A Construcao Da Politica - Cidadao Comum- Midia e Atitude Politica

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    Alessandra Ald

    A construo da polticaCidado comum, mdia e atitude poltica

    Tese apresentada ao Instituto Universitrio dePesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial

    para a obteno do grau de Doutora em CinciasHumanas: Cincia Poltica.

    Banca examinadora:

    _____________________________Marcus Faria Figueiredo (orientador)

    _____________________________Csar Guimares

    _____________________________

    Ricardo Benzaquem de Arajo

    _____________________________Afonso de Albuquerque

    _____________________________Antnio Albino Canelas Rubim

    Rio de Janeiro2001

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    A. O que voc acha da corrupo na poltica? Basta ser poltico pra ser corrupto?Vera. No, no, mas existe. Existe no Brasil e no mundo inteiro, n?

    A. E da?V. E a, como que eles falam, hein? A vem aquela exploso, as notcias.

    Fraude, dinheiro foi desviado no sei pra onde, o banco suo, o banco alemo, o banco no sei o qu...O dinheiro que era pra um determinado projeto, saiu, foi prali...

    E a gente escuta, e a gente, como bom ouvinte, acata isso.E sem nenhuma iniciativa prpria, sem poder fazer nada, a gente escuta como cidado.

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    NDICE

    INTRODUO > 5

    1. CIDADANIA NA DEMOCRACIA DE PBLICO > 10

    1.1. Discursividade e a produo de sentido para o mundo pblico > 181.2. Discursividade e enquadramento > 251.3. Atitudes do senso comum e explicaes estruturais para a poltica > 301.4. Alienao poltica > 341.5. O eleitor brasileiro: um debate > 39

    2. ATITUDES POLTICAS DO CIDADO BRASILEIRO > 472.1. Atitude poltica: valncia e intensidade > 51

    - Atitude forte/positiva > 54- Atitude forte/negativa > 64- Atitude forte/tensa > 76

    - Atitude fraca/positiva > 87- Atitude fraca/negativa > 105

    2.2. Convergncias: em busca do conhecimento poltico suficiente > 113

    3. ATITUDE POLTICA E A MDIA > 1153.1. Ambiente informacional: quadros de referncia para explicar a poltica > 1203.2. Situaes de comunicao: informao poder > 1283.3. Uma tipologia do receptor: o espectador e os meios > 132

    - vidos > 134- Assduos > 140- Consumidores de escndalos > 147- Frustrados > 150- Desinformados > 155

    3.4. Implicaes para a atitude poltica > 157

    4. MECANISMOS DE CONSTRUO DA POLTICA:A TELEVISO COMO REPERTRIO DE EXPLICAES POLTICAS > 1624.1. Os jornalistas e a essncia dos fatos > 1664.2. O estatuto visual da verdade: naturalizao > 1724.3. Personagens da poltica: novelizao > 178

    5. CONCLUSO: A DEMANDA DO PBLICOMAIS CANAIS E MAIS SENTIDOS > 1866. APNDICE METODOLGICO: DESCOBRINDO OS PERSONAGENS > 191

    6.1. Seleo dos entrevistados: mdia e diversidade sociocultural > 1956.2. As entrevistas: observador como intrprete > 2006.3. Interferncias: expectativas e ambiente > 2046.4. Anexo I: Questionrios de seleo > 2106.5. Anexo II: Cronograma das entrevistas > 2136.6. Anexo III: Roteiros das entrevistas > 214

    7. BIBLIOGRAFIA > 223

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    RELAO DE FIGURAS

    QUADRO 1.Elementos da atitude poltica e expresso da opinio > 38

    FIGURA 1. Tendncias da atitude poltica: intensidade e valncia > 44

    QUADRO 2.Atitude poltica dos tipos de receptor > 155

    QUADRO 3.Intensidade da atitude poltica dos tipos de receptor > 156

    QUADRO 4. Valncia da atitude poltica dos tipos de receptor > 156

    QUADRO 5. Caractersticas dos entrevistados: alto interesse vs. acesso > 187

    QUADRO 6. Caractersticas dos entrevistados: baixo interesse vs. acesso > 188

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    INTRODUO

    O conhecimento sobre o que pensam as pessoas comuns sempre teve um papel

    central na poltica, e portanto na cincia poltica. A indagao sobre a atribuio de

    razes pelos homens para suas prprias aes remonta preocupao dos primeiros

    tericos polticos com a natureza humana, sua relativa capacidade, habilidade, vontade e

    autonomia para a organizao coletiva e a conduo dos negcios comuns. No campo

    da poltica concreta, mesmo em regimes autoritrios, em que a participao do povo no

    efetiva, ela sempre foi estratgica. J Maquiavel aconselhava ao prncipe que

    conhecesse os costumes e opinies do povo; um certo grau de consenso sempre foi

    vantajoso para o exerccio do poder. E, muito antes da atual democracia representativa,

    vox populi j era vox Dei. Manter favorvel a opinio popular, nas palavras de

    Maquiavel, sempre tornou a poltica menos onerosa, tanto em termos financeiros quanto

    em termos sociais.

    medida que se expandem os direitos polticos e civis, ao longo dos ltimos

    dois sculos, a questo das idias que o povo tem sobre a poltica ganha novos

    contornos. A necessidade de conquistar e manter o favor popular, a ser periodicamente

    confirmado atravs das eleies, torna seu conhecimento cada vez mais importante tanto

    em termos estratgicos, para a conduo do Estado e organizao da sociedade, quanto

    em termos normativos, na medida em que preciso incorporar este novo ator poltico, o

    cidado comum, ao modelo de democracia a ser adotado como legtimo, com as

    implicaes decorrentes de suas caractersticas especficas. O papel mais ativo previsto

    para o cidado pelos modelos democrticos traz novos problemas, principalmente emrelao ao conhecimento sobre a poltica como pr-requisito para sua participao,

    ainda que mnima, em uma esfera pblica definida como racional e tendendo ao bem

    comum. A capacidade e disposio das pessoas comuns para buscar e obter

    conhecimentos sobre a poltica, bem como os processos e condies envolvidos nesta

    busca, passam ao primeiro plano da reflexo sobre a poltica e sociedade

    contemporneas.

    Estas transformaes sociais e polticas foram acompanhadas por avanoscientficos evidentes, por exemplo no campo da estatstica, que permite a sistematizao

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    cada vez mais acurada das informaes sobre opinies e escolhas polticas dos cidados

    no agregado. A anlise dos mecanismos individuais relativos ao conhecimento e

    discurso poltico do cidado comum, por outro lado, permite determinar algumas

    caractersticas bsicas, fundamentais, que, justamente por serem comuns, interessam

    quer aos produtores da moderna comunicao de massa, quer aos polticos

    contemporneos, interessados em dominar os cdigos de novas exigncias, por parte

    dos eleitores, bem como para avaliar e elaborar critrios de legitimidade teis ao debate

    democrtico.

    A introduo da mdia de massa nesta equao, central para sua compreenso,

    tambm vai ganhar espao crescente dentro do interesse cientfico. Hoje,

    acompanhamos nos jornais competies eleitorais marcadas pela corrida estatstica, nas

    quais o povo, tomado agregadamente pelos institutos de pesquisa, pelas curvas de

    inteno de voto ou de popularidade do governo, ou ainda pelos resultados eleitorais,

    parece cada vez mais interagir com a poltica atravs da mdia de massa. Outras formas

    de comunicao, claro, so relevantes no contexto de cada indivduo, mas podemos

    afirmar que os meios de comunicao, e particularmente a televiso, so considerados,

    por parte significativa da grande maioria que os consome, fonte importante de

    referncias a partir das quais organizam o mundo da poltica.

    Foi buscando contribuir para a compreenso da formao das atitudes polticas

    do cidado comum, e investigar a influncia relativa da mdia de massa neste processo,

    que se definiu o presente trabalho de pesquisa. Para isso, partimos de algumas perguntas

    simples: uma pessoa qualquer, em qualquer cidade do pas, que expectativas alimenta

    em relao ao Estado? Como justifica sua insero, mesmo que mnima, em um mundo

    poltico no qual a sua participao descrita como fundamental? A partir de quais

    quadros de referncia o faz, e condicionado por que mecanismos cognitivos? Como

    situar os diferentes meios de comunicao nesta realidade poltica e cognitiva?A partir de uma anlise qualitativa, tendo por base entrevistas em profundidade,

    procurei levantar estes problemas a partir dos pontos de vista dos prprios indivduos,

    para registrar e entender as idias polticas do cidado comum tal como formuladas por

    ele mesmo, afim de mapear as explicaes estruturais de que os cidados lanam mo

    para organizar de maneira coerente o mundo da poltica, para se situar e agir num

    contexto democrtico que, por definio, exige sua participao, ainda que espordica e

    pouco motivada.

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    A inteno mais abrangente desta pesquisa , portanto, examinar de que forma

    as situaes de comunicao em que encontramos os indivduos, em sua relao com a

    mdia, influem em suas respectivas atitudes polticas; investigar que condies

    propiciam uma vivncia mais democrtica deste sistema poltico por parte do cidado

    comum, no especializado, que constitui a grande maioria da populao.

    O primeiro captulo, Cidadania na democracia virtual, apresenta as principais

    perspectivas analticas a partir das quais foram organizadas as entrevistas. Estamos

    diante de um tipo especfico de ordem poltica e social, marcada pela presena ativa dos

    meios de comunicao de massa. Trata-se de um sistema que mantm caractersticas

    fundamentais de representao pelas quais podemos consider-lo uma democracia, mas

    apresenta tambm traos especficos cujas implicaes polticas so objeto, hoje, de

    grande interesse cientfico. Este novo cenrio poltico habitado por uma maioria de

    pessoas cuja interao com o mundo da poltica predominantemente discursiva. A

    partir da constatao de uma democracia de pblico, este captulo descreve a

    importncia do processo de construo das atitudes polticas, com nfase no carter

    cognitivo: seu contedo so as explicaes estruturais que os indivduos elaboram para

    se situar, enquanto cidados, na poltica.

    Para melhor estabelecer a perspectiva prpria deste estudo, a explorao das

    atitudes polticas inclui a retomada de um conceito clssico da cincia poltica, o da

    alienao, cuja incorporao como chavo ao discurso comum para descrever o

    desinteresse poltico do homem contemporneo indicativa do espao ocupado por essa

    percepo no imaginrio social. Os desdobramentos do conceito de alienao e sua

    contrapartida, a idia de integrao, vo iluminar algumas caractersticas centrais das

    atitudes polticas, enfatizando sua distncia ou proximidade em relao ao ideal do

    cidado informado e integrado polis.

    Na indagao acerca da relao entre a atitude poltica dos entrevistados e osmeios de comunicao, o perodo de democracia que vivemos, no Brasil, desde meados

    dos anos 80, coloca questes especficas para o entendimento das atitudes polticas de

    um cidado carioca comum, tal como os que foram entrevistados. Pareceu importante

    apontar, assim, as principais perspectivas a partir das quais tem sido tratado o problema,

    no mbito da produo recente da cincia poltica brasileira.

    No segundo captulo, Atitudes polticas do cidado brasileiro, apresento uma

    alternativa analtica para a categorizao das principais atitudes polticas reveladas napesquisa, redimensionando as questes colocadas pelas diferentes perspectivas

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    presentes no captulo anterior. Acredito ser possvel explicar as atitudes polticas do

    cidado comum a partir de duas tendncias principais, ao longo das quais parecem se

    organizar as diferentes caractersticas percebidas tanto nas teorias da alienao, como na

    pesquisa emprica empreendida para este estudo. Trata-se de dois eixos fundamentais: a

    intensidade e a valncia das atitudes polticas, na verdade presentes, de uma forma ou de

    outra, em todas as conceituaes que envolvem o binmio alienao/integrao. O

    primeiro eixo diz respeito relativa centralidade da poltica entre as preocupaes

    cotidianas do cidado comum; o segundo ancora-se na constatao de que as atitudes

    polticas variam tambm de acordo com a perspectiva individual positiva ou negativa

    quanto s possibilidades e condies da poltica. Foi possvel identificar cinco atitudes

    tpicas em relao poltica: forte/positiva, forte/negativa, forte/tensa, fraca/positiva e

    fraca/negativa.

    Para alm das diferenas entre os tipos atitudinais construdos, encontramos nos

    depoimentos uma convergncia que aponta para duas caractersticas: a atribuio de um

    valor central questo da informao, como indispensvel ao conhecimento poltico; e

    um tratamento afetivo e personalista da poltica, marcado pela subjetividade e pela

    paixo. Estes focos, importantes como so no discurso dos cidados comuns, sero

    desenvolvidos nos captulos seguintes.

    O terceiro captulo, Mdia e atitude poltica, trata justamente do ambiente

    informacional em que encontramos estes cidados, contracenando com quadros de

    referncia que alimentam as explicaes que eles constroem para a poltica. As

    condies de acesso so especialmente significantes na diferenciao da recepo, mas

    seu efeito modulado pelo interesse por assuntos polticos, ou seja, o grau de atividade

    com que cada um busca informar-se sobre a poltica, e pela relativa satisfao que

    obtm do que considera informao suficiente. O cidado comum receptor da

    comunicao de massa e usurio de um sistema diferenciado de informao econhecimento poltico, a que recorre de forma mais ou menos ativa. Sua insero no

    universo da comunicao de massa d origem a uma classificao dos tipos de receptor,

    estabelecidos em funo da situao de comunicao em que encontramos os

    indivduos; assim, os cidados comuns se distribuem entre vidos, assduos,

    consumidores de escndalos, frustrados e desinformados.

    Este captulo encerra-se com uma descrio das principais tendncias atitudinais

    encontradas em cada grupo de receptores, apontando para as relaes entre as atitudespolticas e os tipos de recepo de comunicao dos indivduos, com implicaes

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    importantes para o que se pode dizer acerca das possibilidades e expectativas polticas

    deste cidado.

    O quarto captulo, Mecanismos de incorporao de explicaes polticas: a

    televiso como repertrio de exemplos, tambm ganhou corpo a partir da anlise da

    relao dos cidados com a mdia. Aqui, focalizamos a importncia da televiso como

    um meio especfico que, alm do consumo qualificado e diversificado de informao

    poltica, implica, devido ao seu prprio formato, na utilizao de mecanismos

    cognitivos comuns, a que todos os cidados parecem recorrer no momento de construir

    explicaes polticas. Neste captulo, apresento os trs principais mecanismos

    cognitivos identificados na construo de explicaes polticas pelos cidados-

    telespectadores, que elevam a televiso a uma posio singularmente vantajosa na

    constituio da opinio pblica, e conseqentemente central para a reflexo acerca de

    suas implicaes polticas. Os mecanismos cognitivos de incorporao de explicaes

    caracterizam-se pela essncia dos fatos, com especial destaque figura dos jornalistas

    e apresentadores de televiso; pelo estatuto visual da verdade; e pela personalizao

    prpria do enquadramento telejornalstico e das explicaes populares para a poltica.

    Ao focalizar este cenrio e estes personagens, observamos que as pessoas

    comuns trafegam por um universo vasto e variado de informaes, por vezes at

    excessivas, em sua interao rotineira com diferentes quadros de referncia, disponveis

    e elaborados de acordo com o ambiente cognitivo de cada um. Para evitar a paralisia,

    buscam marcas, sinais, uma orientao que contextualize, enquadre cada elemento

    particular numa moldura maior, dando-lhe sentido. Os meios de comunicao de massa

    se oferecem, neste contexto, como uma estrada sinalizada; propem uma organizao

    autorizada dos eventos. No pouco. As exploses de notcias que pontuam um

    cotidiano dedicado esfera privada, de equilbrio s vezes precrio, orientam e

    informam as atitudes polticas do cidado comum.Alm de algumas reflexes finais, e das referncias bibliogrficas de praxe, esta

    tese inclui um apndice metodolgico em que se explicitam os protocolos da pesquisa,

    descrevendo desde o processo de seleo dos dezenove entrevistados at as implicaes

    da metodologia adotada para o andamento do trabalho de campo e para a posterior

    anlise dos dados. Vrios aspectos metodolgicos relevantes, inseridos na discusso

    atual das cincias sociais, ficam assim reservados aos que se dispuserem a uma leitura

    mais paciente e especfica.

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    CIDADANIA NA DEMOCRACIA DE PBLICO

    O cenrio em que encontramos os cidados da democracia contempornea

    caracteriza-se por uma esfera pblica cada vez mais dependente dos meios de

    comunicao de massa para a exposio de eventos, idias, programas e lderes polti-

    cos. Os partidos parecem ter perdido o monoplio do espao pblico da poltica para os

    meios de comunicao, que crescem em importncia, tornando-se os canais de

    informao poltica mais importantes e universalmente acessveis. Este canal pblico

    tem um lgica perversa: a mdia oferece o mximo de informao sobre o mximo de

    assuntos, no mnimo de tempo.

    Vrias abordagens tericas, tanto no campo da comunicao quanto no campo

    da cincia poltica, tm procurado dar conta desta nova realidade. Termos como

    videopoltica, telecracia, democracia midiacentrada, cibersociedade e outros tentam

    traduzir a especificidade poltica das relaes de comunicao na sociedade

    contempornea. A questo das relaes entre mdia e sociedade e, principalmente, entre

    mdia e poder, est presente na reflexo de importantes pensadores sociais e polticos

    contemporneos, como Umberto Eco e Pierre Bourdieu; a intelectualidade bem-

    pensante parece cada vez mais alarmada, no curso da expanso dos meios e das

    inovaes da tecnologia crescentemente com os jornais, o rdio e, finalmente, a

    televiso , com os efeitos perniciosos da indstria cultural para a poltica e, mais

    especificamente, para a cidadania.

    Em uma breve retrospectiva, vemos que a primeira vez em que o mundoacadmico atentou para as possveis conseqncias polticas dos meios de comunicao

    de massa remonta ao segundo ps-guerra, quando o profissionalismo e eficcia da

    comunicao poltica, cujo exemplo mais gritante era o do nazismo, geraram uma onda

    de espanto e pessimismo quanto suposta onipotncia persuasiva e manipuladora dos

    meios. O incio do interesse pela recepo da comunicao poltica de massa coincide

    com a especulao a respeito dos possveis efeitos da propaganda nazista e com fatos

    anedticos, como o pnico causado pela transmisso radiofnica de Orson Welles

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    narrando uma invaso marciana. Crescia a sensao de que a mdia era capaz de

    manipular sem freios uma audincia passiva.

    A partir de ento, tanto estudiosos da comunicao quanto da poltica tm

    procurado dar conta das implicaes do fenmeno da comunicao de massa, com seu

    desenvolvimento tecnolgico e seus desdobramentos sociais, nas mais diversas frentes

    de pesquisa, e com resultados muitas vezes diferentes ou at contraditrios, mas que

    iluminam aspectos importantes da relao entre cidadania e mdia na democracia

    contempornea. No campo da comunicao, o que se convencionou chamar de estudos

    de recepo ou audincia tm se alinhado segundo dois eixos antagnicos, alternando

    teorias que contrapem, de um lado, a concepo dos meios de comunicao como

    todo-poderosos, que atribui os efeitos da comunicao via mdia exclusivamente ao

    do emissor sobre o receptor, relegando este a um papel mais ou menos passivo; do

    outro, a nfase na capacidade interpretativa do receptor que, como qualquer leitor pode

    modificar o significado das mensagens de acordo com suas prprias contingncias. As

    diferentes orientaes encontram explicao em questes histricas e metodolgicas

    (Wolf, 1992; Gans, 1993), estruturais (Sampedro, 1999) ou evolutivas (Martins, 1996).

    Em relao cincia poltica, embora vrias pesquisas internacionais e

    brasileiras apontem para a centralidade crescente da mdia no funcionamento do sistema

    poltico nas democracias da sociedade moderna (Matos, 1994; Swanson e Mancini,

    1996; Wattemberg, 1991), a presena macia dos meios de comunicao de massa como

    novo ator poltico relevante ainda no foi incorporada de maneira satisfatria s teorias

    democrticas correntes: Seja porque minimizam o aspecto de construo social das

    preferncias, presente na luta poltica, seja porque idealizam o processo comunicativo,

    ignorando seus constrangimentos concretos, as teorias da democracia tm dificuldade

    para trabalhar com os meios de comunicao (Miguel, 2000, p. 51). Dentro do nosso

    prposito, evidente a importncia de esclarecer os motivos e conseqncias destadificuldade terica. Para tanto, organizamos nossas consideraes em torno da reflexo

    esquemtica e concisa de Bernard Manin.

    Manin (1995) procura entender o que chama de democracia de pblico como

    uma transformao no sistema representativo, equivalente que marca a passagem de

    um parlamentarismo de notveis (scs. XVII/XIX) democracia de partido tpica dos

    sculos XIX e XX. Assim, o que tem sido entendido como crise da democracia e

    declnio das relaes de identificao entre representantes e representados seria para

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    Manin um novo modelo poltico, porm mantendo constantes as principais

    caractersticas democrticas.

    O foco nas continuidades deste sistema de governo pode permitir um fio

    condutor para pensar normativamente a questo da informao do cidado comum, e

    conseqentemente dos fluxos sociais de comunicao. Por trabalhar com tipos ideais,

    que na prtica poltica se encontram combinados em graus diferentes, o modelo de

    Manin tambm permite analisar especificamente os aspectos relacionados

    comunicao e informao que, segundo ele, vo caracterizar o sistema poltico

    contemporneo que o autor chama de democracia de pblico como uma mutao

    do governo representativo, equivalente revoluo promovida pelo sufrgio universal e

    pelos partidos.

    Para ele, as caractersticas gerais do governo representativo seriam a eleio dos

    representantes, sua independncia parcial, o debate parlamentar e a liberdade de opinio

    pblica. Em relao eleio de representantes para a administrao da coisa pblica,

    ela implica a atribuio de autoridade, o consentimento com um governo exercido

    indiretamente. No se trata de um governo direto do povo, mas sim de seu governo

    autorizado. A relao mediada pelos representantes entre cidados e esfera pblica

    reforada pela segunda caracterstica do governo representativo: o mandato livre, a

    independncia parcial que os representantes conservam.

    Os dois outros aspectos sintetizam o pesado pressuposto cognitivo que uma

    viso deliberativa da democracia (ver tambm Manin, 1987) impe sobre o cidado

    comum, e nos interessam mais de perto, visto o foco deste trabalho na relao entre

    mdia e atitude poltica. Para que se considere um sistema poltico como representando

    legitimamente os interesses comuns, requisito que a opinio pblica sobre os assuntos

    polticos seja livre e plural, e que o cidado comum, para desempenhar seu papel de

    eleitor, tenha acesso suficiente informao sobre polticas e decises governamentais.Assim, o amplo acesso, inteligibilidade e variedade da informao poltica so condi-

    es importantes para o funcionamento de uma democracia baseada na universalidade

    do voto: Para que os governados possam formar opinio sobre assuntos polticos,

    necessrio que tenham acesso informao poltica, o que supe tornar pblicas as

    decises governamentais e demais processos polticos (Manin, 1995, p. 11), bem como

    a liberdade para expressar diferentes opinies polticas.

    O quarto e ltimo ponto, relacionado ao anterior, a norma de que as decisespolticas, para serem legtimas, so tomadas aps debate. Democracia, segundo essa

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    viso, implica discusso para se chegar verdade, competio entre opinies

    estabelecendo um acordo entre interesses nem sempre convergentes.

    O governo representativo parlamentar, primeiro tipo ideal de Manin, cujo

    exemplo modelar seria a Inglaterra do sculo XVIII, define-se pela eleio como

    relao de confiana de carter pessoal, levando escolha de personalidades

    proeminentes publicamente, os notveis. A independncia parcial dos representantes,

    que nessa poca passa a ser defendida por autores ingleses como Edmund Burke,

    aparece como o desvinculamento do deputado em relao a suas bases eleitorais, agindo

    de acordo com sua conscincia e julgamento pessoais. Assim, grande o peso das

    associaes polticas extra-parlamentares, que exercem ativamente a opinio pblica

    como forma de presso e controle sobre os representantes. Este modelo implica, ainda,

    que as decises pblicas sejam atingidas por meio do debate, da deliberao, exercida

    no mbito do Parlamento. Os deputados no so porta-vozes de vontades preexistentes,

    ou de uma vontade geral universalmente conhecida, e podem mudar de opinio atravs

    da argumentao persuasiva e livre manifestao de idias.

    Trata-se, justamente, do modelo parlamentar que deu origem influente

    concepo habermasiana de uma esfera pblica, com sua nfase na discusso livre e

    racional das questes de interesse coletivo; sua base de legitimidade consistiria na

    possibilidade de reunir um pblico, formado por pessoas privadas que constroem uma

    opinio pblica com base na racionalidade do melhor argumento, e fora da influncia do

    poder poltico e econmico e da ao estratgica dos grupos de interesse. Mesmo

    quando, em obras posteriores, Habermas amplia o conceito de deliberao para alm das

    limitaes histricas presentes em sua obra mais importante, Mudana estrutural da

    esfera pblica (1996), de 1962, este princpio fundamental do debate racional e

    esclarecido permanece como o principal critrio de legitimidade para uma democracia,

    dando grande dimenso ao fenmeno da comunicao em geral, sem no entanto admitiralgumas das caractersticas concretas dos sistemas miditicos contemporneos (ver

    Habermas, 1995).

    Na concepo historicizada de Manin, a representao poltica com predomnio

    do parlamento daria lugar, com a extenso gradual do direito ao voto, a uma

    democracia de partido, em que a relao entre representantes e representados no

    mais pessoal, mas sim mediada pelos partidos. Os sistemas polticos histricos que

    inspiram o modelo so as democracias europias dos grandes partidos socialistas. Ocomportamento eleitoral tornava-se mais estvel, reproduzindo as clivagens

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    socioeconmicas e o conflito entre as classes; a representao proporcional, neste

    sentido, passava a refletir a estrutura de interesses da sociedade.

    Neste sistema, a independncia do deputado condicionada disciplina

    partidria; o partido que parcialmente independente do programa e dos prprios

    eleitores. Em relao liberdade da opinio pblica, as associaes polticas e a

    imprensa em geral apresentam-se marcadas por vnculos partidrios. Os eleitores de

    cada partido, com o qual se alinham geralmente por identificao socioeconmica, so

    pouco expostos a pontos de vista divergentes. A liberdade, aqui, relaciona-se fundamen-

    talmente com a livre organizao e manifestao da oposio. O carter deliberativo da

    representao estaria presente nos debates internos de cada partido, refletindo posies

    estveis em cada campo, definidas previamente. As votaes parlamentares, assim,

    conferem carter legal s decises, mas o frum de discusso efetivo transferido para

    as convenes e demais instncias partidrias; a negociao no Parlamento se d entre

    os partidos e, eventualmente, interesses organizados corporativamente.

    Na democracia de pblico, o ltimo modelo proposto por Manin, reconhecemos

    nossa democracia de massa contempornea. Manin resume seus traos caractersticos.

    No que diz respeito eleio dos representantes, indica a crescente personalizao da

    escolha eleitoral, com foco no candidato, em oposio aos critrios partidrios vigentes

    no modelo anterior, e a atribui, em primeiro lugar, a mudanas nos canais de comunica-

    o poltica, que afetam a natureza da relao de representao. Os candidatos se

    comunicam diretamente com seus eleitores atravs do rdio e da televiso, dispensando

    a mediao de uma rede de relaes partidrias (Manin, 1995, p. 26, grifo meu); seriam

    beneficiados, segundo este modelo, os candidatos que melhor dominam as tcnicas da

    mdia, os melhores comunicadores. Os partidos tendem, cada vez mais, a se colocar a

    servio de um lder.

    Mesmo no momento eleitoral, praticamente a ocasio exclusiva de participaomais ativa deste pblico, o poltico que teria a iniciativa de oferecer alternativas,

    propor a cada vez os termos de clivagem para o eleitor, a partir de pesquisas de opinio.

    Assim, o resultado eleitoral tende a variar, independentemente da clivagem social;

    cresce a importncia do eleitor flutuante. O voto ganha importante dimenso reativa: o

    eleitor reagiria aos termos especficos de cada eleio, muito suscetvel s campanhas.

    A complexidade social crescente daria origem a categorias de identificao social

    mltiplas e superpostas, plurais.

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    Numa democracia de pblico, os eleitores passam a ter maior interao com as

    especificidades de cada eleio, mais do que expressar suas identidades sociais ou

    culturais atravs de um voto segmentado partidria ou ideologicamente em clivagens

    duradouras. Embora o voto ainda seja uma expresso do eleitorado, este apresenta-se

    desalinhado e atento performance: a escolha decorre principalmente de aes

    relativamente independentes dos polticos, permanentemente empenhados em identificar

    as questes que melhor dividem o eleitorado, para poder adaptar seu discurso a suas

    expectativas e, num clculo downsiano, procurar obter o sucesso eleitoral. Manin (1995)

    v a uma convergncia entre os termos da escolha eleitoral e as divises do pblico,

    apoiada nas pesquisas de opinio.

    Os eleitores mantm o poder de no renovar, na eleio seguinte, o mandato do

    candidato que no tiver correspondido a suas expectativas. Tambm neste caso, no

    entanto, o papel dos meios de comunicao de massa revela-se importante, uma vez que

    estes so fontes nada desprezveis de informao sobre a atuao dos polticos. Como

    notado por diversos autores, os prprios partidos, a partir de um certo momento, alteram

    profundamente seu comportamento em funo da televiso (Wattemberg, 1991; Gans,

    1993; Semetko, 1991), passando a promover eventos de acordo com critrios de noti-

    ciabilidade. O programa partidrio perde fora, devido complexidade crescente do

    governo, que exige agilidade diante de situaes muitas vezes imprevistas.

    A independncia parcial dos representantes manifesta-se, nesta variante de

    governo representativo, em vrios nveis. Segundo Manin, a campanha constri

    antagonismos de imagem entre os candidatos, em que os compromissos so vagos e a

    relao estabelecida com o eleitor de confiana: a credibilidade do poltico substitui a

    possibilidade de verificao. Os cidados recebem uma variedade de imagens que

    competem entre si; trata-se, no entanto, de representaes polticas muito simplificadas

    e esquematizadas. Para Manin, um meio de resolver o problema dos custos dainformao poltica, desproporcionais em relao influncia que o eleitor espera

    exercer sobre o resultado das eleies. E acrescenta que, quando a identidade social e a

    identificao partidria perdem importncia na determinao do voto, surge a

    necessidade de encontrar caminhos alternativos para obter informao poltica (Manin,

    1995, p. 30). No caso das modernas democracias de pblico, so os meios de

    comunicao de massa, e especialmente a televiso, que se encarregariam portanto de

    fornecer atalhos para a obteno da informao poltica funcionalmente necessriapara o cidado comum, cumprindo papel equivalente ao que Downs atribua aos

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    partidos polticos, eles prprios atalhos freqentes nas simplificaes cognitivas

    operadas pelo cidado comum (Downs, 1957).

    tambm nos meios de comunicao de massa que se concretiza, para Manin, a

    liberdade de opinio pblica na democracia de pblico. Uma especificidade

    politicamente relevante dos modernos meios de comunicao sua declarao de

    neutralidade poltica, ou seja, sua no-filiao ideolgica ou partidria. Ao contrrio do

    que ocorre na democracia partidria, em que as pessoas escolhem suas fontes de

    informao de acordo com suas inclinaes polticas, os partidos polticos no so mais

    proprietrios de grandes jornais, e o rdio e a televiso no tm, oficialmente, orientao

    partidria. O carter no-partidrio dos institutos de pesquisa tem relevncia ainda

    maior, uma vez que as sondagens de opinio do voz ao cidado comum, aptico, e os

    polticos tendem a apresentar suas propostas considerando as demandas levantadas junto

    a este eleitor mediano, estabelecendo muitas vezes os prprios termos do debate (ver

    Champagne, 1998). Trata-se, como se v, de modelo democrtico bem distinto daquele

    em que os partidos vocalizam interesses de grupos abrangentes e socialmente definidos.

    Neste tipo de sociedade, possvel observar um sistema jornalstico caraterizado

    pela crescente homogeneizao da informao poltica: os indivduos recebem informa-

    es equivalentes, independentemente de suas preferncias polticas. A escolha de

    assistir determinado telejornal, por exemplo, se d de acordo com outros critrios, sejam

    de contedo, estticos ou de imitao. Um segmento importante do eleitorado passa a

    ser flutuante, ou seja, passa a votar de acordo com a pauta de problemas e questes

    levantada a cada eleio, identificada pelos institutos de pesquisa e fartamente

    evidenciada pela cobertura jornalstica. Trata-se de uma informao, no entanto,

    simplificada, em que problemas complexos so expressos de acordo com o meio,

    tornados curtos, simples e espetaculares, para reter a ateno do espectador.

    Quanto premissa de que as decises polticas sejam tomadas a partir do debatepblico, quarto princpio do sistema representativo, para Manin seu novo frum so os

    meios de comunicao de massa. a que se discutem, a cada eleio, as prioridades e

    problemas polticos de maior audincia, levantados pelos institutos de pesquisa; os

    eleitores, geralmente flutuantes, ou seja, sem identificaes polticas mais duradouras,

    so vistos como pblico, responsvel por receber e avaliar as informaes e produzir

    a deciso eleitoral. Podemos imaginar uma pauta de prioridades pblicas estabelecida a

    partir das relaes entre os emissores e os diversos atores polticos, todos atentos s

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    manifestaes da opinio pblica e s oportunidades de mobiliz-la a seu favor,

    poltica de opinio (Gomes, 2000).

    Esta viso esquemtica evidencia os problemas efetivos e potenciais do modelo.

    Manin no deixa claro, ao que parece, a dimenso condicional que assume a questo da

    representao legtima de interesses, especialmente em relao aos dois ltimos pontos,

    mais especificamente comunicacionais. Se cotejarmos a realidade poltica com estes

    pressupostos, vrias das questes levantadas por um sistema poltico sujeito a grande

    influncia dos meios de comunicao de massa ficam diminudas em sua possibilidade

    analtica.

    A prpria estrutura econmica de propriedade dos meios tem graves

    conseqncias polticas. Esta preocupao ganha cores bastante concretas quando se

    sabe que, no Brasil, mais da metade das emissoras de rdio e televiso pertencem a

    polticos, parentes ou pessoas ligadas a polticos1.

    Uma das questes centrais, para uma concepo democrtica dos meios de

    comunicao, passvel ainda de muita investigao, a dependncia recproca entre

    mdia e poltica: o governo e os polticos so fontes indispensveis para o jornalismo,

    que por sua vez, com suas rotinas industriais de produo, exige a incorporao, pelos

    polticos e governos, de uma srie de transformaes tcnicas e estratgicas. O crescente

    profissionalismo miditico dos polticos, por sua vez, tem implicaes nos critrios de

    cobertura da poltica.

    H um abismo entre a produo de decises polticas e o mundo da poltica tal

    como representado na TV. Mdia e esfera pblica tendem a seguir lgicas diferentes: os

    meios de comunicao de massa seguem critrios de captao da ateno.

    Especialmente em termos de televiso, muito j se ouviu sobre sua tendncia ao

    entretenimento no tratamento da informao jornalstica e espetacularizao da poltica;

    o valor da notcia segue a necessidade de captao da ateno, com critrios denoticiabilidade e espetculo. A notcia, industrialmente produzida para estar sempre

    fresquinha (e portanto vender mais, como no anncio de biscoitos), depende de

    elementos de apelo popular como a novidade, o negativismo, o escndalo, a presena de

    1 Cerca de 60% das emissoras de rdio e TV passaram, na dcada de 90, para os beneficirios da generosapoltica de concesses adotada em 1988 pelo ento presidente Jos Sarney, na negociao da prorrogaoem um ano de seu mandato (Ald, 2000). Outros dados mostram que, na eleio de 1998, em 13 estados

    havia candidatos ao governo que eram donos de rdios e televises locais, sem considerar jornaisimpressos. No Congresso daquele ano, 96 parlamentares eram detentores de concesses, dentre os maisinfluentes (Godoi, 2001, p. 102).

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    atores proeminentes, a personalizao, o conflito, a exceo. A poltica adapta-se a estas

    exigncias, mas no sem perda de confiabilidade por parte do grande pblico.

    Como fica, nesta nova democracia, o cidado pea-chave para a compreenso

    e avaliao do cenrio? Em que medida as expectativas dos modelos democrticos

    precisam ser adaptadas, ou revistas? E, mais importante, como pensa o cidado

    brasileiro comum sobre a poltica, num ambiente informativo em que predominam os

    meios de comunicao de massa? Apesar da centralidade crescente do cidado-receptor,

    tanto na cincia poltica quanto na comunicao a maioria das pesquisas relativas

    interpretao e atividade das audincias tem presumido, mais do que examinado, as

    explicaes do cidado comum sobre o mundo, valendo-se de teorias de fundo

    econmico ou ideolgico.

    Acredito que, iluminando os caminhos percorridos pelo cidado comum no

    processo de construir suas opinies polticas, possvel tentar preencher algumas das

    principais brechas ou questes abertas por este novo sistema poltico. Em especial pela

    articulao entre os sistemas da comunicao e da poltica, atravs da anlise de um ator

    situado em sua interseo, e importante para ambos: ao mesmo tempo cidado e

    receptor de mdia de massa. Numa democracia de pblico tal como vimos que a nossa

    se afigura, seja qual for a centralidade relativa atribuda aos meios, a coincidncia destes

    dois aspectos nos mesmos sujeitos aponta para a importncia crucial do estudo de suas

    relaes e influncias recprocas.

    Empreenderemos assim, em primeiro lugar, uma reviso da origem e

    importncia das atitudes polticas para a formao das opinies e escolhas polticas dos

    indivduos; esta preocupao inclui o esclarecimento de seu carter discursivo, ou seja,

    a compreenso do raciocnio do senso comum como sendo composto de relatos,

    verses, explicaes ou esquemas que se concretizam na elaborao narrativa.

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    1.1. DISCURSIVIDADEE A PRODUO DE SENTIDO PARA O MUNDO PBLICO

    A presente pesquisa de doutorado orientou-se desde o incio para as verses

    oferecidas pelos prprios sujeitos sobre os acontecimentos pblicos. A deciso deprocurar junto aos indivduos suas formulaes acerca do mundo poltico, e a maneira

    pela qual articulam seu discurso com os ecos dos meios de comunicao de massa,

    colocou uma srie de questes metodolgicas. Como reconstruir a ideologia do

    cidado comum e sua interao com a mdia de massa? Como investigar a maneira

    pela qual as pessoas conferem sentido ao mundo pblico no qual esto inseridas2?

    A opo por uma abordagem qualitativa sustenta-se na idia de que, para melhor

    entender os dados agregados quer nas pesquisas de opinio, quer nos resultados eleito-rais, necessariamente organizados de acordo com categorias ou alternativas fechadas,

    preciso investigar os discursos das pessoas sobre a poltica. O ponto de partida do

    estudo foi justamente este discurso explcito, os relatos elaborados pelos prprios

    cidados sobre o mundo pblico, para investigar suas atitudes polticas e as principais

    variveis relacionadas sua formao e transformao. a partir da verso deste outro

    lado, seu discurso, a expresso da opinio com seus elementos de explicao, que

    podemos nos aproximar das atitudes que orientam a ao poltica dos cidados.

    Os indivduos procuram justificativas vlidas para se orientar e agir num

    contexto poltico do qual, querendo ou no, so obrigados a participar e em relao ao

    qual, s vezes contra sua vontade, precisam se posicionar. Para o cidado comum, a

    construo destas justificativas se apia em discursos elaborados e recebidos. Discursos

    ao mesmo tempo informados e limitados pelos diversos quadros de referncia a que os

    cidados recorrem. O prprio processo de construo das atitudes polticas um

    processo comunicacional, uma vez que estes quadros de referncia mais ou menos

    importantes na elaborao das explicaes com que organiza o mundo da poltica tm

    natureza discursiva.

    Embora a situao ordinria do cidado comum seja a de no pensar sobre a

    poltica, assunto marginal em relao aos seus interesses mais imediatos, as ocasies

    que se apresentam para o conhecimento e expresso da opinio poltica so sempre

    situaes de comunicao, que condicionam uma elaborao da opinio. A vivncia

    poltica em primeira pessoa da maioria dificilmente abarca a gama de informaes

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    necessrias para entender todos os aspectos e se posicionar ativamente numa esfera

    pblica cuja conduo e processos de tomada de deciso parecem cada vez mais

    complexos e distantes da prtica cotidiana de pessoas que, afinal, tm nos interesses

    privados seu foco de ateno.

    A discusso sobre a poltica pressupe a existncia de uma pluralidade de

    opinies evidente no velho e ainda usado ditado segundo o qual falta de cortesia

    falar de poltica, religio e futebol, por serem temas que envolvem as paixes, mais

    do que a razo. neste momento que o argumento, enquanto ferramenta discursiva para

    validar uma posio ou atitude, mostra sua relevncia. Ao mesmo tempo, fica claro que

    as explicaes discursivas construdas pelas pessoas para a poltica ou qualquer outro

    assunto no se do em bases puramente racionais; a opinio poltica envolve, alm da

    razo interesseira dos meios/fins, valores e pressupostos sobre o funcionamento do

    mundo, afetos e identificaes no necessariamente cientficos ou filosficos.

    Encontramo-nos na iminncia de investigar a controversa mente humana, a parte

    da comunicao social que diz respeito cognio, ou seja, aos vrios processos

    psicolgicos atravs dos quais as pessoas lidam com a informao sua volta. Nosso

    foco ser necessariamente o indivduo embora sem perder de vista os fatores sociais e

    estruturais que influenciam o processo global da comunicao poltica. As questes

    relativas ao mundo pblico, no entanto, no pertencem ao centro das preocupaes

    cotidianas do cidado comum, ao menos desde a ciso moderna entre pblico e privado.

    Neste sentido, talvez em relao s atitudes polticas, mais do que a qualquer outro

    aspecto psicolgico, faa sentido a investigao discursiva, uma vez que na construo

    do discurso, muito mais do que pela ao, que o homem contemporneo pode e quer

    participar da poltica.

    O esforo no sentido de entender como as pessoas definem, em seus prprios

    termos, o mundo da poltica, atribuindo-lhe sentido, deve ser compreendido dentro deum panorama mais global de transformao do pensamento social, que tem

    testemunhado a importncia crescente das noes de interpretao e discurso. As

    cincias sociais viveram, nas ltimas trs dcadas, um processo de questionamento e

    auto-reflexo evidente na filosofia da cincia produzida por diversas reas, e que

    recebeu o nome geral de guinada narrativa ou converso lingstica3. Seja na filosofia

    2

    O aspecto metodolgico que esta questo implica est tratado em maior detalhe no apndicemetodolgico que fecha este trabalho.3 A partir do ingls narrative ou linguistic turn. Ver, especialmente, Habermas (1987).

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    da histria, na histria das cincias, na sociologia da vida cotidiana ou na leitura mais

    recente da experincia etnogrfica, esta abordagem aponta para o carter discursivo e,

    portanto, construdo, de qualquer relato.

    Depois do objetivismo, naturalismo e funcionalismo predominantes na

    sociologia americana, principal influncia nas cincias sociais de todo o mundo desde o

    comeo do sculo at o perodo do ps-guerra, a tradio interpretativa volta nos anos

    60 e 70 para o primeiro plano no pensamento social, retomando fundadores clssicos

    como Weber, que atentara para a multiplicidade de leituras possveis do mundo social.

    O papel central da linguagem e das faculdades cognitivas dos atores humanos encontra

    a dimenso interpretativa mesmo na filosofia das cincias naturais, domnio at ento

    aparentemente refratrio a qualquer subjetivismo. Essas concepes, influenciadas pela

    filosofia da linguagem, apontam para o carter ativo e reflexivo da conduta humana,

    enfatizando o agente humano cognitivo. A perspectiva discursiva rejeita a noo de uma

    determinao exclusivamente externa para o comportamento humano. Os sujeitos no

    so regido por foras sobre as quais no tm controle ou possibilidade cognitiva; ao

    contrrio, so produtores de sentido.

    Embora sejam muitos os exemplos possveis, a viso de Michel Foucault (1971)

    para quem em toda sociedade a produo do discurso ao mesmo tempo controlada,

    selecionada, organizada e redistribuda por um nmero de procedimentos para conjurar

    seus poderes e perigos parece emblemtica desta nova perspectiva sobre a cincia

    social. A sntese proposta por Anthony Giddens (1989), em sua teoria da estruturao,

    tambm aponta para a possibilidade de elaborar concepes acerca da natureza concreta

    da atividade social humana, sem pretender no entanto organizar seus mltiplos

    significados em um conjunto de leis dedutivas, que no se constituem na nica

    aproximao analtica em que a teoria social pode apoiar generalizaes explicativas

    perspectiva qual nos alinhamos aqui. Contextual em mais de um sentido, a explicaodepende das prprias indagaes para as quais busca esclarecimento. A descoberta de

    generalizaes no , tampouco, a nica nem a mais importante misso da teoria social,

    fornecendo-nos tambm os meios conceituais para analisar o que os atores sabem acerca

    das razes que os levam a atuar da forma como atuam (Giddens, 1989, Introduo).

    Esta viso alterada da interseo entre dizer e fazer, ou seja, entre a produo de

    sentido e a ao social, parte do pressuposto de que os atores tm uma capacidade

    inerente de entender o que fazem, no ato mesmo de faz-lo. No se trata apenas de umacognoscividade discursiva, mas de uma conscincia prtica, distinta tanto do discurso

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    lgico como do inconsciente. Na atividade social cotidiana, a rotinizao de convenes

    aparentemente secundrias na verdade organiza o mundo, restringindo fontes potenciais

    de tenso. Os atores so capazes de prestar contas, em seus prprios termos e atravs de

    aes coerentemente justificveis, de seus motivos para a ao, da ideologia, se

    quisermos, a partir da qual constroem sentidos.

    Por que este e no aquele candidato? Poltica pblica? Opinio? Quer sejam

    usadas para se justificar diante de si mesmos, argumentar com quem pensa diferente,

    convencer o outro de algo em que se acredita, sempre na forma de explicaes

    comunicativas que as pessoas organizam e expressam suas opinies e atitudes acerca da

    poltica. Os caminhos cognitivos para a construo destas explicaes podem ser mais

    ou menos sofisticados; podem incluir processos de seleo, deduo, inferncia, inter-

    pretao e anlise, e tambm imagens emblemticas, anedotas e parbolas, generaliza-

    es moralistas, enfim, marcos e sinais que forneam chaves de leitura para o mundo

    social e poltico. Os diferentes processos no so excludentes; o importante lembrar

    que o cidado comum geralmente considera ter discernimento suficiente para no agir

    de forma aleatria, e busca portanto uma coerncia interna para o conjunto de opinies

    que emite sobre o mundo. Quando tem ocasio de faz-lo, o prprio processo de

    construir explicaes em forma de comunicao lhes d consistncia cognitiva.

    A partir desta perspectiva, a abordagem etnometodolgica mostrou-se um instru-

    mento valioso na aproximao atitude do senso comum (Schutz, 1953), segundo a

    qual adultos perseguindo objetivos prticos raciocinam normalmente por tipicidade, ou

    seja, atravs de expresses indiciais suficientes para orientar a ao. Segundo Schutz,

    falhas menores no abalam, para pessoas envolvidas nas presses mltiplas da vida

    cotidiana, o sentido geral do mundo. Mais importante do que estabelecer regras fixas e

    inquestionveis, ser capaz, atravs de explicaes desta natureza, de conferir

    previsibilidade ao mundo social, possibilitando a concretizao dos planos elaborados apartir delas. Cada fenmeno cultural ou social, assim, evidncia de padres mais

    abrangentes, que do sentido sempre historicamente produzido s manifestaes

    particulares.

    Partindo do pressuposto de que as pessoas procuram economizar o esforo

    cognitivo envolvido em observar e considerar os eventos cuidadosamente, e priorizam

    os assuntos que consideram mais importantes, a etnometodologia focaliza problemas

    considerados cotidianos, comuns. Do ponto de vista do ator, trata-se de situaesanalisadas de maneira superficial; a ateno que o homem comum presta ao mundo

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    dada de maneira rotineira, habitual. O universo da poltica est inserido nesta

    perspectiva cotidiana; apreender as rotinas e hbitos dos indivduos, bem como a verso

    que oferecem para os eventos pblicos e o iderio poltico, tarefa central na teorizao

    acerca de suas escolhas e aes4.

    significativo o uso, por Handel (1982) e outros etnometodlogos, do termo

    account, com suas variaes, para dar conta do processo que usam os sujeitos para

    justificar suas motivaes. As mltiplas acepes do termo em ingls (dar razes,

    causas; avaliar; conferir valor, importncia; considerar, ter em conta, julgar mas

    tambm tomar nota, e prestar contas), bem como dos derivados accountability (respon-

    sabilidade) e accountable (responsvel; explicvel, justificvel), remetem mesma

    idia: a de um relato significativo mas, ao mesmo tempo, construdo maneira de um

    esquema que simplifique a tarefa do sujeito de conferir ao mundo compreensibilidade.

    A estrutura destes relatos no segue as regras da lgica formal, mas nem por isso

    deixa de ser coerente; trata-se do que Handel (1982) chama de raciocnio cotidiano,

    outro tipo de sistema para desenvolver argumentos e inferncias orientadores da ao.

    As categorias usadas pelas pessoas na vida cotidiana, ao contrrio dos argumentos da

    lgica tradicional, so conceitos frouxos, definidos empiricamente a partir de

    julgamentos imprecisos, necessrios no entanto para guiar a conduta prtica dos atores5.

    A noo de raciocnio do senso comum vem iluminar a idia, importante nesta

    tese, de explicao estrutural construes discursivas que fundamentam as atitudes

    dos indivduos em relao ao mundo l fora; no nosso caso, o mundo pblico, a

    poltica. Os cidados comuns elaboram categorias a partir das quais conseguem explicar

    a poltica e situar, mais ou menos confortavelmente, suas aes e tomadas de posio.

    Partimos do pressuposto de que a elaborao dos argumentos que usam para justificar

    suas opinies coerente e busca validar-se e atualizar-se de acordo com critrios de

    validade argumentativa, explcitos ou no. As construes discursivas dos sujeitosfuncionam como chaves de leitura (Goffman, 1974) que lhes permitem dar coerncia

    a suas opinies, escolhas e aes.

    possvel aproximar estas concepes acerca do conhecimento humano

    racionalidade discursiva de Habermas (1987), se levarmos em conta que, mais do que

    4 Uma das conseqncias da abordagem etnometodolgica a ateno para a interferncia na anlise norelato cientfico do ponto de vista do prprio pesquisador, com suas rotinas de percepo e seu

    envolvimento especfico nos incidentes que baseiam seu relato, contribuindo na construo do sentido.Este ponto encontra-se desenvolvido no apndice metodolgico.

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    padres estruturados e formais, abstratos, os discursos que so instados a construir para

    justificar suas atitudes polticas, que sempre envolvem escolhas, obedecem a uma lgica

    argumentativa, em que as razes e exemplos aceitveis obedecem tambm a critrios

    pessoais, afetivos, retricos (ver tambm Magalhes, 2000). Podemos pensar, assim, em

    tipos de informao recolhidos por sua pertinncia, ligados aos modos de explicao e

    de justificao das aes nas quais estas informaes so usadas. Sua organizao

    depende do rendimento cognitivo que tm para cada cidado, o que inclui a valorizao

    de determinadas fontes e quadros de referncias, capazes de minimizar o custo

    envolvido na elaborao de explicaes aceitveis e reproduzveis discursivamente.

    Muitas vezes, questes do cotidiano podem ser resolvidas recorrendo-se a instrumentos

    cognitivos de baixo custo, sobre os quais repousam juzos domsticos comuns

    (Thvenot, 1992).

    A noo de esquema, tomada emprestada psicologia cognitiva, tambm

    aproxima-se da concepo de account e de minha idia de explicaes estruturais.

    Segundo a abordagem cognitiva, entender o significado de algo no apenas reproduzir

    um contedo, perceber sensorialmente um objeto, arquiv-lo e busc-lo quando

    necessrio, mas aceitar uma verso sobre como opera, que conseqncias advm dele, o

    que o causa e que usos pode ter.

    O significado de determinada informao aumenta para o indivduo medida

    que este domina o contexto que a delimita. Este contexto pode incluir informao sobre

    eventos abstratos, ou seja, estabelecer regularidades das quais vrios objetos especficos

    podem fazer parte. Isto permite isolar causas possveis para os eventos, e identificar

    hipteses explicativas razoveis. O conhecimento que a pessoa tem de seu ambiente

    contextual mais rico do que o conhecimento das caractersticas do objeto isolado; pro-

    cura-se incorporar cada nova informao ao esquema preexistente, que flexvel e

    reflexivo, dinmico e constantemente atualizado. O processo de compreenso, em suma, basicamente construtivo. Se determinada informao no tem ganchos" que a

    relacionem ao contexto preexistente, sua compreenso torna-se mais difcil. Um

    fragmento de informao, ao contrrio, pode ter suas lacunas complementadas por

    inferncia (Bransford e McCarrell, 1974, p. 207).

    A estrutura formal desta razo prtica no um conjunto de regras neutro e

    universalmente reconhecvel. Exige, ao contrrio, a aceitao de axiomas e definies

    que lhe conferem sentido, ativamente produzido e constantemente refeito emcooperao com outros indivduos. As caractersticas bsicas destes relatos, ou verses,

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    so sua reflexividade e sua referencialidade (indexicality) a capacidade de fazer

    sentido a partir de indcios, indutivamente. O carter indicial ou referencial das

    explicaes remete ao fato de que qualquer objeto traz em si ndices da atividade

    humana com a qual se relacionam, quer em relao sua confeco, quer no que diz

    respeito ao seu uso. A percepo que se tem deles, porm, os manipula. Podem existir

    fora dos nossos relatos, mas no tm significao humana fora das explicaes de que

    nos servimos para conferir sentido ao mundo (Handel, 1982). No h verdade final,

    apenas verdades relatadas.

    A explicao estrutural tem ao reflexiva, ou seja, age sobre si mesma. Cada

    relato, na medida em que produz uma definio do realque serve de base para a ao,

    produz tambm conseqncias. Trata-se de um acordo socialmente ratificado, em que as

    pessoas acreditam e que aceitam como certo, apropriado. A tentativa de entender algo

    baseia-se na necessidade de tomar, ou justificar, decises (Handel, 1982, p. 37.) As

    explicaes estruturais indicam o que compreensvel, em cada situao. Quando

    mudanas de situao tornam insatisfatria a explicao ou verso dos fatos utilizada,

    ela atualizada. Se a atualizao no parece necessria, a mesma explicao tende a

    subsistir.

    1.2. DISCURSIVIDADE E ENQUADRAMENTO

    A idia de que as pessoas operam cognitivamente recorrendo a repertrios

    relativamente constantes de exemplos ajuda a entender por que a tendncia incorporar

    aos esquemas explicativos apenas a concluso ou a moral de uma seqncia de

    fatos, descartando os detalhes. Trata-se de um mecanismo que apareceu de modo

    freqente nas entrevistas, utilizado s vezes conscientemente pelo cidado comum.Na entrevista de seis de novembro, para explicar por que considera a Rede

    Manchete melhor do que a Globo embora, por hbito, assista mais aoJornal Nacional

    Leonardo sugere que o compromisso desta ltima com interesses econmicos seria

    prejudicial para uma cobertura poltica completa e imparcial. Os telejornais da

    Manchete mostram mais as coisas, conclui. Quando se pede para que ele seja mais

    especfico, Leonardo recorre autoridade de certas pessoas do seu crculo de relaes

    interpessoais para justificar sua convico de que o Roberto Marinho que comanda

    nosso pas. As informaes que fundamentam esta opinio, uma vez entendidas,

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    incorporadas, no esto mais disponveis para que ele defenda seus argumentos, mas

    isso no os torna menos convincentes para a certeza de sua opinio.

    Leonardo. Na realidade, essas firmas Por exemplo, minha concunhada

    trabalha na Petrobrs, ento a privatizao da Petrobrs, esse negcio todo, essasfirmas que esto comprando isso, aquilo, e tal, voc pode ter certeza que juntocom elas tem um p do Roberto Marinho. Eu tenho certeza disto. Pessoas que euconheo, que so graduadas, de um certo nvel, dessas empresas maiores, queconcorrem ameu cunhado que procura se informar, corre atrs, meu irmo outro e da vai saindo as informaes. De onde tiram essas informaes, nosei. A gente t conversando aqui, vamos supor, voc me explicou aquele negcio,tal, tal, tal, aquilo vai entrar na cabea, agora, se voc vier daqui a trs, quatromeses, conversar comigo, eu j formei opinio daquilo que entrou na minhacabea. O que voc me falou mais ou menos a respeito daquilo, eu no vou melembrar, dificilmente...

    O mecanismo de formar opinio descrito por Leonardo ilustra o uso da mem-

    ria semntica (Wolf, 1992), que serve para atribuir significados a um mundo complexo,

    sem sobrecarregar intelectualmente o indivduo com a necessidade de comprovao,

    evidncia e demonstrao do processo de julgamento. Uma vez aceito o argumento,

    guarda-se a concluso, capaz de orientar o cidado quanto s suas posies e escolhas.

    Desta forma, os fatos, nomes e detalhes modificam-se quase diariamente, mas a estru-

    tura na qual se enquadram o sistema simblico mais duradoura (Bird e Dardenne,

    1988, p. 265). Tanto nas relaes interpessoais quanto nos meios de comunicao de

    massa, um dos elementos centrais na adoo ou no de determinados enquadramentos

    pelas pessoas a atribuio de autoridade ao emissor, ao qual se confere a

    responsabilidade de organizar cognitivamente uma grande quantidade de informaes

    sobre um mundo complexo, auxiliando o cidado a adquirir e demonstrar a competncia

    mnima que lhe exige a poltica.

    Estas chaves de compreenso do mundo podem vir de vrios quadros de refern-

    cia, de acesso e credibilidade variados para cada pessoa. No exemplo de Leonardo, o

    quadro de referncia a partir do qual constri a explicao de que Roberto Marinho

    uma fora poltica oculta e influente remete autoridade de pessoas do seu crculo,

    graduadas, de um certo nvel, que procuram se informar. So os famosos formadores

    de opinio, identificados nas teorias de aprendizado indireto, segundo as quais

    lideranas reconhecidas no meio social do receptor so fundamentais para pautar os

    interesses e prioridades de uma audincia seletiva, parte de um fluxo comunicativo em

    duas etapas (two-step flow of communication) (Berelson, Lazarsfeld e McPhee, 1954).Assim, a explicao a que o entrevistado recorre para avaliar a credibilidade relativa dos

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    dois meios externa aos prprios meios, provm de sua interao em primeira mo com

    estas pessoas6.

    Estas explicaes relativamente simples, de preferncia comuns, s quais as

    pessoas recorrem para articular suas atitudes polticas, tm sido tratadas por alguns

    autores, especialmente os ligados pesquisa das audincias dos meios de comunicao

    de massa, como enquadramentos. Para Erving Goffman, um dos primeiros a

    sistematizar o conceito, estes so definies da situao construdas de acordo com

    princpios de organizao que governam os eventos ao menos os eventos sociais e

    nosso envolvimento subjetivo com eles (1974, p. 10).

    Estas estruturas cognitivas, que organizam o pensamento, so compostas de

    crenas, atitudes, valores e preferncias, bem como de regras a respeito de como ligar

    diferentes idias. So esquemas, que dirigem a ateno para a informao relevante,

    guiam sua interpretao e avaliao, fornecem inferncias quando a informao falha

    ou ambgua, e facilitam sua reteno (Fiske e Kinder, citados por Entman, 1989).

    Trata-se, portanto, de construes culturais que se realizam na narrativa, na articulao.

    Como o mito, o esteretipo e o arqutipo, as notcias podem atuar na difuso de

    valores e explicaes estruturais a respeito da esfera pblica, naturalizando um mundo

    distante da experincia direta dos indivduos. Enquadramentos de mdia so padres

    persistentes de cognio, interpretao e apresentao, de seleo, nfase e excluso,

    atravs dos quais os manipuladores de smbolos organizam rotineiramente o discurso,

    seja verbal ou visual (Gitlin, 1980, p. 7).

    Isso no quer dizer que a via seja de mo nica; a mdia no opera no vazio, e as

    narrativas que produz so resultado de sua interao com os eventos e seus protago-

    nistas sua matria-prima , alm de uma srie de expectativas com relao

    audincia, cuja fidelidade vital para os meios de comunicao de massa e que convive

    com outros enquadramentos, oriundos de outras fontes. No estabelecimento dessasintonia com a audincia, a televiso muitas vezes reproduz e refora elementos

    dominantes de cada cultura, num crculo de que difcil determinar o ponto de partida,

    e que se retroalimenta de forma dinmica.

    Um dos campos privilegiados de produo de enquadramentos, uma vez aceita a

    realidade de um mundo em que a poltica e a cultura atuam crescentemente na esfera da

    6 diferena da teoria lazarsfeldiana, no entanto, os formadores de opinio que encontramos na pesquisa

    so definidos e aceitos socialmente como emissores autorizados de opinio sobre a poltica,

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    mdia, portanto o dos meios de comunicao de massa. Todas as ramificaes da

    cultura de massa ocupam esse espao, fornecendo explicaes que servem aos cidados

    para entender as estruturas e eventos polticos. Um exemplo interessante dado por

    Pedro, que, depois de apresentar explicaes conspiratrias para as mortes de Tancredo

    Neves e da princesa Diana, segundo ele assassinatos, justifica como um fim provvel

    para quem se mete com os poderosos:

    Pedro. Isso no d'agora no, isso do tempo de outrora. A gente l esses livrinhos,esse livros que eu falei a voc que lia a uns tempos, do Oeste americano, e aquimesmo j acontecia esses lances. [] Crimes que se transformam em acidente.

    Pedro refere-se a uma coleo de livros de bangue-bangue chamada Stefania,

    que vendida em bancas de jornal e da qual chegava a ler cinco ou seis livros porsemana, geralmente no nibus, entre a casa e o trabalho. A partir dos esquemas

    explicativos oferecidos nas tramas ambientadas no velho Oeste, Pedro generaliza o

    enquadramento para o gnero humano; conclui que sempre se maquiaram crimes para

    que parecessem acidentes.

    De acordo com o enfoque da presente pesquisa, importante chamar a ateno

    para a importncia dos meios de comunicao, e especialmente a televiso, como

    quadros de referncia dos mais relevantes no fornecimento de explicaes para a pol-

    tica. Basta lembrar que a mdia, justamente por seu carter de massa, divulga enquadra-

    mentos mais homogneos que outros quadros de referncia, como a experincia

    idiossincrtica de cada um, as diferentes igrejas, ambientes familiares e profissionais.

    Num sistema informativo como o nosso, em que poucos canais dominam a emisso

    regular de comunicao de massa, as explicaes que a se repetem tornam-se

    especialmente acessveis e freqentes.

    Na pesquisa, constatamos justamente que a importncia dos meios cresce em

    sentido inverso variedade e proximidade de outros quadros de referncia. Mesmo fon-

    tes interpessoais de idias sobre a poltica, no entanto, tm lugar num ambiente infor-

    mativo em que a mdia tem papel preponderante, como sugerem vrios estudos. A situ-

    ao receptiva das mensagens televisivas marcada pelo espao familiar. A tev inter-

    pela o espectador enquanto indivduo-membro da comunidade familiar, reunida na parte

    principalmente, em funo de seu acesso qualificado informao considerada relevante. Este ponto serdesenvolvido adiante.

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    da casa onde se concentra a atividade coletiva, fornecendo muitas vezes assunto, ou ao

    menos pano de fundo, para a comunicao interpessoal (Sodr, 1984, p. 58).

    Alm de sua importncia na comunicao indireta, a televiso assume, em

    muitos casos, o papel de repertrio primrio de exemplos, fornecendo explicaes pron-

    tas, incorporadas pelas pessoas compreenso que tm do mundo poltico. O Fantsti-

    co, programa dominical da Rede Globo, recorrente no discurso de muitos dos

    entrevistados como referncia a partir da qual avaliam a poltica, como fica claro no

    exemplo de Felipe: para traduzir, retratar a ineficincia burocrtica e o jogo de

    influncias do INSS, ele descreve uma matria emblemtica do programa.

    Felipe. Voc viu a reportagem doFantstico? Eles traduzem muito bem o que oINSS. Vou resumir: o cara queria a aposentadoria dele e no saa de jeitonenhum. Ele foi diversas vezes em diversos departamentos do INSS, e noresolvia. Ele resolveu, por dica de algum, viver um personagem. Ento ele ligavapros departamentos e dizia: Aqui o Dr. Fulano de Tal, olha, resolve o caso ado meu amigo fulano de tal. Um personagem. Deu no Fantstico. E eleconseguiu se aposentar assim, depois chamou a televiso. Isso um retrato doINSS.

    So estas explicaes que constituem uma realidade, para aqueles que esto nela

    envolvidos. As explicaes estruturais estabelecem o que pertinente num cenrio; este,

    no entanto, construdo pelos prprios relatos. Os processos de produo e aceitao deexplicaes so fundamentais na compreenso do mundo social, e incluem as maneiras

    pelas quais os indivduos fazem sentido suficiente do mundo poltico para funcionar

    enquanto cidados.

    O discurso, como uma espcie de razo prtica, pode ser entendido ento

    como justificativa para a ao, uma vez que atravs de narrativas que as pessoas

    alimentam suas interpretaes do mundo, e tambm na construo discursiva que as

    expressam, procurando apresent-las como plausveis e coerentes, enfim, como

    alternativas polticas vlidas. Para que seja possvel apontar limitaes na concepo de

    esfera pblica em que participam cidados igual e perfeitamente informados, preciso

    entender o fenmeno da opinio poltica como algo essencialmente discursivo,

    construdo na expresso, argumentao e defesa.

    a partir desta viso acerca do cidado e suas possibilidades de articulao

    acerca do mundo da poltica que retomamos a preocupao com sua insero na

    democracia de pblico. Na medida em que o tema tem sido recorrente no pensamento

    poltico moderno, cabe esclarecer, aqui, o que se entende por atitude poltica em relao

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    ao cidado comum da democracia de massa, procurando avaliar o rendimento de

    algumas abordagens relevantes da questo, como os conceitos de alienao e integrao

    e suas variantes, bem como as anlises recentes sobre as atitudes polticas do cidado

    brasileiro. A compreenso do processo atravs do qual as pessoas formam idias

    polticas pretende servir, em suma, para falarmos de questes bsicas da democracia,

    tais como as qualificaes necessrias noo de um cidado interessado e bem-

    informado, a natureza e estrutura das atitudes polticas e, no menos importante, que

    papel tm, na construo destas explicaes, os meios de comunicao de massa.

    1.3. ATITUDES DO SENSO COMUM

    E EXPLICAES ESTRUTURAIS PARA A POLTICA

    O processo de formao da atitude tem sido um campo frtil para as investiga-

    es da cincia poltica, preocupada em explicar as diferentes orientaes dos cidados,

    que se manifestam em suas opinies e comportamentos. Atitudes so geralmente

    entendidas como um quadro relativamente estvel de crenas, cuja origem e

    flexibilidade relativa so matria de grande controvrsia. Atitudes polticas so centrais

    na definio da opinio e da ao polticas. Afinal, a maneira como os cidados encaram

    a poltica tem papel fundamental na estrutura e processos dos sistemas polticos desde

    Maquiavel, quanto mais em regimes democrticos, crescendo em importncia medida

    que aumenta a participao dos cidados, seno na definio das polticas pblicas, ao

    menos na escolha dos governantes atravs do sufrgio. O estudo das atitudes polticas

    no recente. Depois de viver seu momento ureo nos anos 70, tem sido crescente-

    mente recuperado por autores contemporneos (ver, por exemplo, Wolling, 2001).

    A partir do estudo das atitudes polticas, entendidas em relao dinmica com o

    ambiente informacional em que se inserem, possvel: 1) analisar os campos de

    influncia a que esto submetidas e investigar sua origem e construo; 2) avali-las

    como preditoras do comportamento poltico dos cidados. O primeiro ponto o que

    interessa especificamente nesta pesquisa. Vrios estudos tm investigado os principais

    elementos identificados na formao da atitude poltica, que podem ser resumidos no

    quadro abaixo.

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    QUADRO 1. Elementos da atitude poltica e expresso da opinio

    Fatores subjetivos/psicolgicos Fatores de contexto social1. histria familiar 1. renda

    2. trajetria pessoal 2. sexo3. predisposio intelectual 3. idade4. grau de instruo5. etnia6. religio

    ATITUDE (em relao poltica)

    atitude ao mesmo tempo

    influencia o ambienteinformacional, pois acesso seletivo,e influenciada por ele, que limitaas possibilidades do discurso

    Ambiente informacional (cognitivo)quadros de referncia principais e secundrios:relaes interpessoais, mdia, igreja, famlia,trabalho, partidos, governos etc.

    Discursoexpresso da opinio: explicaes, argumentao

    As diversas relaes destes elementos na produo da opinio pblica tm sido

    objeto de investigao recorrente na cincia poltica. A sociologia, de modo geral, contempornea do crescimento, em termos de poder explicativo, das divises e

    identidades sociais dos cidados. O que se convencionou chamar de explicao

    sociolgica para o voto, que viveu seu momento mais profcuo com a democracia de

    partido tal como descrita por Manin, considera as influncias de caractersticas

    estruturais dos cidados tais como sua renda, idade, sexo, religio e etnia. Os primeiros

    surveys realizados nos Estados Unidos, como o estudo clssico de Lazarsfeld com o

    intuito de medir as mltiplias influncias da opinio do eleitor comum durante o

    processo eleitoral de 1948, apontavam justamente para as identificaes sociais de

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    longo prazo como os principais indicadores a partir dos quais seria possvel prever o

    voto. Embora tenham certamente influncia sobre as atitudes polticas do cidado

    comum, dado o enfoque discursivo desta pesquisa, estas variveis no sero

    detalhadamente analisadas.

    J Lippman (1960) chamava a ateno para o fato de que o conhecimento que o

    cidado comum pode obter sobre a poltica indireto, mediado pelas imagens de nossa

    mente the symbolic pictures in our heads, esteretipos constantemente comparados,

    checados, argumentados e, portanto, dinmicos. Fatores no diretamente estruturais,

    como histria familiar, trajetria pessoal e predisposio intelectual, tambm so vistos

    por muitos autores, especialmente os que trabalham com paradigmas da psicologia

    social, como fundamentais para entender as diferenas de atitude entre os cidados (ver

    Smith, Bruner e White, 1967).

    De acordo com os tericos da escola de Michigan, de matriz psicolgica, as

    atitudes se formam individualmente, a partir da socializao poltica, reflexo de seu

    ambiente social imediato, especialmente o familiar. Converse (1962), um dos principais

    tericos desta linha de pensamento, situa a explicao para as crenas polticas nos

    diferentes nveis de conceituao com que os cidados so capazes de elaborar o

    mundo poltico, e que variam de acordo com o nvel de centralidade e o grau de

    motivao para a poltica. Um sistema de crenas de massa seria um conjunto de

    idias e opinies sobre o mundo social cujos elementos esto interligados por esquemas

    cognitivos funcionais, e cuja consistncia exige uma coerncia entre os vrios

    elementos, de modo que uma mudana de opinio requereria outras mudanas que

    adaptassem todo o sistema, evitando contradies.

    Converse acreditava que os indivduos capazes de apresentar um sistema de

    crenas reconhecvel utilizavam nveis de conceitualizao mais altos e com dimenso

    abstrata para definir suas opinies sobre temas polticos especficos, como o papel doEstado e polticas governamentais. A grande maioria dos eleitores americanos, no

    entanto, de acordo com sua pesquisa, mostrou avaliar as questes polticas sem levar

    em conta critrios significativos nessse sentido, entre os quais enfatizou a dimenso

    liberal/conservador da atitude poltica. Sem o nvel de consistncia ideolgica e

    organizao lgica caracterstico de um sistema de crenas, o cidado comum seria

    incapaz de desenvolver pontos de vista mais globais sobre a poltica (Converse, 1962,

    pp. 245-247). Esse modelo sobre a estrutura ou, no caso, a falta de das atitudespolticas do cidado comum bastante influente no campo de estudos, mas pesquisas

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    empricas posteriores revelaram que as medidas de sofisticao poltica usadas por

    Converse no so muito precisas, e que no existe diferena significativa entre os

    sistemas de crenas dos lderes e aqueles dos cidados. Os pressupostos e resultados do

    modelo dos sistemas de crenas tm sido, portanto, submetidos a crticas severas, como

    revela o prprio Converse em anlise mais recente (1980, citado por Porto, 1999).

    A investigao do que ele chamava de mente poltica do cidado comum foi o

    maior objetivo de Robert Lane, explcito em suas obras fundamentais Political Life e

    Political Ideology, cuja leitura foi de extrema importncia para esta tese, desde a inspi-

    rao metodolgica at alguns pressupostos sobre a insero do cidado comum no

    mundo da poltica. Lane procura entender a ideologia latente do homem urbano comum

    a partir de entrevistas com quinze cidados, escolhidos entre os trabalhadores de uma

    pequena cidade americana. Vai ento buscar as fontes do sistema de crenas na cultura e

    experincia de vida destas pessoas, atribuindo a esta ideologia do senso comum o papel

    central de justificar e definir as relaes dos indivduos com a esfera pblica. A

    contrrio de Converse, Lane v no discurso do homem comum sobre a poltica uma

    coerncia prpria, embora no necessariamente convergente com os pontos de

    referncia dos pesquisadores, ou das teorias clssicas. Mas atribui importncia

    capacidade varivel dos indivduos de contextualizar as informaes polticas para lhes

    dar sentido.

    Mais recentemente, tambm Boudon (1997) chama a ateno para a capacidade

    dos atores, mesmo sem as ferramentas do raciocnio lgico clssico, de atribuir sentido

    a seus prprios atos, longe de agir irracionalmente. Trata-se de uma concepo

    cognitivista e discursiva da elaborao das atitudes polticas, importante na medida em

    que contribui para a definio e explicao das crenas coletivas. Para Boudon, os

    processos de formao das crenas so largamente independentes da natureza e do

    contedo destas crenas. Crenas cientficas e crenas ordinrias, crenas polticas ecrenas privadas se instalam da mesma forma: elas pegam se, e somente se, so

    percebidas para o sujeito implicado (de maneira mais ou menos confusa) como fazendo

    sentido para ele, ou seja, como fundadas em razes slidas (p. 21). Boudon as chama

    de razes transubjetivas: para terem credibilidade, estas razes devem ser vistas pelo

    sujeito, seno como demonstrveis, ao menos como convicentes.

    As atitudes dos cidados comuns em relao poltica caracterizam-se por uma

    estrutura esquemtica que, embora complexa em graus variados, sempre simplifica omundo poltico percebido, transformando o excesso de informao, que poderia gerar

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    confuso e paralisia, em quadros norteadores suficientes para a avaliao do mundo

    pblico e definio da insero de cada sujeito. No esforo para evitar o sentimento de

    aleatoriedade, profundamente incmodo, os indivduos elaboram atitudes do que vem

    como senso comum, e as utilizam para enquadrar o mundo o suficiente para orientar, ou

    ao menos justificar, qualquer ao, inclusive poltica.

    A informao disponvel para que o cidado comum tome decises sempre

    incompleta e nunca perfeitamente clara, tendo em vista que cada pessoa deixa passar

    falhas e incongruncias que no prejudicam o sentido. Pode, no entanto, ser satisfatria,

    ou seja, permitir ao indivduo agir sem se dar ao luxo de procurar informao adicional

    (Handel, 1982). Os indivduos, instados de uma forma ou de outra em uma conversa

    no trem ou mesa, no momento eleitoral ou respondendo a uma pesquisadora insistente

    manifestam suas atitudes polticas recorrendo a explicaes simplificadas e

    conclusivas a respeito do mundo da poltica. Os processos de construo e legitimao

    destas explicaes e atitudes passam, assim, para o primeiro plano de uma reflexo

    sobre a democracia contempornea.

    Em relao s tendncias das atitudes, diferentes abordagens na cincia poltica

    procuram descrever e explicar as variaes no interesse e participao dos cidados na

    esfera pblica e na adeso ao governo ou ao sistema poltico. Uma das mais importantes

    a que identifica nos cidados da democracia de massa a tendncia para a alienao

    poltica, com suas variantes e conceitos complementares.

    1.4. ALIENAO POLTICA

    Alienao um conceito clssico da filosofia poltica, que designa um processo

    de perda da prpria identidade individual ou coletiva, relacionada com uma situaonegativa de dependncia e falta de autonomia. possvel entender o conceito de

    alienao por uma perspectiva sociolgica, como em Marx, que descreve o modo de

    produo capitalista em oposio a uma unidade ideal entre indivduo e comunidade

    rompida pela alienao concepo mais tarde enriquecida pelas idias de reificao e

    fetichismo. Estranhamento da prpria essncia humana, sua superao s pode se dar

    atravs da abolio da propriedade privada e do trabalho alienado. Transpondo a noo

    marxista de alienao para a poltica, podemos dizer que esta experimentada como

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    externa; pode at ser o meio para alcanar algum objetivo, mas no um fim em si

    mesma. O homem deixa de se realizar nesta esfera, e passa a negar sua natureza.

    A idia de alienao tem no conceito durkheimiano de anomia uma de suas

    variantes mais importantes. Denota uma situao em que as normas sociais que regulam

    o comportamento individual no so mais reconhecidas como vlidas; a ausncia

    mesmo de um sistema tico, especialmente na esfera econmica da sociedade. Assim

    como em Marx, esta uma concepo de alienao sociologicamente orientada, ou seja,

    relativa s condies objetivas da sociedade. A condio de anomia causa, e no

    conseqncia, dos conflitos sociais: um estado que impede o bom funcionamento da

    sociedade, sua coeso e ordem (Israel, 1971, p. 138).

    Ainda na vertente sociolgica, Merton (195..) desenvolve alguns tipos de

    adaptaes atitudinais por parte dos indivduos, da conformidade ao desvio, que

    podem ser percebidos em situaes de anomia, em que objetivos culturalmente

    prescritos (como, por, exemplo, o sucesso na sociedade americana) no so congruentes

    com os meios disponveis para atingi-los.

    Os anos 50 trazem um momento de extremo florescimento do conceito de

    alienao nas cincias sociais americanas, embora com uma inflexo substantiva em

    relao ao tratamento sociolgico predominante at ento. Seguindo uma matriz psico-

    lgica, vrios autores passaram a apontar para a importncia de variveis subjetivas

    relacionadas, por exemplo, personalidade, ou capacidade cognitiva e afetiva dos

    indivduos. Robert Lane (1962), um dos pioneiros desta linha de investigao,

    pesquisou a ideologia do cidado comum nos Estados Unidos dos anos 50 e concluiu

    que a alienao poltica reflete sentimentos de afastamento em relao ao mundo

    pblico. Segundo este autor, o indivduo alienado sente-se objeto, e no sujeito da

    poltica, e acredita que o governo no se preocupa com seus interesses. No concorda

    com as decises ou regras; no v benefcios pblicos, s deveres, como impostos eobrigaes.

    Tal concepo psicolgica aproxima o conceito de alienao dos termos desta

    pesquisa, cujo objetivo analisar as atitudes polticas individuais. Embora cada pessoa

    esteja inserida em um contexto social mais amplo que modula sua abordagem da pol-

    tica, consideramos sua atitude em seus fundamentos psicolgicos, individuais. Neste

    sentido, os diferentes aspectos da alienao poltica, bem como as expectativas destas

    teorias quanto s possibilidades e condies para a integrao ou engajamento do

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    cidado, contribuem para uma compreenso mais abrangente e poltica do papel desem-

    penhado pelas atitudes polticas na ideologia e comportamento do cidado comum.

    Em 1959, Melvin Seeman sistematizou os principais sentidos adquiridos pelo

    termo alienao ao longo de sua trajetria no pensamento poltico e social. So cinco

    variaes sobre o tema, que Seeman, a partir da perspectiva psicolgica de alienao

    poltica, descreve com base nos conceitos de expectativa e remunerao, ou valor,

    termos oriundos da psicologia cognitiva.

    Em termos psicolgicos, a alienao pode ser entendida genericamente como

    uma discrepncia entre as expectativas do indivduo e a maneira como o sistema social

    efetivamente funciona, que impede a concretizao dos objetivos de tais expectativas. O