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O seminário Seráfico Santa Maria dos Capuchinhos e as identidades sacerdotal e franciscana na transição do Concílio Vaticano II (1953- 1987) Edson Claiton Guedes 1 INTRODUÇÃO O texto que apresentamos faz parte de nosso projeto de pesquisa, em andamento, no programa de pós-graduação em História, Cultura e identidades da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná, na linha: Instituições e Sujeitos, Saberes e Práticas. Importa-nos nesta pesquisa trabalhar as identidades sacerdotal e franciscana, portanto identidades religiosas, no Seminário Seráfico Santa Maria dos Frades Capuchinhos na cidade de Irati, Paraná, no período de 1953-1987. O período de análise abarca os trinta e quatro anos de funcionamento da instituição, e assim o decidimos por duas razões: a primeira é que o elemento de tensão sobre as identidades, o Concílio Vaticano II, está temporalmente localizado entre 1962-1965. A segunda razão porque estando o Concílio em meados dos anos 60, prudentemente decidimos estender o período de análise o que nos permitirá ter uma visão ampliada de como estas tensões foram administradas ao longo do tempo no Seminário. Por tratar-se de pesquisa em andamento e, portanto, sem os resultados finalizados, propomo-nos apresentar o aporte teórico sobre o qual estamos construindo a pesquisa. Para tanto, por questões didáticas, dividiremos este artigo em seções, onde destacaremos os conceitos nela utilizados. Na primeira seção apresentaremos um breve percurso histórico da instituição do Seminário como local de formação e produção das identidades, de acordo com o discurso da Igreja e da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, tendo em vista o seminário Santa Maria de Irati, Paraná. Na segunda seção, trazemos o conceito de identidade, a partir dos autores citados, 1 Mestrando no programa de Pós-graduação em História na Universidade Estadual de Ponta Grossa/PR (UEPG). E-mail: [email protected]

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O seminário Seráfico Santa Maria dos Capuchinhos e as identidades sacerdotal e

franciscana na transição do Concílio Vaticano II (1953- 1987)

Edson Claiton Guedes1

INTRODUÇÃO

O texto que apresentamos faz parte de nosso projeto de pesquisa, em andamento, no

programa de pós-graduação em História, Cultura e identidades da Universidade Estadual de

Ponta Grossa, Paraná, na linha: Instituições e Sujeitos, Saberes e Práticas. Importa-nos nesta

pesquisa trabalhar as identidades sacerdotal e franciscana, portanto identidades religiosas, no

Seminário Seráfico Santa Maria dos Frades Capuchinhos na cidade de Irati, Paraná, no período

de 1953-1987. O período de análise abarca os trinta e quatro anos de funcionamento da

instituição, e assim o decidimos por duas razões: a primeira é que o elemento de tensão sobre as

identidades, o Concílio Vaticano II, está temporalmente localizado entre 1962-1965. A segunda

razão porque estando o Concílio em meados dos anos 60, prudentemente decidimos estender o

período de análise o que nos permitirá ter uma visão ampliada de como estas tensões foram

administradas ao longo do tempo no Seminário.

Por tratar-se de pesquisa em andamento e, portanto, sem os resultados finalizados,

propomo-nos apresentar o aporte teórico sobre o qual estamos construindo a pesquisa. Para tanto,

por questões didáticas, dividiremos este artigo em seções, onde destacaremos os conceitos nela

utilizados.

Na primeira seção apresentaremos um breve percurso histórico da instituição do

Seminário como local de formação e produção das identidades, de acordo com o discurso da

Igreja e da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, tendo em vista o seminário Santa Maria de

Irati, Paraná. Na segunda seção, trazemos o conceito de identidade, a partir dos autores citados,

1 Mestrando no programa de Pós-graduação em História na Universidade Estadual de Ponta Grossa/PR (UEPG). E-mail:

[email protected]

que nos apoiamos na pesquisa. Por fim, na terceira seção, apresentaremos o Concílio Vaticano II

como evento histórico e dialógico que acenou uma aproximação maior da Igreja Católica com a

sociedade moderna, especialmente após o fechamento promovido pelo Concílio Vaticano I, e

consequentemente, a ressignificação das identidades sacerdotal e franciscana.

O SEMINÁRIO CATÓLICO COMO INSTITUIÇÃO IDENTITÁRIA E EDUCATIVA

Tagliviani ( 2007, p. 40) define o seminário como: “uma casa de formação que recebe

meninos de 10 a 11 anos de idade no mínimo, mantendo-os em regime de internato. Uma

condição para ser recebido no seminário é o desejo de ser padre. A esse desejo chama-se de

vocação e os vocacionados são chamamos de seminaristas”.

A instituição dos Seminários (sementeira) como ambiente exclusivo de formação para o

clero foi estabelecida no Concílio de Trento por meio do decreto Cum adolescentium aetas, de 15

de Julho de 1563. Além de ser uma forma de criar um clero disciplinado, foi também uma

resposta às duras críticas proferidas por Martinho Lutero2, que afirmava ser o clero católico

ineficiente e corrupto. Em 1564 o papa Pio IV, fundou o seminário Romano, o primeiro no

modelo tridentino, e entregou sua direção à nascente Companhia de Jesus, os jesuítas.

A experiência brasileira para formação de sacerdotes durante o período colonial está

ligada, de maneira geral, aos Jesuítas e seus colégios. Ainda que estes colégios não tivessem

como objetivo principal a formação sacerdotal, eles abriram suas portas para que os candidatos

seculares e de outras famílias religiosas pudessem completar seus estudos. Hoornaert ( 1983)

destaca quatro etapas no processo de implantação dos seminários no Brasil:

1) As confrarias dos meninos de Jesus, criados em Salvador na Bahia e Porto

Seguro, Vitória, São Vicente e também em Pernambuco e tiveram uma vida

efêmera de apenas uma década: de 1550 a 1560;

2 Uma das críticas mais ferrenhas de Lutero ao sacerdócio católico esta em seu livro “Do cativeiro Babilônico da Igreja”, editado

em 06 de outubro de 1520. Todo Texto é um ataque a Igreja de Roma e seus clérigos, que na época, segundo sua opinião,

mantinham a igreja cativa como outrora o povo de Israel ficou no exílio babilônico. Especialmente no seu comentário ao

sacramento da Ordem, onde refuta tanto a ideia de sacramento como a de uma ordem clerical na Igreja, ele diz que o papado

“criou uma sementeira de implacável discórdia para que os clérigos e leigos sejam mais distantes entre si que o céu e a terra”.

(LUTERO, 2008. p. 105).

2) Os colégios dos Jesuítas que datam de 1560 até meados do século XVIII,

um misto de escola e faculdade que acolhia também os candidatos ao clero;

3) Os seminários eclesiásticos, que foram criados para abrigar somente os

candidatos ao sacerdócio. O primeiro foi o de Belém de Cachoeira, sob a

iniciativa do padre Bartolomeu de Gusmão, Jesuíta. Também o padre Angelo

Siqueira, secular e o irmão Joaquim do Livramento, são nomes importantes

neste período.

4) Seminários Episcopais. Foi em 1756, sob a chancela do Bispo da Bahia D.

José Botelho, que o primeiro seminário episcopal do Brasil foi erguido, sob o

nome de Seminário nossa Senhora da Conceição. Porém, em 1759 com a

expulsão dos Jesuítas, o seminário foi extinto. Será o Seminário de Olinda3,

criado por Azeredo Coutinho em 1800 o único seminário episcopal em

funcionamento após a expulsão dos Jesuítas.

Entre os Capuchinhos, os seminários aparecerão a partir do século XIX, sob o governo

do Frei Bernardo Christen de Andermatt. Frei Bernardo foi Superior geral dos Capuchinhos entre

1884 a 1908, e promoveu a renovação dos estudos e a instauração efetiva dos seminários

seráficos em toda a Ordem. Os Capuchinhos eram reticentes quanto a importância dos estudos

para seu trabalho, alegando uma tradição franciscana 4 que via nos estudos um perigo para

santificação do frade.

Melchor de Pobladura, que foi quem primeiro estudou a instituição dos seminários

seráficos capuchinhos, os define como:

3 O Seminário de Olinda, ainda que pautado pela iniciativa de ser um lugar de formação do clero nos moldes do Concilio de

Trento, não teve, nos seus primeiros trinta e seis anos de funcionamento, uma orientação estritamente eclesial. De Acordo com

Alves (2001, p. 91), o bispo Azeredo Coutinho, imbuído da ideologia burguesa, deu a este seminário uma orientação “marcada

pela preocupação com o domínio do mundo material”, sendo, de acordo com o autor, a proposta pedagógica do bispo de Olinda

uma manifestação do “iluminismo luso-brasileiro”. 4 De acordo com D’Alatri (1998), nos dois primeiros séculos, os estudos humanísticos na Ordem Capuchinha foram praticamente

negligenciados. Apenas em 1757 houve uma preocupação de exigir aos candidatos que tivessem lições de língua latina. A

“tradição” alegada pelos primeiros capuchinhos é questionada por Merlo (2005). De acordo com este autor, em seu estudo sobre

os três primeiros séculos do movimento franciscano, ele demonstra que havia um grupo majoritário na Ordem, apenas 13 anos

após a morte de São Francisco, que constituiu como regra para ser recebido, ter uma cultura superior em gramática, lógica,

medicina, direito e teologia, de acordo com as constituições pré-narbonenses de 1239/1240. Logo, perdurou pouco tempo o desejo

de afastar os estudos como um risco a vocação do frade menor.

un colégio extraconventual de segunda enseñanza privada o no oficial, dependiente de la

Ordem, en donde los candidatos que se preparan para ingressar en ella, cursan los

estúdios clássicos o humanísticos, que pressupone el estúdio de la filosofia y de la

teologia, y reciben la educación civil, moral y religiosa franciscana, própria de quien

profesa entre los Menores Capuchinos la Regla de San Francisco en el estado sacerdotal

(POBLATURA, 1936, p. 03)5

Com a vinda dos Capuchinhos ao Paraná6, foram construídos, a partir de 1930, vários

seminários, conforme podemos observar:

SEMINÁRIO LOCALIZAÇÃO PERÍODO DE

FUNCIONAMENTO

Seminário Nossa Senhora das Mercês Curitiba 1930 a 1934

Seminário Santo Antônio Almirante Tamandaré 1934 a 1968

1973 a 1975

Seminário Santa Maria Irati 1953 a 1987

Seminário Vocacional São José Almirante Tamandaré 1955 a 1972

Seminário Vocacional Nossa Senhora de

Fátima Cruzeiro do Oeste

1963 a 1966

Seminário Vocacional Nossa Senhora de

Fátima Siqueira Campos

1967

Seminário Vocacional Assunção Uraí 1968 a 1993

Seminário Vocacional Frei Ricardo de

Vescovana Céu Azul

1971

Bona (2011)

Dentre os seminários Capuchinhos, o Santa Maria, fundado em 1953 e localizado na

cidade de Irati, sudoeste do Paraná7, simbolizou o apogeu do modelo trindentino-franciscano.

Bona (2011), contabilizou que, nos trinta e quatro anos de funcionamento, cento e vinte cinco

estudantes que passaram por este Seminário, tornaram-se freis Capuchinhos.

Sobre o regulamento dos Seminários Seráficos surgiu em 19 de março de 1893 com o

titulo de “Instrução para os responsáveis pelas escolas Seráficas”, escrito pelo ministro geral Frei

5 “O colégio seráfico, tal como nós o concebemos nestas páginas, é um colégio extra-conventual de ensino secundário privado ou

não oficial, dependente da Ordem, onde os candidatos que se preparam para ingressar nela, cursam os estudos clássicos e

humanísticos, que pressupõe o estudo da filosofia e teologia, e recebem educação civil, moral e religiosa franciscana, própria de

quem professa entre os Menores Capuchinhos a regra de São Francisco no estado sacerdotal”. Tradução nossa. 6 A presença dos Capuchinhos no Paraná se dá em dois períodos distintos. Quaresma (1990) afirma que no período entre 1840 e

1912, ou seja, no período que abrangeu o II Império até o início da república, os frades da região de Gênova, na Itália, vieram para

trabalhar com os indígenas nos aldeamentos da Província do Paraná, de forma a cumprir com o que exigia a legislação indigenista

na metade do século XIX. A partir de 1920, os Capuchinhos retornaram para o trabalho missionário na Diocese de Curitiba, que

no início do século XX abrangia todo estado. 7 Os Capuchinhos chegaram em Irati em 1948 para assumir o trabalho pastoral na Paróquia Nossa Senhora da Luz.

Bernardo de Andermatt. Nesse Documento, de acordo com Lehmann, o ministro geral expressa-

se a respeito dos objetivos do Seminário Seráfico da seguinte maneira:

O primeiro objetivo é preservar o contágio do século e educar cristãmente as crianças

que tem qualquer esperança de vocação religiosa, e o segundo propósito é a diligente

instrução dos elementos que devem preceder os estudos das ciências. Tal estudo é

necessário para abrir a mente das crianças, para amadurecer as suas vocações a para

provar suas atitudes nos estudos (LEHMANN, 2010, p. 398).

A geração dos frades educados no Seminário Seráfico Santa Maria antes do Concílio,

foram influenciados pela noção de sociedade perfeita, de obediência incondicional aos superiores,

onde, de acordo com Serbim (2008, p. 117), a negação do mundo requeria que os membros de

ordens religiosas adotassem pseudônimos e, a Igreja e seus seminários, punham-se acima da

história.

Os seminários foram e continuaram sendo centros de formação do clero na Igreja, além de

núcleos de identidade e identificação dos jovens católicos com sua doutrina. No seminário, a

identidade sacerdotal será inculcada por meio do compartilhamento de um cultura religiosa

comum, e, no caso dos religiosos, do carisma da congregação, a qual o jovem deve aderir.

Em nossa pesquisa, estudamos o seminário como instituição identitária e escolar, o que

nos possibilita ampliar o seu conceito a partir de pesquisas como as de Goffman 1974; Foucault,

1999; Benelli, 2012, Nosella e Buffa (2009), Magalhães (2004), Saviani (2007;2013) entre

outros.

Goffman (1974) em seu livro Manicômios, prisões e conventos, indica que certos

mecanismos de estruturação de uma instituição determinam a sua condição de instituição total e

acarretam consequências na formação do eu do indivíduo que nela participa sob determinada

condição. Será que o seminário, como formador de identidade, reforça nos indivíduos esta

condição por meio de mecanismos próprios? Podemos enquadrar o Seminário como uma

“instituição total”, conforme propõe Gooffmam?

As relações de poder descritas por Foucault (1999) em sua obra “microfísica do poder”

demonstram que há sempre tensões entre o instituído nas normas e disciplinas e as resistências

suscitadas no ambiente. As resistências são produzidas pelos indivíduos a partir do momento que

sentem-se sujeitos neste processo. Em meio a este jogo de poder, as tensões, de tempos em

tempos, se confrontam e cedem deixando transparecer a subjetividade. Ainda que o “objeto de

poder” seja o corpo, como lembra Foucault, há sempre o espaço para a “construção da

subjetividade”. A subjetividade, diz Benelli (2007, p.23-24) não é o que está dentro dos

indivíduos, mas aquilo que os “atravessa ou os tranversaliza e os constitui coletivamente”(...) e,

além disso, ela se organiza “como um espaço poroso, permanentemente aberto à passagem de

forças e fluxos de matéria e de energia, mutante, constantemente diferindo de si mesma.” Ou seja,

ela se constitui num processo contínuo, em constante devir, no contato com o outro.

Nas pesquisas sobre instituições escolares, Nosella e Buffa, lembram que vários aspectos

precisam estar presentes, tais como:

o contexto histórico e as circunstâncias específicas da criação e da instalação da escola;

seu processo evolutivo: origens, apogeu e situação atual; a vida da escola; o edifício

escolar: organização do espaço, estilo, acabamento, implantação, reformas e eventuais

descaracterizações; os alunos: origem social, destino profissional e suas organizações; os

professores e administradores: origem, formação, atuação e organização; os saberes:

currículo, disciplinas, livros didáticos, métodos e instrumentos de ensino; as normas

disciplinares: regimentos, organização do poder, burocracia, prêmios e castigos; os

eventos: festas, exposições, desfiles (NOSELLA E BUFFA, 2009, p. 18).

Para além da materialidade da instituição educativa, Magalhães (2004, p. 66) lembra que

a própria pedagogia institucional “alarga-se ao grupo e às representações que subjazem aos

intervenientes na relação educativa [...] A identidade dos sujeitos, suas memórias, destinos e

projetos como a memória e a representação da instituição, cruzam-se e fecundam-se mutuamente

enquanto construção histórica.” Neste sentido, a análise histórica do seminário precisa

contemplar que tanto a instituição quanto a educação por ela oferecida, são articuladas na ação

dos sujeitos. Neste caso, diz Saviani (2013, p. 29) “estamos diante da instituição em ato, ou seja,

voltamo-nos para o próprio modus operandi da instituição”. A própria instituição é constituída

para satisfazer uma necessidade que tem caráter permanente. O Santa Maria tinha como

finalidade ser um centro de preparação para o ingresso dos jovens na Ordem dos Capuchinhos,

uma etapa num longo processo de enquadramento no sistema religioso. No entanto, como lembra

Saviani (2013, p. 35), apesar da transitoriedade da instituição, ela “se define pelo tempo histórico,

e não, propriamente, pelo tempo cronológico, e muito menos, pelo tempo psicológico”.

A QUESTÃO DAS IDENTIDADES

Como bem frisou Stuart Hall, existe atualmente uma “explosão discursiva em torno do

conceito de identidade” (2014, p.103). Isso porque, chegou-se atualmente a conclusão de que a

identidade não é dada, não está geneticamente definida, mas ela

permanece sempre incompleta, esta sempre “em processo”, sempre “sendo formada”. As

partes “femininas” do eu masculino, por exemplo, que são negadas, permanecem com

ele e encontram expressão inconsciente em muitas formas não reconhecidas, na vida

adulta. [...]. A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que ja esta dentro de

nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que e “preenchida” a partir de nosso

exterior (HALL, 2002, p. 38-39).

Na modernidade, esta identidade esta sendo descentrada, fragmentada, deslocada. Isso

implica dizer que há uma crise de identidade, porque uma “identidade plenamente unificada,

completa, segura e coerente é uma fantasia” (Hall, 2014, p. 12). Este deslocamento da identidade

é uma percepção compartilhada também por outros autores como Giddens (2002), Castells

(1999), Bauman (2005).

De acordo com Giddens (2002), a auta-modernidade, tem influenciado fortemente esta

movimentação da identidade, de maneira mais veloz e até traumática, porque o sujeito tem uma

infinidade de opções nesse jogo dialético de construção e reconstrução identitária. Nas culturas

tradicionais tudo permanecia inalterado, geração após geração, e a novidade era sempre

ritualizada. Já na sociedade da auta-modernidade, a identidade precisa ser “explorada e

construída como parte de um processo reflexivo de conectar mudança pessoal e social”

(GIDDENS, 2002, p. 37). Já não é mais um processo natural, coletivo, mas evoca a participação

do indivíduo que tem papel preponderante nesta construção.

Já para Castells, a identidade é construída a partir de múltiplos fatores que a compõe:

A construção de identidades vale-se da matéria prima fornecida pela história, geografia,

biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias

pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso (CASTELLS, 1999, p.

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A identidade nunca se constrói a partir de si mesma, mas sempre a partir de uma realidade

maior que se chama coletivo. É na coletividade que a identidade é moldada, construída. Neste

quadro, a questão da identidade aprofunda-se ainda mais num mundo em constante

transformação. Baumam caracteriza este período com um adjetivo sagaz: líquido. É nesta

realidade líquida, amorfa, que os indivíduos procuram no coletivo um local seguro de identidade.

Isso porque, as identidades “perderam suas âncoras sociais que faziam parecer naturais, pré-

determinada e inegociável, a identificação se torna cada vez mais importante para os indivíduos

que buscam desesperadamente um nós a quem podem pedir acesso” (BAUMAM, 2005, p.30).

Na busca de um lugar de identificação o indivíduo tende a se agregar num ambiente

determinado. Neste local, o indivíduo moldará sua identidade a partir da observação dos pares e

sob a pressão deles. Disso dependerá sua aceitação ou não no grupo, como diz Goffmam

Quando um indivíduo chega diante de outros, suas ações influenciarão a definição da

situação que se vai apresentar. Às vezes, agira de maneira completamente calcada,

expressando-se de determinada forma somente para dar aos outros o tipo de impressão

que ira provavelmente leva-los a uma resposta específica que interessa obter. Outras

vezes, o individuo estará agindo calculadamente, mas terá, em termos relativos, pouca

consciência de estar procedendo assim. Ocasionalmente expressar-se-a intencional e

conscientemente de determinada forma, mas, principalmente, porque a tradição de seu

grupo ou posição social requer este tipo de expressão, e não por causa de qualquer

resposta particular que não a de vaga aceitação ou aprovação (GOFFMAN, 2002, p. 15).

Enfim, na perspectiva de refletir a respeito do conceito de identidade e de seus

desdobramentos, conceito extremamente complexo, concentramos nossa análise nas identidades

sacerdotal e franciscana a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965). Por certo, o Concílio

simbolizou uma ruptura com o modelo de formação tridentino, mas foi a recepção de seus

documentos e orientações no interior das congregações que denotam as tensões por ele

produzidas.

O CONCÍLIO VATICANO II COMO EVENTO HISTÓRICO, DIALÓGICO E AGENTE DE

TENSÃO DAS IDENTIDADES SACERDOTAL E FRANCISCANA

Classificar o Vaticano II como “evento histórico”, é inseri-lo, à sombra da teoria de

Koselleck8, no rol de acontecimentos marcantes ou historiograficamente significativos, ao menos

de compreensão, palavra aliás, que “domina e ilumina os estudos do historiador”, como afirmava

Bloch (2001, p. 128). O Vaticano II marcou, para além da Igreja, a sociedade ocidental pós 1965

porque, apesar da laicidade da sociedade ocidental, o mundo está “encharcado” de práticas e

discursos religiosos. A Igreja através de suas instituições, está presente neste ambiente, e sua

presença dialoga, interage com a sociedade recebendo desta elementos que caracterizam,

inclusive, a linguagem dos documentos finais do Concilio. É neste sentido que podemos chamá-

lo também de evento dialógico9, a partir das teses de Bakhtin10, um evento “repleto de vozes, com

todos os jogos de interesses dentro de si, com todas as contradições possíveis. Essa é sua riqueza.

Essa é sua pobreza. Assim são as instituições” (MIOTELLO Apud WOLFFART, 2013, p. 06).

Como evento eclesial, Libâneo (2005, p.09) propõe a possibilidade de duas leituras. A

primeira delas seria de total ruptura com a ordem anterior. Seu inicio poderia ser encontrado na

década de 1930, na Europa. Uma outra leitura é uma leitura de continuidade, ou seja, o Concílio

Vaticano II seria apenas um desenvolvimento natural dos outros vinte Concílios. Para Santos

(2005, 08) as metas principais do Concílio Vaticano II seriam: desenvolvimento da fé católica; a

renovação da vida cristã dos fiéis; a adaptação da disciplina eclesiástica às exigências do tempo

presente. Uma palavra tornou-se símbolo deste Concílio: aggiornamento, ou seja, atualização.

8 Reinhardt Koselleck, em sua obra “futuro passado: para uma semântica dos tempos históricos”, fala que o evento, por ter uma

cronologia natural, um antes e um depois, está de certa forma preso aquele momento histórico. No entanto, afirma Koselleck

“cada evento produz mais, e ao mesmo tempo, menos, do que está contido nas circunstâncias prévias: dai advém sua

surpreendente novidade”(p. 139). Por isso torna-se importante a análise para além da cronológica, porque senão “a história seria

diminuída, se ela se obrigasse somente a narração, em detrimento de uma análise de estruturas cuja efetividade está em outro nível

temporal” (p. 140). 9 Segundo Silveira (2012, p. 21) “na perspectiva Baktiniana, o conceito de dialogismo está relacionado aos sentidos produzidos

entre os falantes em enunciados postos em diálogo/interação”. 10 Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895- 1975): filósofo e pensador russo, teórico da cultura europeia e das artes. Seus escritos, em

uma variedade de assuntos, inspiraram trabalhos de estudiosos em um número de diferentes tradições (o marxismo, a semiótica, o

estruturalismo, a crítica religiosa) e em disciplinas tão diversas como a crítica literária, história, filosofia, antropologia e

psicologia.

No entanto, alguns anos após o Vaticano II e a promulgação de suas determinações,

houve, segundo Libânio (1984, p.12) uma “sensação de desorientação, provocando reações bem

diversas, conflitantes”. Esta sensação tomou conta do imaginário social católico, e correntes

opostas e saudosistas das estruturas definidas do passado começaram aos poucos a se movimentar

no interior da igreja. De maneira mais concreta, a partir do pontificado de João Paulo II, forças

mais tradicionalistas tomaram vigor. Esse papado, diz Hobsbawm (2009, p. 59) assinalou “um

retorno a uma concepção mais tradicional da Igreja do que o relativo liberalismo que marcou o

catolicismo das décadas de 1960 a 1970”.

É nas tensões geradas pelos modelos Tridentino e o Vaticano II que os embates se

forjarão a partir de então. A formação seminarística deste período pós-conciliar torna-se um

importante lócus de análise porque pensamos ser possível monitorar neste ambiente um certo

movimento destas identidades em questão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As identidades sacerdotal e franciscana não sofreram muitas mudanças nos quatrocentos

anos após o Concílio de Trento, que impôs à Igreja no mundo todo um modelo único, uniforme e

bem delimitada que podia ser reconhecida em qualquer parte, especialmente pelos sinais

exteriores como o uso da batina, missas em latim, autoridade inquestionável, etc. Estas

características no entanto, chegaram no século XX desgastadas e apoiadas a movimentos internos

e ao contexto de mudanças ocorridos após a segunda guerra, obrigaram a Igreja a revê-los.

O Seminário Santa Maria, problematizado nesta pesquisa para compreendermos este

movimento da identidade sacerdotal e franciscana, representa o ambiente sensível onde estas

mudanças foram ou não implantadas, o quanto foram ou não e de que maneira. A análise do

quotidiano no seminário Capuchinho nos proporcionará um campo de compreensão das

dinâmicas que envolveram as implementações do Concílio e que incidiram sobre estas

identidades.

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