado na memória dos feitos dos “grandes vultos”

do passado e numa visão histórica orientada pela concepção da história como magistra vitae

(mestra da vida), ao reconstituir as experiências passadas a partir de narrativas impregnadas de

sentidos moralizantes vinculadas a modelos de comportamentos exemplares “eternizados” no

tempo.

Esta visão de história alicerçada na trama histórica de seus “personagens notáveis” possui

uma função social bastante definida ao passo que ela serve para criar em torno do passado uma

identidade comum engendrando entre os sujeitos sociais que a compartilha os vínculos de

pertencimento ao espaço onde vivem, mas que nem sempre contribui para o exercício do pensar

este espaço como produção histórica, nem os sujeitos que o vivificaram como agentes sociais

que operaram no tempo. Quando muito, ela também não está isenta de tornar-se um eficiente

vetor de ideologia política que opera consciente e/ou inconscientemente em função dos grupos

sociais dominantes ao eleger como seus sujeitos históricos indivíduos provenientes dos estratos

sociais mais privilegiados e, portanto, os únicos merecedores da condição de “fazedores de

história”. O resultado disso é a concepção de uma história ou “memória oficial” (aqui entendida

no sentido daquela ensinada e (re)produzida no âmbito das instituições públicas locais) que se

impõe como única e verdadeira, não abrindo possibilidades para incluir outras versões

existentes (a dos anônimos, a dos “excluídos”, por exemplo), na medida que se assenta na visão

predominante de apenas um segmento da sociedade ou de determinados indivíduos que tomam

para si a alcunha de “autênticos repositórios” da memória social.

Buscando propor uma visão da história e dos fatos locais a partir da versão da “cultura

popular”, nossa pesquisa se baseia sobre memórias e vivências que remetem às experiências

vividas por “indivíduos comuns”, mas não menos importantes que aqueles que se destacaram e

impuseram suas habilidades no campo político e social, já que cada sujeito participa de

maneiras diferentes de sua cultura e contribui significativamente para a construção da história

18 GOES, Terezinha de Jesus Medeiros, 1971. p.55.

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do espaço que vivifica seguindo a “lógica” do grupo social que partilha. Isso não significa dizer

que tivemos que deixar de lado as vozes destoantes que geralmente dão lugar à ambigüidade, à

polissemia e a flutuação de sentidos e significados, para jogar unicamente com uma tradição ou

ponto de vista. Nosso interesse aqui também foi confrontar memórias e tradições, ângulos de

vistas diferentes e divergentes, embora sem perder o foco na “historicidade popular”.

Assim, diante da complexidade que assume o nosso objeto, foi mister que lançássemos à

mão um recurso metodológico que nos ajudasse a pensar o tratamento sistemático de nossas

fontes. Composta por um corpus documental diversificado, nossa pesquisa percorreu um

itinerário que foi desde uma humilde oração de oratório doméstico utilizada por um devoto do

Padre Cícero e Frei Damião, transitando pelos versos proféticos de um cordel do fim do mundo

a uma cena escatológica de uma xilogravura sertaneja. Nesta trajetória, percorremos ainda

enunciados de jornais, gravuras, e velhas fotografias de álbuns de família. Visitamos memórias,

sondamos antigas crônicas, “santinhos” e canções. Desvelamos sonhos, lembranças, abusões.

Revisitamos uma “marchinha” de carnaval. O imaginário apocalíptico popular revela uma

infinidade secreta de “lugares” por onde podemos perambular em busca de seus rastros. Neste

ponto, queremos ainda esclarecer que não foi nossa pretensão que o confronto entre os diversos

tipos de fontes nos levasse a uma “verdade” sobre os fatos narrados. Apenas buscamos

encontrar outras memórias, pontos de vista e tradições.

Em relação à emergência de um tratamento especial das fontes optamos por percorrer dois

procedimentos metodológicos. O primeiro, mais convencional, se processou a partir do

cruzamento e combinação de fontes através de uma abordagem comparativa onde procedemos

cruzando fontes orais com iconográficas (a fotografia e a xilogravura) e textuais (o cordel e a

crônica jornalística), buscando discernir suas inter-relações e conexões e procurando enxergar

as distorções, consensos e conflitos nas dimensões factuais, temporais e espaciais dos

acontecimentos. Por meio deste procedimento, tornou-se possível deduzir a dimensão espacial,

social e cultural do nosso objeto, uma vez que este nos permite fazer a intersecção de fontes

derivadas de lugares distintos e divisar as distâncias e/ou as aproximações que as mantêm

conectadas a um contexto local, regional e mais além deste.

Por fim, aplicamos a metodologia da história oral por meio da gravação de entrevista

temática e da coleta de testemunho buscando estabelecer uma colônia de narradores. Nosso

itinerário geralmente seguia um traçado predefinido: inicialmente procurávamos realizar uma

visita preliminar a cada colaborador e a partir de uma conversa informal, que durava alguns

minutos, buscávamos sondar em suas memórias a presença de reminiscências que

contemplavam fatos e acontecimentos da vida individual e coletiva que, de algum modo,

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estavam relacionados com a temática da pesquisa. Após este primeiro contato e o aceite do

entrevistado, era agendado um segundo encontro para a gravação do depoimento e elaborado

um roteiro de entrevista a partir da sondagem previamente realizada para servir de guia na

captação dos testemunhos.

Em cada roteiro de entrevista, buscou-se enfatizar a associação entre os acontecimentos

da vida pública e da vida privada por meio das narrativas individuais secundadas pela memória

de grupo privilegiando os aspectos das tradições populares construídas acerca das crenças no

fim do mundo incidentes sobre estes fatos e transmitidos entre as gerações pelos membros da

família. Nosso objetivo, com isso, era que o depoente pudesse narrar suas experiências menos

como testemunhas oculares dos acontecimentos que como parte de uma cadeia de transmissão

de seus significados, possibilitando a compreensão do seu processo de construção ou de

(re)produção pela inserção daquele na memória coletiva.

Foram entrevistados no total 18 moradores do município de Cruzeta (RN) com faixa

etária variante entre 82 e 47 anos de idade, com o propósito de identificar os processos de

ruptura e continuidade do imaginário apocalíptico popular numa escala local em subserviência

do contexto regional.19

No que tange à ideologia religiosa, todos os entrevistados demonstraram

freqüentar periodicamente a “igreja do padre” e compartilhar da cosmologia católica como a

crença no poder dos santos e em sua capacidade de operar milagres, na existência de um mundo

extraterreno habitado por entes incorpóreos e na eficácia simbólica da promessa. Mesmo entre

aqueles que se observou possuir um nível de escolaridade mais elevado, esta constatação se fez

presente.

A escolha do município de Cruzeta como lócus preferencial da pesquisa, deu-se em

decorrência deste espaço ter se constituído no lugar de experiência da infância do autor e por ter

sido ali travados seus primeiros contatos com as crenças apocalípticas populares, seja no seio

familiar ou na vivência de grupo. É por este motivo que, em grande medida, este estudo,

mantém com seu autor uma relação muito próxima de afinidade. A propósito da localização

geográfica, a cidade de Cruzeta está engastada no estado do Rio Grande do Norte, na porção

mais central do Seridó potiguar, a 231 km de Natal, capital do Estado, figurando dentre os 23

municípios que compõe a região seridoense.20

Com uma área territorial de 295km² e uma

19 No processo de tratamento com as fontes orais, optou-se pela transcrição e transcriação dos trechos das

entrevistas considerados mais importantes para a documentação e embasamento da pesquisa acompanhado de

algumas informações referentes a traços biográficos do depoente. Porém, a concessão dos depoimentos orais

carece ainda das assinaturas dos entrevistados para fim de publicação. 20

No total, a cartografia regional, historicamente construída, da região do Seridó norte-rio-grandense é formada

por 23 municípios: Acari, Cerro Corá, Carnaúba dos Dantas, Caicó, Cruzeta, Currais Novos, Equador, Florânia,

Ipueira, Jardim de Piranhas, Jardim do Seridó, Jucurutu, Lagoa Nova, Ouro Branco, Parelhas, São Fernando, São

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população de 7.967 habitantes, segundo o último censo realizado em 2010 pelo IBGE (Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística), o município de Cruzeta, assim como toda região do

Seridó, encontra-se situado em pleno semi-árido nordestino, integrando o espaço que se

convencionou chamar de “sertão do Nordeste brasileiro”.21

(Ver imagem 01 em anexo). Ao

habitante nativo ou radicado do lugar, costuma-se denominar-se cruzetense.

O trabalho de campo buscou priorizar os cruzetenses naturalizados ou arraigados no lugar.

Dos dezoitos depoentes contatados pela pesquisa, quinze residiam no perímetro urbano e os

demais na zona rural da cidade durante a atividade de coleta de entrevistas realizada entre os

anos de 2009 e 2014, com exceção apenas de uma informante que à época encontrava-se

residindo no vizinho município de Caicó (RN).22

Apesar disso, constatou-se que foi uma

ocorrência freqüente entre eles o fato de terem vivido a infância e/ou adolescência no campo e

terem aí mantido seus primeiros contatos com as crenças apocalípticas do sertão em algum

período do interregno entre os anos 1930 e 1960. É, portanto, a este recorte temporal que

remetem as memórias coletadas por esta pesquisa, embora tenhamos que admitir que elas não

estejam apenas circunscritas a este espaço ou tempo. Entretanto, uma importante ressalva cabe

ser feita aqui. Em termos de categoria cultural, observamos que quanto mais próximo estava o

sujeito dos níveis de instrução mais elevados, menos ainda contemplava este imaginário, de tal

modo que se fazia mais presente na realidade de vida partilhada por camponeses, sitiantes e

trabalhadores rurais, grupos de indivíduos que arredados dos processos educacionais do período

mantinham vínculos estreitos com o campo.

Isto não significa dizer que abrangendo o imaginário à categoria de “popular”, este se

aplique a uma definição rígida perante a fronteira do seu oposto – o “erudito” – como é comum

aparecer nos estudos clássicos que tratam da cultura popular, nem a uma divisão imóvel de

grupos ou classes sociais bem estabelecidos. Mas abre possibilidades para que diferentes

Vicente, São João do Sabugi, São José do Seridó, Santana do Seridó, Serra Negra do Norte, Timbaúba dos Batistas

e Tenente Laurentino Cruz. (MORAIS, Ione Rodrigues Diniz, 2005, p.26). 21

Geograficamente, o Sertão nordestino é uma área de transição entre as sub-regiões do agreste (seco) e meio-

norte (úmido) e compreende a parte mais interior de praticamente todos os estados do Nordeste brasileiro. É

caracterizado por um clima tropical semi-árido (quente e seco) com pouco volume pluviométrico, solo pedregoso e

vegetação escassa e de pequeno porte onde se encontra a Caatinga. A cultura desta região está intimamente ligada

ao clima e à história de sua colonização. Foi a primeira região interiorana do Brasil a ser colonizada. Fonte:

http://www.infoescola.com. Acesso em 30 mai. 2014. 22

A informante referida trata-se da Sra. Alexandrina de Oliveira Campos, natural de Cruzeta e professora

aposentada de 73 anos que residiu na localidade até 1981, ano em que fixou residência no município de Caicó/RN.

Quanto a esta depoente percebeu-se uma particularidade com relação a outros entrevistados que permaneceram

atrelados à tradição do mundo rural, já que o acesso à formação ilustrada acadêmica e sua trajetória profissional

conduzida no interior do funcionalismo público local e dos movimentos de vanguarda como a Juventude Agrária

Católica (JAC) nos anos 1960, a levou à tomada de outra posição política que conformaram sua visão de mundo e

ideologia ainda em sua juventude. Mesmo com isto, notou-se com relação à entrevistada que não houve um

rompimento total com a cosmologia do catolicismo popular, uma vez que esta também compartilha de muitos

traços e elementos simbólicos deste universo cultural.

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sujeitos partilhem tanto das experiências de um “campo” como do outro, deslizando por seus

domínios e fronteiras.23

Enfim, considerando a estrutura básica do trabalho, optamos por dividir este estudo em

três capítulos “interdependentes”, perfazendo uma escala que vai desde uma abordagem do

geral para o regional e deste para um enfoque mais particular do local, estabelecendo um

encadeamento que tanto uma dimensão como a outra podem aparecer imbricadas.

No primeiro capítulo intitulado Profetas e apocalípticos nos sertões do Nor(des)te,

buscamos analisar como se deu a formação do imaginário apocalíptico popular sertanejo no

espaço que hoje denominamos de Nordeste brasileiro, procurando demonstrar as influências das

diversas culturas que contribuíram na configuração deste horizonte cultural e a região do Seridó

norte-rio-grandense como parte deste processo mais amplo. Nesta contextura, destacamos as

pesquisas realizadas pela antropóloga Cristina Pompa que parte da hipótese de que os conjuntos

simbólicos de caráter apocalíptico e penitencial da religiosidade popular sertaneja nordestina

foram o resultado de uma dinâmica histórica complexa processada no “encontro” entre as

culturas indígenas e a cultura ocidental no interior do Nordeste árido. Ainda nesta tessitura,

procuramos analisar as contribuições das práticas missioneiras para a constituição do

imaginário apocalíptico sertanejo com destaque para as atuações jesuíticas e capuchinhas e para

a importância das figuras dos beatos e conselheiros na conformação de um feitio mais popular

da apocalíptica24

camponesa. Os principais autores que nos auxiliaram nesta etapa do trabalho

foram, além de Cristina Pompa, Roger Chartier, Vicente Dobroruka e Carlo Ginzburg com a

noção de seu conceito de “circularidade cultural”.

O segundo capítulo que tem por título “Até mil e tantos a dois mil não chegará”: o

Seridó no descambar das eras”, encontra-se subdividido em quatro tópicos. No primeiro

tópico, buscou-se investigar a dimensão regional que perpassa a teia do imaginário apocalíptico

popular do sertão nordestino e seus possíveis rebatimentos no território seridoense via interface

das relações inter-espaciais e culturais mantidas por suas populações no interior deste espaço.

Partindo da análise deste contexto, adentramos com o segundo tópico no objetivo

propriamente de nossa pesquisa ao refletir como o processo de modernização regional

deflagrado em escala nacional e implementado pelas elites no âmbito local implicou numa

23 É importante considerar como lembra Chartier (1995) que a categoria “cultura popular” é antes de tudo

“erudita”, pois trata-se de um conceito cunhado por outros indivíduos, dentre estes os scholar, para delimitar,

caracterizar e nomear práticas que nunca são denominadas desta forma por seus próprios atores, o que justifica o

fato destas nem sempre serem produzidas dentro de um domínio consciente dos sujeitos frente a este “outro” da

diferenciação. 24

Empregamos o termo apocaliptica conforme a concepção de Ressell (2007) para designar uma crença ou um

conjunto de crenças e condutas relativas às revelações das últimas coisas que deverão ocorrer no fim dos tempos.

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(re)orientação do imaginário apocalíptico popular a partir do contato de suas populações com os

novos símbolos do progresso e da modernidade. Para tanto, contribuíram as formações

ideológicas constitutivas da apocalíptica sertaneja que atribuíam as “novidades da história” um

sentido escatológico. Estas formulações mentais estavam fundamentadas numa estrutura

imaginária que tinham nos medos escatológicos uma forma de manutenção de suas estruturas e

referências tradicionais, eixo temático que nos propusemos a analisar na terceira parte do

capítulo.

No quarto tópico, pretendeu-se mostrar como os “símbolos de modernidade”, ao

penetrarem as plagas seridoenses, sobretudo o espaço da cidade, não foram apropriados de uma

forma hegemônica por todos os sujeitos, significando de modos diferentes de acordo com a

“tradição” a qual se filiava seu “intérprete”. Tomando como exemplo particular o caso do

município de Cruzeta, buscou-se também demonstrar nesta fase do trabalho, como ao contrário

do que se costumava pensar nos “estudos folclóricos” ou de “cultura popular”, a propalada

“cultura de massas” não significou num conseqüente aniquilamento das formas “populares” de

cultura representadas aqui pelas expressões do imaginário apocalíptico popular, mas numa

conseqüente (re)apropriação desta a partir de “usos tradicionais” ou até mesmo numa

convivência com aquela. Nesta etapa do trabalho, foram importantes as contribuições dadas por

teóricos da cultura como Stuart Hall, Marilena Chauí e Bronislaw Baczko.

Por último, chegamos ao terceiro capítulo, em que se pretendeu analisar, com base nas

fontes orais coletadas, como os símbolos de modernidade impelidos pelo avanço da civilização

capitalista moderno-urbana ocidental com destaque para o automóvel e o avião, foram

apropriados por muitos cruzetenses a partir de um viés escatológico-apocalíptico impressos no

simbolismo da “besta escatológica”. Neste ponto, se destacou a importância das profecias

apocalípticas amparadas nos movimentos religiosos populares dos quais as Santas Missões de

Frei Damião de Bozzano e o movimento dos romeiros do Padre Cícero do Juazeiro foram os

mais importantes na construção deste processo. Propondo entender este mecanismo como parte

da experiência do “choque cultural” vivenciada pelas populações sertanejas locais frente ao

processo de modernização regional, procuramos mostrar que o “choque”, ou na melhor hipótese

o “encontro” com o elemento moderno, não implicou no fim do imaginário religioso tradicional

construído em torno das crenças no fim do mundo, mas, sim, numa transformação operada no

interior dos seus processos de produção e significação. Para a elaboração deste capítulo,

contamos com as valiosas colaborações de autores como Denis Castilho (geógrafo), Roger

Chartier, Clifford Geertz e Eni Orlandi.

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CAPÍTULO 1. PROFETAS E APOCALÍPTICOS NOS SERTÕES DO “NOR(DES)TE”:

O SERIDÓ NA SENDA DOS MEDOS ESCATOLÓGICOS

1.1. DA “TERRA SEM MALES” DOS “PROFETAS” INDÍGENAS A CENA DO JUÍZO

FINAL: O “PROFETISMO” TUPI-GUARANI

De acordo com a antropóloga Cristina Pompa (2001), foi o sociólogo francês Roger

Bastide o primeiro a estabelecer uma correlação histórica entre raízes mitológicas indígenas e

pregação missionária no sertão ao refletir que no Nordeste seco o elemento cristão substitui aí o

elemento indígena para dar espaço a “um cristianismo de penitência e de apocalipse”.25

Antes mesmo dos missionários e visionários cristãos aportarem na Terra de Santa Cruz e

as conseqüências da conquista se fazerem sentir, os tupi-guarani, na espera de seu próprio

“milênio”, já anunciavam pela boca de seus profetas errantes, os caraíbas26

, aqueles sobre

quem os jesuítas chamavam de “feiticeiros”, um país “sem mal nem desventura”, “estimulando

os índios à purificação e preparação para a grande viagem que os levariam à “Terra Sem

Males”.27

Para Ronaldo Vainfas (1995) e Jaqueline Hermann (2000), a chegada do europeu

colonizador, a efetiva colonização portuguesa na América e o início da ação catequética dos

jesuítas no Brasil ao longo de toda segunda metade do século XVI, trouxeram para os indígenas

da nossa costa um período de intensas perseguições, privações e mesmo exterminação de

contingentes populacionais expressivos, mas também ensejaram mudanças expressivas e

profundas no conteúdo das pregações proféticas dos caraíbas, sobretudo, da crença na Terra

Sem Mal, núcleo da mitologia tupi-guarani.

Fugindo das perseguições brancas, do cativeiro, das doenças, do trabalho escravo nos

engenhos do litoral, da catequese jesuítica e orientando-se pela busca da Terra sem Mal, os

índios da costa brasílica acabariam por reordenar o sentido profético de suas crenças,

25 BASTIDE, Roger, 1973, p. 100-101.

26 Espécie de pajés ou xamãs indígenas (guias espirituais), de grau superior, possuidores de poderes mágicos, “cuja

maior virtude era a de se comunicarem com os espíritos por intermédio dos maracás (encarnação mística dos pajés)

e de transmitir esse dom a qualquer integrante do grupo por meio da defumação com a “erva santa”, como

chamaram os portugueses – na verdade o petim ou tabaco. (...) Reencarnação dos heróis da mitologia tupi, esses

líderes teriam um papel fundamental no enfrentamento dos colonizadores, nas invasões de engenhos e

principalmente no deslocamento para o interior na busca da Terra sem Mal, já que o litoral se tornara lugar de

perseguição, doença, cativeiro e morte”. HERMANN, 2000, p. 78. Para saber mais sobre o tema ver Ronaldo

Vainfas, A heresia dos índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial, São Paulo, Companhia das Letras, 1995. 27

CHAUÍ, Marilena, 2002, p.500. De acordo com Hermann op. cit. a “Terra sem Males” dos caraíbas era um

região imaginária da mitologia tupi-guarani, “que exprimia a expectativa do encontro de um lugar de extrema

abundância, felicidade e eterna juventude, morada dos ancestrais e dos espíritos corajosos, onde todos viveriam a

redenção das provações e se tornariam homens-deuses”.

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adaptando-as às imposições da história, “tendo mesmo de inverter o sentido das migrações

rituais que faziam periodicamente, em movimento que tanto era de fuga como de readaptação

da mitologia ao novo tempo de dominação colonial”.28

Expelidos cada vez mais para o interior da colônia, os tupi-guarani levariam consigo para

regiões mais afastadas dos primeiros núcleos coloniais seus mitos e crenças tradicionais já

bastante modificados e matizados pelo contato com os ocidentais, forjando um compósito

híbrido que contribuiu para a reelaboração de seu próprio universo mítico, notadamente para a

mudança do teor de suas pregações proféticas influenciando até mesmo na concepção da

própria idéia da Terra sem Mal ao incorporar à sua mitologia sentidos que se aproximavam ao

do paraíso terreal cristão.29

Este universo já modificado da cultura nativa iria se imiscuir e

dissolver-se no interior da colônia absorvidos pela sociedade sertaneja em formação ao serem

levados pelos primeiros colonos, missionários e posseiros dos “sertões” – índios, negros,

mestiços e brancos, dentre os quais figuravam cristãos-novos degredados ou fugitivos do reino

– alimentando os sonhos da “Terra da Promissão” de seus primeiros desbravadores.

No efetivo deste processo concorreu o importante encontro entre catolicismo ibérico e

cosmologia indígena processado nos primeiros séculos da conquista, principalmente aquele

ocorrido nos domínios dos aldeamentos jesuíticos onde os gentios recebiam ensinamentos sobre

a criação do mundo e o Juízo Final e “tomavam contato com as orações cristãs e os

sacramentos”, além de aprenderem a diferença entre o paraíso e o inferno.30

Em meio a este

amálgama de crenças, Hermann31

esclarece que muitas das imbricações e hibridismos forjados

no trópico entre elementos da cultura e religiosidade européia e gentílica foram “produzidos nos

próprios aldeamentos da Companhia de Jesus, a partir do esforço dos jesuítas para traduzirem

para o gentio os princípios e ensinamentos católicos”, mas que também remetem à

complexidade dos dilemas e impasses da colonização européia na América.

Neste sentido, a autora supracitada explica que as pregações dos primeiros jesuítas e suas

traduções do catolicismo para a língua geral autóctone teriam transformado, no limite, o sonho

milenarista do Paraíso tupi, alimentado desde tempos imemoriais, em cena do Juízo Final, além

de ter adulterado e maculado a religiosidade indígena “pela inserção de princípios católicos que

tinham por fim extirpar a falsa religião gentílica”.32

Foi combinando visão escatológica e visão

pragmática da catequese que os jesuítas procuraram fazer das aldeias missionárias indígenas,

28 HERMANN, Jacqueline, 2000, p.79.

29 Idem, ibidem.

30 Idem, ibidem, p. 88.

31 Idem, ibidem, p. 90.

32 HERMANN op. cit., p.93.

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inclusive aquelas que iam sendo fundadas nos sertões da colônia entre os séculos XVII e XVIII

(as aldeias dos “tapuias33

”), um espaço preciso para a realização de sua utopia cristã e projeto

humanístico. Crentes na certeza da iminência do fim do mundo e articulando pensamento

jesuítico aos anseios escatológicos de um sonho milenário, estes missionários esperavam

refundar, no Novo Mundo, a Igreja de Cristo, livre de corrupções e pecados e construir o Reino

de Deus na terra já na véspera do fim dos tempos, quando tivessem trazido para a Santa religião

a grande massa dos gentios.34

Mas as raízes históricas daquilo que Pompa35

chamou de “cultura do fim do mundo” não

devem ser encontradas apenas nos jesuítas e na sua modalidade de pregação missionária nos

sertões. Junto a estes, também passaram a atuar outras ordens missionárias imbuídas da tradição

profético-salvífica do Ocidente, dentre as quais merece destaque a ordem dos padres

capuchinhos que, prosseguindo com as missões inauguradas pelos jesuítas, também

desempenharam um importante papel junto à população “cabocla” até o século XIX.

1.2. MISSIONISMO E PROFECIA: JESUÍTAS, CAPUCHINHOS E “ALDEIAS TAPUIAS”

NOS SERTÕES NORDESTINOS

A ação missionária no Brasil teve início em meados do século XVI com a vinda dos

primeiros jesuítas despachados pela coroa portuguesa para dar execução aos pontos do

Regimento do governador Tomé de Souza (1548) “que tinha a conversão à santa fé católica

como razão principal da colonização do Brasil”.36

A partir disso, deram início as práticas de

catequese junto aos indígenas da faixa litorânea (os tupi-guarani) implantando as primeiras

aldeias missionárias.

Analisando as experiências missionárias jesuíticas nas aldeias, Cristina Pompa (2001)

demonstra que diversas vezes estas tiveram de ser reajustadas em decorrência de seus

resultados. De acordo com a autora, a necessidade dos missionários em utilizar os códigos

religiosos indígenas como forma de tradução dos códigos de devoção católicos contribuiu para

a formação de uma “cultura híbrida” nas aldeias que está na base da formação do “catolicismo

33 Conforme Pompa (2002), o termo “tapuia” mais que um etnônimo significava uma categoria colonial utilizada

para pensar o mundo tapuia em oposição ao mundo tupi empregado pelo colonizador português para designar o

“feroz habitante do espaço desconhecido do sertão, reino da barbárie e da selvageria” presente em toda literatura

dos séculos XVI e XVII. Segundo ainda a autora, as aldeias dos tapuias correspondiam às missões situadas entre os

cariris do sertão da Bahia e do Baixo São Francisco como constam nas comunicações jesuíticas. 34

POMPA, 2002, p.1-14. 35

Idem, 2004, p.83. 36

POMPA, 2001, p.299.

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tapuia” nos sertões. Este catolicismo de feição mais popular, nascido de uma experiência

cultural “mestiça” nas aldeias, seria o mesmo que forneceria as bases para a construção da

“cultura do fim do mundo” e de uma “religiosidade penitencial-apocalíptica” no sertão

nordestino.

Associadas às duas principais práticas de evangelização utilizadas pelos missionários nas

regiões sertanejas, estes compósitos culturais teriam suas raízes na modalidade das pregações

jesuíticas e capuchinhas37

(ainda que também não se possa desprezar a contribuição de

franciscanos, carmelitas, oratorianos e mercedários sobre os quais pouco ainda se sabe)

empregadas nos aldeamentos tapuias e nas “missões volantes” alicerçadas na visão apocalíptica

dos castigos de Deus para os pecados da humanidade.38

Para isso contribuiria o trabalho de

“tradução do outro” e a busca por uma “alteridade compreensível” que se dava em todos os

aspectos da vida cotidiana e, de modo particular, nas práticas de devoção popular nas aldeias.39

Embora as primeiras missões catequizadoras nos sertões nordestinos tenham acontecido

ainda no século XVI com os descimentos ou as expedições rumo ao sertão40

, as primeiras

aldeias missionárias nestas regiões só foram fundadas no século XVII após a expulsão

holandesa do Nordeste, coincidindo com o período de maior recrudescimento da chamada

“Guerra dos Bárbaros”.41

De acordo com Pompa42

, a fundação dos “aldeamentos tapuias” se deu em decorrência da

mudança nos objetivos das entradas que, após um período de interrupção ocasionado pela

ocupação flamenga na região, passaram a não mais visar o descimento, “mas a cristianização e

a assistência ao gentio”.

Concomitante ao movimento de penetração colonial nos sertões nordestinos, as

expedições missioneiras tomaram duas frentes de entradas. Partindo da Bahia pelo São

Francisco, “foi aberto, no século XVII, o caminho para o sertão do Piauí (o caminho das

37 Tanto Pompa (2001) quanto Arraes (2012) esclarecem que a escassez de fontes referentes à atuação de outras

ordens missionárias nos sertões nordestinos (franciscanos, mercedários, oratorianos e carmelitas) não permitem

que estudos mais aprofundados sobre elas sejam realizados, voltando quase todas as pesquisas de vulto para a

análise das missões jesuíticas e capuchinhas nestas regiões sobre as quais a documentação é mais abundante. 38

POMPA, op. cit. 39

Idem, 2001, p.89. 40

No contexto da colonização, “sertões” era um termo utilizado pelos colonizadores portugueses para designar as

“terras sem fé, lei ou rei”, significando as “áreas extensas afastadas do litoral, de natureza ainda indomada,

habitadas por índios ‘selvagens’ e animais bravios, sobre as quais as autoridades portuguesas, leigas ou religiosas,

detinham pouca informação e controle insuficiente”. (AMADO, 1995, p.48). Daí porque nos documentos jesuíticos

o termo “tapuia” era utilizado para fazer alusão aos “índios selvagens” habitantes destas regiões ignotas. 41

ARRAES, D. E. Araújo, 2012. “Guerra dos Bárbaros” ou “Confederação Cariri” são expressões utilizadas pela

historiografia para referir-se aos conflitos, rebeliões e confrontos envolvendo os colonizadores portugueses e várias

etnias indígenas tapuias que tiveram espaço no processo de conquista dos “sertões” das capitanias do Nor(des)te

do Brasil entre 1683 e 1697. Alguns historiadores preferem tratar estes fatos como um movimento de resistência

dos indígena contra o ataque e a invasão dos homens brancos aos territórios nativos. 42

POMPA, 2001, p.323.

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boiadas) e, através deste último, para o Maranhão e a Serra de Ibiapaba, no Ceará”43

. Do

Pernambuco, partiram de Recife atravessando Olinda e Goiana e se espraiando pela Paraíba e

Rio Grande alcançaram os sertões longínquos do Açu, do Apodi e do Seridó, onde fundaram

alguns aglomerados indígenas “para a cristianização dos índios das nações Janduí, Icó e Paiacú”

no início do século XVIII.

As primeiras aldeias jesuítas na região sertaneja foram fundadas nos três últimos decênios

do século XVII no baixo-médio São Francisco, próximas aos aldeamentos capuchinhos onde os

missionários inacianos procuraram desenvolver com os silvícolas tapuias as mesmas práticas de

catequese já aplicadas nas aldeias do litoral. Do mesmo modo também ocorreu com os

capuchinhos que, penetrando, o interior de Pernambuco e Paraíba, iniciaram sua obra de

catequese naquela região.44

As escavações realizadas por Pompa (2001) na documentação resultante destas

experiências missionárias delatam a presença de alguns elementos significativos da catequese

na construção do horizonte penitencial-apocalíptico do sertão. O primeiro elemento que a

autora destaca é a centralidade do castigo como meio de garantir o cumprimento das leis

nascido junto às aldeias e ao projeto de humanização missionária. Através dos castigos físicos

aplicados aos infratores, os padres buscavam transformar os “selvagens” em “homens”

intentando torná-los bons cristãos. Sua ausência entre os índios era vista como sinal de

selvageria.

Mas os elementos que a autora enfatiza como sendo de uma maior importância na

construção do penitencialismo e, por conseguinte do horizonte apocalíptico do sertão são

aqueles que Pompa encontrou na simbologia das pregações e liturgias da empreitada

catequética que os missionários filtraram de práticas que já existiam no universo simbólico

indígena e que também eram de competência xamanística: a confissão ou aquilo que os padres

entendiam como sendo uma confissão praticada pelos indígenas, a cura de doenças e o

exorcismo (o afastamento do “diabo”) e, sobretudo a dádiva da profecia e a capacidade de fazer

chover que eram as duas prerrogativas capitais dos “feiticeiros” indígenas ou xamãs.

A respeito do poder divino de “fazer chover”, Cristina Pompa (2001) relata que os

missionários acabaram por assumir diante dos indígenas sertanejos (cuja maior preocupação era

com a falta de chuva) um poder extraordinário, assumindo a posição intermediária entre Deus e

os índios e sendo considerados por estes como os únicos capazes de impetrar a salvação.

Investido da dádiva da profecia, os padres se transformaram para os gentios nos “profetas da

43 Idem, ibidem, p.323-324.

44 Idem, ibidem, p.305.

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morte”, ameaçando com terríveis castigos àqueles que não se submetessem às suas exortações e

substituindo os xamãs (agora “traduzido” como o “agente do demônio” ou o “símio de Deus”)

no papel de “enfermeiros e curadores”, mas também de obreiros de doenças.

Todavia, o elemento que mais contribuiu para a construção do imaginário apocalíptico

sertanejo foi sem dúvidas o teor penitencial das pregações catequéticas dos missionários – em

especial aquele utilizado pelos frades capuchinhos nas “missões volantes” ou “populares” –, por

meio do qual estes procuravam enfatizar a punição e o castigo de Deus para os pecadores que

não se convertessem.

1.3. A MENSAGEM “APOCALÍPTICA” DOS CAPUCHINHOS E AS “SANTAS MISSÕES

POPULARES”

As “missões volantes” ou “itinerantes” dos capuchinhos pelos sertões do Nordeste,

também chamadas de “santas missões populares”, foram o ponto alto da presença missionária

nos povoados, vilas e cidades sertanejas e se estenderam ao longo do período imperial e início

da República.

Assim chamadas pelo seu caráter transitório, estas faziam alusão ao período de uma ou

duas semanas que estes missionários permaneciam em alguma comunidade para a realização de

seu apostolado que visava especialmente levar o conforto espiritual e material as populações

menos assistidas, despertar e alimentar a fé dos cristãos desviados frente ao avanço de outros

credos (do protestantismo, por exemplo) e convidar ao arrependimento e a conversão o pecador

inveterado.

Além destas finalidades mais estritas aos aspectos morais e espirituais, as missões

populares acabaram se configurando num verdadeiro “marco civilizatório”, uma vez que “ao se

colocar à frente do processo de avanço das boiadas e tropas sertão adentro”, esses missionários

também realizavam obras de utilidade púbica, construindo e reconstruindo capelas, asilos,

cemitérios, açudes, estradas e “envolvendo nesses gestos significativa parcela da população”, o

mutirão.45

Em suas andanças e apostolado pelos sertões, os frades capuchinhos também retomaram

dos jesuítas a sua tradição de rituais penitenciais e sermões apocalípticos46

, pregando o Fim do

Mundo e incentivando a autoflagelação, o jejum, a esmola e a mortificação do corpo e fazendo

das santas missões um instrumento de inculcação de uma forma determinada de representação

45 POMPA, 2004, p.87; SAMPAIO, Wilson Correia, 2011, p.112.

46 POMPA, 2004, p.87.

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do mundo que caminhasse em consonância com a ideologia católica.47

Instituída sob os ditames do Concílio de Trento (1545-1563) como reação à Reforma

Protestante, as santas missões populares foi uma forma encontrada pela Igreja Católica de

aproximar as massas populares de seus trabalhos pastorais, podendo ser ajustada a realidade

local à medida que se fazia seguindo várias etapas e métodos.

Em sua estrutura básica, a santa missão durava de oito a dez dias. Na noite da

chegada, pregava-se o “sermão forte”, que devia “mostrar a gravidade do

pecado, a essência da ofensa a Deus e suas conseqüências no plano social, a

visão exata dos castigos eternos”, e em seguida havia confissões que se

prolongavam, durante a noite, enquanto o povo entoava benditos. [...] O ponto

alto da missão era a procissão de penitência, em que missionários e fiéis

perfaziam longos trajetos em meio à pregação (centradas nas idéias de castigo,

inferno e apocalipse) e muitas confissões (com base nas quais, como no tempo

dos jesuítas, era feita a avaliação da missão)”.48

A presença destes religiosos nos lugarejos era sempre recebida com forte fervor religioso

em que, além das pregações e das práticas oficiais litúrgicas conduzidas pelos frades (as missas,

as confissões e as homilias) também havia espaços para as formas de piedade popular que eles

traziam e estimulavam entre o povo (as devoções aos santos, o culto às almas do purgatório, os

sacrifícios, as romarias, as procissões, os oratórios caseiros e as esperanças de milagres),

criando uma atmosfera espiritual mística que propiciava a emergência de uma cultura

apocalíptica e messiânica.49

Diante deste quadro, dois foram, portanto, os motivos principais que concorreram para

um maior êxito da catequese “volante” dos capuchinhos entre as populações sertanejas do

século XVIII e XIX: a crescente “urbanização” pelas quais passavam as freguesias, vilas e

cidades neste período, muitas das quais tiveram seus núcleos urbanos nos aldeamentos

missionários de outrora ou nas fazendas de criar gado, permitindo juntar em seus redutos um

maior aglomerado de pessoas50

; e o método de pregação missionário utilizado por estes frades

para catequizar as massas populares que consistia na obtenção das grandes conversões coletivas

à semelhança daquele empregado por seus irmãos de hábito, os frades Menores Franciscanos,

nas cidades medievais muitos séculos antes.

A estes dois motivos cruciais ainda se junta a situação de extremo “abandono” as quais

viviam as populações arredias destes chãos sertanejos onde a presença eclesiástica se fazia

titubeante e mitigada fazendo com o que um número maior de fiéis conhecesse quando muito o

serviço temporário de um cura na ocasião em que este passava em desobriga pelos pequenos

47 SAMPAIO, W. C., 2011, p.109-110.

48 POMPA, op. cit., p.86.

49 HERCULANO, E. de Oliveira; SANTOS, Ivanildo G. dos, 2011, p.54.

50 ARRAES, 2012.

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arraiais e fazendas, atendendo às necessidades espirituais de sua clientela e distribuindo os

sacramentos pelos sertões.

Este fator, aliado ao prestígio de santidade e de conduta ascética que os frades acabavam

auferindo destas populações, nos ajuda a entender o motivo pelo qual as missões itinerantes

foram recebidas com muito entusiasmo e veneração nos lugarejos mais afastadas dos centros

urbanos, onde a presença clerical e a assistência espiritual eram escassas e inconstantes. Neste

ponto, não podemos esquecer que o fim da experiência missionária nas aldeias do sertão

[...] legou um horizonte espiritual inédito, que os índios carregaram consigo ao

se misturar com o resto da população e ao construir junto com esta a “cultura

cabocla”, notadamente a partir do projeto de integração dos indígenas à

população rural estabelecido pelo Diretório Pombalino, em 1757.51

Este processo contribuiria para que a mensagem “apocalíptica” dos capuchinhos a quem

os nativos atribuíam o poder de cura, vidência e profecia desde os tempos das aldeias, fosse

recebida com credulidade e temor neste meio social.

Mas foram, de modo particular, as imagens evocadas nas mensagens apostólicas

capuchinhas, especialmente aquelas de cunho escatológico-apocalíptica utilizadas pelos frades

para incutir o temor nos fiéis e conseguir seus intentos, que as populações sertanejas puderam

“filtrá-las” e (re)modelá-las em seu imaginário tradicional. Utilizando um discurso simples,

claro e persuasivo, os “frades barbadinhos”, como também eram chamados os capuchinhos por

envergarem barbas longas, recorriam a diversos recursos que colaboravam com a depreensão de

seus conteúdos pelo auditório de nível mais frustre, coroando de certo êxito a sua pedagogia do

medo.

A preferência pelas vilas e pacatas cidades sertanejas, também se dava em decorrência de

uma mensagem a transmitir. Como zelosos da moral cristã e guias de almas, os capuchinhos

viam a vida nos “antros urbanos” um estímulo a mais para os vícios e pecados denunciando

com cólera dos púlpitos as “imoralidades” dos homens do sertão e ameaçando com o fogo do

inferno os “escandalosos”, o que acabava arrancando comoção e provocando alarme na

assistência numerosa.

O medo do castigo eterno era acrescido ainda mais com as descrições atemorizantes que

faziam, não poupando da lembrança a evocação de diabos pretos com espeto na mão, usando

chifres e cauda alongada a assar os condenados em seus caldeirões infernais, imagens que os

missionários de outros tempos já empregavam na catequese como “arma poderosíssima” de

evangelização.52

Só para os conversos e arrependidos estava garantido o refrigério do céu.

51 POMPA, 2004, p.84.

52 SOUTO MAIOR, Mário, 1975, p.17.

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33

Um trecho trazido pela Missão Abreviada do Padre Manuel Jose Gonçalves Couto de

1868 – livro de meditações piedosas encontrado nas fazendas do Nordeste brasileiro do século

XIX e referência fundamental para a pregação capuchinha – deixa entrever o destino medonho

do pecador depois da morte:

Considera, peccador, que o Inferno é um logar [sic.] no centro da Terra; é uma

caverna profundíssima, cheia de escuridão, de tristeza e horror; é uma caverna

cheia de labaredas de fogo e de nuvens d’espesso fumo. Lá, são atormentados

os peccadores na companhia dos demonios; lá estão bramindo e uivando como

cães damnados, proferindo terríveis blasphemias contra Deus”.53

Além da danação no Inferno, a morte e o Juízo particular e o final eram outros temas de

predileção dos capuchinhos, como lembra Vittoriano Regni (1991) e estes eram sempre

utilizados nos “sermões fortes” para fazer ojeriza ao pecado e convencer o pecador sobre a

gravidade e a urgência da reparação de sua culpa. Diante do supremo juiz, nenhum pecado

passará impune e, além disso, fica o pecador na incerteza quando e em que hora chegará o seu

dia de prestar contas ao Altíssimo, pois a qualquer momento poderá soar a última trombeta ou o

cristão ser levado em débito perante a justiça divina e já não haverá mais tempo para o

arrependimento. Outro trecho citado na Missão Abreviada ilustra com propriedade como este

tema era empregado pelos capuchinhos nas missões.

Que confusão, e que horror será o teu, peccador, se quando compareceres em

juízo ainda estiveres em peccado mortal? Oh! Quão grande será o teu susto e

assombro quando os teus olhos se encontrarem com aquella divina face, em

que descarregaste tantas e tão grandes bofetadas, isto todas as vezes que

commetias as culpas?[...] O juiz que há de julgar-te é um Deos Omnipotente,

um Deos por ti offendido e maltratado, por ti desprezado, e até crucificado...

Oh! Quanto Elle estará irritado contra ti, peccador! Os seus divinos olhos

estarão lançando faíscas de fogo contra ti. As suas mãos estarão cheias de raios

contra ti. O seu semblante estará scintillando furor contra ti. Só a sua vista

irada é bastante para reduzir-te a cinzas.54

Diante desse quadro arrepiante, o Juízo Final era tomado como um acontecimento

terrível, babélico, desolador e humilhante para o cristão desobediente, o Dia da Ira do Senhor,

em que Este, por meio de redemoinhos de fogo, reduzirá o mundo à cinzas com todos os seus

viventes e conduzirá para o céu apenas os bons cristãos, enquanto os pecadores serão

precipitados no inferno (onde haverá choro e ranger de dentes) para sofrerem com os demônios

o castigo incessante. Também não faltavam neste cenário sinistro alusões a Besta-fera e ao

Anticristo (por vezes tratados como o falso profeta, o “Grande Ímpio”, o filho do Diabo com

quem se assemelhará na aparência) e os seus asseclas (os encarregados da besta), figuras que

muito em breve deverão aparecer para seduzir o cristão, cometer abominações e obrigar-lhe a

53 COUTO, M. J. Gonçalves, 1868, p.78.

54 Idem, ibidem, p.66-67.

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prestar culto. A Missão Abreviada está impregnada destes personagens apocalípticos de onde os

capuchinhos retiravam boa parte da cerviz imaginária de suas pregações.55

O dia em que tudo isso acontecerá, certamente, não estaria longe e os frades anunciavam

com estampido os “sinais do Fim do Mundo” que já atestavam sua iminência no meio do povo:

a seca devastadora e reentrante, a miséria, a peste assoladora, a fome, a violência entre irmãos e

parentes, as falsas doutrinas e os desregramentos morais, muitas vezes interpretados como

conseqüências dos pecados humanos ou agentes da ira divina. Tudo era exposto num clima de

iminência do fim do mundo em que o cristão pecador era impelido a confessar suas faltas. Um

trecho da parênese sobre o Juízo Final e a Grande Tribulação de frei João Batista de Cingoli

demonstra como os capuchinhos se utilizavam da simbologia apocalíptica para obter seus

intentos:

Talvez não tarde muitos annos; se o Antichristo não anda no mundo, andão já

os seus precursores a preparar-lhe o caminho; os inimigos do Apocalipse

parece que estão quase desenvolvidos; tudo vai mostrando proximo esse dia.

Que fareis pois, peccadores? Em que vos fiaes, para andar no peccado? Ora,

basta de peccar. Cuidemos bem em nos salvar e cuidemos logo, que talvez, é

myster confessal-o, aqui estarão [sic] muitos que não [haverão] de chegar a

ouvir outro sermão do Juizo Final.56

A prática das longas confissões certamente exercia uma importante função na sermonária

capuchinha, pois através delas os missionários podiam tomar conhecimento das mazelas morais

e sociais que infringiam as comunidades e assim, denunciá-las nos púlpitos.

A aura de misticismo e apocalipse que geralmente envolvia as missões populares e

permeava as atividades religiosas da região acabava fomentando “ainda mais a geração de

crenças supersticiosas e escatológicas que encontravam apoio no fértil terreno formado pelas

crenças populares”.57

Este horizonte místico contribuía para que as revelações anunciadas pelos

missionários fossem recebidas pelo povo como virtude divina da capacidade dos frades de

prever e profetizar o futuro, operar milagres e desvelar pecados ocultos, atributos pelos quais

ficariam celebrizados nos sertões nordestinos.

No rol dos grandes profetas e taumaturgos do Nordeste, Cascudo (2002) menciona Frei

Vidal de Frascarolo ou frei Vital da Penha (1780-1820), “capuchinho bradador e fervoroso”,

que missionou entre as regiões do Pernambuco e do Ceará no início do século XIX, inclusive

com passagem pelo sertão do Rio Grande do Norte, a quem lhes fora atribuída, depois de sua

morte, diversas profecias, muitas das quais continuaram circulando de forma impressa ou na

memória popular por mais de cem anos.

55 CUNHA, Tatiane de Oliveira da, 2011.

56 COSTA E SILVA 1982 apud. COSTA, V. Marinho, 2008, p.29.

57 PAZ, Renata Marinho, 1998, p.42.

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Outro capuchinho com fama de vidente e milagreiro que pregou por quase todo o

Nordeste brasileiro foi Frei Serafim de Catania (1811-1887), sobre quem Cascudo diz ter

deixado “profecia lida e copiada” na segunda metade do século XIX, algumas das quais de

circulação entre os seridoenses.58

O conteúdo destas profecias geralmente dizia respeito a previsões de eventos futuros ou

aos acontecimentos dos últimos tempos que certamente causava impacto na imaginação popular

e acabava amalgamando-se de diversas maneiras ao imaginário apocalíptico do sertanejo:

guerras sangrentas e de inquietações, catástrofes naturais (enchentes ou secas devastadoras),

aparição de sinais tenebrosos no céu (o escurecimento do sol e da lua, a passagem de cometas e

perturbações nas estrelas), condutas desafiantes dos sexos (a ascensão da mulher e a moda

“escandalosa”), revoluções sociais e políticas (o retorno de d. Sebastião59

e o reino do

Anticristo, da Besta-fera e do Papa do fim das eras), novidades aterradoras (a invenção do avião

e o transplante de vísceras humanas), prazo cronológico até a Era dos XX e, etc.

Todo este temário contado e recontado nas “profecias apocalípticas” que circulavam o

sertão adentro fazia parte de tradições proféticas mais antigas (algumas delas milenares) que o

colonizador europeu trouxe para o Brasil e os missionários, difundindo-as pelos quatro cantos,

cuidaram em resignificá-las a um novo contexto e aos novos tempos.

Talvez o rumor prodigioso e cabalístico que as profecias do Fim do Mundo granjearam no

tecido cultural do sertão esteja no fato de que, além do vulto enigmático e solene a quem eram

atribuídas (o beato ou o frade missionário com fama de “homens santos” que lembrava a figura

de um profeta bíblico), estas também encontrassem respaldo na mesma teia discursiva que

moldou o imaginário apocalíptico do sertanejo – a literatura popular “laica” na sua forma oral,

tradicional e Popular a exemplo do Lunário Perpétuo60

(livro em formato de almanaque de

quem o sertanejo se servia para fazer seus prognósticos sobre o tempo e orientar-se sobre os

mais variados aspectos da vida) e a literatura sagrada com seus “livros de oratório” (a Bíblia, a

Missão Abreviada, dentre outros).61

58 CASCUDO, Câmara, 2002, p.458.

59 Nome do lendário rei português morto na batalha de Alcácer-Quibir contra os árabes, em 1578, em torno do qual

surgiria o mito do sebastianismo (crença messiânica adaptada às condições lusas e à cultura nordestina brasileira

que consiste na espera escatológica do rei “Encoberto” ou “Desaparecido” que cessará no fim dos tempos). 60

De acordo com Cascudo (2000) que também mantinha um exemplar da obra em sua mesa de cabeceira, o

Lunário Perpétuo foi o livro mais lido nos sertões do Nordeste brasileiro durante dois séculos e era volume

indispensável na “Biblioteca do sertão”. Dele também se utilizavam os cantadores populares para fabricar seus

versos, “cantar teoria” e se informar sobre gramática, história e doutrina cristã, gozando entre os sertanejos a

mesma força que as “escrituras santas”. (MEDEIROS FILHO; FARIA, 2001). 61

ARAÚJO, Douglas, 2006.

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No final do século XIX, com a intensificação da chamada “romanização”62

do catolicismo

brasileiro nos sertões nordestinos, as “santas missões” capuchinhas passaram a ser alvo de

censuras por parte do clero mais ortodoxo da Igreja que via em muitas de suas práticas

devocionais uma “fonte de fanatismo e ignorância” que se devia antes argüir que incentivar.

Estas práticas que, até meados do século XIX compunha essencialmente o edifício do

catolicismo popular63

de influência colonial lusitana e af,ro-ameríndia (as procissões de

penitência, a autoflagelação, a devoção aos santos, o culto aos mortos, os sacrifícios corporais e

dentro deste conjunto, as crenças “supersticiosas” e escatológicas sobre o Fim do Mundo), eram

aquilo que a Igreja romana pretendia, em parte, combater ou pelo menos corrigir os excessos

com sua política de reformulação eclesiológica “mais atentas às diretrizes tridentinas do

catolicismo europeu do século XIX”.64

Com isso, não pretendemos dizer que as missões populares deixaram de ser incentivadas

ou que ao se utilizarem dos sermões com temas apocalípticos, os capuchinhos acabaram

abandonando o território da ortodoxia. Ora, a ênfase dada aos temas do Juízo particular e Final

em suas prédicas fazia parte de uma estratégia de pregação missionária que operava em

consonância com esta própria ortodoxia, uma vez que estes missionários buscavam explorar

nestas temáticas uma forma de “melhor articular as dimensões individual e coletiva da

escatologia cristã” e assim difundir na assistência um “pesado sentimento de culpabilidade” que

era “vertido em terror, vergonha, dor e, sobretudo, na certeza da punição”, tão necessária à

conversão pessoal e, portanto, a salvação de cada alma.65

Mas, ao aludir a passagens e figuras

relacionadas aos últimos tempos e associá-los a outros personagens e acontecimentos da

história, os capuchinhos acabavam, sem perceber, adentrando no território do passível de

repreensão.66

Desde a Antiguidade tardia com Santo Agostinho (c. 354-430 d.C) e Ticônio (c. 330-390

62 Com base no estudo realizado por João Everton da Cruz (2010, p.19) entendemos por “romanização” do

catolicismo brasileiro, “o movimento de reestruturação interna da hierarquia eclesiástica com a finalidade de

reforçar seu poder espiritual, reafirmando os cânones de fé e moral, uma vez que perdeu seu poder secular devido à

separação entre Igreja e Estado. O objetivo é de modelar o catolicismo brasileiro conforme o esquema “romano”,

implicando num rigor doutrinal, moral e hierárquico. Esse catolicismo teve como principais divulgadores os

religiosos missionários” e pode ser datado a partir de 1858. Entretanto, é importante observar como fez Renata

Marinho Paz (1998, p.24) que a romanização não tratou apenas de “um processo de transformações religiosas

correspondentes ao interesse do clero em assegurar sua ascendência sobre os leigos”, mas viabilizou-se “em boa

medida a partir das mudanças estruturais provocadas pela instauração do capitalismo agrário no Brasil no final do

século XIX”. Sobre esta questão ver OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Religião e dominação de classes: gênese,

estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985. 63

Estamos utilizando o conceito de catolicismo popular conforme defendido por Maués, 1987 apud. Paz, 1998,

p.37 como um “conjunto de crenças e práticas socialmente reconhecidas como católicas de que partilham,

sobretudo os não especialistas do sagrado, quer pertençam às classes subalternas ou às classes dominantes”. 64

BRAGA, Antônio Mendes da Costa, 2008, p.54. 65

COSTA, V. Marinho, 2008, 30. 66

Idem.

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d.C), os defensores de uma Igreja ortodoxa vieram trabalhando no sentido de dar ao Apocalipse

interpretações mais espiritualizadas, buscando refrear, em muitos aspectos, aquelas explicações

que levavam em conta a sua literalidade.67

Do esforço desta disputa exegética, surgiram no

cerne da doutrina cristã ocidental duas tradições opostas de compreensão do Apocalipse: uma

de vertente mais espiritual e eclesiológica adotada pela Igreja como doutrina oficial (a

escatologia individual que o “catolicismo universalista” tridentino do século XIX retomaria em

seu projeto de reforma religiosa no Brasil) e a outra, mais literal e concreta de posição mais

heterodoxa (a escatologia coletiva preocupada em desvelar no simbolismo do livro os

elementos que identificassem eventos, personagens e acontecimentos objetivos revelados na

história).68

Era, no entanto, na esteira de uma utilização ortodoxa e heterodoxa do imaginário

baseado na expectativa dos últimos dias, entre os limites do que se podia ou não crer, que os

capuchinhos muitas vezes faziam pender a sua parenética. Ao fazer pender a balança de suas

pregações em favor da escatologia coletiva, os missionários geravam ocasiões de descontrole da

religiosidade e da sociabilidade em sua assistência que traziam à tona alternativas de vivência

religiosa consideradas pela Igreja docente como “deletérias” à salutar devoção dos fiéis, motivo

pelo qual os poderes eclesiásticos passaram a exigir dos frades a imposição de freios em seus

sermões apocalípticos.69

Diante disso não fica difícil imaginar que o revestimento arrebatador que faziam das

santas missões populares um terreno sagrado para o mundo transcendental dos fiéis – a aura

mística das mensagens proféticas e penitencial-apocalípticas dos capuchinhos – foi o que mais

se esvaziou ou perdeu tom com a romanização do catolicismo popular nos sertões do Nordeste,

embora ainda encontremos em pleno século XX, um missionário capuchinho da envergadura de

Frei Damião de Bozzano (1898-1997) pregando pelos tabuleiros sertanejos rudimentos da

Missão Abreviada. No espaço circunscrito ao município de Cruzeta (RN), ele estaria por

algumas vezes no decurso do século XX.

Mas o que uma vez havia sido semeado na imaginação dos fiéis encontrou nas novidades

da história novos sentidos para se propagar. No ocaso do século XIX, quando as missões

capuchinhas começaram a declinar e as novas forças ideológicas e produtivas estreavam o

drama da “modernidade” no mundo rural, a teia que mantinha aceso o imaginário apocalíptico

67 Geralmente, se costuma dividir em duas vertentes gerais ou tradições teológicas as leituras que os Pais da Igreja

fizeram do Apocalipse: uma de cunho mais literal devedora a Jerônimo (c. 345-420 d.C) que não colocava dúvida

quanto a objetividade dos eventos profetizados para o futuro; a outra de natureza mais “espiritualizada” que

considerava o livro da Revelação não profetizador de pessoas e eventos históricos específicos originada da tradição

ticoniana-agostiniana. Durante sete séculos esta última tradição dominou as interpretações latinas do Apocalipse

tornando-se a doutrina oficial da Igreja no que tange a este assunto. (MCGINN, Bernard, 1997). 68

DOBRORUKA, Vicente, 1997, p.65-66. 69

COSTA, op. cit., 2008, p.34-3.

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sertanejo já estava bastante estabelecida na região como confirmam os diversos “movimentos”

ou manifestações das religiosidades populares ocorridos no Nordeste.70

Contudo, este processo histórico de construção cultural que denominamos de “imaginário

apocalíptico popular sertanejo” estaria incompleto se não considerássemos neste estudo a

contribuição do “profetismo marginal”71

dos beatos, aqueles sujeitos que, tendo se originado

nos setores mais humildes da população, seguiram as pegadas dos missionários dos sertões, se

apropriaram de muitos aspectos de seus discursos e os traduziram para a linguagem popular.

1.4. BEATISMO NOS SERTÕES DO NOR(DES)TE: O APOCALIPSISMO POPULAR

SERTANEJO

Os mais de dois séculos de atividade missionária nos sertões do Nordeste que alcançaram

seu apogeu com as missões itinerantes capuchinhas no século XIX foi tempo suficiente para

que o cimento da ideologia católica se consolidasse na região e marcasse com seus caracteres

simbólicos as expressões culturais, os processos formativos e o imaginário social de suas

gentes. À margem desta ação eclesiástica canônica, peregrinaram os beatos72

, que, seguindo os

passos dos missionários, ergueram um catolicismo de feitio mais popular cuja marca

emblemática foi o beatismo.

Inspirado no modelo da atividade missionária, o beatismo se materializava em ações

coletivas como a construção (ou reconstrução) de igrejas, cemitérios, barragens e capelas “em

trabalho de mutirão” que geralmente envolvia uma “parcela significativa das populações dos

lugarejos onde atuavam”, sem que para isso fosse necessária a presença mediadora de um

agente eclesiástico (o cura, o missionário ou o capelão) como ocorria nas “obras civilizatórias”

do catolicismo missioneiro.73

Além destes atos de caráter mais coletivo, o beatismo envolvia as ações voluntárias dos

70 Como exemplos, podemos citar os casos do Rodeador (1818-1820) e Pedra Bonita em Pernambuco (1836),

Canudos na Bahia (1896-1897) e Juazeiro no Ceará (1889-1934). 71

Esta expressão foi utilizada por Sampaio (2011) para fazer alusão ao movimento dos beatos nos sertões

nordestinos. 72

De acordo com MONTENEGRO 1973 apud. POMPA, 2004, p.79, o beato é “[...] um sujeito celibatário, que fez

votos de castidade (real ou aparentemente), que não tem profissão porque deixou de trabalhar e que vive da

caridade (Xavier de Oliveira). [...] passa o dia a rezar nas igrejas, a visitar os enfermos, a enterrar os mortos, a

ensinar orações aos crédulos, tudo de acordo com os preceitos do catecismo (M. Diniz). [...] Há beatos que pedem

esmola, que são sustentados por outrem e que vivem por conta própria, do trabalho nos sítios (F. Bartolomeu). [...]

Veste à maneira de um frade: uma batina de algodão tinta de preto, uma cruz às costas, um cordão do São

Francisco amarrado na cintura, uma dezena de rosários, uma centena de bentinhos (R. de Souza Carvalho)”.

Geralmente “marginais, solitários, pobres, freqüentemente errantes”, os beatos “vivem uma experiência absoluta

do sagrado. Sua especialização nas Escrituras e suas pregações ao “povo crédulo” suprem a crônica falta de padres

de que padece a devoção sertaneja”. 73

SAMPAIO, Wilson Correia, 2011, p.129.

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beatos, penitentes e peregrinos, “homens do povo oriundo das camadas sociais desassistidas,

ou, quando muito, da pequena propriedade rural ou do pequeno comércio”74

, que se dedicavam

a execução de atividades paralitúrgicas nos vilarejos onde assistiam rezando, benzendo,

pregando e curando, além de desempenharem funções como a de realização de cultos e o zelo

de capelas e santuários, embora não tivessem autorização eclesiástica para distribuir

sacramentos.75

Não obstante sua função social expressa nas obras de trabalho comunitário, o beatismo

não se caracterizava apenas na execução de ações localizadas. Um de seus aspectos mais

dinâmicos estava no seu caráter ambulante que às vezes podia assumir a aparência de uma

verdadeira “cruzada missionária”, em que bandos de beatos e penitentes saiam em peregrinação

pelos sertões adentro pregando, mortificando-se com autoflagelação, jejuando e esmolando

enquanto percorriam os itinerários que ligavam vilas e povoados outrora palmilhado pelos

missionários. Este movimento que recebe o nome de “profetismo marginal” por atuar, em regra,

às margens do catolicismo oficial, é de fundamental importância para a compreensão do nosso

objeto porque nos ajuda a entender como se deu a recepção do universo simbólico do

Apocalipse por parte das populações mais humildes e arredadas dos processos eruditos de

formação, contribuindo para a conformação de um imaginário apocalíptico de gradação mais

popular na cultua bíblica do campesinato nordestino. Mas, antes de adentrarmos nesta questão

teceremos algumas considerações acerca de seus principais agentes construtores: os

missionários e os beatos.

Embora compartilhassem de uma mesma base ideológica de concepção de mundo (a

tradição católica herdeira especialmente do patrimônio simbólico judaico-cristão do Ocidente),

missionários e beatos se diferenciavam pelas formas específicas de apropriação deste universo

cultural que os levavam a atuar em barricadas diferentes como arautos da ideologia Católica.

Daí ter-se de um lado o missionário atuando no interior das diretrizes ortodoxas da Igreja com

sua formação erudita e intelectual reproduzindo o conhecimento institucionalizado e

especializado nas Escrituras Bíblicas e na doutrina católica e, do outro os beatos que embora

tivessem algum acesso aos textos sagrados e gozassem de alguma experiência escolar76

, eram,

em sua grande maioria, analfabetos educados no conhecimento empírico das tradições

domésticas e da cultura oral de grupo fazendo com que compartilhassem do universo simbólico

74 Idem, p. 98.

75 PAZ, Renata Marinho, 1998, p.22.

76 SAMPAIO (2011, p.99) alude o exemplo de Antônio Conselheiro que antes de entregar-se a vida errante de

beato “teve razoável formação escolar, aprendendo, na escola do professor Manuel Antônio Nobre, aritmética,

geografia, francês e latim”, embora também fosse educado num meio permeado pela literatura oral e popular que

circulava nos sertões nordestinos em sua época.

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do catolicismo popular mais próximo da sua práxis cotidiana.

É importante pensar como Renata Marinho Paz (1998), que, embora os missionários e os

beatos atuassem em trincheiras diferentes do catolicismo, estas não eram opostas ou estanques,

mas se moviam em regime de complementaridade operando como sistemas simbólicos

intercambiáveis ainda que não omitissem campos de tensões entre si. Foi percebendo este frete

de possibilidades de atuações que os capuchinhos assumiram preferência pelas missões dos

sertões colocando-se como mediadores culturais entre uma Igreja institucionalizada e o

universo simbólico das tradições de homens e mulheres comuns de quem também partilhavam

certas concepções de mundo e costumes religiosos. Por outro lado, esses homens comuns

personificados na pessoa do beato viam na figura do missionário, em suas mensagens, atitudes e

“costumes austeros” uma forma de enunciar e reafirmar suas identidades ainda que esta se

fizesse numa interação entre “veneração” e “medo”77

, mesclando fragmentos de seus discursos

ao seu patrimônio religioso comum que não se dava unicamente por meio de um dispositivo de

imposição ou aculturação, mas se fazia num processo de aglutinação, deformação e

reelaboração contínuos numa relação de circularidade.78

Diante disso, Roger Chartier (1995) traz uma importante contribuição ao refletir que:

É [...] inútil querer identificar a cultura popular a partir da distribuição

supostamente específica de certos objetos ou modelos culturais. O que

importa, de fato, tanto quanto sua repartição, sempre mais complexa do que

parece, é sua apropriação pelos grupos ou indivíduos. [...] Em toda sociedade,

as formas de apropriação dos textos, dos códigos, dos modelos compartilhados

são tão ou mais geradores de distinção que as práticas próprias de cada grupo

social. O “popular” não está contido em conjuntos de elementos que bastaria

identificar, repertoriar e descrever. Ele qualifica, antes de mais nada, um tipo

de relação, um modo de utilizar objetos ou normas que circulam na sociedade,

mas que são recebidos, compreendidos e manipulados de diversas maneiras.79

Esta exposta percepção de sentido comporta ainda considerar para cada época “como se

elaboram as relações complexas entre formas impostas, mais ou menos constrangedoras e

imperativas, e identidades afirmadas, mais ou menos desenvolvidas e reprimidas”, perfilhando

que a eficácia “com a qual os modelos culturais impõem sentido não anula o espaço próprio da

sua recepção, que pode ser resistente, matreira ou rebelde”, mas nunca real, total e

universalmente aceito.80

Assim, se tomarmos este processo como peculiar a todos os níveis

77 CUNHA, 2011, p.18.

78 Entendemos aqui por “circularidade” o conceito desenvolvido por Carlo Ginzburg especialmente em sua obra O

queijo e os vermes (1987), para referir-se a um relacionamento circular entre culturas caracterizado por influências

recíprocas, que vai tanto de cima para baixo, isto é, da cultura dominante para a dominada, como de baixo para

cima, isto é, da cultura dominada para a dominante. 79

CHARTIER, Roger, 1995, p.6. 80

Idem, ibidem, p.3-4.

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simbólicos, concluímos que na dimensão do imaginário esta realidade não se constituía uma

exceção. E era neste espaço entre a “norma e o vivido, entre a injunção e a prática, entre o

sentido visado e o sentido produzido, um espaço onde podem insinuar-se reformulações e

deturpações”, o espaço da apropriação81

que o imaginário apocalíptico de homens e mulheres

humildes do sertão encontrava uma brecha para se imprimir e afirmar-se.

Entre os séculos XVII e XIX, o movimento dos beatos nos sertões nordestinos revelou

como tradições reprimidas ou suprimidas pelos mecanismos de dominação simbólica da

ideologia católica puderam ser reelaboradas e reinscritas de maneira sorrateira. e em alguns

casos, insurgentes num plano ideológico diferente (o do catolicismo popular sertanejo) através

das formas de apropriação “populares” do imaginário mobilizado pelas mensagens profético-

apocalípticas dos missionários nas Santas Missões.

Adotando em sua vida errante de peregrino um discurso profético e penitencial que

mesclava expressões da religiosidade popular e traços da tradição missioneira com ressonância

de idéias milenaristas, messiânicas e sebastianistas, os beatos perambulavam pelos sertões

condenando o pecado, exortando a penitência como caminho da salvação, pregando o juízo

final e o fim do mundo, anunciando o paraíso terrestre e a vinda do Anticristo e, por vezes

arregimentando por onde passavam muitos seguidores e prosélitos que não se eximiam em

abandonar sua “antiga vida” para seguir seu conselheiro em busca da “cidade santa” prometida.

O caso emblemático de Canudos revelado na experiência de Belo Monte na Bahia, a

“Jerusalém de taipa” do beato Antônio Conselheiro e seus asseclas, sobre onde se dizia que as

águas se convertiam em leite e os barrancos em cuscuz, permite compreender como mitos

escatológicos compartilhados por indígenas no passado permaneceram vivos na memória de

seus descendentes que vieram viver e lutar na “Vila Santa” de Belo Monte.82

Esta experiência,

que é fruto de um intenso e variado intercâmbio cultural, denuncia, por trás das sinuosidades da

história, como elementos da tradição cristão-católica foram (re)apropriados para enunciar em

outros contextos e com outras idiossincrasias tradições “autóctones” nunca abandonadas

completamente pelo universo simbólico de grupos humanos subjugados historicamente. Mas

foram, porém, nas diferentes modalidades de usos e apropriações que missionários e beatos

fizeram do ideário apocalíptico, que se permite perceber mais claramente o espaço de atuação

da cultura popular enunciado no profetismo marginal dos beatos.

Primeiramente, é importante lembrar que o uso do imaginário escatológico pelos

missionários (as descrições do inferno, do céu, do juízo particular e final), sobretudo pelos

81 Idem, ibidem, p.4.

82 VASCONCELOS, Pedro Lima, 2005, p.281.

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capuchinhos, tinha uma finalidade pastoral e pedagógica bem definida, pois, através da

evocação de suas imagens, buscava-se infundir no fiel “o pavor e o medo salutares” para a

partir daí obter as conversões desejadas e a salvação das almas. Para isto, os missionários

empregavam um conjunto de técnicas, métodos e estratégias bem instituídas apreendidas

durante o estudo no seminário que iam desde a mensagem transmitida por sua imagem pessoal

ao trabalho de “encenação” nos púlpitos. Por outro lado, embora também não deixassem de

utilizá-lo com este propósito (converter e salvar almas) e que para isto adotassem dos

missionários o tom objetivo, enfático e persuasivo de seu discurso, os beatos atribuíam ao

universo manifestado no Apocalipse o peso de quase um dogma de fé, articulando suas imagens

com os dados da realidade histórica que eles liam do cotidiano sertanejo dando a elas uma

conotação mais pragmática que as aproximava da realidade de vida dos seus interlocutores.

O rumo que assumiu o elemento escatológico na perspectiva dos beatos é um indício de

que a apropriação do imaginário apocalíptico por parte dos agentes não especializados do

catolicismo incorria muitas vezes em interpretações heterodoxas do Apocalipse, isto é, aquém

dos padrões aceitos como normas instituídas pela Igreja docente. Mesmo que esta constatação

seja verdade com relação aos beatos, seria um engano afirmar que as apropriações deste

imaginário se inscreviam apenas neste território exclusivo.

Embora fosse feita numa aguda percepção de iminência apocalíptica que trazia para a

concretude do cotidiano sertanejo o drama do acontecimento final, o forte apelo da mensagem

soteriológica dos conselheiros (a exortação da penitência e da conversão como garantia da

salvação para a alma e o pecado como fiança do castigo eterno) confirma também sua irrupção

no outro lado da moeda. Em vista disso, o fato de termos os beatos atuando em conformidade

com as promessas “literais” do Apocalipse não implicava numa necessária contradição com a

sua utilização ortodoxa. Como bem colocou Dobroruka83

[...] nunca será excessivo lembrar que o desfecho do evento escatológico,

qualquer que seja a tradição a que se filie o exegeta, é ao fim e ao cabo

individual. O fim do mundo, literal ou simbólico, moderado ou terrível, pelo

fogo ou pela água, terá como efeito último a salvação de um determinado

número de almas, que poderá ser grande ou pequeno, conforme o caso.

É claro que isto não implicava, em nosso caso, numa assimilação reflexiva da sofisticada

distinção intelectual de interpretação do Apocalipse introduzida na tradição católica pela

patrística (a visão literal e quiliástica de tendência heterodoxa e a outra mais espiritual e

eclesiológica adotada pela Igreja docente). A formação pouco letrada dos beatos (a maioria

deles eram analfabetos ou semi-analfabetos) impedia que estes tivessem o acesso direto ao

83 DOBRORUKA, Vicente, 1997, p.67.

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último livro do Novo Testamento. O ponto que queremos chegar com isso é que para os beatos

e a grande massa de sertanejos que não detinham estes conhecimentos sistematizados pela

Igreja, tanto a salvação do homem como a do mundo eram aspectos de um mesmo discurso que

não se excluíam mutuamente, mas se davam em dimensões intercambiáveis e coesas amparadas

pelo universo de suas capacidades imaginativas. Assim, o imaginário apocalíptico popular

sertanejo seria aquele que circula livremente entre a fronteira da ortodoxia com a heterodoxia;

entre o campo do permitido e do coibido; entre uma escatologia de fundo mais brando e

individual e outra de desenho mais catastrófico e universal, sem que para isso houvesse

demarcações conscientes de territórios por parte de seus produtores ou agentes.

Não devemos esquecer ainda que nestes entremeios muitas referências tradicionais foram

introduzidas, conferindo, a este imaginário, características próprias que puderam ser ampliadas,

compartilhadas e enriquecidas numa teia maior de relações a partir das trocas simbólicas

perpetradas entre as diferentes populações participantes da mobilidade interna da região,

principalmente aquelas motivadas pelo discurso religioso da salvação (as romarias, as

peregrinações e as migrações à “terra da promissão” dos Conselheiros exemplificadas nos casos

emblemáticos de Canudos e do Calderão do beato José Lourenço). Estas trocas simbólicas

processadas no território do sagrado concorreram para uma maior versatilidade plástica do

imaginário apocalíptico popular na medida em que puderam somar a este uma gama de

crendices, fantasias, imagens e símbolos de motivos escatológicos que iam sendo gerados,

mobilizados e amalgamados no interior destas experiências e assimilados numa extensão

ascendente.

É certo que, para isso, contribuiu a atuação dos diversos meios de transmissão da cultura

(os tradicionais – a oralidade, a literatura popular laica e os “livros de oratório” e os novos que

foram surgindo – o folheto de cordel, a xilogravura, o rádio e etc.) e os diferentes atores sociais

não necessariamente atuantes no universo do sagrado (os poetas de cordel, os cantadores de

viola, os escultores, artesãos e xilógrafos), que com seus sonhos, artes, mensagens, mitos e

esperanças tornaram mais complexa a rede de crenças do imaginário apocalíptico popular do

sertão.84

E foi este repertório emanado de um imbricado processo de referências tradicionais,

pessoais e coletivas movido numa escala grandiosa, que pôde ser utilizado pelos sertanejos

seridoenses e de modo particular, pelos cruzetenses, para dar a ler os “sinais da modernidade”

que começaram a insinuar-se na região, sobretudo no âmbito da cidade.

84 LOPES, Régis, 1994.

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CAPÍTULO 2. “ATÉ MIL E TANTOS A DOIS MIL NÃO CHEGARÁ”: O SERIDÓ NO

DESCAMBAR DAS ERAS

2.1. O TERRENO “MOVEDIÇO” DO IMAGINÁRIO APOCALÍPTICO POPULAR

SERTANEJO

Ao deslocar o olhar para as regiões dos sertões nordestinos foi com um apocalipsismo

popular com dose de “fanatismo” e “messianismo rústico” que diversos estudiosos do

catolicismo rural brasileiro se depararam nas sociedades tradicionais em vias de

transformação.85

De acordo com Pompa, foi só a partir do final da década de 1950 e início dos

anos 1960, quando a antropologia e a sociologia submetiam os movimentos religiosos étnicos e

populares a uma revisão comparativa no plano internacional, que deu início no Brasil “a leitura

em termos sócio-antropológicos dos fenômenos definidos até então como “fanatismo” ou, na

melhor das hipóteses, como “misticismo”, delineando-se, desse modo, a tradição de estudos do

chamado “messianismo rústico brasileiro”.86

Existe mesmo uma corrente historiográfica já consolidada no Brasil que trata desta

temática, mas com enfoques direcionados para a análise e compreensão das manifestações de

massas do catolicismo popular expressas nos “movimentos sociorreligiosos” do nordeste

brasileiro onde se analisam seus principais elementos característicos: a religiosidade penitencial

e apocalíptica promulgada por uma “cultura do fim do mundo”, difundida por predicadores e

praticadas de forma autônoma, às vezes convivendo e às vezes conflitando com a igreja Oficial

e seus ministros”.87

Mas grande parte destes trabalhos dá ênfase ao enfoque estruturalista ou

determinista em detrimento de uma perspectiva que valorize as experiências individuais e de

grupo como fundamento para se entender o processo histórico.88

Segundo Pompa (2004), a crise nas explicações estruturalistas que começaram a ganhar

cada vez mais espaço no mundo científico a partir da década de 1970 levou a elaboração de

reflexões teóricas e metodológicas que buscaram desenvolver uma nova abordagem dos fatos

históricos a partir da visão que seus próprios sujeitos tinham de si mesmos. No esforço de

interpretar os aspectos simbólicos do catolicismo popular como parte do sistema de crenças e de

85 POMPA, 1998.

86 Idem, ibidem, p. 01.

87 POMPA, 2004, p.71. Embora venha crescendo nas últimas décadas o interesse dos historiadores pelas

manifestações religiosas populares, estas sempre se constituíram mais num campo relevante de estudo dos

antropólogos e sociólogos no Brasil. 88

Idem, ibidem.

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valores camponeses, a autora cita a obra “Os movimentos ´messiânicos´ brasileiros: uma

leitura” de Alba Zaluar (1979) e “Os errantes do novo século”, de Duglas Teixeira Monteiro

(1974), como marcos teórico deste novo enfoque. Embora não se trate de analisar propriamente

as manifestações das religiosidades populares na categoria de “movimento messiânico” é,

portanto, a mesma linha teórica adotada por estes autores que filiamos nossa pesquisa.

As primeiras interpretações destas manifestações populares se colocavam numa posição

ambígua entre a “estranheza piedosa” diante do incompreensível “fanatismo das massas

populares sertanejas” e o esforço de sua definição “científica”, fornecendo elementos para a

formulação de uma teoria do Brasil correlacionada à construção política da nação fundamentada

na dicotomia litoral/sertão ou moderno/arcaico, que justificava e auferia à realidade de um

Brasil que em parte vivia imerso na barbárie e outro que vivia na civilização.89

De acordo ainda com Pompa (2004), foi Euclides da Cunha em sua obra Os Sertões

(1902) quem inaugura uma tradição histórico-literária que interpreta o sertanejo no seu

“fanatismo”, abrindo um leque de uma extensa produção intelectual que irá voltar-se para a

interpretação dos fenômenos religiosos do Nordeste que associa as características biológicas

das populações sertanejas à sua predisposição psicológica ao misticismo. Estas explicações

excluíam a natureza simbólica do fenômeno religioso de seu campo de análise interpretando a

dimensão religiosa do mundo do sertão “como se esta fosse inscrita na alma e na carne do

sertanejo”.90

Mas esta não foi certamente a única leitura que se perpetrou acerca desta realidade

histórica do território sertanejo nordestino.

Já Luís Viana, em estudo contemporâneo as mudanças que começam a processar-se no

mundo rural sertanejo, defendendo a “tese do choque cultural”, atribuía ao contato com a

“civilização do litoral” mais progressista e vulnerável às novidades e inovações materiais, a

razão da resistência e reação “contra-aculturativa” do homem do sertão, quando aquela rompe

com o “isolamento do interior” e ameaça desorganizar a “cultura rústica” existente,

introduzindo maneiras de agir e de pensar confusas aos olhos dos sertanejos”.91

É evidente que

esta abordagem assume hoje um caráter relativizante, como demonstram os diversos estudos

que se debruçaram posteriormente sobre a questão e provocaram novas interpretações.

Uma importante postura teórica a este respeito nos valida a socióloga Maria Isaura Pereira

de Queiroz (1973), ao apontar os motivos que atestam a inconsistência da tese do isolamento

89 Idem, ibidem.

90 Idem, Ibidem, p.75. Nesta categoria de análise Pompa (2004) menciona dentre outros trabalhos a obra “O outro

Nordeste” de Djacir Menezes (1937) e “Misticismo e região: aspectos do sebastianismo nordestino” de Waldemar

Valente (1963). 91

VIANA 1927 apud. VALENTE, Valdemar, 1963, p.20.

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das populações do interior do país que geralmente se observa como primeiro dado quando se

toma como análise um grupo rural tradicional. Para a autora, a causa de uma possível “inércia”

da mobilidade espacial destas populações que as mantinham afastada dos grandes centros

urbanos como defendiam os estudos anteriores92

, não se atribui às questões geográficas ou

fenotípicas determinantes, mas sim culturais, visto que esta se constituía desde tempos coloniais

numa prática determinada pelas maneiras como os grupos rurais sertanejos estabeleciam

relações com o espaço de vivência e faina, levando-os a estabelecer tradicionalmente relações

cotidianas dentro das dimensões do “bairro rural” em que se projetaram, uma vez que estavam

presos a uma “organização de vizinhança”.93

Em outro ponto, a socióloga ainda destaca as

atividades econômicas e as práticas devocionais como motivos que justificam a ilusão da

abordagem isolamentista, uma vez que era comum existir entre os sitiantes locais a constante

circulação destes grupos dentro de sua região e até para além desta, possibilitando, deste modo,

o contato com outras realidades socioeconômicas diferentes.

O episódio dos empreendimentos das Obras Contras as Secas em território seridoense na

primeira metade do século XX (a construção de açudes, barragens e estradas de rodagens),

revela uma intensa mobilidade entre os sertanejos das mais diversas localidades que migraram

para a região em busca dos “serviços do governo” e por lá permaneceram ao contraírem

matrimônio e constituírem família, fomentando o surgimento de comunidades e povoados que

mais tarde se tornariam prósperas vilas e cidades. Estes sertanejos, mais conhecidos por

cassacos94

, ao se deslocarem para outras plagas, levavam consigo suas crenças, costumes e

tradições apreendidos no calor da família e os transmitiam a sua prole numerosa à maneira

tradicional, engrossando, enriquecendo e alargando a teia do imaginário do sertão. As ações

federais contra a estiagem regional também contribuíram para o intercâmbio cultural entre os

sertanejos das mais diversas regiões do Nordeste, uma vez que estas promoviam ocasiões para a

vivência de muitas trocas simbólicas geradas pelos contatos interpessoais entre moradores

locais e operários vindos de outras partes da região à procura de algum posto nas obras de

construção do governo.

O município de Cruzeta (RN), fundado povoado em 1920, é um exemplo deste processo

92 Aqui também citamos a obra “Misticismo e Região...” de Waldemar Valante (1963) e “Brasil, terra de

contraste” de Roger Bastide (1957). 93

De acordo com Pereira de Queiroz (1973, p.52-53), um “bairro rural” pode ser definido como “um grupo de

vizinhança aberto, acolhendo todas as famílias que ali venham se estabelecer. Nenhum preconceito étnico ou outro

impede a integração, que depende principalmente da participação às festas religiosas e de trabalho coletivo. [...] O

bairro é sempre uma reunião de famílias. [...] é algumas vezes formado de famílias que não têm laço de parentesco

entre si, que ali se fixaram ao acaso de suas peregrinações”. 94

De acordo com Lamartine de Faria (1978, p.24), denominava-se cassaco o “trabalhador nômade com certa

especialidade funcional que vive no ciganismo das construções públicas”. Cf. FARIA, Oswaldo Lamartine de. Os

açudes dos sertões do Seridó. Natal: Fundação José Augusto, 1978.

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histórico que se desenvolveu nas imediações do Açude Público que leva o seu nome, concluído

pela Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), em 1929. Para lá, convergiram

centenas de sertanejos à procura de um serviço nas obras de construção do reservatório público

no período entre 1920 e 29 a custo de alguns vinténs. Muitos destes trabalhadores acabaram

permanecendo no lugar constituindo o núcleo de suas primeiras famílias. Nos assentos de

casamentos encontrados na Paróquia de Nossa Senhora Daguia em Acari (RN), para o período

imediatamente posterior (até o ano de 1944, Cruzeta era freguesia pertencente ao município do

Acari), notam-se a ocorrência de matrimônios celebrados na Capela de Nossa Senhora dos

Remédios, em Cruzeta, envolvendo nubentes residentes no local e outros procedentes de

regiões da Paraíba (especialmente vindos do brejo e do sertão paraibano) e em menor número

do Estado do Ceará.

Mas recentemente, Lemuel Rodrigues da Silva (2009) procurou demonstrar como o

discurso religioso da salvação com destaque para o elemento escatológico motivou, em

diferentes contextos, muitas vagas de migrações e contatos interculturais entre os sertanejos do

Nordeste, situando o imaginário e o universo simbólico do sertão como fatores de mobilidade e

integração regional indo além das explicações baseadas nas lógicas socioeconômicas

estruturais.

As reflexões levantadas acima nos ajuda a pensar o espaço analisado dentro de uma

dinâmica mais ampla que extrapola os domínios “reais” do “território regional”, buscando

entender as relações de espaço/tempo que seus sujeitos mantiveram com outras estâncias

espaciais.

As constantes romarias realizadas por sertanejos seridoenses ao Juazeiro do padrinho

Cíço durante o apogeu da chamada “questão religiosa” (1889-1934), revelam o contato destas

populações com as crenças apocalípticas populares da região do Cariri no Ceará, que rondaram

os “pretensos milagres” ocorridos nos longínquos anos de 1889-1891 e logo transformaram o

ignoto povoado de Joaseiro na “cidade santa” e na “terra da Salvação” escolhida por Deus “para

ser o centro de onde converteria os pecadores e salvaria a humanidade”.95

O Juazeiro do Norte,

torna-se, então, o ponto de convergência e difusão de um imaginário apocalíptico que começa a

circular sob diferentes maneiras pelos sertões nordestinos a partir do fenômeno místico ocorrido

em volta da pessoa do Padre Cícero e da famosa beata Maria de Araújo (o milagre da

consubstanciação das óstias em sangue operado na boca da beata ao recebê-las das mãos de

95 CAVA, Ralph Della, 1976, p.59. De acordo com Régis Lopes (2000, p13) foi a partir dos “pretensos milagres”

ocorridos no povoado do Juaseiro que começou a circular no lugarejo a idéia de que o fenômeno era um sinal dos

últimos tempos.

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Cícero e interpretado por aquela como prenúncio escatológico do fim dos tempos). Dentro de

poucos anos, a notícia destes prodígios ganharam rapidamente as plagas áridas dos Estados

vizinhos, conquistando a simpatia e a curiosidade especialmente das camadas sociais mais

pobres que não demoraram a converter o ermo povoado cearense em centro de romaria

sertaneja. Santina de Neco, natural do município de Cruzeta (RN), dona de casa aposentada de

82 anos, guarda ainda na memória a peregrinação que fizera o pai ao Juazeiro do Norte no

remoto ano de 1935, no intento de pagar promessa na terra santa do Padrinho Ciço.

Meu pai teve de ir [ao Juazeiro] a cavalo. Foi em 35. Meu pai foi num

jumentinho mais um irmão de Sebastião Aurélio chamado Pelado. Foram os

dois. Mas passaram um mês. Ele disse que chegaram lá numa serra e as onças

urrando. Tão longe era. Mas eles de todo jeito chegaram. Tirava a sela do

jumento pra dormir debaixo do pé de pau. [...] de tudo levaram, mas passava

sede. Foi ele e este outro amigo dele pagar promessa no Juazeiro. Me lembro

muito.96

Propagado de boca em boca pelas hordas de romeiros que chegavam diariamente em

visita ao Juazeiro, “a crença no advento do milênio [...] encontrava especial ressonância entre as

massas [...] analfabetas”.97

Ao deixarem o arraial, estes sertanejos arrastavam consigo a nova

crença disseminada no lugarejo: “estamos prestes ao Dia do juízo Final”. Teria sido esta a

sentença apregoada pelo Padre Cícero vaticinando o iminente advento do apocalipse que se

grassava e granjeava sentido na imaginação popular sertaneja.98

Mas esta crença, já bastante

difundida nas três primeiras décadas do século XX pelos sertões do Nordeste, não teria

significado para nossa pesquisa se ela não tivesse tomado proporção ascendente no momento

em que as populações sertanejas, sobretudo as massas de trabalhadores rurais, passaram a

experimentar novas mudanças culturais e tecnológicas99

alentadas pela penetração do “espírito

capitalista” e dos “símbolos da sociedade moderna” que começam a invadir o mundo rural,

levadas pelos “novos ventos” do progresso e da modernidade.

A crença popular no advento final da humanidade, reiterada pela “voz” que ecoava do

Juazeiro e o imaginário apocalíptico que se construiu em volta dela, encontrava, nesta nova

conjuntura um solo fértil para se propagar. E mesmo porque no “tempo do Padrinho Ciço” era

possível vislumbrar a coexistência de um emaranhado de crenças apocalípticas continuamente

96 Depoimento concedido pela Sra. Santina Marta do Nascimento, 82 anos, no dia 23 de outubro de 2009.

97 CAVA op. cit., p.59.

98 Idem.

99 Utilizamos o conceito de “cultura” não como uma realidade a parte das outras esferas societárias da vida de uma

comunidade ou grupo, mas como instância simbólica que perpassa e significa todas as suas dimensões humanas

(econômica, social, política e etc.). Por “tecnologia” ou “tecnológico” compreendemos o arsenal de conhecimentos

teórico-práticos materializados numa técnica (arte) colocados à disposição dos grupos ou sociedades com os quais

estes se utilizam para solucionar seus problemas ou suprir necessidades, podendo interferir na cultura,

modificando-a.

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readaptadas das velhas profecias que os séculos missionários despejaram pelos sertões.

Nos grotões semi-áridos do Seridó, não foi a imagem do “Bom Jesus Conselheiro”100

envergando cajado e burel grosseiro, bradando sermões proféticos para o arraial extasiado ou

arrastando procissões de seguidores sertão adentro que se fixou na memória de seus habitantes.

No entanto, a sua voz cavernosa e gutural ainda pode ser lida silenciosamente em diversas

profecias que a tradição sertaneja regional atribuiu posteriormente ao “profeta do Juazeiro”, se

aceitarmos como expressão básica do pensamento conselheirista, um manuscrito já bastante

conhecido e estudado, encontrado por Euclides da Cunha quase completamente destruído nas

ruínas de Belo Monte. Este texto intitulado “Profecia”, serviu de fundo básico para a construção

euclidiana de uma veia milenarista e sebastianista da pregação de Antônio Conselheiro

subsidiando-lhe, inclusive, na transformação do líder religioso considerado beato e santo para

os sertanejos, em líder fanático, subversivo e louco.101

Mas esta é apenas uma versão herdada

da tradição literária euclidiana, sobretudo após a publicação de Os Sertões que permaneceu

preponderante nos olhares sobre a questão durante muitas décadas.

Estudos mais recentes como aqueles proporcionados por Alexandre Otten (1990) e Pedro

Lima Vasconcelos (2005) revelam outra circunstância mais impessoal e menos óbvia que talvez,

num primeiro relancear conferido por Euclides da Cunha ao manuscrito, tenha lhe escapado de

vista. Ou ainda, como se tornou oportuno raciocinar, que a interpretação euclidiana do

documento tenha sido mais fruto da visão de sua posição de “homem civilizado”, “evoluído”,

“racional” frente ao que chamou de “barbárie” e “loucura” das “massas de sertanejos fanáticos”

que ele julgou ter encontrado durante o período em que acompanhou, do palco dos

acontecimentos, a repressão final ao arraial de Canudos.

Seja como for, ao contrário do que imaginava Euclides, encantado com o suposto reino

milenar profetizado pelo líder religioso no manuscrito, faz todo sentido pensar como Otten e

Vasconcelos que a “Profecia” não representa um “elemento estruturante da mensagem religiosa

do Conselheiro”, mas sim, um produto “da incidência das idéias apocalípticas que percorriam

os sertões e que se associavam com elementos de outras proveniências na cosmovisão religiosa

sertaneja” compartilhada pelo Conselheiro de Belo Monte.102

[...] Em 1896, ver-se-ão rebanhos mil correrem da praia para o sertão; então o

sertão virará praia, e a praia virará sertão. Em 1897, haverá muito pasto e

pouco rasto e um só pastor e um só rebanho. Em 1898 haverá muitos chapéus

e poucas cabeças... Há de chover uma grande chuva de estrelas e aí será o fim

100 Uma das muitas alocuções utilizadas pelos sertanejos para designar o beato cearense Antônio Mendes Maciel, o

Antônio Conselheiro. 101

VASCONCELLOS, 2005. 102

Idem, ibidem, p.275.

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do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes. [...] e das ondas do mar sairá D.

Sebastião com todo seu exército [e dirá] Adeus mundo! Até mil e tantos a dois

mil não chegarás!103

Foram, portanto, fragmentos desta “Profecia” apocalíptica, retida pela pena do escrivão

belomontense, que puderam ser lidos nas retentivas de cruzetenses depois de mais de um século

agora associados ao Padre do Juazeiro. Esta circunstância demonstra o fato de como o

“episódio” juazeirense contemporâneo ao de Canudos fincou raízes mais profundas no

imaginário sertanejo seridoense ao ponto de nuclear, em volta do sacerdote cratense antigas

tradições e lendas prodigiosas que antes se atribuíam aos beatos condutores de multidões e aos

missionários pregadores dos púlpitos, fazendo gerar, ao redor da pessoa do Padre Cícero uma

“áurea de santidade” que o levou a assumir, enquanto vida, “as funções de profeta e anunciador

de coisas futuras” para a grande massa de seus romeiros e afilhados sertanejos.104

Mais que

isso, a constatação apresentada acima deixa transparecer a existência de um substrato móvel de

dimensões mais amplas que chamamos de cultura sertaneja por onde era levada a pulsar a

complexa rede de constituição do imaginário apocalíptico do sertão, abrindo espaço para a

insinuação de outros significados, para a atuação da polissemia no sentido operado por Orlandi

do “deslocamento, da ruptura de processos de significação”105

, pois, como bem refletiu Braga106

[...] uma cultura não pode, portanto, ser encarada como algo absolutamente

homogêneo, monolítico e inalterável a partir do momento em que ela se

manifesta através dos seus agentes. Os valores dos indivíduos, seus ethos, suas

visões de mundo, como parte de uma cultura, existindo numa cultura, a partir

de uma cultura, também são dinâmicos.

Diante disso, é possível inferir que os longos séculos do processo histórico do sertão

nordestino em que pesou a sua dinâmica interna particular, contribuíram para o forjamento de

uma cultura camponesa que, mesmo nunca sendo monolítica, compartilhava arquétipos,

sentimentos, modos de viver, sentir e ver o mundo semelhantes, que não se materializavam em

produtos prontos ou acabados, mas estavam sempre se fazendo, num trabalho contínuo e num

103 CUNHA, Euclides da, 1954, p.150-151.

104 CASCUDO, 2000, p.130. De acordo com Braga (2008, p.30-31), Cícero Romão Baptista, ou simplesmente

Padim Ciço (Padre Cícero) para a massa de sertanejos rurais do Nordeste, nasceu na cidade de Crato, interior do

Ceará, em 24 de março de 1844, filho de Joaquim Romão Batista (um pequeno comerciante de tecidos e ferragens)

e Joaquina Vicência Romana (dona de casa). Recém-ordenado padre chegou ao povoado do Juazeiro em 1871

como neófito se estabelecendo ali no ano seguinte como capelão. O rumo a que tomou os eventos dos “pretensos

milagres” ocorridos no povoado entre os anos de 1889 e 91 no qual figuraria entre os seus principais protagonistas,

traria para Cícero uma série de complicações com a hierarquia católica resultando na suspensão de suas ordens em

1897. Sem a concessão de oficiar os sacramentos, Padre Cícero assume, entre os milhares de sertanejos (afilhados)

que vinham ao Juazeiro anualmente, as prerrogativas de conselheiro, taumaturgo e profeta. (LIMA, 2000, p.84). Já

bastante idoso e sem poder andar, faleceu aos 20 de julho de 1934, vítima de uma paralisia intestinal, para o pranto

e a consternação das dezenas de milhares de sertanejos que acompanharam o cortejo fúnebre pelas ruas do

Juazeiro. 105

ORLANDI, Eni Puccinelli, 2012, p.42. 106

BRAGA, Antônio M. da Costa, 2008, p.67.

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movimento constante do simbólico e da história.

Esta “coletividade-memória por excelência”, para fazer uso da expressão do Pierre Nora

(1993), ingressaria em seu processo de rompimento e fragmentação mais sensíveis com a

chamada mundialização e massificação da cultura ocidental que Stuart Hall (2003) situaria,

entre os anos 1880 e 1920, quando verificou uma profunda transformação na cultura das classes

populares caracterizada por intensas mudanças estruturais. É neste interstício de tempo que ele

observa um acelerado desenvolvimento do capitalismo agrário para o industrial e uma maior

intervenção deste processo na cultura popular que ainda não havia sido incorporada à lógica do

capital, mas começava a se difundir e configurar. No Brasil, este processo seria mais visível

entre os anos 1940 e 1950, com a adoção de uma política industrializante nacional que

projetaria o país de modelo econômico agro-exportador para o industrial, balizando, como

observa Ortiz (1999), um período de incipiência de uma sociedade de consumo. É também

neste interregno de tempo, sobretudo após 1930, que o sertão nordestino se converteria

paulatinamente numa zona de penetração dos produtos manufaturados e agrícolas do Sueste

brasileiro em plena expansão industrial, provocando uma relativa estagnação econômica de suas

áreas e uma maior dependência político-econômica e cultural em relação com os grandes

centros econômicos do país.107

Em vista disso, Hall desperta a nossa visão para entender a cultura popular e no interior

dela a produção do imaginário apocalíptico popular, não apenas no plano das mudanças

qualitativas, mas também das profundas rupturas. É neste sentido que ele aponta o pós-guerra

não somente como um período de uma mudança nas relações culturais entre as classes, mas de

um “novo relacionamento entre o povo e a concentração e expansão dos novos aparatos

culturais”108

enfatizando a necessidade de se estudar a cultura popular no século XX a partir do

interior destas classes, considerando, com isso, a sua incorporação à dominação do

imperialismo e da indústria cultural num processo desencadeado na longa duração.

Se tomarmos as periodizações de Hall e Ortiz como uma referência para o nosso estudo,

poderemos assinalar dois direcionamentos importantes dentro dos recortes históricos

assinalados. O primeiro, que perpassa a questão das políticas nacionalistas de integração

nacional e o outro, que nos interessa mais de perto: o problema da recepção dos “símbolos de

modernidade” nas comunidades de tradição conservadora em processo de “modernização”. É,

portanto, no interior da urdidura destes processos históricos que situamos o problema da

modernidade e dos sentidos por ela produzidos para quem o imaginário apocalíptico pupular

107 HOEFLE, Scott William, 1997, p.193.

108 HALLL, Stuart, 2003, p.236.

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funcionava como sistema de leitura de mundo, tomando como via de análise o caso do Seridó

norte-rio-grandense e do município de Cruzeta (RN) em particular.

2.2. OS SINAIS DO FIM DAS ERAS

O imaginário apocalíptico popular sertanejo herdeiro de mais de três séculos de

missionismo e beatismo nos sertões nordestinos, repositório de velhas profecias milenaristas e

messiânicas coloridas pelas contribuições culturais de negros e especialmente de índios e judeus

(cristãos-novos), são aspectos do universo da religiosidade popular sertaneja cujas crenças

eivadas de reminiscências folclóricas chegaram à segunda metade do século XX. Fruto de um

longuíssimo processo de cruzamento e reelaboração contínuos de níveis culturais diversos, sua

insurgência no século XX se entrelaça com o próprio acontecer da história, revelando uma

relação dialética entre o horizonte mítico e a consciência histórica de seus sujeitos.

Como na tradição judaico-cristã, na escatologia apocalíptica popular sertaneja a história

possui um sentido escatológico negativo. Ela apenas cumpre no nível da existência humana um

destino traçado no plano da Providência. É um tempo unidirecional que caminha para o

término. Nele, homem e mundo estão destinados ao fim.

Muito embora se trate de uma realidade distante no tempo e no espaço e com processos

de formação históricos diferenciados, o sertão do Nordeste brasileiro reteve, ao longo dos

séculos, muitos elementos de suas raízes europeias medievais ou do Cristianismo pré-

reformista.109

Esta circunstância esteve particularmente expressa na cosmovisão do sertanejo

nordestino e do seridoense em particular ao se aproximar da visão de mundo do homem do

medievo especialmente em matéria escatológica.

Para o sertanejo seridoense situado na tradição rural, os acontecimentos históricos, isto é,

as “novidades”, representam as transgressões às “normas”. São, portanto, sinais da vontade

divina, gerados em decorrência das faltas e pecados humanos. Eles marcam a inserção do tempo

vivido na providência divina. A história é aí concebida numa concepção meta-histórica: porque

os primeiros homens (Adão e Eva) pecaram no paraíso, Deus veio ao mundo e se encarnou num

seio de uma virgem para salvar a humanidade caída e sua obra de redenção final fora

109 Numa pesquisa de campo realizada por Scott William Hoefle durante os anos de 1977 a 1981 e 1994 em três

municípios sertanejos de Pernambuco e Baía, o antropólogo constatou que “a cosmologia católica do sertão ainda

retém os três elementos típicos do cristianismo pré-reformista que ligam este mundo ao outro e a esfera humana à

esfera natural: (1) a crença em almas perdidas que vagueiam por este mundo, ameaçando os vivos; (2) o culto

acentuado dos santos, no qual se pede o auxílio divino para o bom andamento das coisas naturais e sociais deste

mundo; (3) a crença em espíritos do mato com traços humanos que protegem os animais selvagens contra o

homem”. (HOEFLE, 1997, p.196).

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transportada para um tempo futuro. Ela se completará no derradeiro dia quando de sua segunda

vinda. Sinais “estranhos” no céu e na terra marcarão a proximidade deste tempo, como nas

retentivas de um velho morador cruzetense que dizia que “no final das eras apareceriam muitas

coisas que ainda não se conhecia”110

, ou, ainda, na confabulação de uma antiga devota do Padre

Cícero, que, ao revisitar as palavras do “padrinho”, contava que “no fim dos tempos vai

aparecer coisas que a gente vai ficar admirado”.111

No imaginário apocalíptico do sertão, mito e

fato contemporâneo se mesclam num mesmo caldeamento simbólico.

É esta relação iterativa que o imaginário apocalíptico popular tece com a história,

traduzindo e reordenando os fatos históricos dentro de seu próprio conjunto de significação, que

faz com que este se aproprie do “real” para (re)significá-lo a partir de sua bagagem simbólica.

Ele atua, (re)orienta-se e (re)atualiza-se no presente vivido interferindo na própria experiência

dos sujeitos, na medida que também a reveste de um valor religioso conferindo maior

significado a história.

No cordel o Fim do Mundo de João Martins de Athayde (1880-1959), datado de 1948, a

história da humanidade é contada a partir deste sentido meta-histórico. Nela, o fluxo do tempo

assume uma concepção escatológica e organiza-se em seus dois momentos cruciais: a criação e

o fim do mundo intercalados por um processo de sequüência degradante. A narrativa, exposta

por Athayde, nos permite identificar pelo menos a existência de quatro tempos: o tempo da

criação, compreendido entre a concepção do mundo visível e dos primeiros seres humanos

(Adão e Eva) até a queda do homem no paraíso e a entrada do mal no mundo; o da redenção,

que perpassa todo o plano salvífico de Deus para a humanidade, se iniciando com o apostolado

dos antigos profetas e prossegue da primeira vinda do Cristo a sua promessa de salvação final; o

tempo do fim, desvelado pelos “sinais” que já anunciam sua irrupção no momento presente (de

angústias e degeneração morais maiores), culminando na segunda vinda do Cristo e na

destruição do mundo físico e o tempo da eternidade (o não-tempo) que será aquele em que

Deus restituirá aos bem-aventurados o paraíso (o céu) perdido no princípio e lançará no fogo

eterno (o inferno) os maus e os pecadores para todo o sempre, restabelecendo o universo em sua

eterna dualidade. O trecho do cordel apresentado abaixo evoca a idealização dos três primeiros

tempos que nos serve como modelo para entender a visão da história presente no imaginário do

sertanejo tradicional.

[...]

110 Informação retirada do depoimento concedido por Seu Marcelino Martins de Lima, conhecido como Marcelino

de Zé Limão, agricultor de 67 anos, morador no Sítio Pau Lagoa (município de Cruzeta/RN) em 26/11/2009. 111

Informação retirada do depoimento concedido pela Sra. Ambrosina Maria, 75 anos, moradora no Sítio Fechado,

município de Cruzeta, no dia 20 de Agosto de 2012.

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Quando Deus formou o mundo

com toda sua grandeza,

fez em primeiro lugar

esta imensa redondeza

no segundo o firmamento

tudo se fez num momento,

por obra da natureza.

[...]

Depois de tudo formado

no reino da criação,

Deus ficou por um momento

em grande meditação

depois voltou-lhe a coragem

Ele fez a sua imagem,

o primeiro homem – Adão.

Dias depois criou Eva

a companheira de Adão,

o paraíso terrestre

a ele fez doação

conforme a verdade pura,

da presente geração.

A terra foi aumentando

com tudo quanto existia,

os seres multiplicavam-se

a humanidade crescia

e com ele a maldição

o horror da corrução,

a sede a fome e a orgia.

Deus vendo os grandes horrores

assolando a humanidade,

criou no seu coração

grande contrariedade

nasceu-lhe um ódio profundo

jurou acabar o mundo

por meio de tempestade.

Espalhou os seus profetas

pregando a lei da verdade,

distribuindo o saber

dissipando a crueldade

todo esforço era perdido

pois o povo corrompido

esquecia a divindade.

Foi quando veio o dilúvio

por ordem do criador,

inundando o mundo inteiro

causando grande pavor

na terra erma sombria

por toda parte se ouvia.

Gritos de angústia e de dor.

[...]

Quando veio Jesus Cristo

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o filho de Deus amado,

que sofreu por nossa causa

depois foi crucificado,

com seus gestos divinais

pregando entre os mortais,

p’ra nos salvar do pecado.

Porém a humanidade

sempre foi desconhecida,

esqueceu os mandamentos

da divindade querida

só quer viver e luxar

e neste mundo gosar,

todas ilusões da vida.

Nós estamos muito próximo

como diziam as profecias,

o futuro cataclismo

não durará muitos dias

ele vem aí muito perto

e nós teremos de certo,

a chegada do Messias.

[...]

(Os últimos dias da humanidade ou o Fim do Mundo, João Martins de Athayde, 1948, p.3-6).

Como no cordel de Athayde, o papel das profecias apocalípticas possui no imaginário

sertanejo uma função reacionária, já que elas orientam seus intérpretes para uma imersão na

realidade da vida situando-os no tempo da providência, no tempo do fim, encarados por estes

sujeitos como revelação da vontade divina. “O tempo vivido é então representado como crise,

levada ao extremo pela profecia apocalíptica: é um tempo que termina, é o fim do mundo. O

espaço da vida cotidiana é também negativizado, tanto como espaço social quanto em sentido

cósmico: guerras, carestias e pestilências marcam o “fim das eras”.112

Apreendidas pela profecia apocalíptica, as novidades da história possuem um significado

escatológico. Elas anunciam a iminente vinda do Cristo. Assinalam os últimos acontecimentos

das eras. É por esta lógica simbólica que a “modernidade” foi lida pelos sertanejos rurais

tradicionais no momento em que seus sinais irradiadores começaram a penetrar a região. A

resistência ao novo e um apego ao tradicional vivido pelo sertanejo seridoense demonstra a

“situação” deste sujeito em meio a este sistema de leitura de mundo, único disponível ao

sitiante tradicional, pois como bem expressou Nunez de Azevedo113

[...] todo ser que se encontra na tradição é um ser situado, tem uma situação no

interior desta, seja ele o intérprete ou a coisa a qual se busca interpretar. [...] A

tradição não nega a possibilidade de mudança na História, mas a condiciona

como um desenvolver-se, um desabrochar no interior de si mesma, implicando

112 POMPA, Cristina, 2004, p.77.

113 AZEVEDO, André Nunes de, 2003, p.16-17.

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que o novo constitui-se sempre nos seus quadros, não obstante vir a obter uma

nova situação no interior desta.

A partir disso, podemos deduzir que a primeira leitura que o sertanejo rural seridoense fez

da “modernidade” foi apocalíptica. Esta hipótese nos serve como ponto de partida para entender

a “linguagem apocalíptica” como chave de decifração do “elemento moderno”. Paralela a esta

questão situa-se outro problema que, embora não seja o foco desta pesquisa, convêm explicitá-

lo para melhor elucidar o contexto histórico em que esta se desenha: o projeto de

“modernização” dos chamados “sertões” brasileiros levado a cabo pela política nacionalista de

“integração” e “industrialização” nacional.114

O processo que pôs fim ao sistema político monárquico e levou à instauração da

República no Brasil desencadeou nas elites nacionais (políticos, autoridades, intelectuais e

homens de ciência) o desejo ou o esforço de “atualizar” os territórios da nação com os países

europeus ou com os Estados Unidos. “Uma das questões que passou a ser objeto de

preocupação dos novos detentores do poder foi o problema da integridade do território

nacional”, que trouxe para o centro da pauta de discussões a problemática dos “sertões”.115

Em seu aclamado trabalho Cidades e Sertões (2000), o historiador Gilmar Arruda chamou

a atenção para uma tendência brasileira em tratar negativamente os espaços não urbanizados

aparecendo em diversas situações como “incivilizado”, “atrasado” e habitado por pessoas

inferiores às escalas sociais instituídas e questiona os motivos que em outro momento, levaram

os discursos a buscar “recuperar”, resgatar e modernizar os territórios considerados “sertões”.

Em vista disso, o autor explica que a polaridade existente entre um Brasil urbano e rústico

reflete um olhar eurocêntrico projetado sobre o país nas relações de centro-periferia mundial

partilhado pela elite nacional que coloca a ideia de um “país-sertão” sobre dois eixos

antagônicos: os espaços urbanos legitimados pelo sentido de modernidade e progresso que

representam e o restante da nação que precisa ser modernizada e racionalizada a partir da lógica

urbano-industrial desenvolvimentista. Neste sentido, se para as nações mais modernas o Brasil

era sinônimo de rústico, para a sociedade brasileira os espaços não urbanizados eram mais

rústicos ainda. Assim, o símbolo de civilização passou a ser a vida urbanizada e os

“incivilizados” aqueles espaços que não se enquadravam nesta categoria, termos de comparação

que surgiram ou se intensificaram em meio ao processo de urbanização do país levado a cabo

114 De acordo com o entendimento do geógrafo Milton Santos apud. Dantas (1996, p.10), a industrialização “não

pode ser entendida somente como expansão das atividades industriais em espaços determinados, mas como um

processo complexo que integra o mercado nacional na perspectiva de articulação territorial, o que incide na

expansão do consumo, no aumento da terceirização e, em conseqüência, numa acelerada urbanização”. 115

ARRUDA, Gilmar, 2000, p.19.

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pelo desenvolvimento capitalista que se seguiu nas três primeiras décadas do século XX e se

consolidou nos decênios seguintes.

Acontece que dentro deste contexto, nenhum espaço do país era mais urbanizado que

aqueles espraiados pela faixa litorânea. Era de lá que a “moderna civilização” começava a ser

forjada e pensada em termos de políticas públicas, mas era também deste espaço que se passou

a formular as primeiras medidas governamentais para “resgatar esse sertão” em direção à

modernidade. É a partir daí que a idéia de “civilizar o sertão” passou a significar a imposição de

novas concepções de tempo, trabalho e vivência aos seus moradores a partir da lógica racional

capitalista. Alcançar o ingresso do Brasil na modernidade denotava garantir o êxito da empresa

civilizadora, o que na prática correspondia também ao intento de buscar “homogeneizar” e

“moldar” o território sertanejo aos novos ideários. Com esta persecução, a “integração” dos

sertões à “civilização moderna” seria efetivada por meio dos símbolos representativos da

modernidade: as linhas telegráficas, as ferrovias, as estradas, a urbanização que surgiam como

uma “fórmula” desejada pelos novos detentores do poder de sobrepor-se aos marcos e

movimentos de épocas pregressas e remover os resquícios das cidades e paisagens “coloniais”,

modificando a face visível do espaço. Assim,

A modernização do Brasil, sua adequação aos novos tempos, deveria ocorrer

com o desenvolvimento do “progresso”, estancado até então pela monarquia.

Para o pensamento liberal republicano, o “progresso [era] o crescimento

econômico enquanto expansão da sociedade capitalista em curso” [...] [e devia

ser] visto como o “novo” na sociedade brasileira [...] O objetivo final seria

incorporar o Brasil ao âmbito das nações “civilizadas” do mundo.116

Neste ponto é importante elucidar que o processo de modernização dos sertões brasileiros

não ocorreu de forma análoga ou coetânea entre si. Pelo contrário, longe de simular apenas um

amplo movimento singular ser-nos-ia mais adequado falar de “processos de modernizações” no

plural, já que, na realidade, tratam-se de fenômenos diferenciados que floresceram em períodos

mais ou menos sincrônicos, cada qual com sua margem de intensidade e amplitude gerados por

conjunturas sociopolíticas e econômicas diversas, conhecendo estações de ascensão e

decadência ao longo do século XX. Todavia, apesar das multifacetadas diferenças, é possível

estabelecer similaridades contextuais entre o processo histórico vivenciado pelos sertões

paulistas e nordestinos, por exemplo, como bem demonstra Arruda em seu citado trabalho.

Diferentemente dos sertões paulistas que vivenciaram um processo modernizador mais

intenso desde a segunda metade do século XIX, estudos tentaram demonstrar que em algumas

regiões do país, especialmente no Nordeste brasileiro, este processo ocorreu de forma mais

116 Idem, op. cit., p.101-102.

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demorada, em outros espaços nunca chegou a se completar ou que num determinado momento

da história teria saído malogrado. Este último parece ter sido o caso do Seridó potiguar.

Douglas Araújo (2006), ao analisar a empresa modernizadora nesta região, chega mesmo a

reconhecer que as tentativas de modernização do campo no Seridó fracassaram entre os anos 60

e 70 e com ele o “orvalho moderno” que bafejava sobre as cidades “apesar da presença de

alguns símbolos modernos”.117

Ainda que neste sentido seja possível identificar processos históricos distintos para as

diversas regiões do país, Arruda reconhece que o “processo modernizador” no Brasil não “se

limitava ao espaço das grandes cidades”, mas “caminhava no sentido de abranger todo o espaço

do território nacional”.118

Para Florestan Fernandes119

, a “modernização” dos espaços nacionais

“irradiou-se da cidade para o campo, através da expansão de uma economia de mercado

moderna” e seguiu o processo de transformação das cidades no momento em que estas

passaram a impor ao campo “seus interesses econômicos, juntamente com os seus ritmos

histórico-sociais e o seu estilo de vida”.120

Com relação ao Seridó Potiguar, Ione Rodrigues Diniz Morais121

testifica que “os

rebatimentos deste processo deflagrado em escala nacional” na primeira metade do século XX

só iria se fazer sentir, embora timidamente, entre as décadas de 1940 e 1970 associado à

dinâmica interna quando “os investmentos em educação, saúde, saneamento básico, moradia,

comunicações, transportes e eletrificação revelavam o tom das inovações na práxis política da

elite comprometida com o discurso da modernização e, por conseguinte, da infra-estruturação

urbana regional”. Assim, à medida que esta “civilização moderna” avançava do litoral em

direção aos longínquos e “isolados” grotões sertanejos, alcançando-os por meio de seus sinais

irradiadores dos quais o automóvel, o avião, as estradas, o rádio e a moda aparecem como

exemplos emblemáticos um tanto estranhos e perturbadores àquele meio, acendia nos seus

habitantes o ensejo de ser decifrada, compreendida, subjetivada, isto é, transformada em signos

de representações significados pelo universo cultural do homem sertanejo. Não é a toa que

desse imaginário “de levar a civilização” aos sertões brasileiros, somente a população letrada

partilhou e incorporou o seu sentido como revelou Arruda.

Nos diversos espaços sertanejos, a “experiência do moderno” pode ser percebida de modo

diferenciada conforme impelimos o nosso foco em direção às populações menos instruídas e

117 ARAÚJO, Douglas, 2006, p. 277-305.

118 Idem, Ibidem, p.193.

119 FERNANDES, Florestan, 1979, p.106.

120 Idem, p.112.

121 MORAIS, Ione R. Diniz, 2006, p.81-82.

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abastadas. No município de Cruzeta (RN), por exemplo, uma destas possibilidades de

interpretação foi àquela feita a partir do viés escatológico-apocalíptico por uma população

roceira professante do credo católico. Esta constatação nos remete para a constituição de um

processo de significação que perpassa a relação de sentidos produzida em torno do “artefato

moderno” e as referências simbólicas mobilizadas pela memória coletiva deste grupo. Neste

trabalho, nos interessa, mais de perto, o imaginário apocalíptico popular trazido à tona pela

memória social que se construiu em torno dos símbolos do mundo moderno e de como este

ideário foi agenciado para compreender o avanço da modernidade e da modernização no Seridó

e no município de Cruzeta (RN), em particular entre os anos de 1950 e 70.

Ao ser tomado pelo discurso analítico, o conceito convencional de modernidade aplicado

sobre o espaço geográfico abordado, quando não é colocado como engaste entre duas posturas

teóricas contrastantes (a que defende uma atitude de resistência incondicional frente a uma

visível passividade do “sertanejo tradicional” diante das “seduções” do mundo moderno) pelo

menos aparece como campo de conflito. É o que verificamos quando tomamos sua visão de

alteridade ao nos distanciarmos de seus agentes da elite e aproximamo-nos dos sujeitos alijados

das novas forças ideológicas e produtivas que começam a penetrar o mundo rural em

transformação. Abstraída por estes, a “modernidade” surge como agente causador de

perturbações sociais e psíquicas. Subversiva aos valores morais e éticos tradicionais estava

associada a “coisa” estranha, desconhecida, ignorada, sinal apocalíptico ou prenúncio do fim do

mundo. Raciocinada como engenho diabólico, obedecia à forma audaciosa e ultrajante ao poder

disciplinador divino. Ao ser pensada e apropriada pela elite político-econômica regional, sua

noção passa a estar associada aos anseios de progresso, evolução, desenvolvimento

socioeconômico e cultural, modernização, ao “tempo da redenção”.

Em vista disso, é mais procedente pensar que, ao atingir as plagas seridoenses, o processo

de “modernização” do campo e lê-se também aqui do interior do país ou a “marcha” do

progresso e da modernidade antes dele, não foi sentido ou lido senão como “sintomas” ou antes

como “sinais”. É muito provável que as noções de modernidade ou modernização propagadas

pela elite letrada regional entre as décadas de 1950 e 70 tenham sido assimiladas só muito

recentemente pelo contingente populacional arredado dos processos educacionais do período.

Se a noção de modernidade aparece obscurecida ou mesmo indeterminada neste recorte

temporal, como então falar de experiência moderna entre estas populações para quem a acepção

de “modernidade” nem mesmo existia? Todavia, é mais a leitura de mundo que os sujeitos

anônimos fizeram dos “sintomas” e “sinais” da modernidade e menos a das elites regionais que

nos interessa conhecer mais de perto neste trabalho.

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Se tomarmos como base o contexto histórico abordado, poder-se-ia descortinar uma

região cuja elite político-econômica local buscava afirmar-se nos valores de civilidade e

progresso representados pela vida racional na cidade e no campo; pelo desenvolvimento do

comércio, do transporte e da indústria; da educação técnica e da saúde em termos de políticas

públicas. Estes temas, bastante rotativos nos discursos de políticos e intelectuais seridoenses,

apareciam como o caminho mais curto para se chegar à “modernidade”, aqui entendida em

oposição a um sentimento de ruptura com o passado de atraso, de dificuldades e de estigmas

provocados pelas adversidades da natureza e da sociedade que vinham “castigando” as

populações locais desde épocas pregressas.

A busca pelo progresso do sertão seridoense presente nos discursos de seus intelectuais e

políticos representa o desejo das elites político-econômicas locais em sintonizar o território

regional com as tendências externas processadas em outras partes do país e assim superar o seu

passado de atraso. Seguindo a tendência geral, este esforço foi empreendido num momento em

que os espaços territoriais sertanejos passaram a ser vistos como um fator de impedimento para

a modernidade da região e da nação. A problemática das secas no semi-árido nordestino era um

destes fatores que mais suscitavam preocupações nos meios políticos, já que suas mazelas

acabavam por afetar as estruturas socioeconômicas de todos os níveis sociais pondo em perigo

o controle social e ameaçando o poder político-econômico dos grandes proprietários rurais. Esta

intenção foi bem expressa no discurso regionalista que defendia a modernização do aparelho

agrícola como motor de superação e desenvolvimento regional que tomava a cotonicultura

como a “panacéia não só de todos os males do semi-árido, mas também dos Estados do norte e

até da Nação [onde] o algodão seria o deus ex machina que teria a virtude de integrar o ignoto e

longínquo sertão à nacionalidade”.122

Em vista disso é que os esforços da elite política regional

seriam somados com a intenção de fazer com que alguns empreendimentos modernizantes nos

setores da educação, dos transportes, do crédito, da infra-estrutura urbana etc., fossem

implementados nesta direção.

Em fevereiro de 1909, quando o estadista norte-rio-grandende Eloy de Souza em

coferência proferida no Palácio do Governo, chama atenção da assistência para a existência de

uma “terra viril e nobre” em que todos deviam conhecer e onde ele acreditava encontrar “nossas

energias latentes”, “uma coragem ignorada” e “a alegria dos sãos”, ele se referia a um “Seridó”

com “qualidades nativas” que encontrou numa das suas viajens ao interior do Estado no distante

ano de 1904 e que em seu prognóstico logo em breve padecerá estremecido “sob o peso de

extensas filas de carros, fragorosamente arrastados pela força das locomotivas em marcha, a paz

122 MACÊDO, Muirakytan K. de, 2005, p.185-186.

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dos seus campos (...) quebrada, a serenidade das tuas montanhas interrompida, maculada a

beleza das tuas várzeas, insegura a tranquilidade de teus rebanhos” em função do benfazejo

progresso.123

É certo que os trilhos da locomotiva não avançaram. Mas entre o vaticínio de Eloy de

Souza predicado em 1909 e a obra Vaqueiros e Cantadores publicada em 1939 onde Cascudo

decreta o desaparecimento de um “sertão típico”, jazeu um período de três décadas. É deste

interregno de tempo que chegaram até nós as memórias dos “fords besta fera” que encenam a

passagem dos primeiros automóveis pela região do Seridó, alguns deles levados ao sertão

seridoense pela Inspetoria de Obras contra as Secas (IOCS), transformada em Inspetoria

Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), em 1919, e mudada em Departamento Nacional de

Obras Contra as Secas (DENOCS), pelo Decreto-Lei n. 8.846, de 28 de dezembro de 1945.

Em Vaqueiros e Cantadores Cascudo situa as transformações provocadas pela penetração

da “vida modernizada” no sertão norte-rio-grandense a partir da segunda década do século XX,

quando as estradas de rodagem, o automóvel, o rádio, os jornais e a luz elétrica, começam a

modificar sensivelmente o modus vivendi das populações locais. Ao publicar aquela que seria

considerada por muitos estudiosos da cultura popular sua obra prima em 1939, ele o faz como

decreto de morte de um sertão que viveu e experimentou na sua infância e que agora está

fadado a desapacer por completo sob o peso desconsertante da modernidade. Era o mito de um

sertão “desolado” e “estacionado” no tempo vivendo um “eterno passado inarredável” na forma

de um “museu retrospectivo” que ele traz na mente. Antes de se constituir uma verdade

histórica, esta visão representa o desejo de continuidade de um “sertão típico” que para ele

“uniformiza-se” e “banaliza-se” como se houvesse por parte de todos os sertanejos –

verdadeiros culpados pelo desprezo aos valores tradicionais –, uma consciência deliberada da

experiência moderna. Mas, ao contrário do que pensava, por trás desta aparente passividade do

sertanejo relutava uma resistência exprimida no imaginário diante do “desconhecido” elemento

moderno.

Quando a política de “modernização” do sertão começa a modificar a geografia física e

humana de sua paisagem a partir de elementos estranhos ao meio interferindo no modo de “vida

tradicional” de suas populações (lembremos das grandes rodovias de roldagens construídas a

partir da segunda década do século XX para a circulação de automóveis por onde se chega aos

mais longinquos ricões as novidades do “mundo civilizado”)124

, são os códigos de leitura desta

123 SOUZA, Eloy de, 1982, p.20-29.

124 De acordo com Macêdo ( 2005, p.209) foi ainda no governo de Jaquim Ferreira Chaves (1914-1920) que “a

estrada [de automóveis] do Seridó que ligava Caicó à Macaiba foi concluída, denotando uma maior integração

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nova realidade que a população local ignora ou não domina, utilizando-se de suas referências

tradicionais para interpretar a realidade de seu mundo em transformação. O estranho e o

desconhecido causam temor. São as formas de como foram percebidos estes “símbolos de

modernidade”, até então desconhecidos e estranhos às referências tradicionais destas

populações, que acionam no imaginário popular um “sistema de leitura de mundo” já bastante

conhecido pelo sertanejo nordestino, interpelando-os como os “sinais apocalípticos” que

haveria de surgir nos últimos tempos.

Este decurso se torna ainda mais intenso nesta conjuntura porque o avanço da

modernidade coincinde com uma expansão das crenças apocalípticas populares pelas plagas do

Nordeste árido. Ainda Padrinho Cícero do Juazeiro deixou dito, pela boca de seus romeiros, os

sinais que antecederiam no mundo o dia do Juízo divino: “quando o galo cantar em Roma e se

ouvir em todo lugar” e se ver “muito pasto e pouco rastro”, a “roda grande entrar na roda

pequena”, “as estradas se cobrirem de luto” e a “besta-fera andar solta”. São estas referências

fundamentadas no “catolicismo rústico” que viajam o sertão adentro e penetram às vilas e

povoados mais recônditos, que chegaram até nós através da memória coletiva.

É questionável se este imaginário imbuído de uma simbologia metafórica e subliminar

tenha partido do Padre Cícero tal como fora apropriado pelo homem simples do sertão tendo em

vista ter sido ele um dos maiores impussionadores do progresso material da região como

demonstrou Della Cava (1976). É provavél que durante sua viajem a Roma, entre o período de

março a outubro de 1898, ele tenha se impressionado com uma Europa já em plena revolução

do progresso e da modernidade e lançado um olhar visionário sobre um Brasil do futuro que

ainda permanecia rural e “atrasado” se comparado com o Velho Mundo. Além disso, não é raro

encontrar enunciados e declarações que revelam de sua parte uma perceptível consciência de

que grandes transformações, tanto no plano moral e ideológico quanto no plano físico da

existência estavam sendo operadas nos centros mais dinâmicos do país e que em breve

alcançariam as regiões mais longínquas da nação em seus escritos e correspondências pessoais.

Em vista disso, é mais coerente pensar que muitas destas profecias atribuídas ao Santo do

Juazeiro não se trata do Padre Cícero falando por ele próprio, mas já o povo se fazendo falar

pelos lábios do Padrinho, uma vez que no imaginário popular sertanejo, a figura do santo

padrinho surge geralmente circundada em mistério numa configuração que se torna difícil

distinguir o homem do mito. No universo imaginário do sertanejo estas duas dimensões da

realidade se imbricam.

De modo geral, é mais provável admitir que muitas destas profecias conhecidas pelo

entre o Seridó e a capital, algo com dimensões inéditas até o século passado”.

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sertanejo seridoense e conferidas ao santo profeta do juazeiro, sejam, na verdade, resquícios,

fragmentos e recriações de velhas tradições ou crenças apocalípticas que circularam pelo sertão

em épocas pretéritas e que chegaram ao século XX por meio da oralidade e da memória

coletiva. O tempo e as transformações da história cuidaram de lhes conferir novas

interpretações e significados, agregando a seu repertório simbólico outras imagens e

representações na medida em que estas abrolhavam das novas experiências que iam sendo

tecidas.

Esta disposição do imaginário entraria numa fase acentuada de transformação a partir de

meados do século XX, quando a intromissão de novas referências culturais disseminadas pela

expansão de outras vias de transmissão da cultura, passam a se estabelecer na região

coexistindo com os canais por onde tradicionalmente este imaginário pulsava. Um exemplo

disso foi a massificação do rádio e a expansão da imprensa, ocorrido entre os anos 50 e 70,

através dos quais se chegava ao conhecimento da população local as notícias sobre guerras,

invenções e conquistas científicas, discos-voadores e cometas, da “moda escandalosa” e do

temido “comunista”, personagem que no imaginário local foi associado ao Anticristo e ao

“Capa-verde”, lendária figura sobre quem Padim Ciço havia profetizado o aparecimento no fim

dos tempos.

A construção e a expansão das rodovias intermunicipais e a ampliação dos sistemas de

transporte que tornaram mais rápida e eficiente a comunicação e a integração das cidades

interioranas, com os centros mais dinâmicos da região e do país, também foram importantes

neste processo. No município de Cruzeta (RN), era especialmente por intermédio do ônibus da

Empresa “Artur Dias” que fazia diariamente a linha Cruzeta-Natal que chegavam diariamente à

cidade as novidades “do mundo mais civilizado” e os cruzetenses podiam “receber e ler todos

os dias, jornais, revistas e vários outros tipos de comunicação da Imprensa do Estado e do

País”.125

A televisão, “esse maravilhoso invento que nos permite, além de ouvir o som, ver a

imagem que também é transmitida pelo espaço”126

no dizer de Terezinha Goes, só apareceria na

cidade no primeiro qüinqüênio dos anos 60.127

Levados a atuar, sobretudo no espaço urbano, estas novidades da história acabariam por

engendrar novas representações sobre a cidade que puderam ser assimiladas pela população

local, especialmente pelos sitiantes cruzetenses, forjando, em seu imaginário, novos sentidos do

125 GOES, Terezinha de Jesus M., 1971, p.27.

126 Idem, p.26.

127 O primeiro aparelho de televisão que se tem notícia em Cruzeta, pertenceu ao ex-prefeito Sinval Azevedo

(1925-1992). Conta Alexandrina Campus em entrevista realizada no dia 22/08/2012, que o mesmo teria adquirido

o aparelho no município de Macaíba/RN quando por lá residiu alguns anos e levado à Cruzeta no início dos anos

1960 por ocasião de seu retorno a terra natal.

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espaço citadino. Era na cidade ou na vila mais próxima que o sitiante tradicional128

travava

contato com as novidades do século e tomava notícia do que se passava por outras “bandas”

distantes. Era também na cidade que o velho camponês e sua família comerciavam o excedente

da colheita no dia da feira e participavam das celebrações ao santo padroeiro da freguesia e das

festas de fim de ano tecendo com o ambiente urbano seus vínculos de diferença e afinidade.

O fato de freqüentar a cidade dava ao morador rural o conhecimento da existência de um

modo de vida diferente do seu, o modo de vida citadino que em muitos aspectos era

considerado “estranho” ao seu gênero de vida tradicional. Embora estivesse subordinado à

cidade por um regime de complementaridade, pois trazia para ela os produtos que esta

consumia e com a renda de sua venda adquiria nela os produtos que não produzia, o sitiante

tecia com a cidade uma relação ambígua reconhecendo sua própria dependência a ela e de certo

modo lhe valorizando, ao mesmo tempo em que também a encarava de maneira negativa, como

centro de difusão de erros e vícios.129

Mesmo quando as dificuldades apertavam e o velho

sitiante e sua família eram obrigados a deixarem o campo e vir “tentar a vida” na cidade, muitas

de suas tradições, crenças e superstições apreendidas no universo dos currais e do roçado

continuavam a serem transmitidas no novo ambiente de vivência até irem se modificando aos

poucos ou sendo esquecidas. Ali eles encontravam novos sentidos, um novo criadouro para a

reformulação de seus imaginários tradicionais.

Com o fenômeno da expansão urbana na região do Seridó, a vida social mais dinâmica

que antes irradiava da “fazenda de criar” – espaço que até o final do século XIX havia sido por

excelência o lugar “de moradia e de trabalho do homem seridoense, que se dedicava à lida com

o gado e a semeadura da terra”130

– foi sendo canalizada para as cidades. Pouco a pouco as

cidades foram “cooptando todas as substâncias vitais, inovadoras, criadoras e transformadoras

para si [...] [ao irem se estabelecendo] “como território das trocas, das feiras, o mundo das

relações mercantis”.131

O impacto deste processo na vida social dos seridoenses foi tão

expressivo a ponto de ser considerado por Araújo132

como “a grande novidade que se

descortinou, no Sertão do Seridó potiguar, no decorrer da primeira metade do século XX”.

Para o autor citado acima, dois processos foram cruciais para o florescimento das cidades

seridoenses neste período: o êxodo rural, especialmente por parte de uma população sitiante

128 Adotamos o conceito utilizado por Müller apud. Queiroz (1973, p.49) como sendo “todo pequeno produtor que,

responsável pela lavoura, trabalha direta e pessoalmente a terra com a ajuda de sua família e, ocasionalmente, de

alguns empregados remunerados”. 129

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, 1973, p.23. 130

MORAIS, Ione Rodrigues Diniz, 2006, p.80. 131

ARAÚJO, Douglas, 2006, p.248-249. 132

Idem, ibidem.

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empobrecida que migrando para a cidade engrossava a fileira de sua população consumidora e

estimulava uma maior circulação de mercadorias, e o avanço da agricultura comercial do

algodão, que impulsionada pelo sucesso de sua comercialização no mercado internacional e

nacional, “fizeram arrastar para a urbe um espectro de inovações técnicas que ajudaram a

modificar, em muito, as feições do Seridó urbano [mas que] afetaram muito pouco a tradição

rural”.133

O clima de prosperidade econômica gerado por estes fatores acabaram atraindo para as

cidades seridoenses os símbolos modernos que foram aos poucos maquiando o seu aspecto rural

e dando a elas uma “vernizagem moderna”.134

No tocante a isso, Morais observa que entre as

décadas de 1940 e 70 “as relações campo-cidade estavam sendo paulatinamente alteradas e os

caminhos do desenvolvimento regional, cada vez mais, conduziam as trilhas da cidade”.135

No

espaço citadino, “os investimentos em educação, saúde, saneamento básico, moradia,

comunicações, transporte e eletrificação revelam o tom das inovações na práxis política da elite

comprometida com o discurso da modernização e, por conseguinte, da infra-estruturação urbana

regional”.136

Mas os signos de modernidade não ficaram apenas circunscritos aos empreendimentos

concretizados pelas reformas e políticas públicas de infra-estruturação urbanas. Aliado a um

projeto mais amplo de integração nacional e de formação de um mercado interno consumidor

para a expansiva industrialização do país, o mercado regional esteve reorientado para esta

ideação neste contexto. No panorama interno da região, a onda modernizadora e o avanço do

capitalismo provocado pelo progresso material e das novas tecnologias criaram a emergência de

uma sociedade de consumo que passou a ter na cidade seu espaço privilegiado. Lugar por

excelência das novidades, as cidades atraíram para seu centro gravitacional – os núcleos

urbanos – uma gama cada vez maior de objetos filhos dos novos tempos e da florescente

indústria cultural que foram sendo incorporados ao cotidiano das pessoas redefinindo em

muitos aspectos os costumes, tradições e comportamentos sociais na medida em que também

passavam a estar relacionados à idéia de progresso e adiantamento frente ao passado de atraso

que ainda parecia perdurar no campo.

De outra maneira, para o homem rural, alijado das novas forças ideológicas e produtivas e

atado às precárias condições de vida e trabalho no campo, as transformações em curso nas

cidades que lenta e gradativamente acabavam penetrando o universo dos currais se processavam

133 Idem, ibidem, p.249.

134 Idem, ibidem.

135 MORAIS, op. cit., p.82.

136 Idem, ibidem.

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muito mais como mudança da percepção de um mundo que já não é mais ou que já não está

sendo, movida pelas incertezas e temores do que ainda estava por vir. Não por acaso o velho

sitiante as viveu muito mais como “sintoma” ou “sinal” de um mundo (o seu mundo da tradição

e do conhecido) que parecia peregrinar para o fim tendo como centro de tensão e conflito os

terrenos da percepção e do imaginário que colocava em confronto todo este universo das

novidades com suas referências e valores tradicionais. Aí o cotejo travado entre estes dois

mundos assumia a forma de uma guerra escatológica. Para o universo mental do homem

sertanejo tradicional, que concebia a história sob um prisma de um significado meta-histórico, a

“modernidade” se revelava como um apocalipse.

Engolfado no mundo da tradição rural e atrelado a este por laços sagrados de afeto que o

fazia enxergar nas novidades do século os acontecimentos “perturbadores” das profecias do fim

do mundo, o seridoense tradicional encontrava nos medos escatológicos uma maneira de

afirmar e reforçar suas identidades de grupo. No universo da tradição rural margeado pela

esfera do sobrenatural e do sagrado onde a religião ocupava uma posição nuclear e básica e

funcionava como um sistema simbólico por onde as experiências humanas eram interpretadas,

os medos escatológicos desempenharam um papel mantenedor de suas estruturas e referências

tradicionais. Mais que isso, eles faziam parte de uma estrutura imaginária que colocava a espera

de um fim escatológico para mais perto do cotidiano sertanejo ao conceber o medo do inferno e

a esperança do paraíso – fins últimos da humanidade – como vetores de orientação dos

comportamentos terrenos.

2.3. A ESTRUTUTA IMAGINÁRIA DOS MEDOS ESCATOLÓGICOS

Uma preocupação muito constante entre os sertanejos seridoenses era com o destino de

sua alma na pós-morte. Esta atitude era bem apregoada na crença muito difundida entre os

sertanejos da região de que logo quando deixasse o corpo do moribundo, a alma era

transportada para o além onde teria seus pecados “pesados” num primeiro julgamento e só em

seguida recebia como recompensa a beatitude do céu ou o perene castigo no inferno, caso não

precisasse passar no purgatório conforme a sentença julgada em juízo de seus atos. Ali a alma

devia permanecer até se completar as eras de onde sairia para ser julgada diante do tribunal do

soberano juiz no dia do Juízo Final. A expressão popular “diminuir o peso dos pecados”, ainda

utilizada por muitos cruzetenses para referir-se a uma situação penosa tolerada, confere a

presença deste imaginário entre os seridoenses num passado não muito distante. Esta crença na

existência de um pré-julgamento individual após a morte fora muito intensa entre os homens

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medievais, sendo transmitida aos vastos sertões brasileiros pelos colonizadores lusitanos,

clérigos e missionários.

Num saltério francês do século XIII que evoca um episódio do Juízo Final, um anjo (o

arcanjo S. Miguel) é representado segurando uma balança de duas conchas (o prato dos pecados

e o das virtudes). Na sua direita, uma fileira de fiéis defuntos aguardam ansiosos a pesagem de

suas almas enquanto do lado esquerdo alguns diabinhos tentam trapacear a cena. Se o prato das

virtudes obtivesse maior peso a alma receberia como recompensa o paraíso (o céu). Caso

contrário, seria lançada no inferno para o perpétuo castigo. A condenação eterna muitas vezes

não pesava mais que uma pena. (Ver imagem 02 em anexo). Para além do mundo medieval este

mesmo tema (de longuíssima duração) continuou a ser representado no Ocidente

Contemporâneo.

Transmitida ao Novo mundo pelo colonizador europeu, ela persistiria ainda com alguma

força no imaginário religioso do homem rural nordestino como constata uma gravura

confeccionada por um xilógrafo paraibano da segunda metade do século XX que traz na

ilustração uma performance entre três personagens conhecidos: o Diabo, o arcanjo S. Miguel e

a Virgem Maria, esta última uma inovação. Na cena soteriológica, S. Miguel é representado ao

centro entregando a Nossa Senhora uma balança, enquanto do lado direito o Diabo que parece

enfurecido avança diante da trama. Nenhuma alma seria perdida pelas mãos intercessoras da

Onipotente Advogada.137

(Ver imagem 03 em anexo).

Esta crença na onipotência suplicante de Maria, muito difundida entre os sertanejos do

Nordeste, foi bastante expressa na simbologia dos rituais funerários católicos. Buscando a

salvação na pós-morte, o devoto da Virgem esperava que ela intercedesse por sua alma no dia

de Juízo e a livrasse das penas eternas do Inferno.138

O antigo costume difundido entre os

católicos seridoenses de sepultar os seus mortos especialmente do sexo feminino trajando-os

com o hábito da Santa (a mortalha, geralmente nas cores branco e azul do traje de Nossa

Senhora da Conceição) revela o desejo em vida do falecido de ser reconhecido pela Virgem no

137 Na tradição católica, transmitida ao Novo Mundo pelo colonizador europeu, é recorrente entre os fiéis a crença

de que Nossa Senhora está incessantemente intercedendo pelos pecadores junto a Jesus Cristo (o justo juiz),

assumindo o papel de advogada das almas que a evocam em juízo. Na religiosidade popular do Nordeste, ela se

torna na grande intercessora dos oprimidos e desvalidos da terra que diante das adversidades da vida (a seca, a

miséria, a injustiça e a violência) se volta para estes com clemência. 138

Na Missão Abreviada, suplica o fiel na presença da Virgem: “Rogai, rogai ó Maria, em quanto [sic] me não

virdes salvo no paraízo [sic]”. (COUTO, M. J. Gonçalves, 1868, p. 669. No “Lembrai-vos”, oração mariana

atribuída a São Bernardo (1090-1153) e muito rezada ainda hoje pelos católicos, o devoto se dirige a Maria com

estas palavras: lembrai-vos, ó piíssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer que algum daqueles que têm

recorrido à vossa proteção, implorado a vossa assistência, e reclamado o vosso socorro, fosse por Vós

desamparado [...]. Na “Salve Rainha”, prece muito apreciada entre os católicos seridoenses, Nossa Senhora é

evocada como “advogada nossa” e “Mãe de misericórdia” capaz de abrir para o pecador arrependido o oceano

infinito das indulgências divinas.

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mundo do além, e, assim, ser conduzido para alguma das muitas moradas do céu ao encontro

das almas dos parentes mortos, depois de, quem sabe, passar pelo fogo do Purgatório. Temia-se,

com isso, que ao ser confundido com outra alma, o espírito do fiel defunto viesse a se perder –

virar “alma penada” ou cair na danação. Esta observância nas práticas do “bem morrer” foi

bastante empregada durante o período de colonização dos sertões seridoenses se estendendo ao

longo do Império e de forma mais mitigada pelo século XX.139

Para além do imaginário das práticas funerárias, a crença na onipotência suplicante da

“Mãe de Deus” foi particularmente expressa numa tradição imemorável da Sagrada Família

desdenhada pelos Evangelhos canônicos cujos fragmentos sinópticos Cascudo encontrou

gravado na “fé sertaneja” de sua avô materna nos albores do século XX.140

De acordo com a referida crença transmitida entre os nordestinos rurais pela oralidade,

antes de elevar-se ao céu, Nosso Senhor apanhou um punhado de areia e, dirigindo-se aos seus

discípulos disse-lhes, que até mil e tanto o mundo não passava, e lançou-o ao vento. Nossa

Senhora, por sua vez, apiedada com a brevidade do prazo concedido, encheu a sagrada

mãozinha de areia e atirando-a ao ar, suplicou: - E mais estes anos, meu Filho!141

Resquício de

uma antiguíssima tradição oral escatológica que circulou no sertão nordestino durante séculos,

esta crença que conferia a Virgem Maria um papel singular no plano divino de redenção da

humanidade, era bastante conhecida dos católicos cruzetenses entre as décadas de 1950 e 70,

especialmente no círculo daqueles de procedência rural (ver imagem 04 em anexo). Pedro

Pereira, 53 anos, morador do município de Cruzeta (RN), contou que em sua infância ouvira

muitas vezes a mesma estória narrada pela boca dos pais quando ainda residia no sítio Riacho

da Barra (zona rural da cidade) nos anos 1960 e 70.

Eles falavam neste sentido: “meu filho, dois mil ninguém vai interar, por que o

ano vai se acabar em dois mil. Dois mil anos não vai completar”. [...] Isso em

1970, 69, 70. E eles acrescentavam: mas Nossa Senhora quando Jesus disse

que dois mil não completava jogou um punhado de areia e disse desse jeito:

“mais esses”. Ela jogou mais um punhado de areia dizendo “mais esses

anos”.142

Transmitida entre os círculos das relações intergeracionais, na cidade, o emigrante do

campo conservaria com a mesma força esta crença no ensejo das expectativas para o segundo

milênio.

A respeito da crença na pesagem dos pecados ou da alma, Cascudo (1951/2002) registra a

139 Ver MACEDO, Helder Alexandre M. de, et. al., 2004.

140 CASCUDO, Câmara, 2002, p.407.

141 A referida crença foi adaptada de Cascudo (2002, p.407) de acordo com as narrativas encontradas entre os

depoentes da pesquisa procurando conservar as expressões originais. 142

Depoimento concedido pelo Sr. Pedro Pereira da Silva, 53 anos, no dia 03 de Novembro de 2009.

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passagem e atesta a continuidade da tradição na memória coletiva dos grupos rurais tradicionais

do Nordeste árido.

[...] o espírito, apenas desprendido da matéria, comparece perante o arcanjo

São Miguel, e, tomando ele a sua balança, coloca em uma concha as obras

boas e na outra as obras más, e profere o seu julgamento em face da

superioridade do peso de uma sobre as outras. Quando absolutamente não se

nota o concurso de obras más, o espírito vai imediatamente para o céu; quando

são elas insignificantes, vai purificar-se no Purgatório; e quando não tem em

seu favor uma só obra boa sequer, vai irremessivelmente para o inferno, de

onde só sairá quando se der o julgamento final, no dia de Juízo, seguindo-se

então a Ressurreição da Carne.143

A referência ao Purgatório como um lugar físico extraterreno para onde a alma do fiel

morto é conduzida no pós-morte para ser purificada de suas imperfeições é outra

“reminiscência medieval” conservada ainda hoje no imaginário religioso do seridoense, embora

neste fim de século, ele tenha tornado uma realidade volvida à condição humana terrena de

sofrimento para as mentes mais céticas. Mesmo hoje nas paróquias seridoenses não é rara a

existência de confrarias e/ou congregações leigas que se dedicam, além de outras tarefas, a

rezar pelas almas do Purgatório. Nas Igrejas da região, é possível encontrar em algum local

reservado, seja incrustado ou pendurado nas paredes, seja em pequenas caixas confeccionadas

de madeira ou zinco (este mais incomum), um depósito com as inscrições: “Esmolas para as

almas”, embora que, nas duas últimas décadas, estas estejam mais vazias. Muitos são, porém

ainda os que acreditam que “alimentadas” pelas orações ou fortalecidas pelas ofertas dos fiéis,

estas almas encurtariam seu tempo no Purgatório, proporcionando-lhe conforto e refrigério

salvífico no além, apressando, assim, seu sufrágio para os céus.

Suscitando uma sensibilidade agente até o segundo quadrante do século XX, a ideia da

pesagem dos pecados no pós-morte sistematizada no processo soteriológico (Julgamento

Inferno/ Julgamento Paraíso/ Julgamento Purgatório Paraíso) ainda encetava receio entre

os católicos seridoenses mais fervorosos e provocava arrepios naqueles cruzetenses mais

crédulos. Ela fazia parte de uma estrutura mental imaginária que circulava na região em torno

das crenças “populares” no Apocalipse no interior das quais o Juízo Final e a ameaça sempre

constante do inferno eram comentos muito temidos.

Um caso interessante narrado por uma moradora do município de Cruzeta (RN) atesta

como a ideia do Inferno, como lugar de suplício e danação, ainda exercia uma forte impressão

na mentalidade de seus habitantes no limiar da década de 1960, prosseguindo pelo menos até a

primeira década do último quadrante do século XX. Certa vez, quando ainda criança, no

143 CASCUDO, Câmara, 2002, p.32.

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cumprimento de suas obrigações habituais, ela conta que, estando a executar um trabalho

penoso e já por isso muito aborrecida, um dos irmãos se aproxima indagando o paradeiro da

mãe ao que ele ouve com aspereza: “foi pro inferno”! E, assim, sabedora do ocorrido, a mãe

gravemente ofendida, empunhando um arreador (tipo de corda grosseira utilizada pelo sertanejo

no trato dos animais) lhe aplica sem pena muitos golpes144

. Mandar alguém para o inferno ou

desejar que se esteja naquele lugar escabroso era uma ofensa terrível e mais ainda se o injuriado

fosse um membro da família, sobretudo um dos pais. Além do grave pecado que isto incorria, o

conjurado não estava isento de ter como castigo divino o rogo da praga contra si. A ideia do

Inferno como lugar de pavor onde a alma do condenado sofre as penas eternas sob os cepos dos

demônios no além persistiu com certa força no imaginário do seridoense até muito

recentemente. (Ver imagem 05 em anexo).

Elas também foram constitutivas em demonstrar como a Igreja católica continuou

utilizando estas “imagens do medo” como forma de obter seus intentos ainda em uma época

não muito distante de nosso tempo. Outra moradora do município de Cruzeta chegou a relatar

que teve mesmo de assistir apavorada durante as Missões dos padres Redentoristas na cidade no

início dos anos 1960, a projeção de quadros luminosos nas laterais da Igreja que reproduziam

cenas do céu e do inferno com anjos alados entre nuvens e diabos pretos a brandir espetos

afiados, causando forte impacto em sua imaginação pueril.145

O recurso a ideia do inferno como

um “lugar de suplícios onde não existe qualquer redenção, onde os homens sofrem o martírio,

no meio de gritos, de lágrimas e de ranger de dentes, com o alcatrão a escorrer, as lanças

afiadas, as tenazes que maltratam as carnes” 146

, seriam ainda bastante utilizadas pela Igreja até

a véspera do Concílio Vaticano II (1962-1965) e creditada pelos católicos até pelo menos a

primeira década do último quadrante do século XX.147

É verdade que ainda podemos encontrá-la com algum arrimo no imaginário dos católicos

mais afoitos, especialmente entre os mais velhos, sem falar, então, do público evangélico,

144 Relato concedido pela Sra. Ana Lúcia Rodrigues dos Santos, 61 anos, no dia 10 de Fevereiro de 2013.

145 Depoimento concedido pela Sra. Maria Letícia Vito dos Santos, 63 anos, no dia 24 de Agosto de 2012. Sobre as

Missões dos padres Redentoristas realizadas em abril de 1962 no município de Cruzeta, registrou Pe. Ernesto da

Silva Espínola, vigário paroquiano: “Foi um espetáculo encantador para a história religiosa de Cruzeta. Todos os

paroquianos, mesmos os mais afastados buscaram as grades do confessionário, destruindo o homem velho e

edificando o homem novo [...], na vivência dos sacramentos. Foram muitos daqueles cujas vidas se extinguiam,

cuja fé se apagava, que as reavivaram pelo manancial da graça emanada do Cristo místico. O movimento religioso,

durante as missões, na paróquia de Cruzeta, bateu “Record”, com um número de 9.850 comunhões. (Primeiro

Livro de Tombo da Igreja matriz da paróquia de Nossa Senhora dos Remédios, 1944-1993. Cruzeta-RN, 01 de

abril de 1962, folha 41). 146

BECHTEL, Guy, 1998, p.143. 147

Ver a este respeito HOEFLE, Scott William, 1997.

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circuito onde estas imagens circulam particularmente com mais eficácia148

. Mas é também

provável que ao lado desta imagética sobrenatural do Inferno tenha se desenvolvido outra visão

menos abstrata que parece suplantar aquela na maioria das mentes no limiar do último milênio:

a noção de que “o Inferno é este que agente vive”, na dimensão real do presente, do cotidiano,

no aqui e agora. Um Inferno secular movido pela vida cada dia mais acelerada e cambiante.

Mas seria preciso uma forte dose de estressamento para que este homem conservador por

formação se “desencantasse” do seu mundo. O impacto da experiência moderna na cidade, ela

mesma instituidora duma nova racionalidade ou visão de mundo, com ritmos próprios, posturas,

valores, referências e papéis sociais, talvez tenha sido a grande mola deste “despertar”.149

Beatriz Sarlo (2002), estudiosa da cultura popular na “pós-modernidade” coloca no centro

da vida moderna campesina e urbana o poder simbólico que a indústria cultural e os meios de

comunicação de massa exerceram nesta mudança de mentalidade, responsabilizando-o,

principalmente pela ruptura do hermetismo das culturas camponesas, da perda das “identidades

cristalizadas” e do rompimento com a obediência cega às autoridades tradicionais dominantes

(a Igreja Católica, por exemplo, que exerceu até pouco tempo uma forte influência na

continuação da ideia do inferno). “Onde quer que cheguem os meios de comunicação de

massa”, assegura a autora, “não passam incólumes as crenças, os saberes e as lealdades”.150

Embora na segunda metade do século XX a imagem de um Inferno cristão com diabos

horrendos, labaredas, enxofre e tachos enormes a torrar os danados continuasse a ser concebida

mentalmente com certo temor pelos seridoenses e cruzetenses de modo particular, ela se

constituiria cada vez mais num imaginário peculiar de uma população roceira que mesmo

incorporada progressivamente à esfera da cultura urbana não sofreria na totalidade os efeitos da

“modernização” ou da “urbanização civilizatória” a ponto de perder suas referências

tradicionais.151

Mesmo depois que o “progresso” gerado pelo frenesi mercantil ensaiou nas

148 Por não se constituir foco da pesquisa, o imaginário apocalíptico incluindo a produção imagética do Inferno e

do Juízo Final muito evidente entre os grupos protestantes não serão objetos de análise deste estudo. 149

O economista alemão Max Weber tematizou este problema de modo insuperável em sua obra A ética

protestante e o espírito do capitalismo a partir do conceito de “desencantamento do mundo”. Para Weber, o

processo de “racionalização” retomado pela sociedade ocidental com o encadeamento da ‘modernidade’ e o

desenvolvimento do capitalismo, gerou um processo de ‘desencantamento’ das concepções religiosas do mundo

predominantes nas sociedades pré-capitalistas, isto é, de fragmentação da consciência e das esferas de valores que

se pautavam na lógica e na eficácia da religião como única forma de explicação do mundo, instituindo outras

formas (não mais somente fundadas no sobrenatural e nas concepções mágicas da vida) de ver e situar-se no

mundo. 150

SARLO, Beatriz, 2002, p.102. 151

O sentido do termo “urbanização civilizatória” refere-se ao processo discutido por Cândido (1971, p.218) em

estudo já clássico onde defende a ideia de que, sob o ponto de vista da cidade, a expansão urbanizadora tinha um

papel de civilizar os indivíduos “propondo” ou “impondo” ao homem “rústico” “certos traços de cultura material e

não-material” que antes não fazia parte de seu sistema cultural de crenças, saberes e valores, condicionando-o a

uma reação adaptativa.

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urbes da região o drama da experiência moderna entre as décadas de 1940 e 70 como observou

Araújo (2006) e Morais (2006), o Seridó potiguar jamais foi tão “moderno” a ponto de livrar-se

inteiramente do peso da responsabilidade da memória. A história da empresa modernizadora na

região não foi um processo que se possa dizer hoje pronto e acabado, mas ela se estende além

do recorte estabelecido por este estudo. É uma história que continua. Os rastros deste

prolongamento podem mesmo ser encontrados nos resíduos das “mundividências encantadas”

que ainda povoam o imaginário do homem da região dos quais a continuidade do esquema

cosmológico tripartite do além entre os católicos seridoenses (a crença na existência além-

túmulo do céu, do inferno e do purgatório) é um exemplo.

Talvez a pouca visibilidade dada sobre esta questão nos estudos históricos que trataram

sobre o problema da modernidade na região deva-se especialmente pela predominância do

enfoque dado aos problemas de curta e média duração que levam em consideração as

influências mesológicas e morfológicas deste fenômeno sobre o território estudado, isto é, o

impacto que este exerceu sobre os processos educacionais, físico-estruturais, sócio-políticos e

econômicos em detrimento daqueles que procuram analisar processos mais complexos de longa

duração como ocorre no plano do imaginário e do simbólico.

Visto de outra maneira, o processo de modernização regional também se incidiu sobre o

domínio das subjetividades dos sujeitos interferindo no imaginário de sua percepção do tempo.

Se para o homem norteado pela tradição rural a escatologia era a bússola por onde via avançar

para o fim dos tempos o seu mundo conhecido, para o sujeito orientado pelo mundo moderno, a

modernidade era o telescópio por onde enxergava a humanidade marchando para o melhor dos

mundos.

2.4. O IMAGINÁRIO APOCALÍPTICO POPULAR NA ESTEIRA DA “CULTURA DE

MASSA”

A tradição historiográfica local está intimamente relacionada ao trabalho da professora

Terezinha de Jesus Medeiros Goes. Urdido em meio ao processo de transformações

socioculturais e econômicas pelas quais atravessava a região entre os anos 1950 e 60, o

“Noções de Geografia e História do Município de Cruzeta” reflete o desejo tonitruante das

elites letradas regionais em desenvolver a educação e os diversos setores sociais na qualidade

de vetores de modernização e progresso técnico-científico, intelectual e humano em vista da

superação do passado de “atraso” (leia-se aqui da “ignorância” e da “cultura arcaica” do homem

sertanejo mantenedora da estagnação regional). Não por ventura sua obra ancora-se numa visão

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urbana da história que ela ver perfilar (ou gostaria de ver?) numa pequena comuna sertaneja que

acredita embalada pelo sonho do progresso como uma seta apontada para um futuro promissor:

a “civilização” e com ela todo o peso simbólico que carrega152

. É no espaço urbano, lugar de

onde fala e produz sentidos, que ela percebe agora encenar as técnicas, os inventos e as

conquistas do mundo moderno em favor da “civilização” dos que “povoam” o lugar

consagrando a cidade como ambiente por excelência do progresso, da polidez, da cultura, da

ciência e da vida em sociedade.

Operando sob inspiração de uma idéia de história muito em voga nos quadros intelectuais

do governo os quais vincula sua obra (a Secretaria de Educação e Cultura, o Centro de Estudos

e Pesquisas Educacionais e o Instituto Histórico e Geográfico do RN, todos empenhados em

articular o processo de educação a um projeto de modernização e integração nacional), o

sentido da história em Terezinha Góes é aquele herdeiro do pensamento iluminista oitocentista

que tencionava o esclarecimento da humanidade através do instrumental da razão. Perpassada

por uma idéia derivada da “Ilustração”, sua noção de história está apoiada no otimismo técnico

e científico motivado pelas últimas conquistas do conhecimento humano influenciando sua

concepção de “tempo sagital”, isto é, aquele que apontava que o destino humano caminhava

para uma realização sociocultural e intelectual ainda mais plena no futuro, guiando-se pelo

caminho irretroativo do progresso. Mas, qual o interesse em penetrarmos mais afundo na obra

de nossa autora cruzetense? O que ela, então, nos revela de precioso para o nosso estudo?

Nosso interesse em sua obra é menos pelo que ela diz, do que pelo que não diz.

Assim como todo trabalho historiográfico, o “Noções de geografia e história do município

de Cruzeta” está impregnado de esquecimentos, pois, intencionalmente ou não, a história é feita

também de lapsos de memória que entre o lembrar e o esquecer fazem surgir as lacunas, os

silêncios ocultos que podem revelar intenções, omissões, conflitos e tensões basta que os

questionemos. Ao tecer um enredo de uma história urbana guiada pelo progresso rumo ao

dealbar da civilização, foram os indivíduos identificados com a vida na cidade (os chamados

vultos históricos)153

que pelos seus atos e “feitos” e suas existências excepcionais mereceram

um espaço privilegiado na trama de nossa autora. “Sem estes, o sentido da própria história em

152 De acordo com Azevedo (2003, p.34) “a idéia de civilização trouxe em si a questão material, seja no âmbito da

técnica ou da vida econômica. Ela foi associada ao desenvolvimento do comércio, da indústria e da tecnologia”,

além de estar relacionada ao aprimoramento da estrutura social e do nível intelectual das sociedades. 153

De acordo com SANTOS e ROCHA (2012, p.748-749) “um “vulto histórico” é, antes de tudo, um personagem

notável, insigne, exemplar, cuja memória e atuação sem-par na história mereceram notabilidade e registro para a

posteridade. Este fora ordinariamente pintado como “homem esclarecido”, de “decisões inquebrantáveis”,

envergando uma “moral insofismável” sempre dedicado à “causa” da terra. Tinham como características comuns

“o fato de serem quase todos eles provenientes das famílias e camadas sociais mais abastadas ou dominantes da

sociedade e, por conseguinte detentoras de alguma proeminência política ou prestígio público”.

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Terezinha Goes seria impensável. Sem suas poderosas atuações, o progresso, a evolução, o

desenvolvimento, em suma, a própria marcha da história e da civilização não teria sido

possível”.154

Mas, onde se situam neste quadro aqueles outros sujeitos habitantes do campo que

na ocasião da publicação do seu livro correspondia à segunda metade da população cruzetense?

Para Terezinha Goes e do mesmo modo para a elite letrada de seu tempo, o campo e, por

conseguinte, a massa de seus habitantes rurais era esta outra parte “menos civilizada” e,

portanto, ainda ofuscada pelas “trevas da ignorância” que nem mesmo parecia ter adentrado na

“marcha da civilização” (leia-se aqui da história), embora já se percebesse alguma

“contaminação” pelo progresso. Seu olhar era o do sujeito-cidadão que via o mundo rural a

partir da cidade – lócus insofismável das mudanças que estavam sendo processadas e levadas a

cabo pelo tão aspirado mundo moderno – agora associado ao novo estilo de vida citadino, ao

lugar-comum do indivíduo polido, “civilizado”, “adestrado”, “sociável”, do homo operandis.

Habitar a cidade era compartilhar de outras representações e significados inerentes ao modo de

viver citadino que incluía aí o inteirar-se nos novos círculos e formas de sociabilidades

sincréticas e o deixar-se guiar (diga-se “iluminar”, “esclarecer-se”) pelas técnicas e os inventos

do mundo moderno.

Diferentemente da cidade, o campo era aquele espaço que permaneceu na estagnação, que

não acompanhou o processo de transformação e evolução da história, visto que ainda vive em

seu “sono profundo” que era necessário “despertar”, isto é, trazer para a civilização rompendo

com a força de seu tradicionalismo que o condenava a seu estado deplorável de letargia. Preso à

dinâmica de seu “eterno devir”, o mundo rural era aquele espaço destituído de uma história

própria, lugar de mudanças lentas e quase imperceptíveis; vestígio de uma sociedade tradicional

em colapso onde o “alento” do progresso e da civilização pouco pudera penetrar.

Em 1962, por ocasião do encerramento do curso de formação de tratoristas realizado na

Estação Experimental do Seridó, assim discursava a professora e representante da Juventude

Agrária Católica (JAC), Alexandrina de Oliveira, em acoroçoamento dos jovens rurais

cruzetenses que acabavam de completar as instruções de como operar a máquina na lide

agrícola:

A sociedade moderna caracteriza-se pelo dinamismo. E o homem ser social

precisa tornar-se sociável. E somos nós os grupos organizados os únicos

responsáveis que iremos atuar como desintoxicantes e lenitivo na sociedade

doente. Como tivemos a oportunidade de ouvir de um conferencista que o

homem é um ser essencialmente gregário, vê-se por aí que as reuniões sociais

são necessárias, porque sem elas se afrouxariam os laços da sociedade. Nossa

ação é necessária que se multiplique. Nenhum resultado teríamos nós desse

154SANTOS; ROCHA, 2012, p.748.

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maravilhoso curso se daqui partíssemos sem o propósito de lutar, de arrastar

para a realidade aqueles que ainda não despertaram para a vida. [...]

partiremos para a ação, na certeza de dias melhores especialmente para aqueles

que ainda são massa, tudo fazendo para que eles venham a ocupar o seu lugar

no seio da sociedade [...]. [Grifos nossos].155

“Despertar para a vida” e “arrastar para a realidade” aqueles que ainda são “massa”,

significava, também, trazer para o seio da civilização e, portanto, para a dinâmica da

experiência moderna, os sujeitos alijados das novas forças sociais e produtivas que na mira do

discurso pró-modernização regional trazia implícita a condição estorvante do homem do campo

diante dessa nova sociedade que se projeta. Neste novo projeto de civilização movido pela ótica

da racionalidade técnico-científico-capitalista e guiado pelas luzes na história, não havia lugar

para a encenação da ignorância, da irracionalidade e da superstição que costumavam assaltar a

imaginação das mentes mais “incultas”. Pelo contrário, eram estes alguns dos sintomas desta

“sociedade doente” e, portanto, periclitante que os “homens mais esclarecidos” e “os grupos

organizados” (as vanguardas políticas da qual a JAC era o movimento mais atuante no local)

deviam agir como seus “desintoxicantes e lenitivos” levando o “alento da modernidade” e as

“luzes da civilização” para aqueles que ainda viviam distantes destes, “para aqueles que ainda

são massa” (isto é, sujeitos subalternos, incultos e ignorantes e, por isso mesmo, necessitados de

serem conduzidos, educados, tornado úteis).

A educação técnica é então pensada neste contexto como meio de “expurgar” os impulsos

obscuros e supersticiosos das massas rurais alicerçados na imaginação e na visão de mundo

religiosa e mágica (diga-se irracional) do homem do campo acusada muitas vezes de impedir

mudanças efetivas em suas esferas de vida e de ser um dos principais motivos de aversão ao

“elemento moderno”.156

Visto de outro modo, esta circunstância revela uma realidade histórico-social e política

que aparentemente pode nos parecer implícita: a de que a “integração dos sertões à civilização”

e como desdobramento deste processo a modernização das áreas rurais do Nordeste brasileiro

se processaram de forma autoritária e excludente, no sentido de que se buscou imprimir sobre

as classes sociais “subalternas” um modelo ideológico dominante, um ponto de vista que

pretendia hegemônico (o das elites detentoras do poder responsáveis pela direção deste mesmo

processo nas mais diversas instâncias locais) em detrimento de outros valores e visões de

mundo particulares. Mesmo quando se optou por adequar seus sistemas de valores e sentidos

àqueles já existentes localmente, o processo de modernização das áreas sertanejas nordestinas

155 Discurso apresentado no encerramento do curso de formação de tratoristas realizado na Estação Experimental

de Cruzeta em 1962. Trecho transcrito de documento datilografado e conservado pela autora. 156

GALJART, Benno, 1979.

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se fez com a imposição de imaginários próprios que tiveram que ser apropriados, apreendidos e

decodificados por seus moradores para tornarem-se compreendidos. Neste sentido,

concordamos com Arias Neto157

quando ele nos diz que, ao lançarmos o olhar sobre um

determinado acontecimento

[...] é preciso levar em conta que há uma memória do vencedor (um indivíduo,

uma família, um partido, uma classe social), que se reproduz a partir de uma

narrativa triunfante, normalmente construída por ele próprio, acerca de seus

atos. Essa versão muitas vezes é aceita como verdade até que uma revisão

historiográfica da questão demonstre que as coisas não se passaram

exatamente como contadas.

Foi buscando “enquadrar” a sua narrativa histórica na “memória do vencedor”, isto é, dos

sujeitos sociais originados de uma elite político-econômica e letrada local e regional empenhada

em construir uma memória da nação, da região e do lugar aliada aos seus anseios e projetos

civilizacionais e modernizadores da qual também se via como parte, que Terezinha Goes teceu

os fatos de sua versão da história158

. Este artifício pode ser bem observado em dois episódios

que mereceram registro pela autora em sua obra não por julgarmos terem sido tomados como

“digno de nota”, mas por permitirmos associá-los a uma outra visão dos eventos narrados pela

“memória dos vencidos”. O primeiro destes fatos refere-se à construção de um campo de pouso

no ano de 1954 nos arredores da cidade; o outro, à chegada da propalada energia elétrica de

Paulo Afonso, em 1966. A respeito do primeiro acontecimento, assim registraria a autora:

A 22 de setembro do ano em apreço [1954], era inaugurado a uma distância de

9 quilômetros da cidade, o campo de pouso. Construiram-no os operários da

Estação [Experimental do Seridó], concretizando a iniciativa de Dr. Fernando

Melo, seu chefe. [...] Pousaram no campo para inaugurá-lo, dois aviões de

pequeno porte e um bi-motor. O povo da cidade e dos sítios acorreu em massa

ao local para assistir e aplaudir ao grande feito.159

[grifos nosso].

Em atestado ao desenvolvimento e ao progresso da cidade, comentaria a nossa autora a

respeito da “energia redentora” de Paulo Afonso: “Cruzeta, modesta cidade nordestina, a 16 de

janeiro de 1966 recebia com imensa satisfação dos seus habitantes, a energia de PAULO

AFONSO. Foi um dos maiores passos para o nosso progresso econômico”.160

A historicidade popular trazida à tona pelos depoimentos coletados revela por trás destes

eventos históricos enquadrados na “memória do vencedor” outras versões e experiências

vividas não contempladas por nossa história oficial. Decerto, como podemos notar em estudos

157 ARIAS NETO, José Miguel, 2010, p.224.

158 De acordo com Pollak (1989), o “enquadramento” da memória refere-se ao trabalho de construção de

referências e pontos de referências hegemônicos que se faz sempre em aquiescência dos grupos sociais detentores

dos meios de reprodução da memória institucionalizada pela necessidade de dar continuidade a manutenção do seu

status quo e de evitar a perda da coesão social. 159

GOES, Terezinha de Medeiros, 1971, p.63. 160

Idem, ibidem, p.67.

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mais recentes, como os de Juciene Felix Andrade (2007) e Marcos Antônio A. de Araújo (2008),

na região do Seridó potiguar seria esta “narrativa triunfante” (a que agrega sentidos aos anseios

de “progresso” e “modernização” de uma elite letrada e privilegiada desejosa em ajustar seus

ideais de vida com aqueles existentes nos grandes centros “civilizados” do país) que

prevaleceria nos estudos sobre o problema da “modernidade” na historiografia regional.

Ao aproximarmos nosso foco de investigação das experiências de outros sujeitos não

impressas nos quadros oficializados da cultura (jornais, periódicos, fotografias, livros e etc.,

geralmente tomados pelos historiadores como os meios de representação por onde as

experiências humanas se exteriorizam), é com outro “imaginário” do “moderno” que nos

defrontaríamos em nossa pesquisa, ainda que tenhamos que concordar com Montenegro161

que

mesmo este outro sujeito situado na “tradição”, “convive, tolera, assimila, reproduz a cultura

oficial” num movimento que tanto pode ser de conformidade e reprodução autônoma, como de

resistência e inversão.

É nesta dialética que coloca em confrontação e intersecção a tradição (isto é, as

referências culturais preexistentes geradoras de permanências) e os símbolos do mundo

moderno (isto é, as novidades da história geradoras de mudanças) que emerge o imaginário

apocalíptico popular como forma de “conformismo e resistência”.162

Isto explica, em parte, por

que a energia de Paulo Afonso de símbolo do progresso e da civilização para Terezinha Goes (e

também para uma elite instruída e político-econômica regional) fora transformada em profecia

do fim do mundo associada a uma conflagração universal entre os sujeitos cerceados dos

significados e valores destes novos códigos simbólicos, e o avião, maravilha mecânica da

ciência moderna, na besta-fera do Apocalipse (a “besta do ar” profetizada pelo padrinho Ciço

para o fim dos tempos).

Esta realidade nos direciona para a compreensão de que é necessário considerar que entre

um primeiro momento concretizado pela penetração e impacto dos “símbolos de modernidade”,

experimentado como aspiração e desejo de uma elite urbana privilegiada aliada a um projeto

mais amplo de modernização capitalista e um segundo momento consagrado na sua apropriação

por uma sociedade de consumo de massa configurada numa fase mais avançada deste processo

(os anos 1960 e 70 no plano nacional de acordo com Ortiz (1999) e os anos 1980 e 90 no plano

161 MONTENEGRO, Antônio Torres, 1994, p.13.

162 Tanto o conformismo quanto a resistência são categorias de análise criadas por Marilena Chauí para explicar as

relações de poder na sociedade de classes, sob o ponto de vista da dominação econômica, política e cultural para

referir-se a forma ambígua pela qual as classes populares enfrentam as situações de domínio e controle incidentes

sobre elas. Relação que é mais preferível ser tratada como “[...] tecido de ignorância e de saber, de atraso e de

desejo de emancipação, capaz de conformismo ao resistir, capaz de resistência ao se conformar. Ambiguidade que

o determina radicalmente como lógica e prática que se desenvolvem sob a dominação”. (CHAUÍ, 1987, p.124).

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local), existiu um lapso de tempo, uma história da qual o imaginário apocalíptico popular foi

apenas o seu preâmbulo. Não obstante, ter sido este lapso de tempo, esta história silenciada

pelos discursos culturalistas que pintavam as “culturas populares” e “tradicionais” como

estanques em sua passividade ou em sua oposição/contradição diante daquilo que elas não eram

uma “cultura de massa” numa sociedade moderna.

Discutir, pois, a cultura popular numa dialética entre “tradição” e “modernidade” a partir

da lógica do simbólico e do imaginário é atentar-se para uma visão relativizadora da alegada

passividade ou rebeldia das “massas populares”, procurando entender que o significado de um

signo de cultura não atua sobre nós como se fôssemos uma tela em branco que precisasse ser

preenchida, mas “é atribuído em parte pelo campo social ao qual está incorporado, pelas

práticas às quais se articula e é chamado a ressoar”.163

Neste sentido, compreendemos que para

que um elemento simbólico alcance sua ressonância, “faz-se necessário que ele esteja em

sintonia com os desejos e expectativas de determinada audiência” e atenda “às condições

necessárias para que consiga penetração em determinado campo social”.164

Bronislaw Baczko (1985) expressou melhor este problema ao formular o conceito de

“comunidade de sentido”. Para este autor, um organismo simbólico só encontra recepção e

audiência num determinado grupo se ele fizer parte de uma rede de sentido igualmente

partilhada por seus sujeitos. Este conceito faz-se importante neste estudo porque nos ajuda a

pensar a modernidade e o imaginário apocalíptico popular como expressões da cultura de

grupos específicos, ou seja, como um conjunto de representações simbólicas partilhadas por

uma “comunidade de imaginação” com uma identidade própria.

Em vista disso, podemos pensar que se por um lado o acesso aos meios educativos

formais institucionalizados e a aquisição de um instrumental ideológico hegemônico165

permitiam a uma elite instruída regional a assimilação do “moderno” aliada ao significado de

progresso material, econômico e cultural; a vida urbanizada e “civilizada” na cidade; ao

desenvolvimento tecnológico e científico e a fruição dos bens industriais de consumo que a

impelia atuar em conformidade com um projeto de modernização nacional, para a maior parte

da população cruzetense – e também para a grande maioria dos seridoenses em geral –

arredados dos processos educacionais deste período, o sentido de “moderno” tal como aparece

nas noções da “elite” muito pouco existia. Fazendo uso de uma metáfora apropriada, Araújo

163 HALL, Stuart, 2003, p. 258.

164 ZANFORLIN, Sofia, 2005, p.34.

165 Para os fins desta análise, consideramos como sendo “ideologia hegemônica” o sistema de representações,

normas e valores criado pelos grupos dirigentes (re)produzido pelas instituições ou aparelhos oficiais de cultura

(escolas, universidades, jornais, editoras e etc.) através dos quais aqueles se utilizavam para expressar sua visão de

mundo.

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expressou melhor este problema ao considerar que o letramento era “uma porta de passagem

para o tempo moderno [...] Uma porta sinuosa porque, nas condições de vida do sertanejo,

foram poucos os que reuniram os meios para seguir a jornada escolar. Muitos dos que ousaram

foram obrigados a desistir na hora seguinte”.166

O fosso deste contraste era ainda mais fundo com relação ao trabalhador do campo que

não só despossuía (ou possuía de forma mitigada) os instrumentos ideológicos que o

condicionava a pensar os símbolos de modernidade em seu contexto original, isto é, naquele

contexto que em sua origem foram levados a significar (a energia elétrica, o avião, o automóvel,

a moda, a televisão como benefícios do mundo moderno a serviço da civilização), como

também não dispunham dos seus meios aquisitivos e de fruição fazendo com que estes não

fossem articulados nem incorporados de uma forma homogênea em suas práticas cotidianas.

Neste sentido, podemos dizer que o processo de modernização capitalista para o homem

seridoense situado na tradição rural foi duplamente excludente. Duplamente, porque imerso em

seu analfabetismo (ou semi-analfabetismo) crônico, acabava sendo lançado para as margens de

seu processo de significação. E depois, porque diante das condições de pobreza e instabilidade

de vida em que vivia o trabalhador rural, era ainda mais empurrado para aquelas margens.

Contudo, temos ainda que considerar que mesmo para uma elite instruída e do mesmo

modo para uma inexpressiva parcela da população mais aquinhoada (aqui incluímos a pequena

burguesia agrário-comercial e industrial e uma incipiente elite urbana consumidora), esta

percepção do moderno era muito mais desejo, anseios de mudança, que práxis moderna

propriamente dita. Daí porquê optamos em falar no contexto histórico abordado de “sintomas”,

“sinais” e “percepção” de modernidade para referirmos à realidade histórica das pequenas

cidades seridoenses entre as décadas de 1950 e 70 em vez de experiência e vivência moderna.

Esta hipótese se fundamenta ainda mais no fato de que mesmo quando estes “sintomas de

modernidade” correspondiam a alguma práxis concreta, esta fora mais admitida nos círculos de

relações dos “mais jovens” considerados mais suscetíveis aos estímulos econômicos e sociais

emergentes, ficando “os mais velhos” vinculados à tradição familiar de onde adquiriam parte

considerável dos seus valores e conhecimentos.167

O quadro abaixo, elaborado a partir dos censos demográficos deste período, é elucidativo

em demonstrar a incipiência de uma sociedade de consumo local para os bens duráveis que

pode ser tomado como um demonstrativo para toda a região do Seridó. Além disso, ele nos

ajuda a entender por que os anos 1950 e 70 podem ser tomados como um período de maior

166 ARAÚJO, Douglas, 2006, p.234.

167 Cf. estudo de caso realizado por CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de, 1979, p.182-83.

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impacto dos símbolos de modernidade no imaginário local e regional, embora não possamos

certificar (de forma quantitativa) sua intromissão no mundo rural.168

Conforme deixa entrever os dados acima, podemos tomar a década de 1960 como o

período em que os símbolos de modernidade exerceram um maior impacto sobre o modus

vivendi da população cruzetense. Eles assinalam o ingresso da comunidade local na esteira de

uma sociedade de consumo dos bens simbólicos e por que não dizer na dinâmica do mundo

moderno. Também é o período que demarca uma maior penetração das “novidades

tecnológicas” no campo, embora seja o núcleo urbano seu ponto de maior convergência e

dispersão. Com a circulação de um número maior de automóveis na cidade os destinos

perscrutáveis entre as distâncias certamente diminuíram para os cruzetenses. Mas os meios de

transportes mais usados continuaram sendo ainda a tradicional carroça puxada a jegue, o

cavalo, a canoa e o jumento e quando muito a bicicleta, esta última uma inovação moderna (ver

imagem 07 em anexo). A lâmpada elétrica, quando se vulgarizou em 1966 causou

estranhamento. Costa e Zeferino169

trazem o caso de uma moradora da zona rural cruzetense

que, em visita a uma prima em Caicó (RN), ficara constrangida ao ser surpreendida com a

descoberta de que a luz elétrica não se apagava com um sopro. A lamparina e o lampião a

querosene ainda imperavam bruxuleantes na casinha do sitiante.

Apesar desse aceleramento, pouca coisa mudou no modo de viver do homem campesino.

Araújo (2006) destaca que até os idos de 1970 afora o trator de presença rara, pois só existia nas

grandes fazendas mais estruturadas da região, da capinadeira e do uso de alguns defensivos

agrícolas para combater as pragas eventuais das lavouras, os grandes açudes construídos com o

auxílio da engenharia moderna e o rádio de pilha ou a bateria transistorizada fora; no geral, a

168 Além do problema exposto, os censos demográficos deste período não fornecem informações continuadas para

todos os itens identificados no quadro, o que dificulta a análise comparativa entre as variadas épocas. 169

COSTA; ZEFERINO, 2008, p. 39-40.

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maior penetração do moderno no mundo da tradição rural no Seridó.170

No município de

Cruzeta (RN), por exemplo, até 1971 a maior parte dos agricultores locais já empregava o

sistema de pulverização contra as pragas171

, embora isso não tenha ocorrido sem algum receio

ou resistência. “Seu” Manoelzinho Dantas, agricultor aposentado de 82 anos e morador no Sítio

Cruzeta Velha, município de Cruzeta (RN), relata uma profecia que atribuíra a Padre Cícero e

que assolara a zona rural da cidade com a introdução do pulverizador nas lavouras.

Pade Ciço falava e meus pais diziam muito que nas eras que nós estamos, 70

pra cá, 60, nós ia comer tudo com veneno, tudo quanto comesse era com

veneno, por isso ia morrer todo mundo. Por que tudo quanto se come é com

veneno, é pulverizado.172

A modernização da agricultura chegava para muitos sitiantes sob o augúrio das velhas

profecias apocalípticas. Mas, se os defensivos agrícolas já faziam parte da rotina de trabalho de

muitos agricultores cruzetenses no despontar dos anos 70, o mesmo não se pode dizer com a

força mecânica nos trabalhos agrários.

O Censo Agrícola e Agropecuário realizado em 1970 pelo Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE) para o município de Cruzeta (RN) registrou que dos 346

estabelecimentos rurais informados, apenas 7 (sete), isto é, 2% do total, empregavam força

mista nos trabalhos agrícolas (o uso do arado e veículo de tração animal e mecânica) contra a

esmagadora maioria dos 98% remanescentes que utilizavam força humana e animal (a enxada

de mão, o cultivador e o arado puxado à boi ou a cavalo). Para o mesmo período, nenhuma

propriedade informou utilizar força mecânica exclusiva no trato da lavoura. No mais

a vida do homem do campo e de sua família continuava como dantes. A

semelhança de seus antepassados de centúrias idas, no princípio do inverno

arranhava a terra para preparar a produção e a colheita agrícolas. Quase nada

havia mudado, agora poucos se auxiliavam com tratores, alguns usavam a

carpideira e, a grande maioria, a enxada. Semear a terra e esperar o inverno

fertilizá-la era um gesto da memória hábito daquela e de muitas gerações

anteriores.173

Mas a década de 60 não marca apenas uma guinada da penetração dos valores e símbolos

capitalistas modernos na região. Ela também coincide com um período em que os terrores

escatológicos dos últimos tempos assumiram uma dimensão alarmante entre o povo. Em

fevereiro de 1962 o jornal “A Folha” de Caicó fazia esta constatação a despeito dos mais

recentes rumores sobre o fim do mundo propalado pela mídia.

A idéia de fim do mundo é dominante entre os habitantes do Globo. Há vários

170 ARAÚJO, Douglas, 2006, p.275.

171 GOES, op. cit. p.18.

172 Depoimento concedido pelo Sr. Manoel Anastácio Dantas, 82 anos, no dia 09 de Maio de 2013.

173 Idem, ibidem, p.274.

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séculos as criaturas humanas vivem inventando e prenunciando o dia desta

catástrofe universal. Dizem que o grande pregador Vieira já falava neste

acontecimento cósmico lá pelo século XVI. E então neste século XX esta data

tão falada já foi marcada algumas dezenas de vezes e com grande sensação nos

anos 60. Os rumores agora partiram dos astrólogos da Índia estendendo-se

também a todas as partes da terra. No Brasil muita gente está acreditando que

neste comêço de fevereiro o fim do mundo é inevitável. Os boatos na índia são

tão alarmantes que a população inteira se acha em pânico, o que acontece

também com algumas pessoas em nossa terra [...].174

Em um mundo cada vez mais integrado pelas novas tecnologias da comunicação, as

notícias e os acontecimentos que agitavam outras “bandas” remotas do planeta podiam cruzar

agora numa velocidade impressionante serras, mares e sertões.

Já no final de 1959, surgia com estardalhaço na mídia nacional um boato de que um

profeta americano havia preconizado que em 60 os negros virariam macacos e os brancos,

bananas. Em Cruzeta (RN) a radiodifusora paroquial chegou mesmo a divulgar o vaticínio na

cidade em sua programação vespertina para o terror das mentes mais crédulas.175

A profecia

logo caiu no “gosto” popular inspirando o frevo-canção pernambucano “Operação Macaco” de

Sebastião Lopes e Nelson Ferreira, na interpretação de Nerize Paiva, muito tocado nas rádios

locais como música carnavalesca.

Dizem que em 60 nego vai virar macaco

Ora vejam só que grande confusão

Se for verdade essa Operação Macaco

Penca de banana vai custar um milhão.

Quem mata um gato tem sete anos de azar

Tem nego como o diabo fazendo tchuí-tchuí

Se for verdade o que diz o profeta

O que seria de Pelé ou do Didi?

Nego é gente igual a gente

Muito preto existe pra ninguém botar defeito

Profeta toma jeito, cuidado com a negrada

Se ela te pega vai dizendo, olha a papada!176

Por ser considerada politicamente incorreta, a canção foi censurada em 1960 em pleno

carnaval da cidade, sendo proibida de ser executada em recintos públicos.177

Mas o seu aspecto

“escandaloso” e “assustador” estava mais no teor escatológico e cabalístico que a letra fazia

lembrar – o caos e a desordem horripilantes que se instalariam no mundo no final dos tempos –

174 Fim do Mundo. A Fôlha, Caicó/RN, 10 fev. 1962. p. 01.

175 Informação retirada do depoimento gravado pela Sra. Luizete Pereira de Assis Dantas em 22 de Janeiro de 2014

em sua residência no município de Cruzeta/RN. 176

Operação Macaco (Nelson Ferreira / Sebastião Lopes) – Frevo Canção. Nerize Paiva/ Orquestra de Clube da

Banda do 14º R.I (regimento de infantaria). Operação Macaco. Mocambo, Recife/PE, 1959. 177

Informação concedida pela Sra. Alexandrina de Oliveira Campus no dia 20/10/2009.

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que na simples insinuante questão racial que trazia. A memória social sabe bem revisitar seus

repositórios imagéticos à medida que as situações e experiências do presente os fazem

reaparecer e vir à tona. Quatro anos mais tarde do espalhafatoso sucesso de “Operação

Macaco”, a “rainha do xaxado” Marinês (1935-2007) levava até o radinho a pilha do mais

isolado sitiante o seu baião “Profecia de Padre Cícero”.

No ano 15 lá no juazeiro

Toda a noite nas missões

Meu padrinho dizia aos romeiros

Tempo bom não tem mais não.

E depois da confissão

O padre santo dizia

Que na era de sessenta

Muitas coisas a gente via

Muito pasto e pouco rastro

Quem for vivo tem que ver

Vi também muitos romeiros

Tão satisfeitos dizer

Que só foi ao juazeiro

O meu padrinho conhecer.

Um romeiro perguntou

Padrinho eu quero saber

Para o mundo se acabar

Qual é o sinal que a gente vê

Meu padrinho Ciço disse:

Meu filho preste atenção

Quando o filho for contra pai

E nação contra nação.

É sinal que o fim do mundo

Ta bem pertinho meu irmão.178

Com a expansão dos meios de comunicação de massas na região, os medos apocalípticos

do fim do mundo deixavam os guetos cristãos para ganhar a “cultura popular”. Mas isso se

deveu mais em parte à popularização do rádio do que da penetração da imprensa jornalística ou

da televisão nos lares sertanejos seridoenses. (Ver imagem 08 em anexo).

A massificação do rádio e o aparecimento da TV nos anos 60, sem dúvidas, trouxeram

para o habitante do campo e, sobretudo para o da cidade, novas percepções do espaço e do

tempo, já que eles proporcionavam a população local o contato com a realidade de outros

“mundos” desconhecidos e sobressaiam como vetores de mudança da mentalidade e dos

costumes. Em 1971, escrevia Terezinha Goes a respeito do uso do rádio entre os cruzetenses:

“não o usamos para entrar em contato com o mundo apenas na cidade, mas também já o utiliza

178 Profecia do Padre Cícero (Jacinto Silva / Onildo Almeida) – Baião. Marinês. Siu, siu, siu, Marinês e sua

gente. Faixa 04. RCA Victor, 1964.

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para o mesmo fim, a população rural”.179

Para além de sua utilidade midiática, o rádio também exerceu um forte papel civilizador e

modernizante. Através de suas ondas magnéticas, muitos munícipes podiam acompanhar tanto

na cidade como nos sítios e fazendas do município os cursos de Madureza Ginasial ou de

alfabetização ministrados pelo Movimento de Educação de Base (MEB) para as massas

analfabetas, sonhando, quem sabe algum dia, terem a capacidade de aprender, pelo menos a

assinar o próprio nome.180

Mas o rádio não foi apenas um “poderoso disseminador de progresso e civilização entre o

nosso povo”, como verificou Terezinha Goes.181

Estendendo suas ondas sonoras até o humilde

casebre do roceiro (quando a muito custo o possuía), ele também foi um notável veículo na

difusão de medos e tensões entre o povo e um importante disseminador dos terrores

apocalípticos na região, já que permitia alcançar um número cada vez maior de receptores das

mais diferentes procedências e escolaridades e chegar a lugares só acessíveis por estradas

carroçáveis e poeirentas. No tocante a isso, registrou Terezinha Goes no início dos anos 70: “é

comum ouvir-se de muitos, quer na zona rural quer na zona urbana, comentários sobre notícias

ouvidas, não só a respeito do nosso País, mas também do que se passa pelo mundo, até mesmo

sobre as guerras que ora têm lugar no mundo oriental”.182

O jornal “A Folha”, editado pela Diocese de Caicó, também traz um excerto de 1961 que

menciona o rádio como um importante propagador dos medos escatológicos do fim do mundo

na região ao lado da imprensa jornalística.

É muito comum hoje em dia a divulgação de profecias a respeito dos

acontecimentos do mundo. Frequentemente os jornais trazem e os rádios

anunciam que profeta fulano em tal parte da terra prediz acontecimentos

sensacionais no curso normal das coisas sempre com feitio catastrófico.183

Em11 de fevereiro de 1962, o mesmo noticiário registrava na crônica da semana o estado

de assombro e angústia que assaltou a população da região com a propagação de uma recente

profecia que previa acontecimentos caóticos na ordem natural das estrelas com a terrível

conseqüência de uma destruição universal.

NÃO é a primeira vez que, a título de propaganda e novidade, se propalam os

mais tolos boatos sobre o fim do mundo, e criando nos mais fracos um estado

de angústia e chocante expectativa. Parece que já é a décima vez que o mundo

se acabou... pelo menos nas manchetes dos jornais e nas mentes dos falsos

profetas do século vinte. [...] Enganaram-se redondamente os ilustres

179 GOES, Terezinha de J. M., 1971, p.26.

180 Idem, ibidem.

181 Idem, ibidem.

182 Idem, ibidem.

183 As profecias nos nossos tempos. A Fôlha, Caicó/RN, 18 de fev. 1961, p. 01.

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astrólogos da velha Índia sendo vítimas de seus próprios sonhos no idílio

amoroso com as estrelas do céu. Encontraram-se os astros e o mundo não se

acabou...184

Em um mundo cada vez mais marcado pela proliferação de seitas e pela “perda de centralidade”

da religião em conferir significado à existência do homem e à sua experiência de vida185

, o

imaginário apocalíptico popular surge como campo de disputa ideológica entre Igreja católica

(proprietária do periódico noticioso) e as ciências esotéricas em franco prestígio e expansão no

mundo contemporâneo. Velha propagadora dos medos escatológicos na região, sob o signo da

romanização, a Igreja agora se esforçava para combater os antigos temores entre o povo.

Mas de onde vinham estes medos no descambar das eras do século XX? Certamente eles

vinham menos das novas técnicas de transmissão da cultura que de temores e experiências

anteriores. O rádio e a imprensa não deram novos teores aos pavores do fim do mundo na

região, mas ao levar suas mensagens com algum efeito a uma audiência sem precedentes foram

responsáveis em inflamá-los e reavivá-los na imaginação das pessoas, forjando muitas vezes

uma atmosfera aterrorizante.

A propalada passagem do cometa Kohoutek no final de 1973, alardeado pela mídia de “o

cometa do século”186

, provocou uma onda de pânico nas populações. Anunciado pelo rádio

como um evento de proporções colossais, não foram poucos os que se deixaram impressionar

com a notícia, havendo quem acreditasse agendado para breve a apoteótica consumação das

eras. (Ver imagem 09 em anexo).

Desde os tempos mais antigos os cometas eram vistos como mensageiros de maus

presságios, podendo anunciar catástrofes, desgraças, mortes de governantes, pestes, guerras,

eventos extraordinários e interferir negativamente nas colheitas.187

Na Idade Média a passagem

de um cometa era uma prova “de que o céu estava descontente, que algo se anunciava, ou então

um convite a um maior respeito ás ordens divinas”.188

Difundidos como augures nas velhas profecias que percorreram os sertões nordestinos de

antanho, os cometas e outros eventos astronômicos como os eclipses (a exemplo do ocorrido

184 BALBINO. Pe. Antônio. E o mundo não se acabou, A Fôlha, Caicó/RN, 11 fev. 1962. Crônica da Semana, p.

04. 185

Sobre a “perda de centralidade” da religião no mundo contemporâneo cf. Maria Lucia MONTES, As figuras do

sagrado: entre o público e o privado in. SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da vida privada no Brasil,

contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 64-171. 186

Sobre a passagem do cometa Kohoutek em 1973 cf. Kohoutek, o cometa do século. Disponível em:

<http://herdeirodeaecio.blogspot.com.br/2012/02/kohoutek-o-cometa-do-seculo.html>. Acesso em: 25 jan. 2014 187

Cf. GANIMEDES, Gério, 2011, Cometas: um pouco de história e estrutura destes mensageiros de catástrofe.

Disponível em: <http://projetoquartzoazul.blogspot.com.br/2011/09/cometas-um-pouco-de-historia-e.html>.

Acesso em: 25 jan. 2014. 188

DUBY, George, 1998, p.138.

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em 1940), transformaram-se em sinais apocalípticos. Uma xilogravura de um autor

desconhecido retratou a ocasião de assombro e confusão que recaia sobre as populações

sertanejas com a passagem destes viajantes solitários do empíreo. Na ilustração, uma mulher

ajoelhada faz rogos aos céus com as mãos estendidas para o alto enquanto um homem em

debandada corre em pavoroso. No lado esquerdo da gravura, um jovem parece desmaiar de

asco. Na tradição oral da região, era esta competência em advertir os homens da proximidade

do Fim do Mundo que prevalecia na memória coletiva sobre tais prodígios. (Ver imagem 10 em

anexo). E foi por meio destas referências tradicionais que a alardeada passagem do Kohoutek

em 1973 foi interpretada.

A despeito da angustiante expectativa formada em torno do fenômeno, as rádios locais

mais fizeram reforçar o medo, empregando como ojeriza ao evento o seu sensacionalismo

estridente. Uma moradora do município de Cruzeta (RN) de 64 anos relata com detalhes o

estado de pavor e angústia que lhe invadiu os sentimentos com a repercussão da notícia pelas

ruas da cidade.

O rádio divulgou que seria o fim do mundo [...] Na época só o que se falava

era sobre este cometa. Que a passagem dele ia ser o final do mundo. E eu

fiquei impressionada com aquilo. Aonde eu via as pessoas conversando, se

tivesse duas pessoas conversando, eu tinha que ir lá onde elas estavam pra

saber qual era o assunto. Se estavam falando do cometa. Eu imaginava que

esse cometa fosse como uma bola de fogo, pois as pessoas comentavam que o

mundo ia se acabar com fogo. Então eu pensava que a passagem dele seria

essa bola de fogo que ia explodir no meio do céu. No início eu até perdia a

pressão por que eu tinha medo do que comentavam, pois diziam que os que

eram amancebados iam correr nas portas [das casas] dois dias antes [da

explosão do cometa] pedindo socorro. Tudo isso o povo comentava [...]

Falavam que quando esse cometa aparecesse no meio do céu, então os anjos

com as trombetas iam tocar anunciando o fim do mundo [...] Eu até procurei o

padre para conversar com ele. 189

Gestado e transmitido por predicadores do povo durante séculos de experiências, os

temores do fim do mundo propagado pelas rádios encontravam ressonância no arsenal

simbólico de seu público, especialmente entre os mais familiarizados com o tema. Ele fazia

parte de uma rede de constituição do imaginário sertanejo que teve na literatura de cordel e nas

gestas dos trovadores populares um de seus veios mais fecundos.

Até o final da primeira metade do século XX quando o rádio, o jornal propriamente dito e

os novos meios de transporte só timidamente começavam a penetrar a região, as editoras de

cordel espalhadas pelas capitais e cidades interioranas do Nordeste já se antecipavam na

divulgação dos fatos acontecidos repassando-os em forma de versos para os moradores do

189 Depoimento concedido pela Sra. Luizete Pereira de Assis Dantas, 64 anos, no dia 22 de Janeiro de 2014.

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sertão. Seja em sua versão impressa (folhetos) ou na voz maviosa dos cantadores ambulantes

(poesia oral), a literatura de cordel veio se constituindo desde o final do século XIX num

importante veículo de comunicação e transmissão da cultura entre as massas de sertanejos

rurais ao converter-se no “primeiro jornal do nosso sertanejo”.190

Levados e declamados nas feiras livres e nos mercados das vilas e cidadezinhas sertanejas

por vendedores ambulantes; recitados ou entoados pelos poetas populares191

ou alfabetizados

nos serões familiares, os folhetos de cordel também foram importantes veículos na transmissão

dos medos escatológicos na região.192

O interregno entre as décadas de 1930 e 70 marca o período de maior produção e

distribuição desta literatura no Brasil. Época em que tanto os poetas populares de bancada

(cordelistas), quanto os de auditório (cantadores) produziram massificamente os seus folhetos

consolidando o formato que possui até hoje (impressos de 8 a 16 páginas geralmente de 15 a

17cm. x 11cm. com capas ilustradas com xilogravuras)193

. É também deste período que se

constatam as maiores realizações acerca de temas que envolvem as figuras de Padre Cícero,

Frei Damião e aqueles de caráter mais proféticos ou apocalípticos (os chamados sermões

proféticos ou cordéis do fim do mundo) que trazem xilogravuras em suas capas enfatizando tais

conteúdos.194

Esta produção irá ganhar espaços cada vez mais amplos nas comunidades rurais e

não somente nestas, à medida que estes trovadores do povo viajam de vila em vila, de cidade

em cidade, divulgando seu trabalho, vendendo seus folhetos e cantando ou recitando as

histórias que ouviram ou presenciaram na Terra Santa do Padre Cícero ou da boca de seus

romeiros.

A feira livre das pequenas vilas e cidadezinhas do interior torna-se num local ideal para a

difusão destas criações e ponto estratégico de suas aparições, já que esta é um lugar por

excelência da sociabilidade, espaço de maior circulação de mercadorias, idéias e pessoas.

Espaço também “das conversas, das tradições, dos encontros, das transgressões, das

experiências, das compras, vendas e permutas, das jocosidades”.195

O senhor Pedro Pereira de

53 anos, professor domiciliado em Cruzeta (RN), recorda em suas memórias a passagem dos

vendedores de folhetos pelas feiras da cidade entre anos de 1960 e 70 quando ainda habitava a

zona rural do município. Em suas recordações, ele descreve a atmosfera de medo, apreensão e

190 LOPES, José de Ribamar, 1994.

191 O termo é aqui utilizado para designar tanto os cordelistas (poetas de bancada produtores da poesia escrita)

quanto os cantadores (poetas de auditório que (re)produzem a poesia oral). 192

Ver RODRIGUES, Linduarte Pereira, O Apocalipse na literatura de cordel: uma abordagem semiótica,

Dissertação (Mestrado em Letras), Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2006. 193

ALBUQUERQUE, Maria E. B. C. de, 2011, p.26-27. 194

RODRIGUES, L. Pereira, 2006, p.82. 195

MORAIS, Ione R. Diniz; ARAÚJO, Marcos A. A. de, 2006, p. 247.

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reverência que cingia o comportamento das pessoas nas ocasiões em que seu pai, Sebastião

Pereira (1925-2006), e seu parceiro de embolada, Gaudêncio dos Santos, entoavam ou

recitavam nos serões familiares os sermões proféticos do Padrinho Cícero adquiridos nas feiras

da cidade ou trazidos do Santo Juazeiro.

Nós não tínhamos meios de comunicação. Os meios de comunicação eram

aquelas pessoas que saiam contando as histórias do que aconteciam, às vezes

acrescentando e as pessoas ficavam com aquilo na mente. Tinham muitas que

traziam de Padim Cícero [do Juazeiro]. Padim Cícero falava: “as estradas vão

se cobrirem de luto”. “O cão, a besta-fera vem chegando com os olhos

piscando de fogo.” E as pessoas criavam e se criavam naquilo, vamos dizer,

com aquele medo de coisa grave que ia acontecer. Então quando as pessoas se

reuniam e eles [Sebastião e Seu Gaudêncio] cantavam [aquilo], as pessoas

ficavam arrepiadas, admiradas: “vige Maria”! Chega se benzia, quando eles

improvisavam os versos. Tinha muita gente que fazia o “sinal da cruz” com

medo daquilo, se afastando [...] E como não existia meio de comunicação, eles

acreditavam em muitas coisas que aqueles viajantes, aquelas pessoas passavam

avisando, divulgando no dia da feira [...] Eram pessoas que vinham no carro da

feira. E iam vendendo os versos e eles iam contando aquelas histórias,

repassando. E aquelas pessoas que estavam ali ao lado iam ouvindo e

chegavam em casa e repassavam para os filhos, para aquelas pessoas que não

viram, que não estavam presentes.196

Granjeando espaço nas ocasiões de encontro e sociabilidade organizados nas casas dos

sítios ou das fazendas da vizinhança, os “cordéis do fim do mundo” conferiam ao grupo de

parentelas um sentimento de maior pertencimento e coesão social. Aí eles desempenhavam um

papel eminentemente conservador, integrador e mantenedor de estruturas e valores tradicionais

ao serem colocados como esteio de uma ética moral cristã direcionada à conservação de normas

e preceitos aceitos coletivamente pelo grupo, ao mesmo tempo em que também se buscava com

eles inibir os desvios e as formas reprováveis de condutas. A preferência dada pelos poetas

populares a temas que versavam sobre os maus presságios celestiais como as noites de escuro,

os estrondos (tremores de terra), a vinda da besta-fera e do capa-verde, o fim do mundo,

guerras, carestias, fome, pestes e revoluções, confirma o papel e o prestígio destes artistas do

povo como emissários de valores tradicionais no interior destes grupos. Sua formação

geralmente iletrada (a maioria deles, quando muito, aprendiam a ler e a escrever de forma

espontânea ou cursando apenas alguns meses de escola), fazia com que se utilizassem dos

antigos métodos (“o medo, o diabo, os castigos, através dos exemplos, das profecias e dos

avisos”)197

como arma simbólica de um poder persuasivo. Saber ler, anunciar e interpretar

avisos proféticos num pélago de analfabetos soava quase como um dom divinatório.

A referência recorrente a figura do “padrinho Ciço” ou do “padrinho frei Damião” (como

196 Depoimento concedido pelo Sr. Pedro Pereira da Silva, 53 anos, no dia 03 de Novembro de 2009.

197 LIMA, Marinalva V. de, 2000, p.86.

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também era familiarmente chamado pelos católicos seridoenses o missionário capuchinho frei

Damião de Bozzano) reforçava mais ainda na lira dos poetas populares a sua legítima condição

de intérpretes e anunciadores de coisas futuras arrogadas aos “santos padrinhos”, fazendo com

que, perante o auditório de seus “afilhados” (devotos), suas palavras fossem ouvidas quase

como na presença dos próprios “conselheiros”. A “voz” da autoridade do padrinho, evocada

pelo estro dos trovadores, buscava incutir, em seu auditório, a memória de sua presença real

tornada corrente em seus versos. Neste momento, já não eram os poetas que falavam ao seu

público, mas o “padrinho” falando aos “afilhados” pelos lábios de seus porta-vozes. Como na

fala de uma antiga moradora cruzetense devota do Padre Cícero que ouvira os “conselhos

proféticos” do padrinho da boca de seus antigos narradores (poetas populares), em Juazeiro do

Norte (CE), quando para lá partiu “de morada” com a família em 1960.

Eles contavam a nós: “olhem meus romeirinhos, o meu padre Ciço dizia que

vocês escutassem nós, os romeiros velhos daqui, os moradores velhos. [...] Aí

vocês contem o que eu contava. Não vão mentir. Diga a verdade. Falem a

verdade o que o padre Ciço falou.198

Sob o peso da aquiescência do padrinho (mais imaginária que concreta), os poetas

populares procuravam legitimar sua narrativa usando como estratégia de convencimento a

“santa verdade” “reproduzida” do discurso de seus “conselheiros”. Através desta, eles

interpretavam um mundo que em sua vista já se encontrava “invadido pelos representantes da

besta-fera, [...] um “Mundo em desmantelo”, submerso em pecados” que logo será descortinado

pela “verdade” de sua poesia profética.199

Assim, através das gestas dos poetas populares, o

cordel do fim do mundo equiparava avisos, conselhos e exemplos com a palavra poderosa e

eficaz dos antigos profetas bíblicos que à semelhança dos frades pregadores de missões de

outras épocas, tinha de surtir algum efeito na assistência ao serem proferidas.200

Eram “palavras

vivenciadas como acontecimentos atuais, não simples memória ou recordação: as coisas estão

acontecendo ainda hoje”.201

Colocadas na boca do Padrinho Ciço a maneira de aviso ou profecia; secundadas pela

viola ou pelos cordéis dos poetas e semeadas pelo rádio e pela imprensa, as profecias

apocalípticas no novo século encontravam na memória coletiva um terreno fecundo para se

procriar. Elas foram contemporâneas de um período em que esses meios de difusão da cultura

marcaram com maior impacto a mentalidade dos seridoenses e dos cruzetenses de modo

198 Depoimento concedido pela Sra. Antônia Maria da Conceição (Dona Antônia), 78 anos, no dia 23 de dezembro

de 2009. 199

LOPES, Régias, 1994, p.46. 200

BARBOSA, F. S. de Alencar, 2007, p. 63. 201

Idem, ibidem.

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particular, influenciando com uma força ascendente o imaginário das populações campesinas.

Mas a que devia sua eficácia poderosa em insuflar na imaginação popular medos tão antigos?

É certo que os mecanismos da memória desempenharam um papel importante na

ascensão dos medos escatológicos na região, sobretudo nos anos 60. Um verbete à guisa de

profecia do fim do mundo publicado pela “A Folha”, de Caicó, em dezembro de 1960, chega

mesmo a tecer uma comparação entre a conjuntura do momento e o tão celebrado Ano Mil da

era cristã em que “muitos esperavam ouvir as trombetas divinas conclamando a humanidade

para o julgamento final no vale de Josafá.”202

No entanto, o que importa visualizar aqui não é

apenas a dimensão da longa duração que este imaginário comporta, mas o momento em que se

manifesta como fenômeno histórico. O imaginário apocalíptico popular não é uma

“sobrevivência” simbólica que transcende incólume os tempos como o descreveram os

folcloristas. Mas re-significado e alterado pelas experiências do presente reflete medos sempre

contemporâneos, na medida em que também recebe as influências do tempo em que abrolham.

É, portanto, expressão da visão de mundo de uma “comunidade de imaginação” que o (re)cria

para dar sentido as suas formas complexas de existência e interpretar as ocasiões de crises e

incertezas que cingem os sentimentos humanos diante do desconhecido, do (in)conformismo e

do previsível. Se eles foram mais freqüentes em determinadas conjunturas históricas que em

outras, é porque abundou nelas o sentimento de que alguma coisa andava mal e que o pior

estava ainda para acontecer a qualquer instante.

Para muitos sertanejos seridoenses e cruzetenses da segunda metade do século XX, esse

mal tinha um nome, ou pior, um corpo e um rosto, embora pudesse assumir muitas formas e

contornos. Ele fora mais presente nesta conjuntura porque se acreditava que o diabo, Satanás, o

inimigo de Deus já andava solto pelo mundo causando desordens, malefícios e seduzindo as

pessoas com suas invenções e artifícios danosos. As novidades da história que ganhavam

espaço no cotidiano das cidades era agora uma prova de sua presença ardilosa e indício certo de

que a humanidade já se encontrava às encostas do fim das eras.

202 Mais uma profecia do fim do Mundo. A Fôlha, Caicó/RN, 17 dez. 1960. p. 01.

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CAPÍTULO 3. “O MUNDO EM DESMANTELO”: MODERNIZAÇÃO E

ESCATOLOGIA EM CRUZETA (RN)

3.1. NA SENDA DO PROGRESSO

No transcurso dos anos 50 para os anos 70 do século XX, a cidade de Cruzeta passava por

muitas mudanças. As novidades do século que chegavam sob rodas davam o tom de “enigma”

ao tempo que corria. No alto da majestosa torre da matriz a presença do relógio mecânico com

suas badaladas estridentes passava a disputar com o “tempo da tradição” a ordem do dia.203

O

comércio da cidade açodado pela bem-sucedida experiência do algodão “Cruzeta”, o melhor do

país para uma gazeta carioca204

, tomava novo fôlego.205

Os principais logradouros da cidade

ladrilhados de areia e pedregulho206

recebiam pavimentação e nova iluminação elétrica.207

As

estradas carroçáveis que franqueavam os principais acessos a recém-emancipada comuna208

ganhavam outro aprumo e revestimento. Na sede da jovem municipalidade pontilhavam na

rugosidade do espaço as “modernas” representações do novel poder constituído.209

203 De acordo com Terezinha Goes (1971, p.65) o “relógio da igreja” foi adquirido pelo senhor Antônio Alves da

Cunha e colocado na torre da matriz de Nossa Senhora dos Remédios em 1956 para “fornecer as horas a todos os

cruzetenses”. Para a aquisição do aparelho foi empregado a renda angariada com as exibições de filmes que fazia

às quartas e domingos da semana com esta finalidade. Desta campanha filantrópica nascia, em Cruzeta, o “Cine

Relógio” que funcionou durante algum tempo no Grupo Escolar Otávio Lamartine. (CAMPOS & MORAIS, 2001,

p. 59). Com a presença do relógio no ponto mais alto da cidade (a torre da matriz), a rotina no núcleo urbano antes

orientada pelos elementos da natureza à semelhança da vida no campo (o galo que canta, a projeção da sombra, a

posição do sol e da lua, a noite que começa a cair eram os marcos utilizados para fazer a leitura das “horas”) foi

dando lugar ao tempo mecanizado, ritmo que regula as atividades nas sociedades capitalistas. 204

Num artigo publicado em maio de 1954, em “A Folha” de Caicó (RN), intitulado Algodão “Cruzeta”, o redator

da matéria menciona um tópico que leu no “Diário de Notícias” do Rio de Janeiro em que este reconhecia “uma

verdadeira revolução no cultivo do algodão “mocó”, o melhor produzido em terras brasileiras [...] graças aos

trabalhos da Estação Experimental de Cruzeta”. Algodão “Cruzeta”, A Fôlha, Caicó/RN, 29 mai. 1954. p. 01. 205

É também “A Folha” de Caicó numa redação veiculada em novembro de 1954 que registra o estado de ânimo

dos plantadores de algodão diante da alvissareira safra do ano. “A safra deste ano está colhida. As usinas,

superlotadas, trabalham dia e noite. O preço, se não acompanhou o ritmo elevado dos demais produtos, não foi dos

piores. Compensou os sacrifícios e suores dos plantadores [...] Formos informados de que a semente do algodão

“Cruzeta” tem sido quase toda exportada para Pernambuco e para outros estados vizinhos...” Vamos plantar

algodão. A Folha, Caico/RN, 11 dez. 1954. p.01 206

Sobre a situação da cidade no período anterior a pavimentação de seus principais logradouros, relembrava

Terezinha Góes numa carta aberta para a redação de “O Cruzetense” em 1978: “Suas ruas, eram cobertas de

pedregulho, que de repente acabava com as solas dos nossos sapatos...” Ainda sobre isto trazem Costa e Zeferino

(2008, p.84): “pelas ruas de terra passavam bois, charretes, onde hoje são substituídos pelos eletrizados motores de

automóveis”. 207

Data da administração do Prefeito Dr. Sílvio Bezerra de Melo (1955-1960), primeiro a exercer mandato

constitucional no município, a pavimentação e a posteação nova das principais ruas da cidade e a aquisição de um

motor e da Casa de Força e Luz responsável pelo fornecimento de energia elétrica a nova comuna. (GOES, 1971,

p.89). 208

Até outubro de 1953, Cruzeta se mantinha como vila juridicamente subordinada a vizinha cidade do Acari

(RN), passando a figurar dentre os municípios seridoenses pela Lei nº 915 de Novembro de 1953. 209

No interregno entre as décadas de 1950 e 60 foram instalados na sede do município, dentre outros equipamentos

públicos, as seguintes organizações/instituições: Prefeitura e Câmara Municipais (1954); Junta de Alistamento

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Estimulada pelo ritmo em curso a vida sócio-cultural granjeava novo impulso. O “Cine

Relógio”, de concessão de Seu Cunha, proporcionava aos moradores citadinos uma impressão

de novidade e movimento ao tempo que chegava.210

O Grêmio Lítero Esportivo Cruzetense (o

GLEC) inaugurava entre os jovens um espaço de lazer e entretenimento (diga-se para o regozijo

da mocidade e a indignação dos “conservadores”).211

Na “camarinha” de suas casas as modistas

experimentadas ensaiavam as últimas tendências do século e nas ruas do comércio e nos

subúrbios da cidade ponteavam os “lugares” de sociabilidades “suspeitas”.

A modernidade chegava assim como sintomas e sinais de um “novo tempo” que se

descortinava. Abrindo horizontes (físicos e imaginários) na velha paisagem rural da caatinga,

interligava mundos, mistérios, desejos, sonhos, receios com sua velocidade automotiva.

Remodelando traços de antigos costumes e instituindo outros “marcos civilizatórios”,

confrontava espaços, códigos, valores, referências, interferindo, destarte, na subjetividade dos

sujeitos. O sentido a que assumia para os moradores locais, não era compartilhado por todos de

um mesmo modo. O imaginário apocalíptico, construído por homens e mulheres cruzetenses

acerca desta nova realidade em descortino na cidade, revela como os efeitos da modernização

atingiram a muitos de diferentes maneiras, reverberando neste espaço como um problema. Se

para alguns estes eram sentidos com otimismo e euforia, para outros predominava um

sentimento de hesitação e desconfiança. Hesitação diante do novo, do incompreendido.

Desconfiança diante do estranho, do desconhecido. Esta circunstância contrastante nos faz

pensar a “modernização” como uma construção de sentidos, uma prática, um discurso e,

portanto, uma “tradição” que se reproduz numa determinada classe ou grupo social.

Militar (1954); Agência Municipal de Estatística (1956); Sociedade Educadora (1957); Associação de Proteção à

Maternidade e à Infância (1958); Matadouro Público Municipal (1959); Comarca de Cruzeta (1960); unidade da

Associação Nacional de Assistência Rural do Rio Grande do Norte – ANCAR/RN (1965); Escola Estadual

Joaquim José de Medeiros (1965); Casa dos Correios e Telégrafos (1969). 210

O “Cine Relógio” surgiu nos anos 1950 a partir de uma campanha idealizada pelo Sr. Antônio Alves da Cunha

(Seu Cunha) com a finalidade de adquirir um relógio para a torre da Matriz de Nossa Senhora dos Remédios. Daí a

origem do nome. (Ver nota de rodapé 251). Ainda a este respeito, Campos e Morais (2011, p. 33) notificam que

“após terminar a campanha do relógio da torre da Igreja [Seu Cunha, a quem pertencia a licença de exibir os

filmes] cedeu para o grêmio [Lítero Esportivo Cruzetense] a concessão do cinema, cujos filmes vinham de Natal e

eram exibidos no Grupo Otávio Lamartine, duas vezes por semana.” A máquina cinematográfica foi adquirida pelo

Sr. Fernando Melo do Nascimento (na época chefe da Estação Experimental do Seridó) a quem incumbia a Seu

Cunha a responsabilidade de exibir os filmes na sede do município. (Idem, ibidem, p.82). 211

Segundo Campos e Morais (2011, p. 32-33) o Grêmio Lítero Esportivo Cruzetense (GLEC) surgiu da

necessidade entre os jovens locais em conquistar espaços de lazer sócio-recreativos até então inexistentes no local.

Inspirado nas agremiações estudantis dos colégios da capital onde estudavam alguns jovens cruzetenses, o clube

foi fundado em 1959 passando a funcionar primeiramente numa garagem localizada nos fundos da casa do Sr.

Celso Azevedo e sediado posteriormente na Associação Educadora de Cruzeta (Clube Municipal). Devido à

realização de bailes dançantes (os souarês) “onde as moças que sabiam dançar ensinavam aos rapazes e vice-

versa”, o grêmio passou a ser alvo de reprovação e escândalo “por parte de algumas pessoas da sociedade”.

Rememorando a importância do grêmio para os jovens locais assim expressou Terezinha Góes em um opúsculo

lançado por ocasião da Festa de Nossa Senhora dos Remédios (padroeira de Cruzeta) do ano de 1989: “Os

conservadores de curta vistas anatematizavam-no. Os jovens, por sua vez, abençoavam-no”.

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Recentemente, em um artigo, o geógrafo Denis Castilho chamou a atenção do mundo

científico para o uso exagerado dos conceitos de “modernidade” e “modernização”212

e até de

sua banalização nos debates acadêmicos e políticos denunciando como estes têm sido

empregados para justificar e até “naturalizar” “modelos” socioeconômicos “necessários” para o

desenvolvimento ou “progresso social”. Ao atingir a esfera do plano ideológico hegemônico,

Castilho (2010) observa que a “modernização” acabou “garantindo sua aceitação não só no

meio social como também no científico” resultando numa percepção “naturalizada” de sua

expansão territorial pelo mundo.213

Em suas reflexões, ele ainda tece algumas críticas aos

autores que “abordam o tema a partir de uma concepção reducionista de espaço e de

interpretações por meio dos pares opostos e separados – tradicional/moderno, antigo/novo [...]

etc., como se a complexa dinâmica da modernização pudesse ser enquadrada em interpretações

dualistas”.214

Para o autor, que busca estabelecer este debate a partir do viés espacial e político,

“a crítica deve, também, caminhar no sentido de questionar a quem serve o modo de

modernização que se expande pelo Brasil. É preciso falar de processos, mas também nomear

seus atores”.215

Neste sentido ele demonstra que “essa lógica está diretamente relacionada aos

interesses e determinações em jogo dos atores hegemônicos” e não se restringe a uma

determinada região ou lugar216

. Por ser uma escolha, uma opção feita por uma determinada

classe social, a modernização envolve um conjunto de valores e práticas e se apresenta com

forte caráter ideológico “capaz de impor mudanças radicais sobre os valores tradicionais”

expressando as ações deliberadas dos sujeitos sobre os espaços.217

No território seridoense, este processo pode ser observado no âmbito das cidades a partir

da década de 1940218

, haja vista vir a ser o núcleo urbano o lócus preferencial de atuação das

212 Para Denis Castilho (2010, p. 127-128), “o conceito de modernização é abrangente, já que está relacionado a

um conjunto de transformações que se processam nos meios de produção, mas também na estrutura econômica,

política e cultural de um território [...] [envolvendo] um conjunto de valores que advindo de uma determinada

classe social, se apresenta com forte caráter ideológico”. Explicitando melhor o conceito, o autor pondera que

“modernização” é a “representação teórica do processo de imposição das relações sociais de produção pelas classes

hegemônicas”. Ou seja, trata-se, portanto, do próprio “processo de expansão territorial do modo de produção

capitalista”. 213

Idem, ibidem, p.134. 214

CASTILHO, Denis, 2010, p.127. 215

Idem, ibidem, p. 133. 216

Idem, ibidem, p. 131. 217

Idem, ibidem, p.129. 218

De acordo com MORAIS (2006, p. 80-83) “ao final da década de 1930, a dinâmica do rural ainda eclipsava a

vida citadina, a despeito da economia algodoeira ter impulsionado timidamente a vida de relações e das políticas

públicas implementadas, principalmente, pelos governantes filhos da terra, em termos de açudagem, educação,

saúde e vias de transportes, algumas efetivadas no cenário urbano.” Mas foi só a partir da década de 1940 que a

“trajetória ascensional do Seridó” demarcaria “um ciclo de prosperidade econômica e prestígio político”

enveredando definitivamente “pelas trilhas da cidade”.

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elites locais.219

Colocadas sob a mira das lideranças emergentes (muitas delas recrutadas da

velha oligarquia algodoeiro-pecuarista), as cidades passam a ser o epicentro de mudanças

estruturais, isto é da transformação capitalista no mundo, que começam a serem implementadas

para atender os novos anseios de poder e (re)organização das elites agora comprometidas com o

discurso da modernização.220

Pautado por este novo ideário é que elas (re)montam seus novos

projetos civilizacionais impondo aos velhos “aparatos” rurais as (re)inovações de seus

mecanismos simbólicos de dominação e controle sintonizando-os com as tendências externas

em curso orientadas pelo binômio industrialização/urbanização. A opção pela cidade incide

sobre o fato de ser ela ideada como a melhor “ferramenta” para a consecução de seus

desígnios.221

No município de Cruzeta, a administração do engenheiro-agrônomo Sílvio Bezerra de

Melo atesta como a expansão modernizadora deflagrada em escala nacional atingiu este espaço

com seus rebatimentos. Eleito primeiro Prefeito Constitucional da recém emancipada comuna

seridoense no pleito eleitoral de 1954, seu governo sinaliza a opção das elites locais pela senda

do progresso. Dois marcos científico-culturais foram decisivos para a integração deste espaço

nos novos projetos civilizatórios das elites regionais emergentes: a instalação da Estação

Experimental de Algodão do Seridó222

nos primórdios dos anos 1930 nas proximidades de seu

núcleo urbano223

e a conquista técnico-científica do algodão denominado “Cruzeta” (uma

219 Por elites locais enfatizamos as “figuras de vulto” que se destacaram no cenário político-econômico, social e

intelectual representados nas pessoas de políticos, comerciantes, eclesiásticos, proprietários rurais, médicos, juízes,

advogados e outros profissionais liberais e intelectuais da época. 220

MORAIS op. cit. Ver também GERMANO, José Nilligton. A política do Rio Grande do norte no início dos

anos 60. In. Lendo e aprendendo: a Campanha de Pé no chão. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1989. 221

Sobre isto Morais (2006, p.83) argumenta que a emergência de novos municípios no Seridó entre as décadas de

1940 e 60 constitui-se num processo “diretamente relacionado com as estratégias de poder da oligarquia

algodoeiro-pecuarista que elegeu os espaços urbanos como lócus de sua atuação política” repercutindo na dinâmica

campo-cidade e na fragmentação territorial da região (criação de novas unidades territoriais ou municípios). 222

De acordo com Campos e Morais (2011, p.47), “a Estação Experimental do Seridó, localizada a leste da Cidade

de Cruzêta, distante aproximadamente 2,5 km do centro da cidade, pertencia ao Ministério da Agricultura,

subordinado ao Instituto de Pesquisa Agropecuária do Nordeste – IPEANE, sediado em Recife/PE. Seu objetivo

era realizar pesquisas visando à melhoria do algodão arbóreo (mocó), produto básico da economia e principal item

da pauta de exportações do Seridó e do Rio Grande do Norte, entre o final do século XIX e os anos de 1970”. 223

No período compreendido entre os anos de 1921 e 1937, ‘Cruzeta’ era apenas uma florescente povoação

pertencente juridicamente ao município de Acari/RN. A construção do seu reservatório público homônimo

concluído pelo IFOCS em 1929, como também a reconhecida aptidão dos terrenos de sua jusante para o

estabelecimento de uma “fazenda de sementes de mocó puro”, concorreram para que as instalações da Estação

Experimental de Algodão do Seridó sediada provisoriamente desde 1925 na Fazenda Bulhão, município de Acari,

fossem transferidas para a sua nova sede agora localizada naquele povoado. O motivo da referida transferência foi

explicado por Campos e Morais (2011, p.47) como sendo conseqüência dos trabalhos de construção da bacia do

açude Gargalheiras projetado para ser aberto no terreno ocupado pelas antigas instalações da repartição. Entretanto,

outros fatores como a localização central do povoado ‘Cruzeta’ em relação aos municípios da região e a existência

de estudos que apontavam a existência na localidade de terras de “magnífica aptidão para a cultura algodoeira”

desde o início do século XX (MEDEIROS, José Augusto de, 1980, p. 34), foram tão ou mais decisivos na escolha

do novo espaço como o mais propício para o estabelecimento de uma “fazenda de sementes de mocó puro”. (Idem,

ibidem, p.35). Sobre a escolha do povoado Cruzeta para sede das futuras instalações da Estação Experimental de

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variedade selecionada e melhorada do “mocó” ou “Seridó” de onde se obteve a “melhor fibra

do mundo”224

), fruto do “milagre” tecnológico impetrado por aquela repartição no início dos

anos 1950, cuja marca distintiva estava em “fixar [na cultura algodoeira seridoense] um tipo de

algodão uniforme e de fibra super-longa” muito “procurado pelas indústrias de tecido finos”.225

Esta façanha científica, operada pela Estação Experimental de Cruzeta trouxe um novo

aditamento para os horizontes cotonicultores nordestinos e seridoenses especialmente que desde

o final do século XIX vinham se afirmando como um dos esteios da economia e riqueza

regionais, repercutindo no cenário nacional e fora dele.226

Para a cotonicultura seridoense isso

era particularmente importante, porque surgia como “a base de uma nova era de prosperidade e

riqueza”227

retraída paulatinamente pelo baixo nível técnico da produção de seu algodão que

acabava interferindo negativamente na cotação do produto no mercado interno e internacional,

embora os efeitos desta crise só tenham se tornado mais visíveis apenas a partir dos anos

1970.228

Além deste despautério, acrescenta-se o fato do algodão seridoense encontrar-se

fragilizado geneticamente pela hibridazão natural com outras espécies alienígenas229

, o que

tornava cogente o importante trabalho de seleção e padronização de suas sementes. Uma

reportagem veiculada pela “A Folha” de Caicó em maio de 1954 revela a aura de entusiasmo

Algodão do Seridó, assim notificou o Paiz em dezembro de 1921: “Por iniciativa do Serviço de Fomento do

Algodão do Ministério da Agricultura, acaba de ser escolhido o local para a instalação da primeira das fazendas de

sementes preconizadas pelo Sr. Arno Pearse. As sementes serão da variedade “moco” e o lugar escolhido é

Cruzeta, no município de Acary, Rio Grande do Norte. Segundo narra o Seridoense, diversos motivos justificam a

escolha do local citado. Em Cruzeta está em construção um açude, cuja bacia hydráulica assenta justamente na

confluência de três rios que banham terras dos municípios de Acary, Flôres (Florânea) e Currais Novos. O

reservatório terá uma capacidade que poderá ser elevada a 20 milhões de metros cúbicos [...] Isso quer dizer que

haverá ali uma reserva d’água suficiente para ligar a questão do campo de sementes à questão da irrigação

methodicamente organizada”. Fazendas de sementes do algodão. O Paiz, Rio de Janeiro, 26 dez. 1921. Vida

Social, p. 02. 224

A declaração é de “A Folha” de Caicó veiculada na matéria O Congresso do Algodão de 17 de julho de 1954.

Num excerto do mesmo tópico o jornal ainda veicula: “Nem o Egito, nem o Sudão conseguiram a fibra uniforme

de 40 milímetros. Em Cruzeta operou-se o milagre da técnica”. A respeito desta conjuntura interna também

escreveu Terezinha Goes (1971, p.18): “Na década [de] 50, no sítio Dinamarca [localizado no município de

Cruzeta], sob os cuidados e orientação técnica do agrônomo Dr. Fernando Melo do Nascimento, o algodão ali

produzido só encontrou um competidor no mundo, nos aspecto “fibra longa”, que foi o algodão egípcio.” 225

Algodão “Cruzeta”. A Fôlha, Caicó/RN, 29 mai. 1954. p. 01. 226

É do nosso conhecimento uma carta endereçada pelo técnico britânico Larie Trinidad (autoridade mundial em

algodão) ao engenheiro agrônomo chefe da Estação Experimental do Seridó Fernando Melo do Nascimento

reconhecendo a importância internacional da conquista científica realizada por aquela repartição: “Jamais acreditei

que os senhores fossem capazes de tamanho êxito”. (Trecho citado por GUERRA FILHO, Adauto, 2001, p.49). 227

Algodão “Cruzeta”. A Fôlha, Caicó/RN, 29 mai.1954. p. 01. 228

Segundo Morais (2005, p.164-165), ainda que a crise instalada na produção algodoeira nordestina provocada

especialmente pela baixa tecnificação de seu produto atingisse a região como um todo, esta só foi sentida de forma

mais intensa no Seridó somente a partir da década de 1970 devido a excepcional qualidade de sua fibra que

ampliava sua valorização no mercado e colocava o algodão mocó “na preferência dos produtores estrangeiros, cuja

destinação era o fabrico de tecidos de qualidade superior”. 229

De acordo com Macêdo (2005, p.179-180), algumas variedades de algodão alienígenas como o Sea-Island e o

Upland, americanos, e o Jumel egípcio, foram testados em solo norte-rio-grandense ainda na primeira metade do

século XX resultando na fragilidade genética do algodão mocó nativo da região seridoense.

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que cingiu a economia regional frente ao “milagre da técnica” operado nos campos

experimentais de Cruzeta.

Lemos dias atrás, um tópico publicado em “O Diário de Notícia,” do Rio de

Janeiro, sôbre o melhoramento e fixação das características do algodão de

fibra longa, graças aos trabalhos da Estação Experimental de Cruzeta. O

esforço silencioso e pertinaz do agrônomo Fernando Melo do Nascimento

começa a ser considerado uma verdadeira revolução no cultivo do algodão

“mocó”, o melhor produzido em terras brasileiras. Conseguiu ele, após longas

e pacientes experiências e pesquisas, fixar um tipo de algodão uniforme e de

fibra super-longa, já hoje muito procurado pelas indústrias de tecidos finos. De

tôda parte há pedidos dessas sementes selecionadas. [...] Dentro de dois anos,

no máximo, haverá abundância de sementes, é o que se anuncia. Oxalá

compreendam os nossos cotonicultores a necessidade de padronizar o cultivo

de seus campos, para readquirir o Seridó o renome de produtor do melhor

algodão do Brasil. A oportunidade é essa. Deus nos deu um terreno e um clima

propício à cultura algodoeira, a técnica nos oferece o fruto de sua experiência.

Basta ao homem cooperar com patriotismo e entusiasmo, para que o ouro

branco dos algodoais seja a base de uma nova era de prosperidade e riqueza

[...].230

Em meio ao crescente sintoma de crise que já se dispersava como uma nuvem densa a

obscurecer os horizontes cotonicultores nordestinos, o algodão “Cruzeta” surgia como uma

“promessa” alvissareira que (re)adquiriria para o “ouro branco” seridoense “um novo e justo

conceito” no mercado nacional e internacional do produto. Na nova conjuntura políticoecômica

mundial, erigida sob princípios cada vez mais racionais e técnicos de produção, Cruzeta

despontava como um pólo geoeconômico estratégico de pesquisa e beneficiamento do algodão

nordestino cujo modelo era pensado como aquele que recuperaria para o Nordeste e o Seridó

cotonicultores a sua posição hegemônica de fornecedores da principal matéria-prima consumida

pela indústria têxtil suldestina que vinha perdendo paulatinamente para o algodão paulista,

especialmente a partir da década de 1930.231

Neste contexto, dois fatores foram fundamentais para a valoração deste espaço como

centro de importância tecnológica, científica e econômica no cultivo do algodoeiro no

Nordeste: sua localização central em relação às principais cidades seridoenses produtoras do

algodão mocó que tornava o trabalho operacional da Estação de beneficiamento, seleção e

classificação do produto mais eficiente e lucrativo, além de favorecer a distribuição da “boa

230 Algodão “Cruzeta”. A Fôlha, Caicó/RN, 29 mai.1954. p. 01.

231 Sobre a perda da supremacia do algodão seridoense e nordestino para o algodão paulista no mercado nacional

cf. Morais (2006, p.164-165); Macêdo (2005, p.179) e Araújo (2006, p.227-228). De acordo com Morais op. cit.

alguns fatores foram decisivos na reorientação do mercado nacional do algodão para a região Sudeste. Dentre estes

estão “a difusão de pragas e a ocorrência de estiagens, com destaque para a seca de 1914/1915 no Nordeste e a

derrocada do café (geada de 1918) no Sudeste” que agravada pela crise de 1929 terminaram por orientar a

agricultura paulista para a abertura de largos espaços agrícolas a cotonicultura. Estes fatores acrescidos ainda do

“baixo nível técnico de produção e de beneficiamento do algodão nordestino”, explica a “expansão da produção

algodoeira em São Paulo”.

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semente” pelas fazendas de plantio da região e dos Estados circunvizinhos e a existência no

local de terras de excepcional aptidão para o plantio da malvácea de fibra longa apontadas pelo

agrônomo inglês Arno Pearse muitos anos antes como as melhores de toda a região Nordeste

para o desenvolvimento de uma cultura do gênero.232

Em uma carta endereçada pelo agrônomo

Dr. Fernando Melo do Nascimento (1918-2002), em fevereiro de 1953, ao então Deputado

Federal pelo RN, José Augusto Bezerra de Medeiros (1884-1971)233

, assim expressava o chefe

da Estação Experimental do Seridó em tom entusiástico:

Novo rumo vem tomando esta Estação, graças a verba conseguida por V. Exa.

no exercício passado. Sentimos um ritmo novo de trabalho, quando, rompendo

a estreita área desta instituição, estamos, nas fazendas particulares, em campos

de cooperação, multiplicando a boa semente. Embora não tenhamos todos os

tratores em mãos, quatro Fords estão rasgando a terra seridoense, aproveitando

as últimas chuvas caídas. Aguardamos a vinda dos tratores restantes e

esperamos completar, no corrente ano, 1000 hectares, aproximadamente.

Esperamos dentro de 5 anos, um novo e justo conceito para o algodão

seridoense, que florará grato a V. Exa. pelo serviço inestimável prestado ao

nordeste e ao Brasil.234

Tendo em vista a grande expectativa gerada, não é demais pensar que a importância

geoeconômica que Cruzeta adquire na nova contextura político-econômica nacional como

“pólo” do conhecimento técnico-científico de um dos principais produtos da pauta de

exportação do Nordeste – o algodão mocó, cuja fibra já era mundialmente conhecida – tenha

concorrido para a sua “captura” pelas elites emergentes seridoenses num momento em que

parecia abrolhar deste espaço uma solução para o impasse da cotonicultura nordestina

desencadeando um processo que resultaria em sua emancipação política em novembro de 1953

e na eleição do engenheiro-agrônomo Sílvio Bezerra de Melo (1908-1978), filho do empresário

e Desembargador currais-novense Tomaz Salustino Gomes de Melo (1880-1963)235

, para chefe

232 MEDEIROS, José Augusto de, 1954, p.35. A conclusão a que chegou o agrônomo inglês Arno Pearse foi

baseada em estudos mesológicos e climatérios realizados na região do Seridó norte-rio-grandense ainda no início

da segunda década do século XX quando esteve à frente da Missão Algodoeira no Brasil. Fazendas de sementes do

algodão. O Paiz, Rio de Janeiro, 26 dez. 1921. Vida Social, p.02. 233

Seridoense nascido no município de Caicó (RN) em setembro de 1884. Tornou-se o primeiro representante da

oligarquia algodoeira-pecuarista do Seridó a assumir o posto de governador do Estado do Rio Grande do Norte.

Como magistrado e político brasileiro foi um profundo defensor do algodão seridoense. Ainda em seu mandato

como governador do RN no período de 1924 a 1927, implantou a Estação Experimental do Seridó se tornando um

de seus maiores incentivadores. 234

Citado por GUERRA FILHO, Adauto, 2001, p.53. 235

O Des. Tomaz Salustino era seridoense natural do município de Currais Novos e proprietário da promissora

Mineração Tomaz Salustino S/A, empresa concessionária responsável pela exploração mineira na província

scheelítífera curraisnovense que chegou a atingir o patamar de principal produtora brasileira de sheelita. Como

empresário bem-sucedido, Tomaz Salustino chegou a figurar dentre os homens mais influentes do Nordeste

empreendendo obras de modernização urbana especialmente no município de Currais Novos e em 1954 foi

considerado pela revista Time, de Nova York, a 4ª fortuna em potencial no mundo. Sobre a atividade mineradora

no Seridó, Morais (2006, p.83) comenta que esta “teve um papel fundamental no processo de urbanização regional,

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do poder executivo da novel comuna. Ademais, o conceito que gozava a Estação Experimental

de Cruzeta como um dos mais promissores centros científicos de beneficiamento e seleção do

“ouro branco” nordestino colocava aquele espaço sob a mira das elites interessadas em

desenvolver economicamente a região, fortalecer sua projeção no cenário político e econômico

nacional e consolidar seus domínios no território regional atrelando-o às suas estratégias de

dominação agora pensadas em termos de “modernização”.

Não foi por acaso que a despeito de discutir novos parâmetros para a cotonicultura

nordestina realizou-se em Currais Novos e Cruzeta (maiores centros de importância econômica

do algodão de acordo com o Diário de Notícias do Rio de Janeiro)236

o II Congresso Nacional

Algodoeiro em setembro de 1954 que reuniu na recém-emancipada comuna seridoense

“pessoas do mais alto nível em termos de conhecimento sobre algodão, como autoridades

nordestinas e de outras regiões do país, inclusive o Ministro da Agricultura, cotonicultores

regionais e técnicos experientes com o objetivo de estudar e debater importantes temas

relacionados ao desenvolvimento da cultura algodoeira que se expandia aceleradamente no

Seridó”.237

Mas que discutir “problemas técnicos e práticos necessários ao aperfeiçoamento da fibra

de algodão”238

, o “conclave” algodoeiro, que mobilizou técnicos e chefes políticos dos

principais Estados produtores do Nordeste, foi um exemplo bastante expressivo de que as elites

político-econômicas regionais buscaram se (re)articular estrategicamente frente a crescente

demanda dos principais parques têxtil nacionais num momento em que o progresso técnico-

científico proporcionado pela modernização da agricultura e o avanço da nova mentalidade

burguesa empresarial pareciam capazes de “salvar” do colapso final a titubeante lavoura

nordestina. Esta busca pela modernização da cultura algodoeira do Nordeste era resultado das

novas exigências técnicas de produção incumbidas pelo comércio cotonicultor internacional e

pela indústria têxtil paulista (principal consumidora da fibra nordestina), tendo em vista a

competitividade do produto no mercado e a acelerada ampliação dos mercados consumidores

principalmente no que se refere a Currais Novos e aos municípios adjacentes e, juntamente com o algodão, foi

responsável por uma fase de forte desenvolvimento sócio-econômico”. 236

FREITAS, Honorato de. Vai reunir-se o Segundo Congresso Algodoeiro do Nordeste. Diário de Notícias, Rio

de Janeiro, 5 set. 1954. Produção Rural, p. 05. 237

CAMPOS & MORAIS, 2011, p.56. O temário do certame abrangeu temas como os “problemas que se

liga[va]m à melhoria das sementes e aos tratos culturais [...] combate às pragas e moléstias, mecanização da

lavoura, épocas de plantio e causas da diminuição das safras [e os] aspectos econômicos da cultura: financiamento

e preço mínimo, custeio da entre-safra e custo da produção, preços do produto beneficiado e dos subprodutos e,

bem assim, o financiamento através das indústrias de fiação e tecelagem”. II Congresso Nacional Algodoeiro.

Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 11 jul. 1954. O Brasil de Norte a Sul, p.08. 238

FREITAS, Honorato de. Vai reunir-se o Segundo Congresso Algodoeiro do Nordeste. Diário de Notícias, Rio

de Janeiro, 5 set. 1954. Produção Rural, p. 05.

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nacionais e estrangeiros.

No tocante ao panorama nacional, este esforço representava um meio de consolidar um

modelo de política conduzido pelas elites dominantes suldestinas que buscava reafirmar o

Nordeste como espaço agroexportador e fornecedor de matéria-prima para a expansiva indústria

nacional e o Sudeste-Sul do país como pólo urbano industrializado.239

O passo que se seguiu a

isto foi a refuncionalização do espaço urbano regional pelas elites, no intuito de moldar suas

“velhas” estruturas rurais às novas determinações postuladas pelo processo de modernização

atrelado ao paradigma urbanização/industrialização em expansão no país, capitaneados pelos

princípios da racionalidade e da técnica. Este desígnio era a inferência do “ideário

desenvolvimentista da época” que não se coadunava “com uma formação social baseada em

economias regionais fragilmente articuladas, pautadas em uma estrutura social rural com

atividades hegemonicamente agrárias”.240

A condução do desenvolvimento regional “pelas

trilhas da cidade” foi a resposta das elites político-econômicas locais visando sua inserção na

rede.241

No município de Cruzeta, as obras de modernização, de infra-estrutura urbana e de

ampliação e melhoramentos dos serviços públicos empreendidas pela administração do prefeito

Sílvio Bezerra de Melo (1955-1960), revelam as intenções das elites locais em atualizar e

sintonizar este espaço com as tendências e exigências em curso. Aliando seus projetos aos

interesses das elites político-econômicas da região e fora dela, Sílvio Bezerra de Melo

empreendeu em seu governo importantes ações modernizantes:

Reconstruiu e asfaltou as estradas intermunicipais que ligavam Cruzeta aos municípios

circunvizinhos facilitando o escoamento da produção econômica municipal e o acesso aos

principais centros comerciais da região (Caicó e Currais Novos);

Criou em 1956 a Agência Municipal de Estatística com o intuito, principalmente de

realizar a pesquisa e o controle da produção local do algodão;

Restaurou o sistema de iluminação elétrica da cidade através da aquisição de um motor

novo e da construção da Casa de Força e Luz para uso especialmente do comércio e da

indústria;

Construiu o Abatedouro Público Municipal;

Realizou a pavimentação dos principais logradouros urbanos e contratou técnicos da

URBAM de Belo Horizontes (MG) para executar o levantamento topográfico da cidade e

239 Cf. ANDRADE, Manuel Correia de, 1974.

240 MORAIS, Ione Rodrigues Diniz, 2005, p.170.

241 Idem.

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conceber o seu plano de urbanização, dentre outras benfeitorias públicas.242

Ainda como chefe da Estação Experimental do Seridó entre os anos de 1936 e 1946,

Sílvio de Melo instalou uma Agência Telefônica (1943), fundamental para a comunicação e a

articulação com outros centros maiores (Natal, Campina Grande, João Pessoa e Recife) e

empreendeu a arborização da Vila.243

À frente desta repartição, foi responsável juntamente com

a chefia de Fernando Melo do Nascimento (1947-1956), pela introdução de novas técnicas e

insumos de cultivo no campo (máquinas do tipo plantadeiras, roçadeiras, pulverizadores e

veículos de tração mecânica – tratores, caminhonetes e jeeps)244

influindo, inclusive, no modus

vivendi e na modificação do ritmo de trabalho dos pequenos produtores rurais, sobretudo

daqueles que operavam em regime cooperado, que tiveram que adotar uma labuta diária

baseada no ritmo de produção fabril.245

Consta, ainda, no inventário de suas ações, o fato de ter construído e inaugurado junto

com seu pai Tomaz Salustino, em 1954, o campo de pouso da Estação experimental de Cruzeta

promovendo a integração pelos ares da pequena gleba sertaneja com os centros mais dinâmicos

do país e até do exterior.246

Neste ínterim, também foram significativas as suas atuações no

cenário sócio-cultural do município. Dentre as ações empreendidas neste setor está a fundação

do Clube de Mães, ainda em seu primeiro ano de governo que tinha “o objetivo de ensinar às

donas de casa artes domésticas como: crochês, adornos com o aproveitamento de recursos

naturais, corte, costura e arte culinária [...] como [também promover a] orientação para

educação da família em suas diversas finalidades”.247

Referindo-se a administração do prefeito

Sílvio Bezerra de Melo, assim expressou Terezinha Goes (1971): “tudo o que se refere ao

242 GOES, Terezinha de Medeiros, 1971, p. 89.

243 Idem, ibidem. A evolução política do município de Cruzeta seguiu a seguinte trajetória: foi fundado povoado

sob a jurisdição do município de Acari (RN) em 1920, passando a categoria de Vila em agosto de 1937 e elevado à

foros de cidade em novembro de 1953. 244

Embora estas melhorias estivessem circunscritas ao universo sócioespacial “um tanto fechado” da Estação

Experimental do Seridó, elas acabavam influenciando o modo de produção de muitos trabalhadores rurais, que de

uma forma ou de outra, trabalhavam em cooperação com os trabalhos desenvolvidos pela referida repartição. 245

CAMPOS & MORAIS, 2011, p.51-61. De acordo com Campos e Morais (2011, p.48-49), a rotina de trabalho

nos campos cooperados da Estação Experimental do Seridó “começava logo ao amanhecer, ás 5:30 min.,

registrando-se um intervalo às 7:00h para o café que era feito e servido no local do trabalho. Às 10:30 min. a

paralisação se dava em função do almoço, com um retorno à labuta às 12:30 min.; somente às 17:30 encerrava-se a

jornada diária de trabalho. Havia muita rigidez no cumprimento dos horários e todo trabalho de campo era feito

sob a vigilância de um feitor”. Durante o período em que chefiou a Estação Experimental de Cruzeta, relatam as

autoras que “Dr. Sílvio [...] percorria diariamente, montado em um cavalo, toda a área da estação, desde os campos

até a casa dos operários, visitando as famílias e as orientando sobre higiene, alimentação, cuidados com a água

potável e até o estudo das crianças”. (Idem, ibidem, p.60). 246

Cf. Filme com a inauguração dos campos de pouso da mina Brejuí e Cruzeta na década de 1950.

Disponível em <https://tokdehistoria.wordpress.com/2014/02/03/filme-com-a-inauguracao-dos-campos-de-pouso-

da-mina-brejui-e-cruzeta-na-decada-de-1950/>. Acesso em: 19 de mar. 2014. 247

GOES, op. cit., p.64. Outras ações como a criação da Sociedade Educadora de Cruzeta em 1957 e a Associação

de Proteção à Maternidade e a Infância também foram instituídas durante o governo de Sílvio Bezerra de Melo.

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progresso de Cruzeta, está estritamente ligado à insigne figura de Dr. Sílvio Bezerra de

Melo”.248

As mudanças implementadas pelo governo de Sílvio de Melo eram o corolário do

processo de expansão territorial da modernidade e/ou do modo de produção capitalista ocidental

que avançava sobre os sertões nordestinos e atingia ita loci os pequenos grupos das

extremidades do planeta e do território nacional, repercutindo de forma mais intensa no Seridó

potiguar a partir dos anos 1940 e 50, embora nesta região este processo remonte a, pelo menos,

os fins do século XIX e primórdios do século XX, se intensificando nas seis primeiras décadas

do último século.249

Não obstante as formas particulares que este processo possa assumir nos

diferentes espaços, “na medida em que os elementos da mundialização penetram os lugares, os

seus conteúdos são alterados e (re)funcionalizados”250

, provocando mudanças que não só

afetam a dimensão tangível da realidade, mas atingindo o nível da cultura, interferem nos

modos locais dos comportamentos, dos valores, das referências e do imaginário, suscitando

formas heterogêneas e também ambíguas e contraditórias de apropriação do “moderno” e da

“modernidade”.

Esta constatação multiface da realidade nos impele a pensar como Sandra Pesavento

(2005) que, muito mais que fixar uma “verdade”,

a história trabalha [...] com um acúmulo de possíveis, com a pluralidade de

pontos de vista, o que a situa no campo da ambivalência: ser isso e aquilo ao

mesmo tempo, podendo um fato ter mais de uma versão, dotada cada uma da

sua lógica própria sem que uma delas deva ser, necessariamente, mentirosa.251

Admitir, portanto, a ambivalência na história é perceber que “um mesmo acontecimento

possa suportar julgamentos contrários, ou de que tudo o que hoje se admite como verdadeiro

pode, no futuro, ser contado e explicado de outra forma” abrindo possibilidades para que se

aceitem “múltiplas versões” e se tolerem “regimes de verdade”.252

O avanço da civilização moderno-urbana capitalista sobre os sertões seridoenses trouxe

248 Idem, ibidem, p.90.

249 MORAIS, Ione Rodrigues Diniz, 2006, p.80. De acordo com Morais (2005, 119-130), foi só a partir da década

de 1880 quando já havia iniciado o processo de industrialização nacional e começou a se desenvolver a indústria

têxtil paulista que a produção econômica regional baseada na criação do gado voltada especialmente para o

abastecimento do mercado interno nordestino iria sofrer uma reorientação, sobretudo via desenvolvimento da

cotonicultura, direcionada para o fornecimento de matéria-prima para a indústria têxtil. Esta fase caracteriza o

período inicial de penetração do espírito do capitalismo industrial na região que imporia mudanças em suas bases

produtivas. Uma dessas mudanças foi a refuncionalização da fazenda de criar antes voltada basicamente a pecuária

e a agricultura de subsistência, para atender a demanda da cotonicultura mercantil, passando a abrigar em seus

espaços as primeiras iniciativas de beneficiamento do algodão, através das bolandeiras, isto é, “máquina de

descaroçar movida por tração animal (boi ou cavalo), que produzia pelo chamado sistema de rolo (separando o

caroço do algodão, da pluma, por compressão)”. (CLEMENTINO apud. MORAIS, op. cit., 2006, p.80/86). 250

CASTILHO, Denis, 2010, p.136. 251

PESAVENTO, Sandra Jatahy, 2005, p.110. 252

Idem, ibidem.

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consigo novos símbolos de cultura até então desconhecidos por seus habitantes que tiveram que

ser apreendidos para tornarem-se compreendidos. Neste processo de apropriação simbólica, o

imaginário apocalíptico popular exerceu uma função capital ao fornecer imagens e sentidos que

puderam ser aliciados por muitos sujeitos para traduzir este “outro” desconhecido. O drama

resultante deste processo ficaria expresso na experiência do “choque cultural” vivenciado por

muitos cruzetenses e seridoenses diante do avanço dos símbolos de modernidade no momento

em que estes irrompem o mundo rural e começam a penetrar as pequenas urbes e povoados da

região, transformando-se a exemplo do automóvel e do avião, nas bestas escatológicas do

apocalipse.

Esta experiência do “choque”, ou na melhor hipótese, do “encontro” com o elemento

moderno, não implicaria no fim ou no enfraquecimento do imaginário religioso tradicional

construído em volta das crenças no fim do mundo, mas, sim, numa transformação operada no

interior dos seus processos de produção.

3.2. O MULTIFÁRIO DA BESTA FERA

Talvez nenhuma ideia do último livro do Novo Testamento tenha causado maior impacto

no imaginário religioso do sertanejo do Nordeste que a da besta escatológica. Introduzida nos

sertões nordestinos desde os tempos coloniais pelos missionários e colonizadores portugueses e

disseminada no campesinato rural nordestino junto do folclore, das crenças e profecias

apocalípticas, a tão propalada Besta (fera) do apocalipse foi, desde muito cedo, uma figura

controversa. Já nos primeiros séculos da Igreja cristã sua noção era motivo de contestação nos

escritos da Patrística253

que se dividiam entre as opiniões quanto a esta vir a ser uma criatura

concreta ou um indivíduo humano real, ou se tratava de uma alegoria para representar tudo

àquilo que impede os desígnios de Deus para o cosmo.254

Amalgamada às tradições folclóricas do mundo rural nordestino e incorporando traços

próprios da imaginação popular, a ideia da besta apocalíptica nos sertões seridoenses chegaria à

segunda metade do século XX marcada pela concepção polimórfica. De cavalo mastodôntico

alado com olhos de fogo ao envoltório humano do diabo encoberto, ela perseguia os sonhos dos

viventes, habitava a fantasia das crianças e causava medo e pavor. Sua manifestação no mundo

sinalizaria a iminência do Fim das Eras e seria uma prova irrefutável de que o divino juiz

estaria voltando para julgar os pecadores no grande ordálio. Transmitida entre os grupos rurais

253 Nome dado à filosofia cristã elaborada pelos Padres Apostólicos ou Pais da Igreja.

254 Cf. RUSSELL, 2007.

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pela tradição oral e jogando com a flexibilidade plástica de sua aparência, a ideia da besta

escatológica não era uma imagem pronta e acabada, mas estava sempre sendo (re)feita num

movimento contínuo do simbólico e da história.

Numa xilogravura datada de 1968 do artista cearense Walderêdo Gonçalves intitulada a

“Besta fera da terra”, o monstro escatológico é representado como um quadrúpede medonho de

feições híbridas com rosto de bode e asas de morcego conduzindo na testa o número 666, que é

a sua marca (ver imagem 11 em anexo). Numa outra ilustração do autor que retrata uma cena da

adoração à besta, o monstro apocalíptico aparece sob a forma de um tetrápode portando sete

cabeças semelhantes a fisionomia de um ruminante com chifres, diante do qual pessoas são

concebidas em posição de reverência (ver imagem 12 em anexo). Ainda em outra representação

de um xilógrafo paraibano datada de meados de 1970, a mencionada figura aterradora assume o

aspecto de um cavalo feroz de estatura colossal a galgar montes e colinas (ver imagem 13 em

anexo).

Nascida do acervo de imagens e noções de estratos cronológicos mais antigos, a imagem

da besta projetada sobre o aspecto de um quadrúpede, povoaria com mais freqüência a

imaginação popular. Ela fazia parte de um amplo multifário de representações que mesclava

tradições cristalizadas à inventividade popular, colocando em interação processos sedimentados

e criativos de idéias. Retratando um sonho que teve com a tal figura monstruosa, assim a

descrevia uma moradora cruzetense de 67 anos remetendo-o às reminiscências da infância

vivida entre os anos de 1940 e 50:

Uma vez eu sonhei com a besta-fera. Era bem grandona. Aquele animal bem

grandão branco. E quando ela passava de frente a mim, onde ela ia pisando,

ficava um buraco tirando as pedras do calçamento. Era uma bestona branca.

Era um cavalão do tamanho da igreja. E passava levando as pedras e levando

tudo. Eu sonhei. Onde ela passava levantava buraco e o buraco estriando. E aí

quando eu olhei assim, ela passou no meio campo direto e saiu voando.255

Penetrando o universo das experiências mais profundas dos indivíduos, a besta fera

também habitava o inconsciente coletivo. Associada a idéia do diabo astuto, ela podia se

manifestar no meio do povo sob a forma do disfarce, enganando os católicos menos constantes

e avisados, causando prejuízo à fé dos fieis e colocando a perder suas almas. Daí toda

desconfiança ao estranho, ao indivíduo ou a coisa desconhecida, já que sob outro envoltório

carnal sua presença ardilosa podia passar despercebida. Referindo-se a uma profecia de Frei

Damião que ouvira quando criança, lembrava dona Santina de Neco a respeito do aparecimento

da besta fera e de sua ação danosa no mundo.

255 Depoimento concedido pela Sra. Helena Silva de Goes, 67 anos, no dia 26 de outubro de 2009.

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[Ele dizia que] no fim do mundo ia aparecer a besta-fera de casa em casa

seduzindo as pessoas, trocando voltas de ouro por rosário. Quem tinha rosário,

a besta-fera trazia aquelas voltas de ouro pra trocar pelo rosário. [...] Era o mal

transformado. Ele falava muito.

Diante da investida do maligno, o católico devia resistir e portar-se como um cristão

arguto não se deixando iludir por suas artimanhas e novidades, “por que ia aparecer nas nossas

casas um homem trocando rosários por voltas de ouro e a pessoa não quisesse. Não trocasse seu

rosário pela volta de ouro, porque aquilo já ficava pertencendo à besta-fera”, argumentava uma

outra moradora de Cruzeta de 75 anos a respeito da mesma profecia de Frei Damião que ouvira

falar na infância.

A ação da besta se manifestaria no mundo no final das eras através da inoculação do seu

sinal, na ocasião em que esta passaria “ferrando o povo pra ela como se fosse uma marca, como

um ferro que você ferra uma garrota, um jumento”.256

Os “três dias de escuro” seria o momento

em que esta “correria” solta no mundo causando atrocidades e investindo contra as residências

dos bons católicos. Uma moradora cruzetense de 63 anos lembra o que dizia os pais a respeito

deste acontecimento profetizado por “Padrinho Ciço”, quando ainda era menina e morava no

Sítio Cruzeta Velha, município de Cruzeta: “Eles comentavam que era no fim do mundo que

vinha estas três noites de escuro e que a besta fera ia sair nas portas [das casas]. Aí eu pegava o

que era de machado e lavanca de papai e enfiava por trás da porta com medo da besta fera

passar”.257

Para proteger-se da besta fera nos três dias de escuro, o católico devia recorrer a orações e

rituais que se bem preparados e executados teria o poder de livrá-lo de suas ações nefastas. Ter

um lenho de fogueira de São João guardado em casa, uma vela ou ramo bentos ou conduzir

consigo uma oração do Padrinho Ciço, seriam armas poderosas contra o assalto da besta ou do

“Capa verde”258

, pois além de resguardar o cristão de seus ardis ruinosos, também o livraria das

obras malévolas dos “amancebados” que nos “dias do sol escuro” se transformariam em bestas

256 Fala retirada do trecho da entrevista concedida pela Sra. Leonete Pereira de Medeiros, 75 anos, no dia 08 de

dezembro de 2009. 257

Depoimento concedido pela Sra. Maria Letícia dos Santos no dia 24/08/2012. 258

Figura lendária que apareceria no fim dos tempos e geralmente associada à idéia do “diabo encoberto” e por

vezes, também, confundindo-se com a imagem da besta fera que os sertanejos diziam ter sido profetizada por

Padrinho Cícero. A respeito da tal figura diabólica, lembrava uma moradora cruzetense do sítio Fechado a guisa de

descrição: “O capa verde era uma pessoa virada num bicho que ia pros curral, se deitava lá e virava num bicho,

aí saia fazendo lesura com o povo”. Sobre o Capa verde e suas diversas manifestações morfológicas ver NUNES,

Mariângela de Vasconcelos. As profecias do fim do Mundo e o Capa verde. In.______. Entre o Capa verde e a

redenção: a cultura do trabalho com o agave nos Cariris Velhos (1937-1966, Paraíba). 291 p. Tese (Doutorado em

História). Universidade de Brasília, Programa de Pós-Graduação em História, Brasília, 2006. p. 259-273.

Disponível em: <http://repositorio.unb.br/handle/10482/5160 >. Acesso em: 03 mai. 2014.

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e asnos e sob a montaria dos demônios sairiam pelo mundo praticando “lesuras”259

com o

povo.260

(Ver imagens 14, 15 e 16 em anexo). Recordando as recomendações e os métodos que

ouvira de sua mãe na infância para livrar-se das ações maléficas do maligno nos dias de

escuridão, relatou a ex-moradora do sítio Cruzeta Velha: “Mamãe me dizia que nas três noites

de escuro, só se acende o fosco bento, quem tiver a vela benta. Aí quando eu ia pras missas eu

dizia: “mamãe, a Senhora está levando a caixa de fosco e a vela pro padre benzer?”.261

Gozando

de ampla popularidade entre os sertanejos rurais cruzetenses, a crença nos três dias de escuro e

na vinda da Besta fera, ensejavam posturas e aliciavam sentimentos que uniam o maravilhoso

às formas de vida e à religiosidade popular, não se constituindo para o sertanejo em mundos

distintos e separados.

Esta produção imagética construída à volta do monstro escatológico sofreria

transformações em decorrência do encontro com os símbolos de modernidade travado no

interior do mundo rural sertanejo. Para nós interessa-nos neste tópico analisar mais de perto

como os símbolos modernos com destaque para o automóvel e o avião, foram apropriados a

partir do simbolismo da besta apocalíptica resultando em alterações no imaginário tradicional.

Para isso dois motivos foram cruciais: o desconhecimento do que seria exatamente a tão falada

figura escatológica e a percepção de que esta já estaria “correndo” pelo mundo. Para iniciarmos

nossa análise, comecemos, pois, pela exposição de um pequeno trecho extraído de uma

historieta “caipira”.

Dizem que a Bíblia diz que no fim dos tempos vai aparecer a besta fera.

É um animal feroz que vai destruir todos os homens. Ninguém vai poder lutar

contra ela, pois a cuja vai ter uma força descomunal. [...]

Este tipo de coisa cai bem na cabeça de alguns pobres sertanejos e os

coitados passam a acreditar nisto piamente. E os pobres morrem de medo da

tal besta fera. Acontece que eles nunca viram a coisa [...]

Antonino era um pobre sertanejo. Tinha memória curta e acreditava em

tudo o que os amigos falavam. Sobre a besta fera então nem se comentava.

Era um Deus nos acuda. O pobre se arrepiava todo e morria de medo. Não

sabia ler, o que piorava ainda mais as coisas.

Antonino jamais fora a uma cidade. Lá por volta de 1930 o progresso

não era ainda tão acentuado.

Um dia ele teve que ir a uma cidade fazer uma compra. Não havia

ninguém para ir, muito menos ir com ele. O moço partiu sozinho com as

informações fornecidas pelos amigos. Ele foi, mas sempre de olho para não

encontrar a besta fera. Andou muito por aquela estradona bonita. Havia muita

coisa bonita. Tudo ali era diferente. Casas de um lado e outro e aquela estrada

no meio. Para que aquela estrada tão larga? As pessoas não precisavam de

um caminho tão largo assim. Mas, não se importou com isto e continuou

259 Expressão retirada do depoimento de dona Ambrosina. Significa o mesmo que maldade, crueldade.

260 Sobre “superstições” envolvendo os três dias de escuro cf. DANTAS, Renato, 1976.

261 Depoimento concedido pela Sra. Maria Letícia dos Santos no dia 24/08/2012.

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andando.

Até agora não encontrou nenhuma besta fera. Fez as suas compras,

colocou tudo dentro do saco e se preparou para vir embora. Assim que ele saiu

ouviu um ronco muito forte. Ficou de orelha em pé. Aquilo estava muito

estranho. Ouviu de novo. Novo ronco forte. Quando ele olha na ponta da

estrada lá vinha um bicho. Bicho feio, enorme, preto, vinha correndo,

roncando e soltando fumaça e poeira pra todo lado. Antonino não teve

dúvida: era a besta fera. Largou o saco no chão e correu. Andou só um

pedacinho e a besta fera já estava no encalço dele. Ele virava de um lado e

outro e a besta fera atrás. De vez em quando a besta fera dava algumas

buzinadas de amedrontar qualquer vivendo. Não havia lugar para se esconder.

Antonino já se via morto. Não tinha escapatória. Seria tragado pela besta fera.

Ele que lutara tanto para não ser derrotado por ela. Mas chegou o seu dia. Era

o fim. E não avisara ninguém na fazenda. E tinha mais uma: quem era tragado

pela besta fera, ia direto pro inferno, pois ela era o demônio em vida. E o nosso

pobre Antonino corria. Não tinha onde se esconder e se livrar dela.262

O fragmento literário citado acima foi retirado do conto “A Besta Fera” do escritor

paranaense Henrique Pompílio de Araújo e se trata, portanto, de uma “ficção”. Seu personagem

Antonino e a trama que ele encena são “invenções fictícias” do imaginário criativo do autor,

logo não possuem existência real. Entretanto, embora pertençam ao universo ficcional, eles

representam uma concepção do passado projetada pelo escritor. São recriações imaginárias do

real vivido em um tempo reconfigurado pela imaginação criadora do autor para ilustrar a visão

de uma época em que os símbolos do progresso ou da modernidade representados na narrativa

pela imagem “espalhafatosa” e “diabólica” do automóvel começam a romper o “isolamento” do

mundo rural sertanejo e penetrar a pequena urbe interiorana causando perturbações no modo de

viver tradicional de seus habitantes nativos.

Grosso modo, a trama tecida em volta do sertanejo Antonino e a Besta Fera (o

automóvel), representa aquilo que poderíamos chamar de um “choque de identidade” ou de

culturas entre duas “tradições” ou formas diferentes de conceber o mundo: a tradição

consuetudinária camponesa respaldada no catolicismo popular de caráter sobrenatural e

cosmicizante “que constituía a maneira mais generalizada de conceber o mundo no meio rural

brasileiro”263

e a tradição urbana ocidental moderna que se baseia nos princípios da

racionalidade, da ciência e da técnica, e portanto, de caráter mais laicizante.

Visto por esta perspectiva, Antonino é muito mais que um “matuto” ou “caipira” rude e

incivilizado que julga ver no automóvel, símbolo do progresso e da revolução tecnológica da

sociedade moderna em expansão, a besta fera do Apocalipse fruto de seu misticismo

exacerbado ou de sua imaginação antilógica e grosseira. Seu olhar é daquele sujeito que ver o

262 ARAÚJO, Henrique Pompílio de. A Besta Fera. Contos. Dezembro de 2009. Disponível em:

<http://www.webartigos.com/artigos/a-besta-fera/30148...>. Acesso em: 26 de mar. 2014. 263

ZALUAR, Alba, 1983, p.13.

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“outro” (aqui simbolizado na figura do automóvel) a partir do interior da cultura de seu grupo, e

que, portanto, encontra-se condicionado pela visão de mundo e ideologia que este compartilha

ao utilizar-se de seu patrimônio simbólico para “interpretar” ou “dar a ler” o mundo em sua

volta.

Diante disso, dizemos que Antonino é um indivíduo “situado” numa tradição – a tradição

consuetudinária camponesa de base católica – e que por meio de um complexo dispositivo de

identificação e associações simbólicas socializadas que chamamos de identidade, mantêm-se

vinculado a esta. Por ser “uma construção simbólica de sentido que organiza um sistema

compreensivo a partir da idéia de pertencimento”264

, a identidade enquanto representação social

se fundamenta em “sistemas de símbolos” que orientam as formas de como os indivíduos de

uma cultura se relacionam com os outros. Segundo Clifford Geertz símbolos “são formulações

tangíveis de noções, abstrações da experiência fixada em formas perceptíveis, incorporações

concretas de ideias, atitudes, julgamentos, saudades ou crenças”265

que ao se unirem formam

“padrões culturais”.

Por sua vez, “padrões culturais” são “modelos” que tem a função de moldar e orientar os

comportamentos sociais dos indivíduos induzindo e definindo as suas “disposições”, isto é, as

tendências, capacidades, propensões, habilidades, hábitos, comportamento e inclinações que

estes estabelecem com o mundo.266

São, portando, estes conjuntos de códigos e símbolos

padronizados mobilizados pela tradição da qual Antonino participa que agem “modelando” as

suas representações de mundo formulando uma concepção sobre as “coisas”, isto é, atribuindo-

lhe significado, sentido e estabelecendo seu “olhar” sobre o outro. Mas, ao serem produzidos e

partilhados pelos membros de uma cultura, eles nem sempre possuem o mesmo sentido ou

significado para os outros grupos, podendo gerar o que Gabriela Cortés (2002) denominou de

“choque cultural”.267

O “causo” caipira tecido por Pompílio, é um exemplo disso. Ele também é útil em

264 PESAVENTO, Sandra Jatahy, 2005, p.89.

265 GEERTZ, Clifford, 1989, p.105.

266 Idem, p.109.

267 De acordo com Gabriela Cortés (2002), o choque cultural “es una reacción al stress que provoca lo nuevo y a lo

que no se está familiarizado”, sendo mais adequado para referir-se “a una reacción que se da de inmediato y de

forma consciente” podendo dar-se pelos seguintes motivos: 1. Quando ocorrem confrontos internos de culturas

implicando na situação de que tudo o que um indivíduo aprende durante sua vida não é necessariamente válido em

outro meio cultural; 2. Quando ocorrem falhas de comunicação patenteadas na situação em que um indivíduo

enfrenta novos valores, gestos, linguagens e significados porque seu contexto cultural mudou; 3. Quando ocorre

perda de sinais e códigos implicando para o indivíduo na supressão dos modelos explicativos culturais que até

então o ajudaram a entender o mundo em sua volta; 4. Quando ocorre crise de identidade provocando no indivíduo

a perda da noção de quem ele é. Cortés ainda comenta que estas situações costumam vir acompanhadas com

respostas negativas associadas ao choque cultural como o medo, a frustração, o isolamento, a impaciência e a

insônia.

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demonstrar que códigos e símbolos provenientes de culturas distintas podem significar diferente

em outros contextos e tradições, podendo, portanto, serem apropriados e (re)significados por

seus sujeitos de maneiras diversas das quais foram particularmente investidos em suas origens.

Mas este processo de apropriação (desviante) do simbólico responde por um mecanismo

imaginário que é necessário explicitar. Com esse intuito, citemos, pois o exemplo decorrido

com o nosso personagem Antonino e o automóvel.

Partimos, pois, da idéia de que o automóvel é um símbolo inventado pela sociedade

moderna ocidental capitalista e que, portanto, “goza” no interior desta de um conjunto de

significados partilhados entre seus membros que se aliam ao sentido de poder (econômico e

social), progresso (tecnológico e científico), trabalho (transporte de carga e de pessoas) e

civilidade e lazer (urbanidade, entretenimento e bem-estar individual), não possuindo estes

mesmos sentidos para Antonino uma vez que este não participa daquele meio ou contexto

social, nem compartilha dos seus mesmos padrões culturais. Ou seja, Antonino não detém

(domina) os mesmos códigos simbólicos (o patrimônio cultural) daquela cultura, não

desenvolvendo com esta uma relação de identidade.

Entretanto, ao deparar-se à primeira vista com o automóvel, aquela imagem remete à

memória de Antonino uma concepção (o “já-dito”) sobre aquilo que ele ver acionando em suas

“reservas simbólicas”, isto é, as referências tradicionais (a tradição), sentidos e significados pré-

construídos e compartilhados pela cultura que participa e que são presentificados pela

“exterioridade” da figura do automóvel no momento que (se) olha: o forte ruído que libera, o

aspecto físico avolumado de tez escura e a presteza com o qual aquela “coisa” se move sobre o

solo espargindo poeira e vapor, associando este complexo de imagens ao que ele já concebia

como sendo um “bicho” feroz, uma “besta fera”, portanto. Assim, julgamos que houve o

“enquadramento” daquela imagem numa estrutura mental preexistente em Antonino (neste caso

no arquétipo268

da besta escatológica projetada sobre a idéia de um monstro enorme e feroz de

pele escura, com olhos de fogo e que cospe fumaça, recorrente em sua memória ativa269

). Ou

para ser mais condizente com nosso problema, dizemos que houve uma “falha de comunicação”

268 Entendemos por “arquétipos” os “elementos constitutivos do imaginário que atravessam os tempos, assinalando

formas de pensar e construir representações sobre o mundo”. (PESAVENTO, 2005, p.45). São estas, portanto,

“estruturas inatas, imagens de instintos [...] recorrentes”, capazes de orientar estruturalmente as elaborações das

representações coletivas. (idem, ibidem). 269

De acordo com Lucilia Neves Delgado (2006, p.17), “a memória ativa é um recurso importante para a

transmissão de experiências consolidadas ao longo de diferentes temporalidades”. Por este motivo esta está

diretamente relacionada com a idéia de tradições, isto é “as coisas ditas no passado e transmitidas até nós por uma

cadeia de interpretações”. (RICOEUR, 1997 apud. DELGADO, 2006, p.17). É em vista disso que esta também se

confunde com a noção de “tradição oral” definida por Vansina (2010, p.158) como "um testemunho transmitido de

uma geração para a outra" que se utiliza especialmente do "verbalismo" como maneira e forma de expressão e

transmissão da cultura.

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que provocou um “choque cultural” (a sensação de medo e terror vivida por nosso personagem

diante daquela figura “diabólica” imaginada), já que o sentido que aquele símbolo (o

automóvel) devia comunicar, não foi apreendido (decifrado) em seu significado “original” por

Antonino.

É em vista desse processo que Orlandi (2012) argumenta que “o imaginário faz

necessariamente parte do funcionamento da linguagem”270

, já que este interfere no seu processo

de significação. “Ele é eficaz. Ele não brota do nada”271

, enfatiza a autora, pois “assenta-se no

modo como as relações sociais se inscrevem na história e são regidas [...] [condicionando] os

sujeitos em suas discursividades e, explicitando o modo como os sentidos estão sendo

produzidos”.272

Elucidando melhor o pensamento da autora, são “as imagens [o imaginário] que

permitem que as palavras “colem” com as coisas”.273

Assim, concluímos que a “conversão” do automóvel na besta fera escatológica (bíblica)

só foi possível no imaginário de Antonino, por que esta se inscreveu na “tradição” de uma

formação discursiva e imagética, mediada pelos dispositivos da memória e ordenada pela

estrutura ideológica que este compartilha – a escatologia-apocalíptica popular camponesa de

base católica – amparada num contexto sócio histórico propício – a expansão territorial da

modernidade ou do modo de produção capitalista que conduziu para o mundo rural novos

símbolos de cultura “ignorados” por grande parte de seus habitantes, mas que encontraram

sentido no “arsenal” simbólico de uma rede de constituição imaginária, qual seja, a do

imaginário apocalíptico popular sertanejo constituído durante séculos de experiências. Isso nos

faz pensar como Arias Neto (2010) que

[...] na vida humana há sempre o elemento da imprevisibilidade e da surpresa,

que torna difícil, se não impossível, afirmar que tal evento determinou outro

acontecimento. Essa imprevisibilidade faz com que a história seja sempre

indeterminável, múltipla, plural e dialética, com suas mudanças e

transformações, mas também com suas permanências.274

[Grifo no original].

Pensando assim, o “causo” caipira de Pompílio representa mais do que uma simples analogia ou

“porta” de acesso para se compreender o passado. Ele nos fornece dados passíveis de serem

confirmados ou negados pela história. Mas deixando um pouco de lado o nosso personagem da

“ficção”, voltemo-nos agora para os atores reais de nossa trama.

Como pudemos perceber, a modernidade enquanto expressão do modo de produção

capitalista da sociedade moderna ocidental, produziu símbolos que tiveram de ser decifrados e

270 ORLANDI, 2012, p.42.

271 Idem, ibidem.

272 Idem, ibidem.

273 Idem, ibidem, p.48.

274 ARIAS NETO, José Miguel, 2010, p.224.

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compreendidos por outros povos e culturas na medida em que seu processo de expansão

territorial que chamamos aqui de modernização, ia sendo implementado pelas elites nos mais

diferentes lugares. Ademais, o processo de transição do antigo regime para o capitalismo

industrial vivido pelo Estado-nação moderno ocidental, “desencadeou a necessidade de

conquista de mercado mundiais, promovendo um forte trânsito de trocas culturais, em que o que

vinha dos países centrais, líderes do processo, tinha grande influência e impacto nas culturas

locais”.275

Um exemplo disso foi a invenção do artefato automóvel, “marca da chamada

Segunda Revolução Industrial e um dos símbolos mais importantes do século XX”.276

A respeito da figura emblemática do automóvel, esta parece ter marcado com maiores

ímpetos a memória e o imaginário dos habitantes dos espaços interioranos brasileiros e de modo

particular, do sertanejo nordestino, porque refletiu a opção das elites regionais pelo modelo

rodoviário de transporte como forma de integrar “os longínquos sertões nacionais” a

“civilização moderna e urbana do litoral”, passando a substituir a partir dos anos 1930 a

importância que vinha exercendo a ferrovia neste processo.277

Além disso, impulsionado pelo

crescente processo de industrialização brasileiro, o “rodoviarismo” surgia nesta época como

uma forma de incentivar a instalação da indústria automobilística no país, essencial para a

fabricação de transportes mais ágeis e endossar a estabilidade econômica nacional, já que

permitiria o escoamento mais rápido de mercadorias, sobretudo para as regiões portuárias e

zonas urbanas, tornando mais dinâmica a economia do país.278

É em vista disso, que os

primeiros investimentos em infraestrutura rodoviária como a construção de estradas de

rodagens vultuosas interligando as capitais brasileiras e a dilatação de vias urbanas de

transportes, seriam implementados ainda no início da República com o governo de Rodrigues

Alves (1902-1906), se intensificando na década de 1920 na gestão de Washington Luís (1926-

1930) e prosseguindo nos governos de Getúlio Vargas e Gaspar Dutra.279

Ainda no final da segunda década do século XX, instalava-se no país a primeira linha de

montagem da Ford que passou a funcionar inicialmente, em um exíguo armazém de cerca de

70m² alugado na rua Florêncio de Abreu, em São Paulo, com 12 operários. Assinara o decreto

autorizando a sua instalação no país o então Presidente da República do Brasil, Epitácio Pessoa

(1865-1942). O empreendimento fazia parte do plano expansionista de seu idealizador, o

americano Henry Ford (1863-1947), em estabelecer na América Latina subsidiárias de sua

275 MELO, Victor Andrade de, 2008, p. 190.

276 Idem, p.188.

277 Cf. ARRUDA, Gilmar, 2000, p.107.

278 BRASIL. MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES, 2001.

279 Idem.

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empresa automobilística com sede em Detroit, nos Estados Unidos (a Ford Motor Company),280

impelido pelo avanço da zona de influência norte-americana no continente, num contexto de

expansão do capitalismo internacional monopolista.

O primeiro projeto da Ford no Brasil foi a montagem do famoso modelo T (de 20 cv),

aqui apelidado carinhosamente de “Ford de Bigode” devido às duas alavancas colocadas sob o

volante (uma para acelerar e outra para regular a ignição) que posicionadas na horizontal

lembrava a figura de um bigode. Este modelo de automóvel já fabricado nos Estados Unidos

desde 1908, obteve uma boa aceitação no mercado brasileiro em decorrência das suas condições

de custo e manutenção que tornava-o mais acessível ao consumidor nacional (no início formado

em sua maioria por membros das elites ou da classe média endinheirada que mantinha alguma

relação com o projeto de modernização do país) e também por que apresentava novidades em

relação a outros veículos importados com características semelhantes.281

O sucesso do “Ford

Bigode” e a crescente demanda por uma maior produção, tornaram as primeiras instalações da

Ford insuficientes que tiveram que serem transferidas para um novo espaço, agora reprojetadas

para um prédio próprio localizado na Rua Sólon, no bairro do Bom Retiro, na então progressista

capital paulista. Nesta nova sede, além dos habituais automóveis, também tiveram início a

montagem dos primeiros tratores e caminhões.282

Em janeiro de 1925 novo aditamento granjeava a indústria automobilística nacional com a

chegada da General Motors no Brasil. Instalando-se primeiramente em um galpão arrendado na

Avenida Presidente Wilson, no bairro histórico do Ipiranga, em São Paulo, a montadora norte-

americana vinha com um capital social de 2 mil contos de réis e contava no início com uma

capacidade para montar 25 veículos por dia.283

Com o êxito de seu primeiro carro (um furgão de

entregas urbanas da marca Chevrolet) e o conseqüente sucesso de suas vendas, ainda em seu

primeiro ano de fundação no país, a empresa contabilizava 5.597 unidades vendidas, obrigando

a fábrica a aumentar sua produção diária para 40 veículos.284

Em setembro de 1927, a linha de

montagem fabricava seu veículo de nº 25.000 e em 1932 o primeiro ônibus com carroceria

inteiramente nacional.285

“Eram os primeiros passos da indústria automobilística que produzia

veículos que se espalhavam pelos quatro cantos do Brasil como símbolo da modernidade

280 ROCHA, Carlos R. H; PETRICH, Matthias. A história do automóvel no Brasil – Parte 1 – “Ford”. Ceará Autos.

Disponível em: <http://www.cearaautos.com/index.php?option=com_k2&view=item&id=169:historia-do-

automovel&Itemid=5>. Acesso em: 04 abr. 2014. 281

Idem. 282

Idem. 283

ROCHA NETO, Manuel Pereira da, 2005, p.102. 284

Idem, ibidem. 285

General Motors no Brasil – Chevrolet. Curiosidades. www.carroantigo.com. Disponível em:

<http://www.carroantigo.com/portugues/conteudo/curio_nacionais_chevrolet.htm>. Acesso em: 04 abr. 2014.

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daquele período”286

, mas não só com este prestígio, já que também seriam estes primeiros

veículos motorizados, sobretudo o famoso “Ford Bigode” (um dos primeiros a ser

comercializados no país), que ficariam notabilizados por disseminar o medo e o pânico junto as

populações sertanejas com suas entradas e passagens “espalhafatosas” pelas pequenas vilas e

cidadezinhas interioranas.

Assim, aclamado como um demiurgo nos novos anseios de progresso das elites nacionais

preocupadas em vincular o país ao “civilizado mundo moderno”, mas também detratado como

“monstro diabólico” que difundia o terror e o receio com sua presença “sinistra” e “ruidosa”287

,

aos poucos, o automóvel invadia as ruas das cidades brasileiras – de início se concentrando nos

principais centros urbanos comerciais e industriais e capitais litorâneas mais bem servidas de

infraestrutura viária como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife –, para depois penetrar

as pequenas cidades, vilas e povoados sertanejos rompendo caminhos e estradas acidentadas e

poeirentas, muitas delas só acessíveis a animais de cargas, tropeiros, mulos e viajantes.

Como corolário do processo de integração e modernização deflagrado em escala nacional,

a “corrida” do progresso “sob quatro rodas” rumo aos sertões deixou marcas profundas no

imaginário e na memória de seus moradores (como as que deram fundamento a esta pesquisa),

que mesmo depois de décadas de experiências, seus ecos ainda fazem ser ouvidos na tradição

oral e nas manifestações do lendário e do anedotário regional, especialmente no que tange aos

casos do Seridó potiguar e do município de Cruzeta contemplados particularmente neste estudo.

O “causo” caipira de Pompílio apreciado aqui anteriormente, é um exemplo da apropriação

criativa desta experiência histórica “cristalizada” na memória ativa de grupo, que demonstra

como ainda ao longo de diferentes temporalidades a experiência do passado que ele espelha

continuou a ser transmitida entre seus membros. Mas o lance do sertanejo Antonino e do

automóvel transformado na besta escatológica pelo artifício de seu imaginário, não teria

nenhum valor para nossa pesquisa se ele não refletisse, ainda que sob o viés da literatura, uma

realidade histórica tão “prosaica” em nosso contexto mais amplo. O que narram os vários

“eventos” que tivemos acesso parece calhar sobre esta mesma história sucedida alhures, muito

embora encenada por diferentes atores e apresentando gradações distintas. O mesmo expôs

Paulo de Brito Guerra em sua obra “Civilização da seca” quando se referiu a “uma época em

que o automóvel, raro nas capitais, transformava-se na "besta fera" quando, a muito custo,

conseguia penetrar os sertões bravios, sem estradas”.288

286 ROCHA NETO, op. cit., p.102

287 QUELUZ, Marilda Lopes Pinheiro; VILLATORE, Flávia Roberta, 2012.

288 GUERRA, Paulo de Brito, 1981, p. 45.

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Mas à vista deste tecido geo-histórico e antropológico muito vasto e heterogêneo que são

os “sertões” brasileiros, nunca é demais lembrar que o desdobrar-se da história mantém com os

“lugares” relações muito próximas, o que nos obriga a tratar estes espaços a partir de suas

peculiaridades e diferenças sem, contudo, deixar de lado as possíveis conexões que possam ser

tecidas com outras instâncias e contextos mais amplos (o nacional e o global, por exemplo).

Isso desloca o nosso problema muito além do desvelamento de um complexo mecanismo de

apropriação simbólica do imaginário para filiá-lo a uma rede de formação ideológica mais

ampla. Com isso, queremos dizer que, embora cada caso emirja em sua particularidade, este

encontra-se vinculado a uma complexa teia de sentidos e significados de onde extrai suas

imagens, já que sendo o imaginário vivo e potente “sem se tornar obrigatoriamente

homogêneo”, possui sempre “modelagem infinita, segundo os grupos sociais, as classes de

idades, os sexos, os tempos e os lugares”.289

Tratando-se de nossa realidade, custa-nos, pois, vincular o caso do Seridó norte-rio-

grandense e do município de Cruzeta, em paticular, à complexa teia de produção do imaginário

em movimento nos sertões nordestinos, sem que com isso tenhamos que perder de vista as

particularidades que os fizeram abrolhar no cenário local da história. A esta teia regional é que

se conecta a produção do imaginário apocalíptico popular que se construiu em torno da

passagem dos primeiros automóveis pelas plagas seridoenses – os temidos “fords besta-fera” –,

quando as suas estradas eram apenas “veredas abertas, de fazenda a fazenda, de povoado a

povoado”, alargadas pelo constante trânsito dos cascos dos animais.290

A respeito destes episódios, Antônio Othon Filho (1970) anotou em suas memórias o

grande assombro que causou na Vila de Currais Novos a passagem do primeiro automóvel no

remoto ano de 1915.291

Jayme da Nóbrega Santa Rosa (1974), historiador acariense, também

registrou em sua obra a chegada do primeiro veículo motorizado em Acari no ano de 1913 (um

Big-Four da firma Sabóia Albuquerque & Cia.) comparando-o a um “mostro mecânico” que

disseminava terror pela “estrada de animais” por onde passava provocando, inclusive, um

acidente quase fatal com um dos moradores locais.292

Outros automóveis como o Ford de

bigode chegaram na localidade ainda no começo da década de 1920 quando ainda não haviam

estradas de rodagem.293

Em Caicó a chegada do primeiro automóvel deixou a população em palvorosa. Segundo

289 MUCHEMBLED, Robert, 2001, p.9.

290 GUERRA 1933 apud. GUERRA, Otto, 1983, p.14.

291 OTHON FILHO, 1971, p. 177.

292 SANTA ROSA, 1974, p.98.

293 Idem, p.99.

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Monteiro citado por Rocha Neto,

[...] a cidade conheceu o automóvel no dia 27 de março de 1919 às 7 horas da

noite. Seu proprietário era Manuel Coriolano de Medeiros. Foi um

acontecimento que parou a cidade. Não ficou ninguém dentro de casa porque

todo mundo queria ver os dois olhos acesos do pé-duro. Os meninos se

espantaram, temendo tratar-se da besta-fera. [...] onde o carro parava era uma

loucura. Ele ficava rodeado de gente curiosa, que logo se dispersava, num

susto, quando o motorista acionava a buzina. Houve gente que nem quis mais

jantar ao ver de perto um automóvel.294

.O caso mais notável registrado pela tradição oral da região, ocorreu em São José da

Bonita (atual São José do Seridó) onde o episódio da chegada deste “signo de modernidade”

(um Ford do modelo T apelidado de “Ford 29”) terminou em confusão. Conta a tradição que

assustada com o barulho e o aspecto “infernal” do estranho “visitante”, a população se muniu

de “enxadas e picaretas” e acabaram eliminando a “horrenda criatura” por acreditarem se tratar

da besta fera profetizada por Padrinho Ciço. Caso semelhante também ocorreu em Barcelona,

interior agreste do Rio Grande do Norte, onde a passagem do primeiro automóvel pelo lugarejo

nos anos 30 provocou o pânico entre os moradores da cercania. Conta-se que os moradores

locais se assustaram tanto com a barulheira do motor e as luzes dos faróis do veículo, “que

empunhando pedaços de paus e pedras cercou o carro e pôs-se a brandir contra o que

imaginavam ser a “besta fera”. O povo só foi tranqüilizado depois que um dos passageiros teve

a feliz idéia de dizer que o carro se tratava, na verdade, de um "fogão ambulante"”.295

(Ver

imagem 17 em anexo).

No município de Cruzeta as primeiras aparições destes “símbolos do progresso” também

deixaram rastros sensíveis na memória e no imaginário popular de seus moradores. Dona

Leonete, professora aposentada de 75 anos, lembra com detalhes da história narrada pelo pai

sobre a passagem do primeiro automóvel pelo lugarejo numa época em que a cidade era apenas

um tímido povoado capeado no meio da caatinga.

O meu pai contava muito isso, que estava previsto este carro passar aqui em

Cruzeta. Que ia para a Estação (naquele tempo não era EMPARN, era Estação

Experimental do Seridó) e ficou todo mundo na expectativa desse carro. E que

quando viram disseram: “Não! Aquilo é a besta-fera”. E se juntaram na pedra,

no cacete. Tudo brabo, assombrado. Aí o motorista vendo aquilo, saiu

correndo. Quando saiu correndo, todo mundo deixou o carro e foi atrás do

motorista que era o piolho da besta-fera. [...] Ele dizia que a buzina do carro

era horrível. Ficaram tudo louco. Isso aconteceu a meio dia. Muitas das

mulheres para ver este carro, deixaram a comida queimar. Quando chegaram

em casa não tinha nada no fogo mais, tudo queimado e o povo doido na

carrera. [...] quando o carro entrou naquele beco que era de seu João Lopes e

294 MONTEIRO, 1999 apud. ROCHA NETO, 2005, p. 101.

295 Cf. O Ford besta-fera. Portal virtual Barcelona (RN – Brasil). Curiosidades. Disponível em:

<http://www.barcelona.educ.ufrn.br/curiosidades.htm >. Disponível em: 11 abr. 2014.

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Seu Celso Clementino, o pai de dona Nazaré [...] foi que a buzina troou. [...] Aí

as mulheres saíram correndo e os homens foram enfrentar o cão.296

Mais que expressar fatos verídicos, a história narrada “do ouvir falar” por Dona Leonete

expressa o terreno de sua subjetividade sobre uma época já distante no tempo. Ela traduz em

luzes e cores as impressões de um passado projetado pela imaginação e resignificado pela

memória que são presentificadas no ato próprio do lembrar, mas que também exprimem as

representações de um tempo que lhe ficou como herança ou como memória tecido em conexão

com os imaginários sociais do grupo que participa. Isso nos faz acreditar como Sônia Maria de

Freitas que lembrar também é uma ação coletiva,

[...], pois embora o indivíduo seja o memorizador, a memória somente se

sustenta no interior de um grupo. A reconstrução do passado, portanto, irá

depender da integração do indivíduo em um grupo social que compartilha de

suas experiências. Será esse grupo que dará sustentação a suas lembranças”.297

Partindo deste ponto de vista, o caso narrado por Dona Leonete exprime mais que uma

reminiscência pessoal que ela adquiriu ouvindo das confabulações do pai nos momentos de

“prosa” entre família. São evidências históricas de experiências de grupo por ela

compartilhadas cujo drama da existência deixou vestígios em sua memória. Em sua narrativa,

estão expressos sentimentos, medos, aflições, temores e incertezas, ainda que diluídos em

alguma dose de jocosidade, sentidos por muitos cruzetenses e sertanejos que vivenciaram nos

sertões seridoenses o drama do choque cultural diante do avanço do mundo moderno. O lance

do chofer, que de agente da civilização e do progresso298

fora reduzido ao “piolho da besta fera”

no imaginário dos atores da trama, expõe a argúcia das identidades singulares em inscrever em

suas práticas específicas produtoras de sentidos, aquilo que lhes é imposto de fora como

modelo. Os muitos casos que, como o narrado por Dona Leonete, relatam o encontro do homem

sertanejo com o artefato automóvel, expressam apenas o epílogo deste drama histórico mais

amplo vivenciado pelas populações camponesas nos sertões nordestinos e resignificado pelo

seu universo ideológico religioso.

Se esta experiência do “choque” exprime no imaginário dos atores apenas uma reação

eventual diante do “desconhecido elemento moderno”, esta não parece ter sido uma condição

histórica inflexível, já que os processos de apropriação simbólica daquilo que se impõe como

296 Depoimento concedido pela Sra. Leonete Pereira de Medeiros, 75 anos, no dia 08 de dezembro de 2009.

297 FREITAS, 2006, p.42.

298 Sobre este personagem freqüentemente associado a um “forasteiro” nos sertões de antanho, assim o descreveu

Roger Bastide (1973, p.109) em passagem célebre: “o motorista, que bem merece ser celebrado pelos trovadores

rústicos, roda léguas e léguas em caminhos esburacados, em leitos de rios secos que servem de estradas, em

caminhos pedregosos sob o sol tórrido, obrigado a fazer ele mesmo todos os reparos no carro, a viver de conservas;

mas leva consigo, do litoral de onde partiu, a lei escrita, o respeito pelo Estado, as idéias novas, o interesse pela

escola, pela leitura, o progresso econômico e material”.

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modelo não precedem a própria experiência no tempo, que tanto pode ser de conformismo e

resistência como lembra Chauí (1987), como de subversão e sutileza como cita Chartier (1995),

mas nunca de submissão e reprodução totalmente. Em vista disso, é preferível entender esta

circunstância da história para além do “choque” ou do “encontro” imediato, supondo mais

adequado percebê-la em sua condição de processo. Isso significa, aqui, situá-la na extensão de

um tempo mais longo que nos imbui a pensar como Roger Chartier que

compreender “cultura popular” significa, então, situar neste espaço de

enfrentamentos as relações que unem dois conjuntos de dispositivos: de

um lado, os mecanismos da dominação simbólica, cujo objetivo é tornar

aceitáveis, pelos próprios dominados, as representações e os modos de

consumo que, precisamente, qualificam (ou antes, desqualificam) sua

cultura como inferior e ilegítima, e, de outro lado, as lógicas específicas

em funcionamento nos usos e nos modos de apropriação do que é

imposto.299

É neste espaço de tensão que o autor chama de “recepção” ou “apropriação” que emergem as

formas denominadas “populares” da cultura, estas podendo “ser pensadas como táticas

produtoras de sentido, embora de um sentido possivelmente estranho àquele visado pelos

produtores”.300

Entender, portanto, a produção do imaginário apocalíptico construído acerca do

automóvel e de outros símbolos de modernidade nos sertões seridoenses, é inscrevê-la numa

prática popular de apropriação simbólica de grupo, já que “a vontade de inculcação de modelos

culturais [por forças externas] nunca anula o espaço próprio da sua recepção, do seu uso e da

sua interpretação”301

pelas identidades singulares que tanto podem recebê-los, como manipulá-

los e interpretá-los de diferentes maneiras. Isso nos obriga a caracterizar a cultura popular, “não

[na condição de] conjuntos culturais dados como “populares” em si, mas [em posição de] [...]

modalidades diferenciadas pelas quais eles são apropriados”.302

Na fala de dona Ambrosina de Zezão, agricultora aposentada de 75 anos e moradora no

Sítio Fechado, município de Cruzeta, estão impressos os sentimentos de medo e apreensão que

tangenciaram seus primeiros contatos com o mais novo “inquilino” desconhecido do “pedaço”,

o automóvel. Também o seu relato deixa patentes as impressões de muitos cruzetenses que

compartilharam no passado de sentimentos semelhantes. Os poucos termos que descrevem suas

experiências com este “estranho cominador” que começa a rondar a localidade, denunciam o

universo simbólico pelo qual foi apropriado e patenteiam as práticas específicas nas quais

299 CHARTIER, 1995, p. 184-185.

300 Idem, p. 185.

301Idem, ibidem, p. 186.

302 Idem, ibidem, p. 184.

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foram inscritas, situando-as em uma época ainda não tão distante no tempo e indo além do

“choque” eventual.

Quando apareceu o carro até eu tive medo. A gente tinha medo de quando

apareceu por que ninguém conhecia. Todo mundo só andava a cavalo. Neste

tempo nem bicicleta tinha. Não tinha nada. A gente só andava de animal.

Quando começou aparecer os carros, pensava que já era o fim do mundo. Aí

foi quando que por aqui começou aparecer um Sinhô num Misto. Todo mundo

ficou assombrado. Era o único carro que tinha. Carregava gente pra todo canto.

Aí o povo quando viu esse carro ninguém quis andar com medo [...] mais aí

foram se acostumando, foram se acostumando [...].303

O novo “inquilino” atemorizante do lugar que nos fala dona Ambrosina em seu relato,

trata-se da famosa “Mogiana” (caminhão “misto”) introduzido na localidade pelo Sr. Luiz de

França Dantas (o Seu Capucho), comerciante local, já nos anos 1950. Outros veículos como o

caminhão de seu Benedito Vale, também comerciante, o “misto” de Seu Júlio Umbelino de

Araújo, marchante local e a “Rural” de Seu Neco Dantas, ainda apareceram neste período.304

(Ver imagem 18 em anexo).

O “misto”, como o próprio nome já subentende, era o termo popular empregado para

designar o caminhão Chevrolet adaptado para o transporte de pessoas e cargas, composto por

duas “boleias” ou cabines de madeira onde se transportava o passageiro e uma carroceria em

que se colocava a bagagem.305

Veículo muito utilizado pelos feirantes e sitiantes locais na

condução de gêneros e víveres para serem comerciados em dias de feira nas cidades da região

ou dos Estados vizinhos, a sua função por longo tempo como o único condutor de passageiros

das áreas interioranas do Nordeste lhe passaria à memória de muitos sertanejos como o

“ônibus” da zona rural.306

Suas aparições pelos sertões seridoenses se acenam em uma época

em que “já não afloram pelas estradas com a mesma insistência os vestígios macabros que

denunciavam a passagem das [velhas] caravanas [de tropeiros]”.307

Em substitutivo ao tangerino passo dos comboios, surge um novo elemento na paisagem

rural em mutação ainda mais veloz, ameaçador e “diabólico” que os primeiros veículos

automotores: o caminhão. “Para ele fizeram-se extensões de admiráveis panoramas, rasgaram-

se planos” onde se desenham “como um espinhaço vertiginoso” de “quilômetros de terra

303 Depoimento concedido pela Sra. Ambrosina Maria, 75 anos, no dia 20 de Agosto de 2012.

304 Informações concedidas pelo Sr. Júlio Umbelino Filho, 59 anos, no dia 16 de maio de 2014.

305 Cf. ISSLER, Bernardo. O Misto: Pau-de-arara na Região Nordeste do Brasil. Tipos e aspectos do Brasil –

coletânea da Revista Brasileira de Geografia. Disponível em: <http://www.consciencia.org/o-misto-pau-de-

arara-na-regiao-nordeste-do-brasil>. Acesso em: 15 abr. 2014. 306

Idem. 307

LEITE, Francisco Barboza. O Pau-de-arara: transporte e correntes de migrantes nordestinos. Tipos e aspectos

do Brasil – coletânea da Revista Brasileira de Geografia, IBGE – Conselho Nacional de Geografia, 8 ed., Rio

de Janeiro, 1966. Disponível em: <http://www.consciencia.org/o-pau-de-arara-transporte-e-correntes-de-

migrantes-nordestinos>. Acesso em: 15 abr. 2014.

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arrebatada às selvas”,308

as estradas de rodagem que conectam umbilicalmente sertões e litorais,

planícies e tabuleiros, idéias e informações, aproximando costumes, povos e regiões e

estreitando os laços comerciais entre Estados e municípios.309

Estes engenhos “de quatro rodas”

conduzidos aos sertões, eram o corolário do avanço da indústria automobilística nacional que

deixava para trás suas modestas origens para transformar-se em uma das maiores do mundo nos

meados do século XX.310

A respeito da chegada dos primeiros veículos automotores em Cruzeta, também lembrava

Manuelzinho Dantas, agricultor octogenário e morador no Sítio Cruzeta Velha, rememorando

uma velha profecia que já ouvira falar quando criança e que “o povo mais antigo” atribuía ao

santo do Juazeiro:

Pade Ciço dizia que nestes tempos o povo ia ver a besta fera nas portas

carregando o povo. O povo ficava tudo assombrado falando: “Ave Maria

a Besta fera!” E quando chegava nas casas da gente – o povo tinha a

ilusão com a Besta fera, achava que era um bicho que vinha para

carregar o povo – aí depois chegou os carros. O carro carrega gente pra

todo canto, tudo no mundo, tudo. Aí eu digo muito ao povo que a besta

fera que pade Ciço falava eram os carros, por que os carros é um troço,

uma coisa que você movimenta pra todo canto, vai pra todo canto nele,

anda nele, passeia, faz tudo, mas quando dá fé, quando vai um bocado

de gente ele dá uma virada, mata um rebanho de gente, mata um bocado

de gente. A besta fera é isso, por que quando dá uma desgraça mata

tudo.311

Assim como no episódio narrado por dona Leonete, o relato de dona Ambrosina e do velho

camponês da Cruzeta Velha, expressam as experiências dos membros de um grupo que

vivenciaram em outras épocas o drama do “choque cultural” com os “novos símbolos do

progresso”, muitos deles levados aos sertões seridoenses pelo processo de modernização

implementado pelas elites locais. Foram eles lavradores, roceiros, homens do campo, sobretudo,

que não deixaram (ou não puderam deixar) outros registros que não aqueles remanescentes na

tradição oral do grupo.

Mais que exprimir o drama cultural do “choque” experimentado por estes sujeitos diante

da expansão da modernidade, o episódio narrado por dona Leonete e os relatos de dona

Ambrosina e de seu Manuelzinho Dantas também inscrevem suas experiências nas práticas

específicas populares, denunciando as maneiras próprias de como seus atores se apropriaram do

“signo moderno”, o automóvel, a partir do plano ideológico reentrante no grupo, ou seja,

308 Idem.

309 Idem, ibidem.

310 BRASIL. MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES, 2001.

311 Depoimento concedido pelo Sr. Manuel Anastácio Dantas, 82 anos, no dia 09 de maio de 2013.

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daquele que subscreve seus imaginários no universo simbólico da escatologia apocalíptica

sertaneja. Recordando uma profecia do “Padim Ciço” que ouvira dos pais quando ainda era

moradora no Sítio Pau Lagoa em Cruzeta, assim expressou dona Maria do Carmo, ex-

trabalhadora de enxada de 57 anos, a respeito do aparecimento do automóvel: “Ele falava que ia

chegar um cavalo com dois ôio de fogo. Aí o povo ficaram assombrado quê não sabia o que era.

Aí quando não, chegou o carro. Era o cavalo com os dois ôio de fogo”.312

Resignificado pelas

profecias apocalípticas que percorriam os sertões seridoenses, o automóvel se transformava sob

a aquiescência da “voz” do “Santo Padrinho”, na “besta apocalíptica da terra”.

Mas a “marcha” do progresso e da modernidade perpretada pelas elites, também levou

consigo novas maneiras de como tratar e viver a vida nas cidades, vilas e povoados seridonses,

impondo às populações locais medidas sanitaristas de como combater as doenças virulentas tão

comuns por aquelas plagas.Uma postura adotada neste sentido foram as “campanhas sanitárias”

de vacinação e profilaxia que ganharam espaço na região ainda na primeira metade do século

XX, algumas delas assumindo o caráter de ações emergenciais para enfrentar surtos epidêmicos

esporádicos sem a preocupação de montagem de estruturas sistemáticas mais perenes.313

No lastro da nação que se republicanizava, os cuidados com a saúde do corpo e da família

se tornaram alvo de práticas e discursos médico-sanitaristas que se intensificaram no Brasil a

partir da década de 1920, passando a fazer parte das agendas políticas das autoridades

governistas.314

Estas condutas encontravam respaldo no ideário republicano de formação de

uma nação “forte” e “sadia” no interior do qual emergia o discurso da construção da família e

do indivíduo saudável e últil.315

Corroborado por este ganhava vigor a predicação da defeza e

proteção dos corpos que via na prática de “higienizar” os indivíduos, uma atitude “crucial para

defender a “civilização” e construir uma nação saudável” que se pretendia moderna.316

Reforçada com a emergência das posturas modernizantes que tomavam formas nas mais

diferentes regiões do país, a “imunização” enquanto “cultura” da vacina e da vacinação, passou

a ser adotada como tecnologia de “incorporação” e “integração” de territórios e populações ao

Estado nacional, sendo raciocinada como uma forma de promover a cidadania biomédica entre

poder central e elites locais e obter a regularização da interdependência sanitária, isto é, dos

efeitos externos negativos das doenças de uns sobre terceiros.317

Desse modo, fazendo parte das

políticas sanitaristas e de saúde implementadas pelas ações do governo nas várias localidades

312 Depoimento concedido pela Sra. Maria do Carmo Oliveira, 57 anos, no dia 22/08/2012.

313 Cf. ANDRADE, Juciene Batista Félix, 2007, p. 122-130.

314 OLIVEIRA, Iranilson Buriti de, 2003, p. 14.

315 Idem.

316 Idem, ibidem, p.15.

317 HOCHMAN, Gilberto, 1993; 2011.

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do território nacional, a vacinação em massa tornava-se numa forma de promover o

“saneamento nos sertões” pensado nesta conjuntura “como o caminho para recuperar e civilizar

o país”.318

Esta postura interventora era axiomática de um tempo em que as doenças e os

problemas sanitários locais deixavam de ser entendidos apenas como um “mal” privado ou

isolado, para fazer parte de ações concretas da agenda pública das elites no Brasil.

Certamente contibuiu para isso o avanço das ciências médicas incluindo os estudos de

microbiologia e as modernas técnicas terapêuticas adotadas no combate as doenças que

revolucionaram o mundo científico no decurso do século XIX. Estes progressos alcançados pela

medicina experimental tornaram possíveis a produção de imunizantes e a fabricação de vacinas

em escala industrial ainda no final do referido século que seriam utilizadas no Brasil pelos

serviços de profilaxia rural no intento de se conseguir o “seneamento nos sertões”. Algumas

doenças como as chamadas endemias rurais (a malária, a ancilostomose e a doença de Chagas)

começaram a ser alvo das políticas de saúde brasileiras na segunda década do século XX,

especialmente a partir da criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) em

1919, pelo então presidente da República, Epitácio Pessoa. Com a tônica de erradicar as

doenças nos espaços interioranos, foram instalados “postos sanitários em áreas não urbanas e

nas periferias das principais cidades, muitas vezes significando o primeiro contato efetivo da

população dessas áreas com o poder público”.319

As mazelas sociais e a precariedade das condições sanitárias experimentadas pelas

populações sertanejas do Nordeste que se agravavam ainda mais com a irrupção das secas

periódicas, fizeram com que a região se tornasse no principal alvo das campanhas sanitaristas

do governo.320

Como parte desta investida mais ampla, a região do Seridó norte-rio-grandense

não escapou à causa.

Embora se observe uma preocupação com os “problemas sanitários do Seridó” desde o

governo de José Augusto Bezerra (1924-1927) como constatou Batista de Andrade (2007), as

primeiras campanhas de vacinação implemetadas na região, seriam acionadas com o intuito de

controlar surtos epidêmicos ocasionais, sobretudo aqueles associados aos flagelos das secas,

que nem sempre estariam acompanhadas de um projeto eficaz de conscientização das

populações.321

Estas posturas esporádicas abriam espaços para o surgimento de interpretações e

deturpações as mais diversas por parte das populações assistidas que por vezes encontravam

318 Idem.

319 HOCHMAN, Gilberto, 1993, p. 15.

320 ANDRADE, op. cit., p. 122.

321 Cf. idem, ibidem, p. 122-130.

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sentido na lógica de produção dos imaginários locais. Além disso, a adesão às posturas

sanitaristas do governo, nem sempre significava a afirmação da defesa de seus valores e

propósitos, não anulando ocasiões de dúvidas ou desconfiança nos sujeitos. Este

comportamento que Chartier denomina de “atenção oblíqua”, isto é, a capacidade dos sujeitos

de se manter à “distância” dos modelos impostos ou de se apropriar deles inscrevendo-lhes sua

própria lógica, nos ajuda a entender o simbolismo apocalíptico que se formou em volta das

primeiras vacinas contra a varíola322

que foram surgindo em Cruzeta ainda na primeira metade

do século XX. A vacina antivariólica tinha o efeito de deixar como distintivo perene um estigma

sobre a epiderme do paciente a respeito da qual o sertanejo local associava-a ao “carimbo”

(marca) da besta fera.

No tocante as primeiras medidas profiláticas do governo contra a varíola em solo

cruzetense, Alexandrina Campos, professora aposentada de 73 anos, lembra o que diziam “os

mais antigos” da família a respeito das vacinas antivariólicas no tempo de sua infância quando

ainda era moradora na zona rural em Cruzeta e tece uma ligação da prática sanitarista de

vacinação com o simbolismo da “besta” em circulação na localidade e na região.

Eu era muito criança quando fui tomando conhecimento das vacinas que foram

chegando a Cruzeta. A primeira foi a vacina contra a varíola, porque naquele

tempo tava grassando a região toda, causando grandes estragos nas pessoas,

morrendo muita gente e houve esta preocupação do governo de mandar as

vacinas que chegaram até lá. E as primeiras causaram muito pânico na

população, porque naquela época tinha a história do carimbo da besta fera e

talvez as pessoas até pensassem que estavam sendo marcadas com este

carimbo, porque a vacina da varíola deixava um marco muito profundo no

braço da pessoa. Ela inchava, depois estourava aquela bolha e ficava inflamada

e quando cicatrizava ficava aquela marca bem profunda. Marcava a pessoa pra

toda a vida. Eu não era nascida ainda quando começou a aparecer, porque

provavelmente foi lá pelo começo dos anos 1930. Eu lembro bem que eu tinha

minha irmã mais velha, Julieta, ela já tinha sido vacinada [...] quando eu já

tinha uns 10 anos ou mais [...] e a gente perguntava sempre o que tinha sido e

mamãe dizia que tinha sido esta vacina contra a varíola. [...] e a gente desde

muito sedo já tinha este conhecimento desta história [...] como os mais antigos

diziam [...] de que era o carimbo da besta fera. E passou muitos anos sem

acontecer de novo. Só nos anos bem mais recentes, já, talvez, lá pra 1950 mais

ou menos, ela voltou igual à vez de quando a gente foi vacinada.323

O relato narrado pela depoente revela sua vivência pessoal no seio do grupo familiar com

o qual mantinha suas relações interpessoais na infância entre as décadas de 1930 e 40 e por

onde travou seus primeiros contatos com as crenças apocalípticas populares. A experiência

narrada integra ainda as reminiscências familiares tecidas no calor do lar campesino e

322 Também chamada popularmente de “bexiga braba” em alusão as pequenas pústulas (bolhas purulentas) que

emergiam na superfície cutânea do enfermo. 323

Depoimento concedido pela Sra. Alexandrina de Oliveira Campus no dia 21/05/2010.

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transmitidas por uma cadeia de sentidos e interpretações pelos “mais antigos” do grupo que

denota a importância de certos indivíduos como guardiãs de uma memória a ser passada de

geração para geração, mas que não estão circunscritas apenas ao espaço e a memória doméstica.

Em seu testemunho estão ainda expressos referências tradicionais partilhadas por uma

“coletividade de imaginação” que assim como dona Ambrosina e Seu Manuelzinho,

inscreveram suas primeiras experiências com os “símbolos de modernidade” no universo

simbólico das crenças apocalípticas do sertão. São estes fragmentos de memória, antes de tudo,

“restos”, resíduos de uma “memória cristalizada” arrancada do que sobrou do vivido no calor

da tradição como nos fala o Pierre Nora. Para o historiador indiciário são, além disso, “pistas”,

sinais deixados de experiências vividas por uma coletividade de sujeitos que compartilhara no

passado de uma cultura oral, cujos rastros presentes nas declarações daqueles que vivenciaram

ou testemunharam em solo cruzetense o drama do choque cultural ante o avanço do mundo

moderno, acusam detalhes reveladores.

Tal como ocorreu com o aparecimento das vacinas antivariólicas e dos primeiros

automóveis transformados na “besta escatológica da terra”, o surgimento dos primeiros aviões

em Cruzeta também deixariam fortes impressões no imaginário popular. É também Alexandrina

Campus que relata um caso envolvendo a sua avó materna e um monomotor, avião de pequeno

porte, presenciado em sua infância nos idos de 1940 e cujos detalhes do episódio guarda ainda

bem vívidos na memória.

Num determinado dia nós estávamos em casa na Estação e minha avó chegou

correndo muito. Ela com tia Maria que era menina neste tempo. Chegou lá

correndo muito assombrada que não podia nem falar. De lá da Estação, a gente

via algum movimento desse avião, mas não sabia se ele vinha de Natal e que

por algum problema teve que pousar lá perto, justamente da casa dela. Ela

quando viu isso apavorou-se e disse que era a besta fera. Que a besta fera já

estava chegando na casa dela. Então ela correu muito e saiu gritando. Pulou a

cerca da casa dela e saiu correndo lá pra casa. Ia morrer lá em casa, pois a

besta fera já estava correndo no mundo. Quando ela chegou lá em casa foi

dizendo assim: “madrinha a besta fera acabou de passar em Cruzeta”. [...] Ela

chegou lá nesse pranto todinho, se acabando [...], pois a besta fera tinha

acabado de chegar em Cruzeta.324

O caso narrado acima descreve o drama vivido por uma antiga moradora cruzetense, hoje

já falecida, em presença da passagem pela localidade de Cruzeta deste revolucionário símbolo

do progresso técnico-científico do mundo moderno contemporâneo: o avião. Sua experiência

narrada por uma testemunha da família mais que denotar uma evidência pessoal biográfica,

denuncia a inserção da nossa personagem num processo coletivo de grupo. Contemporânea dos

impactos provocados pelas mudanças em curso em seu mundo tradicional é esse drama mais

324 Depoimento concedido pela Sra. Alexandrina de Oliveira Campus no dia 23/08/2012.

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profundo que ela vivencia no episódio cujo lastro da história se perdeu na memória de sua

narradora circunstante.

Residindo no local desde tempos mais longínquos, Sinhá Alexandrina, como era

conhecida nossa protagonista em Cruzeta, tornou-se parteira e curandeira afamada entre seus

compatrícios. Vivendo da filantropia de seus ofícios, adquiriu lote de terra e construiu tapera

onde se estabeleceu desde os primeiros tempos do povoado próximo aos arredores do núcleo

urbano.325

Embora já nos primórdios de suas origens Cruzeta despontasse como uma povoação

florescente com cerca de 150 prédios contabilizados por Phelippe Guerra sete anos depois do

ato de sua fundação326

, antes deste período, seu centro habitacional era bastante reduzido, não

possuído mais que “apenas algumas rústicas casas e a capela de Nossa Senhora dos Remédios,

subordinada à Freguesia de Nossa Senhora da Guia do Acari” imperando na paisagem proto-

urbana.327

A vida exordial do povoado dependia estritamente da dinâmica que pulsava do

campo, amalgamando-se com a paisagem rural do entorno, salvo apenas nos dias de feira

semanal ou dos santos e festejos principais celebrados na capela local que faziam lembrar ao

aldeão o significado primordial do vilarejo, já que os moradores dispersos pelas cercanias se

reuniam no povoado para festejar, socializar-se e “fazer a feira”.328

As relações interpessoais

tecidas entre os habitantes locais estreitavam ainda mais as afinidades entre o campo e o

“embrião de cidade”, pois eram regidas pela solidariedade grupal pautada pela necessidade de

ajuda mútua, onde os vínculos de parentesco e vizinhança eram determinantes.

As três décadas que se seguiriam a fundação do povoado, sinalizaram uma nova dinâmica

sociocultural para a localidade, sobretudo após a instalação da Estação Experimental do Seridó

nas suas proximidades. Agregando um número maior de residências e moradores, a vida

sociocultural do povoado alçado a categoria de Vila em agosto de 1937, gravitaria em torno da

325 Uma versão paralela a essa é encampada pela Sra. Alexandrina de Oliveira Campos (neta de nossa personagem)

que julga estar na origem desta circunstância o fato de sua avó ter recebido como retratação do governo uma

pequena fração das terras que pertenciam à antiga família dos “Manuínos” da qual descendia, por ocasião da

desapropriação daquelas pelo governo para dar espaço à construção do Açude Público Cruzeta. Segundo a

informante como aquelas eram “terras de negros”, não houve preocupação do governo em indenizar seus antigos

posseiros, o que foi feita apenas por uma ação de reparação por parte do poder público. (Informação concedida por

Alexandrina de Oliveira Campos no dia 16 de maio de 2014). 326

Cf. GUERRA, Phelippe. Ainda o Nordeste. Natal: Typografia d’“A República”, 1927, p.17. 327

GUERRA FILHO, Adauto, 2001, p.128. Tornou-se de praxe admitir sem maiores controvérsias tanto pela

tradição oral como pela literatura que versa sobre a história e memória deste espaço que são dois os marcos físicos

e simbólicos que se recorrem para fazer referência ao período de fundação do povoado Cruzeta, a saber: a

construção do Açude Público do mesmo nome entre os anos de 1920 e 29 e o erguimento da capela em honra à

Virgem dos Remédios, conclamada padroeira do lugarejo, no lugar onde de acordo com Goes (1971, p.56) teria

sido celebrada sob um altar improvisado a 24 de outubro de 1920 a primeira missa pelo padre João Clemente de

Morais passando à história como o dia oficial de fundação. 328

SANTOS, Luciano Aciolli R. dos. Historicizando a cidade de Cruzeta e suas práticas festivas. 2012.

Disponível em: <http://patrimonioculturalcruzeta.blogspot.com.br/>. Acesso em 24 abr. 2014.

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Capela com suas atividades sociorreligiosas e do “Palanque” erguido num ponto central do

vilarejo para a realização das festas sociais e recreações de cunho mais “profanas”. O

“palanque” era o local dos festejos e das solenidades oficiais onde os moradores se reuniam por

ocasiões dos bailes, das noites de festas juninas, das apresentações de reisados vindos de outras

localidades e das festividades da Páscoa onde se malhava publicamente o Judas às algazarras da

meninada e à meditação circunspecta dos adultos.329

A vida socioreligiosa dos moradores da Vila estava organizada em torno das agremiações

e irmandades leigas que eram incumbidas de organizar as rezas de terços, novenários e

capelinhas nas residências locais, como também de caminhadas de orações (cruzadas) pelo

entorno da capela, bem como ainda de outras atividades paralitúrgicas. A volubilidade da

presença de um agente eclesiástico institucional responsável pelos serviços regulares da capela,

relegava aos cuidados leigos suas atividades devocionais que tinham também que assumir as

tarefas de conservação e zelo do templo. No mais, a comunidade local contava apenas com

visitas regulares de um cura quando este afluía da paróquia-sede localizada na cidade de Acari

para realizar a desobriga ou as visitas pastorais no vilarejo.330

Havia épocas em que ocorriam “missões” religiosas na região e a vila recebia clérigos e

religiosos provenientes de várias congregações católicas. Eram temporadas em que os

moradores da Vila mais engajados com os serviços litúrgicos da capela, tinham que se dedicar a

angariar recursos para prover os custos com a estadia e condução dos “santos homens” e

destinar ajuda financeira às instituições religiosas de suas procedências. Por este motivo, as

missões também implicavam em momentos de grande movimentação financeira na Vila onde se

colocava a venda nas barracas armadas ao redor da igreja instrumentos de devoções populares,

livrinhos de orações e cânticos e outras “lembranças das Santas Missões”.

Mas existia uma época do ano em que o vilarejo recebia um aparato todo especial e os

moradores locais engalanavam suas residências da “rua” e preparavam as melhores iguarias da

terra para receber os parentes, amigos e visitantes que afluíam do campo, das redondezas e de

outras localidades da região. Assim era a atmosfera festiva vivenciada na ocasião da Festa de

Nossa Senhora dos Remédios que ocorria no mês de Outubro de cada ano em homenagem à

santa homônima que é padroeira do lugar.331

Participando da tradição do grupo através da vivência do cotidiano, e ligada aquela por

uma complexa rede simbólica de afinidade e pertencimento, era nesta tessitura sociocultural do

329 Cf. CAMPOS; MORAIS op. cit., p.31.

330 Esta situação só mudaria com a criação da Paróquia de Nossa Senhora dos Remédios em 13 de novembro de

1944, quando seu primeiro vigário, padre Ambrósio da Silva, passaria a fixar residência na comunidade. 331

CAMPOS; MORAIS op. cit., p.22-26.

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lugar que estava situada a velha curandeira Alexandrina no contexto do encontro com o

“invasor” adventício, o avião, transformado em seu imaginário na “besta apocalíptica do ar”.

Condicionada pela visão de mundo da cultura que compartilhava sua experiência não se

esgotava em si mesma, nem era irredutível a ela, mas transmitida aos demais do grupo pelos

mecanismos da oralidade, refletia a situação de muitos sujeitos diante deste “outro” imaginado

(o avião) que assim como ela também se encontrava conectado à mesma teia imaginária pelo

fio comum da memória. Referindo-se a uma antiga profecia atribuída ao Padrinho Ciço sobre o

final dos tempos, notava uma velha beata cruzetense de 78 anos e romeira do santo do Juazeiro:

Ele falava muitas coisas em parábola. Ele dizia: meus romeirinhos, vai chegar

tempo que vai ter um besouro no ar, zoando no ar, viajando pelo ar: o avião.

[...] E dizia também que ia chegar o tempo que o galo ia cantar e se escutava

no mundo inteiro e que também as paredes iam falar: era o rádio.332

Apropriados e resignificados pela profecia apocalíptica popular, os símbolos de modernidade

encontravam sentido no rico arsenal simbólico de seu imaginário, orientando ações individuais

e condicionando comportamentos de grupo. Aí “cada qual é depositário de partes deste saber e

das leis que o regem, possibilitando compreender o que acontece ao indivíduo, isto é, partilha

com os outros, ou com outros pelo menos, de um sentido comum cuja denominação define, de

forma precisa, um caráter de unidade”.333

Sobre o aparecimento dos primeiros aviões em

Cruzeta lembrava dona Ambrosina: “quando começou a aparecer o avião todo mundo dizia:

“pronto, o mundo agora vai se acabar!”. Interpretado como sinal apocalíptico, a imagem do

avião encontrava sentido nas representações proféticas do fim do mundo.

Houve uma festa do algodão em Cruzeta que vieram muitos aviões. Dr. Sílvio

Bezerra trouxe de vários lugares. Mas neste dia desmaiou gente, acontece que

quase morreu gente de medo. Lembro que dona Tetê de Basto quase morre e

foi até pro hospital em Acari passando mal. Pouca gente sabia o que era o

avião. Eu era pequena neste tempo e papai me levou pra ver estes aviões no

campo de aviação durante a festa. [...] Agente foi num jumento e quando

chegamos lá perto que vi o avião, agarrei o pescoço dele e comecei a gritar e

papai se aproximando do avião e o avião bem devagazinho andando... E eu

agarrada com ele gritando... Aí o piloto viu que papai queria olhar o avião mais

de perto e disse: “neném não chore não que lhe dou um presente. Te dou um

guaraná”. E eu atrás do guaraná, mas com medo do avião. E ele dizia: “olhe

aqui!” Aí eu sei que eu soluçando e engolindo o soluço, agarrei a garrafa de

guaraná e papai entrou no avião comigo e eu em tempo de morrer de medo. A

garrafinha era bem pequenininha, bem bonitinha e eu agarrada com o guaraná.

Depois papai saiu de dentro do avião e eu chorando, gritava: “me tire daqui,

me tire daqui”. Pra mim aquilo era um bicho, um besouro. Sei lá o que

pensava.334

332 Depoimento concedido pela Sra. Antônia Maria da Conceição (Dona Antônia), 78 anos, no dia 23 de dezembro

de 2009. 333

MUCHEMBLED, Robert, 2001, p.9. 334

Depoimento concedido pela Sra. Maria Letícia dos Santos no dia 24/08/2012.

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A fala transcrita acima pertence às reminiscências da infância de dona Maria Letícia,

professora aposentada de 63 anos e moradora no município de Cruzeta. Nascida e educada na

comunidade rural da Cruzeta Velha é a partir da posição de membro deste grupo que ela tece

suas memórias. A cena por ela narrada descreve sua primeira experiência com este símbolo

moderno, o avião, por ocasião da Festa do Algodão realizada na Estação Experimental de

Cruzeta como evento de encerramento do 2º Congresso Nacional Algodoeiro ocorrido em

setembro de 1954. Para esta ocasião é que fora inaugurado neste mesmo período o Campo de

Pouso da referida repartição que pode ser utilizado pelos congressistas.335

(Ver imagem 19 em

anexo).

Mais que expressar o universo maravilhoso das crendices pueris, o episódio narrado por

Dona Maria Letícia revela como sua relação com este símbolo de modernidade foi afetada pelas

formações imaginárias tecidas e partilhadas pela tradição de grupo que não estão circunscritas

ao momento do real vivido, mas se vinculam ao próprio tempo do narrar o acontecido. Isso nos

faz compreender a memória não como algo pronto e estático no tempo, mas como um processo

de (re)construção e (re)invenção constante do vivido que se (re)atualiza a medida que também

se renovam as experiências individuais e coletivas.

Neste processo de recriação contínuo dos acontecimentos passados, estão entrelaçadas

múltiplas temporalidades que se projetam sobre as formas de como os sujeitos ouviram em

outras épocas o mesmo fato rememorado; como estes foram (re)construídos em sua memória a

partir de estímulos diversos, fazendo com que a memória seja sempre um processo em

permanente mutação.

A associação do avião com o “besouro” ou a “besta do ar” das profecias populares fazia

parte de um sistema imaginário transmitido entre os círculos das relações intergeracionais que

pôde ser evocado pela depoente para significar o fato por ela vivido à medida que também

abrolhavam em sua memória os sentidos e experiências ouvidos e compartilhados em outras

épocas com outros membros do grupo e trazidos à tona no ato próprio do lembrar.

Estas imagens eram parte de um conjunto mais amplo de significados que encontrava nas

religiosidades populares uma referência maior e eficaz. Se a história lhes conferia motivos para

sua insurgência, eram, portanto, na ideologia dos movimentos religiosos populares que elas

auferiam estatuto de legitimidade.

Concomitante ao processo de modernização regional, dois movimentos religiosos de

participação popular alcançavam importância entre as populações locais e contribuíam para que

335GOES, 1971, p. 59.

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este imaginário encontrasse ressonância entre as massas de sertanejos rurais: as “Santas

Missões Populares” de frei Damião de Bozzano (1898-1997) e o movimento dos romeiros do

Padre Cícero do Juazeiro.

3.3. “BOM TEMPO NINGUÉM MAIS VER”: A “AURA” PROFÉTICA DAS SANTAS

MISSÕES DE FREI DAMIÃO E DO MOVIMENTO DOS ROMEIROS DO PADRE CÍCERO

Em maio de 1964 quando se anunciou que o “velho e famoso missionário do povo” se

encontrava mais uma vez pelas plagas seridoenses arrastando multidões, o jornal “A Folha” de

Caicó iniciava seu comentário inquirindo a respeito do “feitiço” de Frei Damião: “que magia é

essa? Que feitiço é esse?” E passava a completar a glosa descrevendo a natureza do fenômeno:

As estradas se enchem de peregrinos... Caminhões e mais caminhões de

gente...Casamentos de amancebados... Penitentes de 20 e 30 anos sem

confissão...Todo mundo quer ver o frade...Filas e filas para tocar em sua

batina...Muitos só sossegam quando são benzidos por Ele...[...] Verdadeiras

procissões se encaminham para os Confessionários...A mesa da Eucaristia fica

cheia...A fala do penitente e gasto missionário arrasta multidões... Até os

duros de coração, os que não tem fé não resistem à atração do

Capuchinho gorducho, feio e sem jeito, humilde e calado [...]336

Devassando alguns álbuns de família as mesmas imagens parecem vir à tona quando

lançamos o olhar para velhas fotografias que retratam as missões de frei Damião em Cruzeta:

multidões de devotos se aglomeram em torno do frade; filas intermináveis serpeiam pelas ruas

da cidade seguindo os passos adiantados do capuchinho; centenas e milhares de fiéis se

amontoam no largo da matriz ao aceno do missionário, e daí nos surge um inevitável

questionamento: o que fazia reunir no despenhar do século XX com tamanha piedade e euforia

milhares de almas sertanejas em volta de um frade andarilho feio, gorducho e avelhantado? Esta

parece ter sido a grande questão formulada pelo jornal de alcance regional a pretexto de realçar

sua opinião sobre o suposto “feitiço” deste “feiticeiro do céu”.

Para nós, a resposta podia vir de tantos quantos foram seus curiosos e seguidores. Mas

tanto as Santas Missões de frei Damião como o movimento romeiro do Padre Cícero, guardam

com o tempo em que dimanam motivos de serem e existirem que são engendrados e

compartilhados por seus atores mantendo com a história uma relação de sentido. Ao se

inscreverem no tempo, estas experiências não estavam assentadas sob uma realidade a parte ou

distante de seus sujeitos, mas produto e produtora de sentidos refletiam a dinâmica histórica

espelhada no tempo presente.

336 O feitiço de frei Damião. A Fôlha, Caicó/RN, 23 mai. 1964. p. 06.

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Talvez sustivesse aí a força irresistível que exerceu sobre tantos cruzetenses no deambular

do século XX a “voz” do “santo padrinho” transportada por seus romeiros à maneira de

profecia. Ela tinha o efeito de representar com propriedade o conjunto de mudanças que já

podiam ser vislumbradas ante os olhos do crédulo atestando a eficácia da virtude visionária do

padrinho. Este efeito não era apenas tributário a arrogada aura de santidade que emanava do

fenômeno padre Cícero, mas também, e mais ainda porque, atuava em conformidade com o

patrimônio simbólico de seus interlocutores. A forma como este fora manejado pelos

movimentos religiosos populares, talvez explique em parte a forte influência que exerceu a

figura de Frei Damião de Bozzano e o prestígio dos romeiros do padre Cícero em Cruzeta.

O apostolado do frade capuchinho italiano frei Damião337

nos sertões nordestinos foi

caracterizado pela prática da “santa missão popular” e teve sua inserção junto às populações

sertanejas do Nordeste a partir da década de 1930 assumindo uma maior projeção no interregno

de 1940 a 1980.338

Conduzindo “uma ação missionária pautada no cuidado com a salvação das

almas, a luta contra o pecado mundano, falando da relação entre Terra e Além, Céu e

Inferno”339

, o frade capuchinho se transforma ao lado da legendária figura do Padre Cícero do

Juazeiro na maior força moral dos sertões.

Com uma mensagem enérgica que buscava denunciar o pecado e suas mazelas e trazer a

vaga de católicos “desviados" para o ceio da “santa religião” através da ameaça com as torturas

do inferno, a expiação no purgatório, a impossibilidade de escapar do Juízo Final e dos pavores

do Apocalipse, o afamado “missionário dos sertões” arrastava multidões inteiras e sua presença

nas vilas, povoados e cidades sertanejas do Nordeste, era um motivo de alvoroço entre as

populações locais que afluíam do campo, dos sítios e fazendas para ouvir estarrecida a “voz

temível do frade, nas pregações que abalam o sertão”.340

“De estatura baixa [...], sandálias franciscanas, terço em mãos, crucifixo na cintura”341

e

“envergando a estamenha parda dos filhos de São Francisco”342

, Frei Damião andava

percorrendo “povoados, pequenas e médias cidades do sertão nordestino prometendo o fogo do

337 Pio Giannotti, nome de batismo de Frei Damião, nasceu em 5 de novembro de 1898 na vila, hoje cidade italiana

de Bozzano, filho dos camponeses Félix e Maria Giannotti. Ingressou na Ordem dos Capuchinhos em 1914 aos 16

anos e ordenou-se sacerdote em agosto de 1923, aos 25 anos. Em 1931, com 33 anos, é enviado em missão ao

Brasil junto com mais dois religiosos, instalando-se no Convento da Penha, em Pernambuco. Era o início de um

longo apostolado dedicado às plagas nordestinas que duraria mais de 6 décadas, quando já muito idoso e mal

podendo andar faleceria aos 98 anos vítima e uma parada cardiorrespiratória deixando arrancando comoção e

deixando saudades entre milhares de admiradores e devotos espalhados pelo Nordeste. 338

SOUZA, Silvana Vieira de, 2010, p. 168 339

Idem. 340

SANTOS, Luiz Cristovão dos. 1953, p. 21. 341

CRUZ, João Everton da, 2010, p. 12. 342

Op. cit., p.8.

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Inferno aos pecadores e o Paraíso aos justos”.343

Em 1937 se constata a realização de sua

primeira missão em Cruzeta. Daí em diante voltaria mais vezes em 1949, em 1977 e em 1986 como

apontam alguns registros paroquiais.

A chegada do frade capuchinho na localidade era anunciada pelo serviço de auto-falante

paroquial (difusora) e recebida com tom de festividade pelos fregueses que viam na ocasião de

sua visita missionária uma oportunidade de vivenciar mais intensamente a fé e a religião que

receberam dos pais. Seu trabalho apostólico geralmente durava de quatro a sete dias e consistia

na realização de pregações, batismos, confissões, casamentos, crismas, aconselhamentos,

celebrações de missas e caminhadas com cânticos e orações pelas principais ruas da comuna.344

Como constatou João Everton da Cruz, a estrutura das missões pregadas por Frei Damião,

acompanhou as antigas tradições dos velhos missionários de antanho que perambularam os

sertões do Nordeste, especialmente dos capuchinhos.345

No tocante ao método de pregar

“missão”, o capuchinho tinha um modelo pronto. No geral, sua “santa missão” iniciava ainda

no escuro da madrugada, quando o frade agitando uma campainha e andando pelas ruas da

freguesia acordava o povo convidando-o para “ouvir missão”, cantando uns versos que a

multidão em procissão repetia:

Vinde pais, e vinde mães,

Vinde todos à Missão

Para cuidar, como cristãos,

De alcançar a salvação.

Pecador arrependido,

Pobrezinho pecador:

Vem, abraça-me contrito,

Sou teu Pai, teu Criador.346

A agitação na freguesia começava desde o dia anterior quando as beatas e as organizações

leigas cuidavam de providenciar os últimos preparativos para receber o “santo peregrino” na

paróquia. Também na zona rural o dia começava cedo para os que vinham “ouvir missão” e

prestigiar o “padrinho frei Damião”. Dona Maria Do Carmo que morou no sítio Pau Lagoa,

município de Cruzeta, até 1979, relata como toda família se preparava para vim assistir missão

343 CRUZ, op. cit., p.12.

344 Operando com base na doutrina do catolicismo tridentino e do Concílio Vaticano I (1869-1870), as missões de

frei Damião buscavam incentivar entre os católicos, sobretudo os mais afastados, uma maior vivência dos

sacramentos da igreja. Sua passagem pelas paróquias por onde missionava era sempre um momento de

afervoramento religioso e de um maior contato dos paroquianos à vida sacramental. Alguns números prospectos

dos registros de Tombo da Paróquia de Nossa Senhora dos Remédios em Cruzeta demonstram como a realização

de suas santas missões na localidade implicava num momento de maior recorrência dos fregueses aos sacramentos

da igreja como o aumento na ocorrência de comunhões e confissões. 345

Idem, p.40. 346

Vinde, Pais e vinde, Mães. Cânticos das Missões. In. OLIVEIRA, Gildson. 1997, p. 146.

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de frei Damião na cidade:

A gente tudo se preparava para vim [...] Em casa a gente fazia a preparação.

Cortava a ração pro gado pra deixar os dois dias que vinha. Encostava a água.

Enchia os tanques d’água. Os currais deixava com a ração pro gado comer. A

gente se preparava em tudo.347

Com os paroquianos já reunidos, após a caminhada matinal havia missa e pregação em

frente da igreja onde o frade erguido sobre um púlpito à vista da multidão circunspecta e

vigilante pregava a “santa doutrina”. (Ver imagem 20 em anexo).

“As pregações de Frei Damião tinham um conteúdo moralizante e conservador que ia ao

encontro das concepções do povo: como explicar as calamidades, as secas, a pobreza, a fome,

como castigos de Deus”.348

Possuidor de um forte carisma religioso ele se torna no grande

conselheiro do homem sertanejo dividindo com o Padre Cícero a preferência da devoção entre

um grande número de fiéis. Num cartão de recordação encontrado em um oratório doméstico de

uma devota cruzetense adquirido como “Lembrança das Missões do Frei Damião” em Cruzeta,

os bustos de padre Cícero e do missionário italiano aparecem projetados nas ilhargas da

estampa tendo ao meio a imagem de Nossa Sra. das Dores e a igreja de São Francisco do

Canindé-Ce que atestam a aura de santidade que gozavam estes “santos homens” entre as

populações locais. (Ver imagem 21 em anexo).

Dentre os muitos conselhos que o frade costumava dirigir aos fiéis estava a reprovação à

alguns “hábitos modernos” como o uso da calça comprida e sobretudo da minissaia pelas

mulheres sobre o qual costumava aconselhar dizendo que por causa deste exagero “muitos

homens já perderam a cabeça”.349

Outros temas como o inferno, o céu, o paraíso e o juízo final,

gozavam preferência nas prédicas do capuchinho assumindo muitas vezes um teor apocalíptico.

Ao enfatizar em suas prédicas situações como a ira divina, a perdição dos homens, o juízo

final e a crença na vinda do anticristo e da besta-fera, as “Santas Missões” de frei Damião

acabavam (re)acendendo entre o povo os medos escatológicos do fim do mundo, sendo,

inclusive, apropriadas para interpretar as mudanças que se operavam no mundo do cotidiano.

Elas se constituiam num momento em que este imaginário passava a circular com mais

frequência entre os católicos reforçando na memória popular estas “imagens do medo”.

Interrogada sobre o que costumava ouvir dos seus genitores a respeito da Besta fera e do

Anticristo, lembrava dona Maria Do Carmo a postura do pai sondado os conselhos do

“padrinho frei Damião”:

347 Depoimento concedido pela Sra. Maria do Carmo Oliveira, 57 anos, no dia 22/08/2012.

348 Idem, p.42.

349 Conselho de Frei Damião sobre o uso da minissaia pelas mulheres citado por OLIVEIRA, Gildson, 1997, p.82.

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Isso ele sempre dizia que era esse povo que fazia estas coisas. Ficava carimbado pelo

carimbo da besta-fera. Era por isso que ele não deixava nós usar calça, nem roupa

sem manga, nem minissaia, nem miniblusa, porque ele dizia que estas coisas era da

parte do diabo.

Ressemantizadas pela ótica da religiosidade popular as mudanças culturais como a

introjeção de novos hábitos e valores adquiriam um sentido negativo. Elas eram utilizadas para

explicar um mundo que não mais ocorria dentro do padrão da normalidade ou das fronteiras do

correto sendo interpretadas como indícios da proximidade do fim do mundo. Isto era creditado

particularmente entre os católicos mais conservadores, porque se acreditava que o inimigo de

Deus, o diabo, já andava atuando no mundo, responsável pelas desgraças e seduções tão

visíveis a olhos limpos. A esta visão superpunha-se a noção de que Deus se vinga dos pecadores

consentindo a ação do mal no mundo e que sua desforra contra toda maldade fora deixada para

o final dos tempos. Por que Deus destruiu o mundo no tempo de Noé enviando o grande dilúvio

para abolir a iniqüidade dos homens, Ele não tardará a destruí-lo novamente, uma vez que a sua

maldade tornou-se demasiadamente maior. É por isso que

[...] o mundo dos apocalípticos é um mundo ameaçado e perigoso, onde as

artimanhas das forças demoníacas cercam as pessoas e a sociedade. Não há

uma concepção de progresso, de desenvolvimento moral no tempo. [...] Há um

pessimismo tal que não permite esperanças do jeito como as coisas caminham.

É necessária uma ruptura e esta ruptura acontece no juízo.350

Paralelo aos tempos áureos das missões de frei Damião o movimento dos romeiros do

Padre Cícero também desempenharam um papel importante na constituição do imaginário

apocalíptico em Cruzeta refletindo nas muitas profecias populares tributadas ao Santo do

Juazeiro.

Afirmando-se como ponto de passagem de muitos romeiros que desciam de outros

lugares e regiões rumo ao Juazeiro do padre Cícero, Cruzeta recebia grupos de peregrinos todos

os anos que passavam pelo lugar em romaria a “terra santa do Padrinho”.351

O contato destes

viajantes com as populações locais engendraram a constituição de fluxos de imagens e

informações que eram trazidos da “interlândia” caririense à medida que o contato entre estes

“andarilhos da fé” e a comunidade local se intensificava. Alguns romeiros chegavam mesmo a

permanecer por mais de um dia na localidade e havia devotos locais que se reuniam aos

peregrinos de fora e iam de “mutirão” em direção a “Meca Sertaneja”.

350 NOGUEIRA, Paulo, 2008, p.20.

351 Estamos utilizando o termo “romaria” conforme Braga (2008, p.243) para designar as “experiências de

deslocamentos individuais ou coletivos em direção a um centro que é sagrado em virtude da presença de um

Santo”.

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Pedro Pereira dos Santos, professor aposentado de 53 anos, lembra com riqueza de

detalhes a passagem dos romeiros do Padre Cícero por Cruzeta quando ainda residia no sítio

Riacho da Barra, zona rural da cidade, nos anos 1960 e 70. Em sua narrativa ele descreve a

indumentária, os apetrechos, os artefatos de devoção e a paisagem que envolvia o viajante rumo

a “Meca” do sertão fazendo um breve inventário da figura do romeiro.

Com mais freqüência mesmo foi na década de 70 quando a gente ainda morava

no sítio, que via eles passando na parede do açude, a fila deles. Só que cada

um com um matulãozinho nas costas e seguiam, passavam aí. Nesta época não

tinha pista ainda, era tudo estrada de barro. Tinha uns que andavam de sandália

de borracha, mais resistente. Tinham uns que iam de [camisa com] manga

longa, outros de chapéu e aqueles cabaços de botar água. [...] Iam muito de

[traje de] São Francisco pra lá pagando promessa. Falavam da casa dos

milagres quando chegassem lá, quando iam botar aquela peça. Tinha gente que

levava uma perna de madeira, tinha gente que levava um braço [...] e assim por

diante. Aonde eles faziam aquela promessa, vamos dizer, o quê que ia

melhorar, o quê que eles sentiam, se eram uma dor na perna, se era um alejo,

era um.... Qualquer coisa, aí eles realizavam: “Minha cabeça ficou boa eu

quero que você desenhe minha cabeça pra eu deixar lá em Padre Cícero”.352

A romaria a terra sagrada do padrinho costumava durar em média duas semanas,

principalmente para aqueles que faziam o itinerário a pé sem auxílio de algum transporte. A

volta do conterrâneo ausente era sempre comemorada com as visitas dos parentes e amigos, que

se dirigiam à casa do peregrino para “tomar notícia” do que viram e ouviram na terra santa “do

meu Padrinho”. Dona Maria Letícia, professora aposentada de 63 anos, que morou até pouco

tempo na comunidade do sítio da Cruzeta Velha, relata como era freqüente em sua infância ir

visitar os parentes e conhecidos da vizinhança que chegavam de romaria do Juazeiro. Ela narra

um quadro que aponta a importância do romeiro na transmissão e circulação do imaginário

apocalíptico sertanejo ao revelá-lo como fonte de disseminação das profecias populares que

percorriam os sertões de antanho.

Quando os romeiros [do Padre Cícero] chegavam, a gente ia visitar porque eles

vinham à pé e demoravam uns 15 dias de viajem. Quando eles chegavam

“vinham só o pito”353

. [...] A gente ia visitar e o assunto deles eram esse do que

já falava padre Ciço sobre as eras de 50 e 60. Naquela época eu era pequena,

tinha uns 6 anos, 7, 8 anos. Isso aconteceu lá pros anos 60, 58, 57 e existiam

muitos romeiros [em Cruzeta] que iam [para o Juazeiro] a pé ou de pau-de-

arara.354

A passagem dos romeiros do Padre Cícero por Cruzeta, deixou um lendário religioso

acerca dos últimos tempos que se refletiram nas muitas profecias apocalípticas populares

atribuídas ao santo do Juazeiro, muitas delas (re)apropriadas para significar e dar a entender as

352 Depoimento concedido pelo Sr. Pedro Pereira da Silva, 53 anos, no dia 03 de Novembro de 2009.

353 Expressão utilizada para significar um estado ou situação penosa, sofrida, desditosa.

354 Depoimento concedido pela Sra. Maria Letícia dos Santos no dia 24/08/2012.

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mudanças culturais e tecnológicas que estavam sendo operadas na cidade entre as décadas de

1950 e 70. Um exemplo disso foi o imaginário apocalíptico construído em volta da “Energia de

Paulo Afonso” associado a crença numa conflagração universal.

Desde as sociedades mais antigas a idéia de uma conflagração escatológica vem

perseguindo a humanidade. Uma mostra disso é o tema da destruição do mundo pelo fogo

(conflagração) encontrado nos escritos dos Pais da Igreja, mais também muito presente nas

mais diversas tradições da Antiguidade.355

Entre os cristãos primitivos esta crença desfrutava de

ampla popularidade e estava associada aos desastres naturais e às catástrofes cósmicas

(terremotos, inundações, doenças, fomes, guerras, cometas e o estampido do cair das estrelas)

significando “o estopim natural da desordem” desencadeada pela imoralidade dos homens e

assumindo um papel de julgamento e de punição.356

Conduzida pelos missionários e colonos lusitanos para o Novo Mundo e difundindo-se

junto às profecias apocalípticas populares pelos sertões nordestinos, a crença na destruição do

mundo pelo fogo estava bastante difundida entre os cruzetenses de meados do século XX.

Referindo-se a aludida crença que ouvira dos lábios da mãe, lembrava uma dona de casa

aposentada de 79 anos domiciliada em Cruzeta:

Ela dizia que o mundo tinha se acabado com água e agora seria com fogo [...]

Que aquilo vinha do momento. Não tinha quem acudisse nem onde se socar.

Ela dizia muito que até pra onde a gente corresse, pra os açudes, as águas

ferviam da quentura, pois [...] o mundo ia terminar em fogo. Ia se acabar com

o fogo que Deus mandava.357

Dona Helena de João Pedro, funcionária pública aposentada de 67 anos, também relata a

tradição que costumava ouvir dos pais e apresenta sua versão: “Eles diziam que quando o

mundo fosse se acabar vinham três anjos: norte, sul, leste-oeste, parece que era assim. Três

anjos. Iam estes anjos tocando fogo no mundo”.358

Numa xilogravura intitulada “os três anjos vingadores” de um artista popular cearense

datada de 1968, a mesma tradição aparece representada. Na ilustração, as três figuras angélicas

são concebidas numa posição de altivez. Elas parecem sobrevoar os céus e conduzem nas mãos

um livro aberto. (Ver imagem 23 em anexo). Pela tradição que se filia a representação, é

possível inferir que cada livro represente o registro dos nomes dos pecadores que foram

amaldiçoados em juízo, pois como já entoava o salmista: “Todo o mal feito pelos maus é

355 Cf. JORGE BERGO, Mirian Reis, 2008, p.38.

356 Idem, ibidem, p. 52.

357 Depoimento concedido pela Sra. Gizelda Maria Rocha, 79 anos, no dia 11 de janeiro de 2010.

358 Depoimento concedido pela Sra. Helena Silva de Goes, 67 anos, no dia 26 de outubro de 2009.

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registrado, e eles não o sabem”.359

O analogismo é confirmado numa outra gravura de cordel

datada de pelo menos 1948. Na composição imagética a figura de um varão (Deus) aparece no

alto entre nuvens numa vetusta compleição. Ele aponta o indicador para uma interminável

multidão alvoroçada que sugere deixa para uma cidade que arde fumarenta por entre morros e

colinas. Bem no meio da ilustração um anjo conduz nas mãos um archote ardente e parece

agitá-lo em direção do tropel. No alto dos céus, cingindo a figura masculina, as siluetas de dois

anjos surgem empunhando trombetas e parecem anunciar um momento solene a que o folheto

apregoa: “o Fim do Mundo”, colocado em evidência na gravura sertaneja por letras garrafais.

(Ver imagem 24 em anexo).

Como podemos observar, a crença na conflagração universal era uma tradição

escatológica bastante difundida entre os sertanejos do Nordeste. Ela fazia parte de um arsenal

simbólico ainda mais rico e diversificado que compunha o acervo do imaginário apocalíptico

popular do sertão. As imagens evocadas pelas gravuras sertanejas, não eram apenas produto da

imaginação fecunda de seus artífices, mas compartilhadas por uma comunidade de imaginação

mais ampla, estavam interligadas por uma teia de sentidos que tinha na concepção de um Deus

vingativo e na noção pessimista do tempo seu fundamento maior de sustentação. Elas eram uma

expressão das profecias cataclísmicas que inundaram os sertões amparadas na idéia de que

Deus puniria o mundo velho de pecado destruindo-o com fogo no dia de Juízo. E foi por meio

destas referências tradicionais que muitos cruzetenses interpretaram a chegada da energia de

Paulo Afonso. Neste processo de (re)apropriação simbólica também contribuiu a atuação dos

romeiros do padre Cícero ao se apropriarem deste evento histórico a partir daquele patrimônio

simbólico colocando-o à maneira de profecia na voz do Padrinho.

Dona Leonete, professora aposentada de 75 anos e residente no perímetro urbano de

Cruzeta desde 1978, relata o clima de desconfiança que sobreveiu sobre muitos cruzetenses em

meados dos anos 1960, sobretudo entre as populações rurais, quando se propagou a notícia de

que em breve Cruzeta receberia a energia de Paulo Afonso e aponta a participação dos romeiros

do Padre Cícero como uma das causas maiores da suspicácia.

Quando falaram que ia chegar a energia de Paulo Afonso [...] um dia chegou

os romeiros que vinham do Ceará. Aí chegou uma historia que Padre Cícero

tinha dito que o mundo tinha se acabado com água a primeira vez e a segunda

vez ia ser com fogo. Mas não é a gente chegar e colocar fogo nas casas não. É

a energia de Paulo Afonso que quem vai acabar com tudo. Aí eu sei que

quando chegou a energia pra todo canto, que hoje onde você chega tem

energia, eu tava dizendo a Sebastião: “Oh Sebastião, você acha que dá quase

pra gente entender um negócio desse do que padre Ciço disse? Por que o

mundo ta completo e a energia é perigosíssima. Se incendiar o negócio? Pega

359 Salmos 50, 3. Uma passagem semelhante é encontrada em Apocalipse 14, 20.

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fogo. Morre todo mundo. [...] Nos sítios só se dizia: “se vier energia, esse

Paulo Afonso pra minha casa, eu não quero. Porque eu não vou pagar uma

energia que vai me matar queimada”.360

A noção de que a eletricidade podia provocar incêndios e mortes por meio da eletrocução

(choques elétricos), foi em grande medida um dos motivos que nutriram o receio diante da

novidade. Ela encontrava sentido no simbolismo de uma conflagração escatológica

direcionando comportamentos e imprimindo posturas relutantes. Dona Giselda, doméstica

aposentada de 79 anos, lembra a conduta de sua mãe que chegou a fechar as portas de sua casa

aos serviços de instalação elétrica do governo a pretexto daquilo se tratar de uma “invenção”

que resultaria na destruição dos moradores da cidade.

Ela não queria que ninguém entrasse lá em casa. “Não, na minha casa nem

entre. Nem entre que eu não quero”. Ela dizia. Os homens entrar na casa dela

pra botar a luz, ela não queria, porque aquilo era uma invenção. O povo ia

morrer tudo torrado com essa coisa. Que aquela luz era pra acabar com o povo

de Cruzeta. Na casa dela ela não queria. Não queria nem conversa com os

homens.361

Junto ao papel desempenhado pelos romeiros do Juazeiro e as profecias apocalípticas

populares, a contribuição da memória foi indispensável neste processo de atribuição de

sentidos, uma vez que era responsável por tecer os significados em jogo e estabelecer as

conexões entre a tradição (o patrimônio simbólico) e a própria experiência do vivido, como

deixa patente a fala de Dona Ambrosina, devota do Padre Cícero e moradora no Sítio Fechado:

“quando chegou a energia [de Paulo Afonso] todo mundo disse: “pronto o mundo agora vai

pegar fogo”, porque as pessoas lembravam das palavras que padim Ciço tinha dito. Aí ficava

todo mundo assombrado: “meu Deus e agora, nós vamos morrer tudo incendiado”.362

Era o

princípio das dores do Apocalipse.

Tanto na fala de nossa romeira do “Padim Ciço” como naquelas dos demais narradores,

ficaram apenas expressas uma pequena parcela das experiências de muitos cruzetenses que

vivenciaram no passado o drama do “encontro” com o “mundo moderno”. Este mundo

enquanto uma realidade “outra” não era algo dado desde sempre, como se todos os seus

sentidos e significados fossem parte de um enredo de um “espetáculo” que precisasse apenas

ser encenado para um público perito. Mas como realidade nova teve que ser vivido,

experimentado e construído. Sobre qual edifício? Sobre o edifício da tradição e da memória

como ficou impresso no imaginário apocalíptico sertanejo e nas muitas profecias populares que

o circundaram no passado.

360 Depoimento concedido pela Sra. Leonete Pereira de Medeiros, 75 anos, no dia 08 de dezembro de 2009.

361 Depoimento concedido pela Sra. Gizelda Maria Rocha, 79 anos, no dia 11 de janeiro de 2010.

362 Depoimento concedido pela Sra. Ambrosina Maria, 75 anos, no dia 20 de Agosto de 2012.

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A energia de Paulo Afonso chegou à Cruzeta a 16 de janeiro de 1966 imprimindo uma

revolução nos hábitos e na forma de viver na cidade. Levado a cabo pela política de

modernização empreendida pelo governo progressista de Aluísio Alves (1961-1966), o projeto

fazia parte do plano executivo de sua administração em promover na região uma infraestrutura

necessária para o desenvolvimento do “progresso” e da indústria. Para muitos cruzetenses ela

significava um sinal apocalíptico e uma revelação de que em breve este mundo velho e

empedernido no pecado se consumiria em chamas ao toque das trombetas dos anjos. A cidade,

este lugar de erros e vícios, mas também de encantamentos e seduções, estava reservada à

destruição no dia de Juízo. As novidades que já lhes tomavam assento não deixavam, agora,

muitas dúvidas quanto a isso.

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5. CONCLUSÃO

As mudanças culturais e tecnológicas processadas nas cidades seridoenses e notadamente

no município de Cruzeta, sobretudo na segunda metade do século XX, trouxeram novas formar

de conceber o mundo para os seus moradores. Elas faziam parte, inicialmente, de um projeto

político mais amplo de construção da nacionalidade dirigido pelas elites nacionais, locais e

regionais que nem sempre levou em conta o patrimônio simbólico localmente preexistente.

Este, tecido e compartilhado durante séculos de experiências, funcionava como esteio de

valores e sentidos utilizados por seus habitantes para dar a entender o mundo em sua volta.

Neste cabedal simbólico o imaginário apocalíptico popular exercia uma função dinâmica e

reativa ao se constituir num paradigma cognoscível por onde as experiências de crise eram

interpretadas.

O “choque” ou na melhor das hipóteses o “encontro” entre a tradição camponesa e a

urbana ocidental moderna ocorrido no sertão seridoense, balizou um período de “crise” para as

populações locais acionando em suas reservas simbólicas o papel que tradicionalmente

desempenhava o imaginário apocalíptico popular nestes grupos. Esta experiência resultante do

contato com os “símbolos de modernidade” até então ignorados ou poucos conhecidos, assumiu

uma ascendência maior na passagem da primeira para a segunda metade do século XX, porque

correspondeu a um momento de intensificação da atuação das elites locais pensada agora em

termos de modernização.

No município de Cruzeta, este foi o período de maior atuação da Estação Experimental do

Seridó e da administração do prefeito engenheiro-agrônomo Sílvio Bezerra de Melo,

responsáveis pela implementação de muitas mudanças estruturais no equipamento urbano e pela

introdução de novas técnicas e insumos de cultivo no campo. Estas mudanças na medida em

que iam sendo processadas, acabavam atingindo a dimensão da cultura, interferindo nos

valores, referências e imaginários tradicionais.

Entre as décadas de 1950 e 60, Cruzeta havia se tornado numa pequena gleba sertaneja

“aberta” as influências externas. Contribuíra para isso as obras de infra-estrutura urbana

concretizadas pelo governo de Sílvio de Melo. Com a pavimentação dos seus principais

logradouros urbanos e os melhoramentos realizados nas estradas intermunicipais que a

interligavam a outros centros maiores e dinâmicos, houve uma maior circulação de automóveis,

serviços e pessoas. A chegada da energia de Paulo Afonso em 1966 trouxe neste sentido,

maiores aditamentos, porque franqueada ao usufruto da população, servia como uma forma de

incentivo a uma nascente sociedade local de consumo, estimulada a adquirir os novos

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“símbolos do mundo modernos” estandardizados nos eletrodomésticos (o rádio, a geladeira, o

telefone, a televisão).

No interstício dos anos 1960 e 70, a cidade deixava de ser apenas uma pacata comuna

interiorana com um estilo de vida “homogêneo” para aglutinar em seu centro urbano, novas

formas heterogêneas de costumes. O acesso aos veículos de comunicação de massas (o rádio, o

jornal, a revista e muito raro ainda a televisão), foram os maiores responsáveis pela revolução

dos comportamentos entre os jovens que passaram a investir em novos espaços de lazer e

entretenimento para longe da sisudez dos mais velhos. Eram os tempos das discotecas nas

“sedes”, dos “souarês” e do namoro no escurinho do cinema.

Novos estilos surgiram entre os jovens influenciados pela indústria da moda e os novos

valores juvenis, como a utilização da calça e dos cabelos curtos pelas mulheres que até então

havia sido um uso tolerado apenas entre os homens. Muitas destas tendências eram trazidas dos

centros urbanos mais dinâmicos, sobretudo da capital pelos jovens cruzetenses ausentes, que ao

retornarem a terra natal durante o período das férias escolares ou das celebrações da padroeira,

eram logo reproduzidos entre os círculos dos amigos. Um exemplo disso foi o uso dos biquínis

e maiôs nos banhos públicos de açude nas “Manhãs de Sol”. O contato com esta outra realidade

mais distante e a partilha de uma cultura juvenil pela juventude citadina, foram responsáveis

por criar um fosso cada vez mais profundo entre os valores defendidos pelas gerações dos mais

jovens e aqueles herdados das gerações paternas, abrindo espaços para ocasiões de tensões e

conflitos.

É neste contexto que se processa a recusa e a perda de muitas referências tradicionais por

parte das gerações mais “modernas” que passam a não mais enxergar na sabedoria dos mais

velhos – sustentáculo dos valores da família nas sociedades conservadoras patriarcais – uma

“verdade” a ser seguida sem contestação. Não é difícil inferir que a expansão do acesso aos

processos educacionais tenha contribuído para um maior acirramento desta circunstância, pois

com um número maior de jovens em idade estudantil freqüentando a escola como demonstram

os censos demográficos do período, outros códigos passaram a fazer parte do seu arsenal

simbólico que antes se amparava preeminente na cultura oral de grupo.

Por outro lado estavam aqueles que permaneciam atrelados à tradição do mundo rural.

Patenteando ainda a maioria, entre estes a barreira moral que separava um comportamento

aceitável do desviante continuava a ser medida pela tônica da sanção sobrenatural, por isso que

o anátema contra os costumes e os chamados “usos modernos” continuavam a ser emitidos.

Eles encontravam reforço e um valhacouto certo na ideologia mobilizada pelos movimentos

religiosos populares ainda muito atuantes no terceiro quadrante do século XX. A imagem de um

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Frei Damião de Bozzano pregando do púlpito para a grande multidão contra a “moda

escandalosa” (a calça feminina e a minissaia) e as posturas “imorais” e recalcitrantes (o

amancebamento e a liberalização sexual) abonando o inferno para os transgressores, era um

peso que não podia ser facilmente negligenciado. Suas palavras faziam lembrar que existia um

Deus justiceiro pronto para perdoar o pecador, mas também para condená-lo em juízo caso não

houvesse conversão e arrependimento. O medo do inferno e do castigo divino ainda era usado

como recursos coibentes para recalcar comportamentos violadores.

Estendendo paulatinamente o seu campo de influência sobre uma população campesina

que passava a ver na cidade um “celeiro de facilidades”, a nascente “sociedade de consumo”

não mudou drasticamente a maneira tradicional do homem do campo de entender o seu mundo.

No máximo ela se projetou num terreno flutuante da contradição ou da ambiguidade onde o

“consumir a novidade” nem sempre significava uma renúncia consciente de suas referências

tradicionais. Mesmo depois que a experiência moderna começou a ser ensaiada na cidade, os

“símbolos de modernidade” não perderam o sentido escatológico negativo que os associavam a

sinais apocalípticos, embora, quanto a isso, eles se convertessem cada vez mais num

“imaginário” partilhado entre os mais velhos, culturalmente enraizados na tradição oral de

grupo e menos vulneráveis as novas motivações psicológicas. A memória ativa, este poderoso

mecanismo vivo de tradução capaz de conectar os sentidos de experiências vividas já distantes

no tempo, foi a maior mantenedora desta tradição entre os mais velhos, considerando que

mesmo hoje, os processos de continuidade lhes sejam ainda devedores.

Em vista disso não é demais pressupor que o imaginário apocalíptico popular tenha

contribuído para uma maior resistência do seridoense e do cruzetense, de modo particular,

diante do processo modernizador da região. Entre os decênios de 1960 e 70 quando se divulgou

que o Seridó e, sobretudo o “velho edifício rural” dos seus municípios estava “desmoronando”,

esgrimido pela perda do “orvalho moderno” que vinha bafejando a região como constatou

Araújo (2006), foi com um sentimento de frustração que os técnicos e planejadores do governo

e da SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) perceberam “a densidade

quase irremovível da tradição frente ao poder alavancado, até então, pelas políticas públicas de

incentivo à modernização da economia agrária do Seridó”.363

Segundo o autor,

“a meta básica era transformar a propriedade rural em uma empresa moderna.

[...] [pois se esperava] que o homem, proprietário e trabalhador campestres do

semi-árido se encantasse, melhor dizendo, se desencantasse do seu mundo, e

se atirasse no lago do cisne, pronto para render fidelidade à racionalidade

moderna. O que, obviamente, não aconteceu. A modernização agrícola nessa

363 ARAÚJO, 2006, p. 280.

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fase, quando ocorreu, foi pontual e se restringiu basicamente à área de

produção do açúcar”.364

O que pretendemos expor com isso ao trazer esta questão, é que os fatores utilizados para

explicar o atestado de “fracasso” da empresa modernizadora no semi-árido nordestino e, em

particular, no Seridó potiguar ocorrido no período aludido, nunca ou quase nunca levam em

consideração o patrimônio simbólico e como parte deste, o imaginário religioso, enquanto

agente importante neste processo. No mais, geralmente as muitas investigações existentes a este

respeito se comprazem em explicar esta circunstância como sendo conseqüência de fatores

político-econômicos e sociais internos e externos, denunciando, quando muito, uma postura

“resistente” do sertanejo nordestino diante da “racionalidade moderna”.

Talvez esta invisibilidade dada ao papel do imaginário religioso neste processo e aqui

gostaria de enfocar a sua dimensão escatológico-apocalíptica, seja fruto de uma “mentalidade”

(pré)conceituosa compartilhada de modo consciente e/ou inconscientemente entre os scholar e

entranhada no meio acadêmico brasileiro, de que o chamado “folclore do povo” não seja algo

que se deva levar muito à sério. Fato é que o imaginário apocalíptico popular como aquele que

tivemos acesso através dos depoimentos contemplados nesta pesquisa, nos abre muitas

possibilidades de investigação que poderiam caminhar por esta direção, hoje muito pouco ou

talvez mesmo ainda não exploradas.

Se por um lado chegamos à conclusão de que a experiência “moderna” implicou na

superação de certos medos escatológicos alicerçados numa cosmovisão encantada do mundo,

Por outro não seria correto afirmar que estes medos estão de todo modo superados. O sucesso

de bilheteria do filme 2012 de Roland Emmerich lançado em 2009 talvez explique o peso que

as reminiscências destas experiências acumuladas no tempo ainda exercem sobre muitas mentes

no mundo contemporâneo. Do mesmo modo também não se pode dizer com relação ao

imaginário apocalíptico construído em torno dos “símbolos de modernidade”, embora

expressamente para uma grande maioria este se subtraia a uma “fantasia de velhos”.

Questionada sobre o que dizia o Padrinho Ciço a respeito do automóvel, conjeturava uma

antiga beata de Cruzeta em alusão a “besta fera” falada: “naquele tempo ele falava isso... Mas

hoje quem sabe né? Quem sabe, muitas vezes ela passa no meio de nós e a gente não ver?

Nestas épocas muitas coisas diferentes, muitas coisas esquisitas está se passando. Ninguém sabe

se ela vem acompanhando”.

364 Idem, p.279.

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Diário de Notícias/ano: 5 de setembro de 1954/pág. 05

Revista Veja/ano: 4 de novembro de 2012/ pág. 90-99

FONTES MANUSCRITAS E DATILOGRAFADAS

PRIMEIRO LIVRO DE TOMBO da Igreja matriz da paróquia de Nossa Senhora dos

Remédios, 1944-1993/ Cruzeta-RN

Discurso apresentado no encerramento do curso de formação de tratoristas realizado na Estação

Experimental de Cruzeta em 1962 pela Sra. Alexandrina de Oliveira sem numeração de

páginas, datilografado e faltando partes.

LIVROS de casamentos da paróquia de Nossa Senhora da Guia/ Acari-RN.

LIVRO Nº 6: 1922-1930

LIVRO Nº 7: 1930-1939

LIVRO N° 8: 1939-1953.

FONTES ORAIS

CAMPUS, Alexandrina de Oliveira. Entrevista I. Caicó/RN: Outubro, 2009.

Page 151: O SANTO, O DEMÔNIO E A BESTA FERA - monografias.ufrn.br · a mensagem “apocalÍptica” dos capuchinhos e as “santas missÕes populares” 30 1.4. beatismo nos sertÕes do nor(des)te:

151

______. Entrevista II. Natal/RN: Maio, 2010.

______. Entrevista III. Caicó/RN, Agosto, 2009.

SILVA, Pedro Pereira da. Entrevista. Cruzeta/RN: Novembro, 2009.

GOES, Helena Silva de. Entrevista. Cruzeta/RN: Outubro, 2009.

MEDEIROS, Leonete Pereira de. Entrevista. Cruzeta/RN: Outubro, 2009.

NASCIMENTO, Santina Marta do. Entrevista. Cruzeta/RN: Outubro, 2009.

AMBROSINA MARIA. Entrevista. Cruzeta/RN: Agosto, 2012.

OLIVEIRA, Maria do Carmo. Entrevista. Cruzeta/RN: Agosto, 2012.

ROCHA, Gizelda Maria. Entrevista. Cruzeta/RN: janeiro, 2010.

DANTAS, Manoel Anastácio. Entrevista. Cruzeta/RN: Maio, 2013.

SANTOS, Maria Letícia dos. Entrevista. Cruzeta/RN: Agosto, 2012

CONCEIÇÃO, Antônia Maria da. Entrevista. Cruzeta/RN: Dezembro, 2009

DANTAS, Luizete Pereira de Assis. Entrevista. Cruzeta/RN: Janeiro, 2014

SANTOS, Ana Lúcia Rodrigues dos. Entrevista. Cruzeta/RN: Fevereiro, 2013

MELLO, Maria Daguia de Araújo Vale. Entrevista. Cruzeta/RN: Novembro, 2009

LIMA, Marcelino Martins de. Entrevista. Cruzeta/RN: Novembro, 2009

SILVA, Sebastiana Maria da. Entrevista. Cruzeta/RN: Agosto, 2012

SILVA, Francisco Carneiro da. Entrevista. Cruzeta/RN: Agosto, 2012

ROCHAEL, José Luiz. Entrevista. Cruzeta/RN: Dezembro, 2009

FOLHETOS DE CORDEL

ATHAYDE, João Martins de. Os últimos dias da Humanidade ou o Fim do Mundo. Recife,

1948.

LEITE, José Costa. A vinda da besta fera. Condado/PE, s.d.

FILME

2012 – Produzido por Roland Emmerich e Mark Gordon/ Dirigido por Roland Emmerich.

Ficção científica/Aventura 158 min, 2009. Distribuidora Columbia Pictures. Estados Unidos.

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ANEXOS – ÁLBUM DE DOCUMENTOS

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Imagem 01. Mapa das sub-regiões do Nordeste brasileiro com destaque para a localização da

região do Seridó norte-rio-grandense e do município de Cruzeta (RN), tendo como referência o Juazeiro

do Norte (do Padre Cícero). Cartografia: Alexsander Pereira Dantas

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Imagem 02. Representação do Juízo Final e da pesagem das almas, tirada de um saltério

francês do século XIII. Fonte: Mary Evans Picture Library.

Imagem 03. Xilogravura de Álvaro Barbosa representando uma cena da Pesagem dos

pecados ou da Alma. s/d. Fonte: Museu de Arte da Universidade do Ceará.

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Imagem 04. Apocalipse – [A mulher

e] o Dragão. Xilogravura de

Walderedo Gonçalves. Crato-Ceará,

1968. No imaginário do sertanejo

nordestino a Virgem Maria se

transforma na “mulher escatológica”

que contracenará com o Dragão (a

antiga serpente do mal, Satanás, o

Diabo) o combate final no fim das

Eras. Fonte: Museu de Arte da

Universidade do Ceará.

Imagem 05. A alma no inferno.

Xilogravura de Joel Borges.

Bezerros/PE. s/d. Fonte: Centro

Nacional de Folclore e Cultura Popular.

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Imagem 07. Sitiante cruzetense em seu tradicional meio de transporte: o jumento.

Final dos anos 1950. Fonte: Acervo particular do Autor.

Imagem 08. Pelas ondas do rádio também chegavam “idéias” apocalípticas.

Rádio de uso doméstico pertencente a uma família cruzetense.

Década de 1960. Fonte: Acervo particular do Autor.

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Imagem 09. Fotografia colorida do cometa Kohoutek tirada do Observatório Catalina no

Arizona/EUA em 11 de janeiro de 1974. O sensacionalismo catastrófico criado pelas rádios

locais em torno do fenômeno difundiu o pânico entre muitos seridoenses.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cometa_Kohoutek

Imagem 10. Os grandes sinais do Fim do Mundo. Xilogravura de autor desconhecido.

s/d. Fonte: Museu de Arte da Universidade do Ceará.

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Imagem 11. Apocalipse – A Besta da Terra.

Xilogravura de Walderedo Gonçalves.

Crato-Ceará, 1968. Fonte: Museu de Arte da

Universidade do Ceará.

Imagem 13. Capa do folheto “A vinda

da Besta-fera”, de José Costa Leite.

Condado/PE. Xilogravura do autor. s/d.

Fonte: Centro Nacional de Folclore e

Cultura Popular

Imagem 12. . Apocalipse – A Besta da Terra. Xilogravura de Walderedo Gonçalves.

Prancha da série Apocalipse. Crato-Ceará, 1968. Fonte: LOPES, José de Ribamar, 1994. p.72.

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Imagem 14. Oração do Padrinho Cícero para

livrar da Besta Fera e dos perigos dos três dias

de escuro encontrada em oratório doméstico de

uma devota cruzetense. Lembrança de Frei

Damião das Missões. s/d. Fonte: Acervo pessoal

do autor.

Imagem 15. O Capa Verde. Xilogravura de

Damásio Paulo. s/d. Fonte: Museu de Arte

da Universidade do Ceará.

Imagem 16. O Capa Verde. Xilogravura

sem autor. s/d. Juazeiro do Norte. Fonte:

Centro Nacional de Folclore e Cultura

Popular.

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Imagem 17. “Ford de Bigode” modelo 1925. Muitos veículos como estes foram

associados à Besta apocalíptica em suas primeiras aparições nas cidades e povoados

seridoenses. Foto da década de 1920. Fonte: OTHON FILHO, Antônio, 1970. p.155.

Imagem 18. Caminhão “misto” Chevrolet-Brasil (o primeiro montado no país, daí o

nome). Ano de 1956. Sua aparição na localidade de Cruzeta representou um “sinal” do Fim do

Mundo para muitos moradores locais. Fonte: Acervo particular do autor.

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Imagem 19. Inauguração do Campo de pouso da Estação Experimental de Cruzeta em

setembro de 1954. Diversamente do que narra a “história oficial” deste episódio, os primeiros

aviões a aparecerem em Cruzeta seriam associados por muitos cruzetenses a “besta fera do ar”

que descreviam as profecias apocalípticas populares. Fonte: Acervo particular do autor.

Imagem 20. Frei Damião presidindo a santa missa ao lado de Frei Fernando, seu

companheiro de Missão, em frente da igreja de Nossa Senhora dos Remédios em Cruzeta (RN)

para uma multidão que o assiste. Junho de 1977.

Fonte: Acervo pessoal do autor.

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Imagem 21. Cartão de lembrança das Missões de Frei Damião em Cruzeta com a

“Bênção dos lares”. s/d. Fonte: Acervo pessoal do autor.

Imagem 23. Apocalipse – Os três anjos vingadores. Xilogravura de Walderedo Gonçalves.

Crato-Ceará, 1968. Fonte: Museu de Arte da Universidade do Ceará.

Imagem 24. Capa do folheto “O fim do mundo”, de João Martins de Athayde publicado em

1948. Recife/PE. Xilógrafo desconhecido. Fonte: Centro Nacional de Folclore e Cultura

Popular.