O Sentido Da Politica

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    O SENTIDO DA POLTICAEM HANNAH ARENDT

    Ana Paula Repols TORRES1

    RESUMO: Buscamos demonstrar que a ao poltica, na viso de Hannah Arendt,no meio para atingir qualquer fim, sendo sinnimo de liberdade, o que faz comque a autora problematize a tradicional identificao da poltica com violncia, apartir de uma crtica ao equacionamento, que remonta aos primrdios do pensa-mento filosfico sobre o tema, de liberdade e vontade, fazer o que se deseja, oque leva a pensadora em questo a trabalhar as duas dimenses da ao poltica,isto , a dimenso agonstica e a consensualista, significando esta ltima umaliberdade mutuamente garantida.

    PALAVRAS-CHAVE: poltica, liberdade, violncia, pluralidade.

    Jamais existiu um governo baseado exclusivamente nos meios da violncia.

    (Hannah Arendt)

    Aps Dachau, Auschwitz, os Gulags siberianos, em sntese, depois dasexperincias totalitrias nazista e stalinista, qual o significado da poltica?Partindo de uma constatao arendtiana de que ao poltica sinnimo deliberdade, ser que podemos admitir como poltica programas de desu-manizao, de eugenia, isto , de objetivao do homem? Ser que a pol-tica totalitria (ARENDT, 1990, p.514), responsvel pela transformao daprpria natureza humana, por tornar possvel o mal radical, absoluto e im-

    1 Doutoranda em Filosofia pelo Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federalde Minas Gerais-UFMG sob orientao de Newton Bignotto de Souza e com auxlio da Fapemig.Artigo recebido em set/07 e aprovado em dez/07.

  • perdovel, no ocultaria, em realidade, aes no-polticas, at mesmo anti-polticas? No h contradio no prprio termo poltica totalitria? Por ou-236 Trans/Form/Ao, So Paulo, 30(2): 235-246, 2007

    tro lado, ser que a politizao plena realizada por tais regimes totalitriose a concomitante e paradoxal extino do espao de liberdade necessaria-mente nos conduz a dar razo aos liberais, a entender como incompatveisliberdade e poltica, s surgindo a primeira quando a ltima cessa de exis-tir? Em outros termos, ser que a poltica se restringe ao estatal e a liberda-de possui somente uma dimenso negativa, uma liberdade a-poltica deter, de crer, enfim, uma liberdade da poltica (ARENDT, 2001, p.195)?Tais indagaes nos levam, com Arendt, a formular a seguinte questo:Tem a Poltica ainda algum sentido? (ARENDT, 2006, p.38). O que de fato a poltica?

    Ocorre que a perplexidade diante das catstrofes do sculo XX, bemcomo a constatao de que a destruio total, a eliminao da Humanidadee de toda vida orgnica da face da Terra uma possibilidade real, fez no scom que se questionasse o que representa uma deciso poltica em umaguerra de extermnio, mas principalmente reforou uma j tradicional aver-so pela poltica, o anseio por uma ilusria extino da mesma. Dessa for-ma, pode-se dizer, seguindo o desenvolvimento dos argumentos de Arendt,que o fato da poltica ter levado desumanizao completa dos indivdu-os nos campos de concentrao e de ter como resultado possvel a extinodo fenmeno humano est por detrs dos preconceitos contra a mesma nassociedades atuais, pois na medida em que poltica identificada com vio-lncia, com domnio desenfreado de uns sobre outros norteado por interes-ses egostas e mesquinhos, na medida em que se tem por evidente que to-do poder corrompe e que o poder absoluto corrompe ainda mais,2 apassividade, a apatia dos indivduos, a renncia ao exerccio da cidadania,tm sido cultivadas, nas palavras de Arendt, essa condenao do podercorresponde a um desejo inarticulado das massas e tem gerado a fuga impotncia (ARENDT, 2006, p.28).

    Partindo ento do pressuposto, baseado no pensamento de HannahArendt, de que a poltica no domnio, de que no se baseia na distinoentre governantes e governados e nem mera violncia, mas ao em co-mum acordo, ao em conjunto, sendo reflexo da condio plural do homeme fim em si mesma, j que no um meio para objetivos mais elevados, co-mo, por exemplo, a preservao da vida, significando liberdade, somos le-vados a perguntar se esses juzos naturalizados no seriam falsos e perigo-sos, isto , ser que ao se desconhecer a verdadeira poltica, ao se

    2 Power tends to corrupt and absolute power corrupts absolutely (ACTON apud ARENDT, 2006,p.200).

  • confundir aquilo que seria o fim da poltica com a poltica em si (ARENDT,2006, p.25) no estaria sendo disseminado o imobilismo, um sentimento deTrans/Form/Ao, So Paulo, 30(2): 235-246, 2007 237

    inutilidade de qualquer ao, fazendo com que o homem no se reconheacomo um sujeito histrico, como um ser capaz de interromper o fluxo inexo-rvel dos acontecimentos? Aceitar que a poltica no possui um sentido noequivaleria negar significado nossa prpria existncia, no nos reduziriaa autmatos guiados por algum ano oculto, como o jogador de xadrez deMaelzel do conto de Edgar Allan Poe citado por Benjamin, ou, nos termosde Kant, no nos tornaria indistintos dos animais, j que determinados pe-las necessidades da natureza e incapazes de iniciar uma cadeia causal porns mesmos?

    Ocorre que, como indicamos acima, esses preconceitos no so novos,havendo toda uma tradio de identificao da poltica com domnio, comviolncia, cuja origem remonta desvinculao entre poltica e liberdaderealizada pelos filsofos que primeiro trataram do tema, em clara oposio experincia da plis grega. Nesse sentido, Arendt ressalta que no haviasequer o interesse pelo problema da liberdade na Antiguidade, tendo omesmo surgido tardiamente na filosofia, com Epicteto, como uma forma doeu se relacionar com uma realidade externa que lhe seria adversa, resultan-do ento de um estranhamento do mundo. Assim, a liberdade pensadacomo interioridade, sendo este o nico meio daqueles que no possuamum lugar no mundo sentirem-se livres, o que possibilitava aos homens se-rem escravos e livres ao mesmo tempo. Mais especificamente, podemos di-zer que a liberdade em Epicteto resume-se a ser livre dos prprios desejos,a desejar somente aquilo que se pode obter, em oposio concepo deque liberdade seja fazer tudo o que se deseja.

    A partir de ento, Arendt visualiza todo um desenvolvimento do con-ceito de liberdade a partir do conceito de vontade, remetendo-se assim aopensamento cristo de Paulo e Agostinho, os quais tambm localizaram noespao interior da conscincia o problema da liberdade, dessa forma, estaltima, ao invs de ser compreendida como a possibilidade de trazer aomundo algo que no existia, passa a ser identificada ao livre-arbtrio, a umaescolha entre duas alternativas dadas. Trata-se, no sentido agostiniano, deum antagonismo dentro da prpria vontade, de um querer e um no quererao mesmo tempo, entre querer e no fazer, sendo a vontade poderosa e im-potente, pois , ao mesmo tempo, quem d as ordens e quem no as obede-ce. Segundo Arendt, essa aproximao de liberdade e vontade pode serelencada como uma das causas pelas quais ainda hoje equacionamos qua-se automaticamente poder com opresso ou, no mnimo, com governo sobreoutros (ARENDT, 2001, p.210). Entretanto, de toda essa digresso o quenos interessa a perda da concepo poltica de liberdade, do entendimen-to de que a liberdade no pode ser obtida na solido e que no se resume ao

  • quero, mas que tambm necessita do posso, em outros termos, pode-mos dizer que liberdade no significa fazer o que se deseja, no significa238 Trans/Form/Ao, So Paulo, 30(2): 235-246, 2007

    soberania, pois s se livre perante outros que tambm o sejam.Liberdade entre iguais foi justamente no que se baseou a plis grega,

    pois diferentemente do mbito domstico onde reinava o despotismo e adesigualdade, do espao privado destinado satisfao das necessidadesda vida, onde era justificada a violncia e natural o domnio de uns sobreoutros, do pai sobre esposa, filhos e escravos, a plis surge como um espaoonde a distino entre governantes e governados no fazia sentido, ondetodos aqueles que igualmente obtiveram libertao das necessidade vitaispodiam tornar-se livres, podiam participar e construir um mundo comumatravs de feitos e palavras. Desse modo, percebe-se que a liberdade noera obtida no relacionamento do eu consigo mesmo, mas sim na interaocom seus semelhantes, pressupondo tanto a presena de outros eus,quanto a existncia de um espao pblico organizado que permitiria a to-dos os homens livres aparecer, isto , agir.

    Compreende-se, ento, porque Arendt considera a liberdade e a aopoltica como sinnimas, haja vista que no enclausurando-se em si mes-mo, utilizando-se unicamente da capacidade de pensar ou de querer, queum indivduo passa a ser livre, a liberdade existe onde a condio plural dohomem no seja desconsiderada, sendo nada mais que ao, em outras pa-lavras, o indivduo s livre enquanto est agindo, nem antes, nem depois.Ressalte-se, todavia, que a ao poltica s pode ser entendida como liber-dade se a mesma no sofre qualquer forma de funcionalizao, de instru-mentalizao, como a presente nas atividades do labor e do trabalho,3 cujovalor no estaria, ao contrrio da ao poltica, no desempenho em si mes-mo, mas sim em algum resultado, um fim a ser alcanado quando termina oprocesso produtivo. Tal como as artes de realizao, como a msica, a dan-a, o teatro, a ao poltica valorada pelo seu virtuosismo, entendido es-

    3 Em A Condio Humana, livro realizado a partir de uma srie de conferncias proferidas na Uni-versidade de Chicago em 1956, sob o nome de Vita Activa, Arendt realiza a distino entre asatividades do trabalho (labor), da obra ou fabricao (work) e da ao (action), utilizando-se paratanto de uma anlise da durabilidade dessas diferentes atividades, bem como da correspondn-cia das mesmas com distintas condies humanas, a vida, o pertencer-ao-mundo ou mundanida-de e a pluralidade. Assim, o trabalho volta-se para a satisfao das necessidades vitais, no sendodurvel na medida em que o produto consumido imediatamenta aps o fim da atividade; a obraou fabricao tem como fim a criao de objetos durveis, a construo de um mundo artificialdestinado a transcender at mesmo a vida dos produtores; a ao, por sua vez, a nica atividadeque no est direcionada para a produo de objetos, sendo desenvolvida entre os homens, jus-tamente pelo fato de homens, e no o Homem, viver na Terra. Cabe lembrar que enquanto o tra-balho e a fabricao so realizados na esfera privada, a ao s surge na esfera pblica. Sobre otema, ver: (ARENDT, 2005a), (MAGALHES, 1985).

  • te, a partir do conceito amoral de virt de Maquiavel, como performance,bem como necessita de uma audincia e de um espao para que o espe-Trans/Form/Ao, So Paulo, 30(2): 235-246, 2007 239

    tculo possa se realizar, nas palavras de Arendt, a plis grega foi uma es-pcie de anfiteatro onde a liberdade podia aparecer (ARENDT, 2001, p.201).

    O fato que se a ao poltica fosse produto da fabricao, se, no sen-tido Aristotlico, fosse poiesis e no prxis,4 se tivesse um objetivo exterior mesma, criando assim um resultado que passaria a ter existncia por siprprio, no dependendo mais do processo produtivo que o gerou, tal comoas obras de arte, no haveria necessidade de novas aes, de constante re-cordao, de reencenaes do momento inicial para a manuteno das pr-prias intituies polticas, sendo ento necessrio termos sempre em men-te que as instituies polticas so manifestaes e materializaes dopoder; petrificam e decaem quando o poder vivo do povo cessa de lhes sus-tentar (ARENDT, 2004b, p.120). Nessa linha, podemos dizer, seguindo ospassos de Arendt, que a estabilidade e permanncia de Roma foi ocasiona-da pela autoridade atribuda fundao, autoridade esta que se baseava nacontinuidade de uma tradio, na vitalidade do esprito da fundao(ARENDT, 1988, p.161), e que pode ser visualizada no fato de todas as ino-vaes e mudanas subseqentes terem sido consideradas como desenvol-vimento e aumento do ato inaugural. Isso explica o fato das guerras roma-nas no propugnarem o extermnio dos vencidos, mas sim a formao deparceiros, a transformao, atravs de acordos e alianas, dos inimigos emamigos, o que s contribuia para ampliar a Repblica.

    O que importante ser ressaltado aqui que a ao poltica enquantofundao em Roma tambm significava liberdade, pois nada mais era doque um incio, um novo comeo ao qual se vinculavam todos aqueles queainda viriam ao mundo. justamente essa experincia poltica romana queest por detrs de uma outra noo de liberdade, no mais como interiori-dade, exposta por Agostinho em A Cidade de Deus. Assim, segundo talfilsofo cristo, cada homem que nasce um novo comeo no mundo, e nodo mundo, representando ento a natalidade a possibilidade de surgimentodo novo, o que leva Arendt a afirmar que a liberdade foi criada com o pr-prio homem, e por ser ele um incio, tambm o iniciador.

    Essa identificao entre ao poltica e liberdade pode ser constatadaatravs das prprias palavras que em grego e em latim era utilizadas peladesignar a ao. Como bem lembra Arendt, em grego havia archein, que

    4 por meio de uma reinterpretao violenta da categoria de prxis como energeia que Arendtextrai a ao poltica da trama teleolgica em que Aristteles a havia inserido, tendo em vista re-cuperar a dignidade e a autonomia da ao e do discurso polticos como fins em si mesmos(DUARTE, 2000, p.222, grifo nosso).

  • significava comear, ser o primeiro e, governar e prattein, cujo senti-do era atravessar, realizar e acabar; em latim, por sua vez, de maneira240 Trans/Form/Ao, So Paulo, 30(2): 235-246, 2007

    correlata, temos agere, que significava pr em movimento, guiar e gere-re, cujo significado era conduzir. Nas palavras de Arendt, como se todaao estivesse dividida em duas partes: o comeo, feito por uma s pessoa,e a realizao, qual muitos aderem para , , levara cabo o empreendimento (ARENDT, 2005a, p.202). Resta ento dizer queo que pretendemos enfatizar ao analisar o conceito de poltica para HannahArendt que a mesma implica no s a possibilidade, latente em todos osseres humanos, de comear, de criar algo novo, fazendo surgir o inspera-do, o imprevisvel, mas tambm, e no de maneira secundria, que a aopoltica nunca se realiza no isolamento, sempre uma ao em conjunto,configurando um acordo entre iguais. Dessa forma, por mais que o incioseja obra de um nico indivduo, h a necessidade de outros para que aao seja concluda, havendo ento uma complementariedade entre as di-menses agonstica e consensualista da ao poltica em Hannah Arendt.Por conseguinte, a poltica, apesar de ser iniciada pela espontaneidade hu-mana, surge como relao, ela existe entre homens, em outras palavras, no da essncia do homem, considerado isoladamente, ser um animal polti-co como pensava Aristteles, mas por viver num mundo plural, a presena,o olhar do outro, uma marca indelvel do fenmeno humano, s podendoser apagada em momentos de delrio.

    Percebe-se, a partir dessa segunda dimenso da ao, a importnciada alteridade para que a ao seja concluda, dessa forma poderamos afir-mar que os feitos dos heris gregos no seriam grandes sem Homero, semos poetas que os pudessem tornar imortais, por isso a criao da plis podeser explicada por essa necessidade de platia, de espectadores paraque os acontecimentos extraordinrios, que nesse espao poltico podiamtornar-se corriqueiros, no fossem esquecidos. Por outro lado, a ao comoincio, como manifestao do esprito agonstico dos gregos tambm nosensina que correlata ao poltica est a busca por distino, isto , a lutapor reconhecimento da prpria singularidade, pois, como diz Arendt, nacoragem de agir, de aparecer no espao pblico, que o homem revelaquem , que ele confirma a sua prpria identidade, a imagem que possuide si mesmo. Sem essa dimenso compartilhada, sem esse sexto sentido,esse sensus communis, no seria possvel ao homem saber-se real, ou seja,ele no poderia confiar em seus sentidos sensoriais, em outros termos, nosaberia se existe ou se no passa de um sonho, tal como colocou Primo Leviao falar sobre os reflexos que o regime de segregao criado pelas leis fas-cistas impuseram a si por ser judeu, j que ele teria sido condenado a vivernum mundo s meu, um tanto apartado da realidade, povoado de racionaisfantasmas cartesianos (LEVI, 1988, p.11).

  • Ocorre que, por vivermos em um mundo plural, no podemos preverplenamente as conseqncias de nossas aes, e isto no se deve a umaTrans/Form/Ao, So Paulo, 30(2): 235-246, 2007 241

    deficincia congitiva, mas sim a um certo grau de imprevisibilidade detoda ao, haja vista que, por estarmos inseridos em uma rede de relaes,onde toda ao gera reaes, no podemos saber integralmente qual o re-sultado do processo irreversvel que desencadeamos no mundo. Por issoArendt diz que apesar de agirmos, no somos os autores da histria, pois osignificado da mesma somente pode ser encontrado no fim, isto , de ma-neira retrospectiva por quem se dispe a narr-la. Nessa linha, podemos di-zer que a constituio de ns mesmos, de nossa biografia, do sentido denossa existncia, bem como a constituio da comunidade poltica em quevivemos uma atividade plural, que incapaz de ser realizada solitaria-mente, pois a antes mencionada rede de relaes que est por detrs dosnegcios humanos no permite que realmente sejamos soberanos e onipo-tentes, confirmando-se ento a natureza fantasmagrica do poder-Uno talcomo coloca Claude Lefort (LEFORT, 1987, p.84).

    Dessa forma, podemos dizer que ningum governa sozinho, sendo queat mesmo aquele que se utiliza da violncia, que governa atravs de imple-mentos, precisa de uma certa organizao, do apoio de outros para a im-plementao de seu objetivo, nas palavras de Arendt, diramos que mesmoo mandante totalitrio, cujo maior instrumento de domnio a tortura, pre-cisa de uma base de poder a polcia secreta e sua rede de informantes(ARENDT, 2004b, p.128), o que significa dizer que a violncia, apesar de seruma varivel que no pode ser ignorada, no um operador universal, nosendo suficiente para constituir uma comunidade poltica. Como bem sabiaMaquiavel (MAQUIAVEL, 2001, p.55-6), a violncia pode destruir o poder, aconquista pode desfacelar um regime de liberdade, mas no capaz deconstruir nada, o que equivale a dizer que, ao contrrio do que pensavaClausewitz, a guerra no a continuao da poltica por outros meios(CLAUSEWITZ apud ARENDT, 2004b, p.98), haja vista que onde a violnciaprolifera o poder se esvai.

    Ressalte-se, todavia, que dificilmente existir a forma extrema do po-der Todos contra Um , ou a forma extrema da violncia Um contra To-dos , o que ocorre um movimento pendular de aproximao para cadauma das extremidades. Assim, para exemplificar, podemos citar as expe-rincia totalitrias do sculo XX como ocasies em que se pretendeu levara violncia a seu mximo, o que significava uma morte anunciada, pois namedida em que se progredia na destruio da prpria base de poder, com aeliminao dos amigos e no s dos inimigos, o que o regime estava fa-zendo era nada mais do que aniquilando a si mesmo. Percebe-se ento queo terror totalitrio, ao fazer com que o medo e a solido atingisse a todos,at mesmo aqueles que os apoiavam, destruindo assim qualquer espao co-

  • mum, no estava fazendo nada alm do que gerar instabilidade, do que dis-seminar o germe de sua prpria destruio (ARENDT 2, p.530).5 242 Trans/Form/Ao, So Paulo, 30(2): 235-246, 2007

    Ocorre que, como bem sabia Arendt, a aniquilao do espao comuminiciada com a atomizao da sociedade de massas e potencializada com osregimes totalitrios concomitante com a eliminao dos parmetros nor-mativos que so configuradores do poltico, pois sem a mediao do Direito,enquanto liberdade e igualdade, s h poder que devora a si mesmo. Ressal-te-se, todavia, que a dimenso principiolgica e simblica do Direito que automaticamente negada por um regime totalitrio e que nos possibilitaconsider-los como a perpetuao da exceo, haja vista que eventuaiscriaes de leis positivas no conferem legitimidade aos regimes de terror,o que nos permite concluir que se no existe poltica tal como Arendt a con-cebe, tampouco h Direito nos regimes totalitrios. Dessa forma, por maisque haja formalizao jurdica em um regime totalitrio, por mais que Hitlertenha chegado ao poder observando os procedimentos legais, tendo o parti-do nazista obtido aproximadamente 13 milhes de votos nas eleies de ju-lho de 1932, por mais que tenha sido aprovada a denominada Lei de Autori-zao, que permitia ao gabinete governar em situaes de emergncia semsubmeter seus atos apreciao do parlamento, no podemos considerar,ao contrrio do que pensava Kelsen,6 tal regime como um Estado de Direito.

    O que podemos ento constatar que o regime que impea a articula-o de um mundo comum entre os indivduos, mundo este configurador dapoltica e do Direito, que pretenda a concentrao do poder em uma s pes-soa est fadado a entrar em crise, pois no h governo que permanea sem

    5 Essa dimenso autofgica tambm est presente na tirania, na medida em que o detentor do po-der absorve para si todo o espao pblico, aniquilando-o, permitindo aos indivduos somente asatisfao de interesses privados. Ocorre que, como aparece no texto de Xenofonte sobre Hieron,o tirano, ao destruir o espao comum, as mediaes institucionais, legais, no tem a que recorrerpara a garantia de seu prprio poder, da a instabilidade de seu governo, cabendo ao mesmo,como fez Hieron ao falar de seu ofcio como uma carga, defender, no mbito privado, seu prpriopoder da cobia dos demais, pois o tirano aquele que consegue realizar todos os desejos dosparticulares (BIGNOTTO, 1998, p.169-75), (STRAUSS, 1988, p.95-133). De forma contrria, pode-mos lembrar a estabilidade do regime criado por Slon, o que s foi possvel ao se recusar a per-manecer no poder, deixando vazio o lugar que temporariamente ocupou, do legislador, criando as-sim um governo de leis e no de homens (BIGNOTTO 1999). No haveria ento uma relao entreo poder como obrigatoriamente plural, no sentido arendtiano, e uma dimenso normativa assegu-radora da desincorporao e continuidade desse poder?

    6 No obstante os escritos poltico-democrticos de Hans Kelsen, sua concepo do Direito comolegalidade levou-o a afirmar o seguinte: Segundo o Direito dos Estados totalitrios, o governo tempoder para encerrar em campos de concentrao, forar a quaisquer trabalhos e at matar os in-divduos de opinio, religio ou raa indesejvel. Podemos condenar com a maior veemncia taismedidas, mas o que no podemos consider-las como situando-se fora da ordem jurdica dessesEstados (KELSEN 1996, p.44).

  • uma base de sustentao, em outros termos, poderamos dizer que mesmoque todos os homens se tornem Um-S-Homem (ARENDT, 1990, p.519),Trans/Form/Ao, So Paulo, 30(2): 235-246, 2007 243

    que o governante se intitule o representante do povo, procedendo a umareificao do mesmo atravs da adoo do ideal de uma sociedade transpa-rente, unificada, sem diferenas, sem conflitos, tal governo no passa deuma abstrao, de um mito cujo trgico destino j est traado, haja vista aartificialidade e fragilidade do consenso que o sustenta, pois este noest baseado em convices, mas sim na vacuidade, na ausncia do pensar,o que leva submisso regra pela regra, a uma absolutizao da lei, quese for radicalmente alterada em caso de eventual mudana de regime, pro-vavelmente levar consigo o apoio dos adeptos do regime anterior. Nas pa-lavras de Arendt,

    (...) todas as nossas experincias nos dizem que precisamente os membros da socie-dade respeitvel, aqueles que no tinham sido afetados pela comoo intelectual emoral dos primeiros estgios do perodo nazista, foram os primeiros a se render. Elessimplesmente trocaram um sistema de valores por outro. Diria que, portanto, os no-participantes foram aqueles cuja conscincia no funcionava dessa maneira, por as-sim dizer, automtica como se dispusssemos de um conjunto de regras aprendi-das ou inatas que aplicamos caso a caso, de modo que toda nova experincia ou si-tuao j prejulgada, e precisamos apenas seguir o que aprendemos ou o quepossumos de antemo. (ARENDT, 2004a, p.106-7)

    justamente a capacidade de pensar, a possibilidade de realizao dodilogo interno consigo mesmo que acreditamos estar por detrs dosenti-mento de legalidade (ARENDT, 2004a, p.103) que emana daqueles que secolocam contra a lei de seu pas em situaes limite, como ocorreu comos irmos Scholl e demais integrantes do denominado grupo Rosa Branca,que ousaram se expor, posicionar-se, assumindo a responsabilidade pelosim ou no diante do momento histrico em que estavam inseridos, editan-do planfetos de repdio ao regime nazista, postura esta cuja recordao so-mente nos revela que a ao poltica como liberdade no uma utopia, masuma possibilidade sempre aberta, sendo esta a promessa da poltica(ARENDT, 2005).

    Se todos, e no somente os especialistas, como ressalta Arendt, so-mos capazes de pensar, somos tambm capazes de fazer milagres, de re-alizar o imprevisvel, o improvvel, ou seja, somos todos maiores e portantoresponsveis at mesmo pela ausncia de ao, pela servido voluntria aque porventura tenhamos submetido a ns mesmos, o que demonstra quepensar e ser livre uma questo de escolha, de coragem de se valer do pr-prio entendimento, como diria Kant (KANT, 1974, p.100), cabendo a to-so-mente a ns, enquanto sujeitos marcados pelo devir, refutar o argumento do

  • Grande Inquisidor de Dostoyesvski de que seja desejo eterno e unnime daHumanidade encontrar algum diante do qual se curvar. 244 Trans/Form/Ao, So Paulo, 30(2): 235-246, 2007

    Dessa forma, a poltica, tal como Arendt a entende, como criao donovo, do inesperado, como ao plural, resultado do amor ao mundo e nocomo violncia, no somente se apresenta como uma alternativa, como algorealizvel, sendo inerente condio humana, mas tambm representauma necessidade, pois condio para a constituio do indivduo e da co-munidade poltico-jurdica na qual nos movemos, haja vista que o reconhe-cimento do outro em sua diversidade no somente repercute na confirma-o do sentido da minha vida, mas antes essencial para a existnciadaquilo que me transcende, que me precedeu e que provavelmente no de-saparecer aps o meu fim.

    Em outros termos, o mundo comum, as instituies, o Direito, tudoaquilo que pretende realizar a mediao entre homens, erigindo mais plura-lidade e menos deserto, mais compartilhamento do que isolamento, s podeser construdo se a poltica for sinnimo de liberdade.

    TORRES, Ana Paula Repols. The sense of politics in Hannah Arendt. Trans/Form/Ao, (So Paulo), v.30(2), 2007, p.235-246.

    ABSTRACT: Based upon Hannah Arendts thought, we aim to demonstrate thatpolitical action is not the means to an end, but a synonim of freedom. From thisstarting point, the author remarks the traditional identity between politics andviolence, through a critical approach of the identity found in the very beginningof phylosophical thought of the question between freedom and will, that is, thedesire to do what we want. In this way, Arendt is able to work two dimentions ofpolitical action, the agonistic dimention and the consensual dimention, definingthe latter as mutually guaranteed freedom.

    KEYWORDS: politics; freedom; violence; plurality.

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