O Silêncio / É bonito / Aqui está Ela / Por Tudo e Por Nada

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Livrinho de teatro nº 65

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livrinhos de teatro / 65

Nathalie Sarraute, de seu nome verdadeiro Natalyia Tcherniak, nasceu em Ivanovo (perto de Moscovo), na Rússia, a 18 de Julho de 1900, numa família letrada da burguesia judia. Após o divórcio dos pais, a mãe leva-a para Paris, onde frequenta o ensino primário. Irá dividir a infância entre Paris e São Petersburgo. Tem uma educação cosmopolita, estuda inglês e história em Oxford, sociologia em Berlim e, fi nalmente, direito em Paris. Em 1925, casa com Raymond Sarraute, colega de faculdade. Exerce a profi ssão de advogada até ser afastada dos tribunais, em 1941, pelas leis nazis. Em 1932, escreveu o seu primeiro livro, a recolha de curtas narrativas que intitulou Tropismes, obra que veio a ser muito elogiada por Max Jacob e Jean-Paul Sartre, aquan-do da sua publicação, em 1939. Será Sartre quem, em 1947, irá prefaciar o seu Portrait d’un inconnu, lançando assim a tese do «anti-romance». Mas é com a publicação de Martereau, em 1953, que começa o seu reconhecimento, associado à prestigiosa Gallimard, que será sempre a sua editora. En 1956, publica o ensaio A Era da Suspeita, texto fundamental na renovação que veio a ser operada no romance. E continua a publicar obras como Planétarium (1959), Entre la vie et la mort (1968), Vous les entendez (1972), Disent les imbéciles (1976), L’Usage de la parole (1980), Enfance (1983), Tu ne t’aimes pas (1989), Ici (1995), Ouvrez (1997). Em 1963, foi-lhe atribuído o Prix In-ternational de Littérature pelo romance Les Fruits d’Or. E é neste ano, por insistência de uma rádio alemã, a Süddeutscher Rundfunk, que Sarraute ini-cia a sua obra teatral, com Le Silence. a que se segue Le Mensonge (1966). As duas peças inauguram, em 1967, o Petit Odéon, com direcção de Jean-Louis Barrault. Seguem-se Isma, em 1970, C’est beau, em 1975, Elle est là, em 1980, e fi nalmente Pour un oui ou pour un non, em 1986. Morreu aos 99 anos, quando escrevia um novo texto para teatro. Sobre o seu teatro, disse Nathalie Sarraute: «As personagens começaram a dizer coisas que normalmente não são ditas. O diálogo deixou a superfície, desceu e instalou-se no patamar dos movimentos interiores que são a substância dos meus romances, instalou-se no pré-diálogo. Mas é preciso que a sensação, o que se sente, sejam imediatos, trazidos por palavras comuns. Creio que para os espectadores a quem me dirijo, este contraste entre o fundo insólito e a forma costumeira dá a estes movimentos, tantas vezes escondidos, um carácter mais dramático, mais vio-lento. E também um efeito cómico, de humor. (...) Nas minhas peças, não há acção, ela foi substituída pelo fl uxo e refl uxo das palavras.»

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nathalie sarraute

O SilêncioÉ bonito

Aqui Está ElaPor Tudo e Por Nada

Traduções de

Diogo Dória, Jorge Silva Melo e Pedro Tamen

ARTISTAS UNIDOSCOTOVIA

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títulos originais: Le Silence © Éditions Gallimard 1967C’est beau © Éditions Gallimard 1978Elle est là © Éditions Gallimard 1978

Pour un oui ou pour un non © Éditions Gallimard 1982

autora: Nathalie Sarraute

tradução:Diogo Dória (O Silêncio, É Bonito, Aqui Está Ela)

Jorge Silva Melo e Pedro Tamen ( Por Tudo e Por Nada)

revisão:Madalena Alfaia

© desta edição: Artistas Unidos/ Livros Cotovia, Lisboa, Setembro de 2012

Edição apoiada pelo Programa de Ajuda à Publicação do Institut Français

ARTISTAS UNIDOSR. Campo de Ourique, 120

1250 – 062 Lisboawww.artistasunidos.pt

[email protected]

LIVROS COTOVIARua Nova da Trindade, 24

1200 – 303 [email protected]

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ÍNDICE

7 O Silêncio 31 É Bonito 53 Aqui Está Ela 81 Por Tudo e Por Nada

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O SILÊNCIO

Tradução de

Diogo Dória

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Le silence estreou como peça radiofónica, numa tradução alemã, na Süd-deutscher Rundfunk em Abril de 1964. A estreia francesa deve -se a Jean--Louis Barrault que, a 14 de Janeiro de 1967, inaugura o Petit -Odéon com um espectáculo composto por duas peças de Sarraute, Le silence e Le men-songe. O espectáculo era dirigido por Barrault, tendo como intérpretes Madeleine Renaud, Paule Annen, Nelly Benedetti, Marie -Christine Bar-rault, Dominique Paturel, Amidou e Jean -Pierre Granval. A presente tra-dução estreou a 12 de Fevereiro de 2003, no Instituto Franco -Português, com interpretações de Diogo Dória, Sílvia Filipe/Cristina Carvalhal, Pe-dro Lacerda, Rafaela Santos, Sofi a Marques e Carlos António.

PERSONAGENS

Homem 1Homem 2

Jean-PierreVozes de mulheres

Mulher 1Mulher 2Mulher 3Mulher 4

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Mulher 1 Conta lá… Foi tão giro… Contas tão bem…Homem 1 Não, por favor…Mulher 1 Vá… Conta lá… É tão bonito, as casinhas… parece

que estou a vê-las… as janelas com persianas de madeirinha recortada… como se fossem rendas de todas as cores… As cercas à volta dos jardins, onde, à noite, o jasmim, as acácias…

Homem 1 Não, foi uma parvoíce… não sei o que me deu…Homem 2 De maneira nenhuma, foi encantador… Como é que

disseste? Todas essas recordações de infância embrenhadas em… em tanto… tanta doçura… Foi maravilhoso, a maneira de falar delas… Como eram?… Gostava de me lembrar…

Homem 1 Não… estás a fazer-me corar…Vamos falar de outra coisa, se não se importam… Foi ridículo… Não sei que mosca me mordeu… Fico ridículo quando me deixo le-var por estes ímpetos… Este lirismo que às vezes me dá… É idiota, é infantil… não sei o que digo… (Várias vozes.)

Mulher 3 Pelo contrário, foi muito comovente…Mulher 1 Foi tão…Homem 1 Parem, peço-vos. Por favor, não gozem comigo…Homem 2 Gozar? Mas quem é que está a gozar, olha… A mim

também… Tocou-me… Deu-me vontade de ver… Estou a pensar lá ir… Há muito tempo…

Mulher 3 Eu também… Foi… havia uma… Soubeste dar… Era mesmo…

Homem 1 Não, não, chega, parem…Mulher 3 Tão poético…

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Homem 1 (raiva fria e desesperada) Ah, pronto. Cá está. Já cá faltava essa. Já devem estar satisfeitos. Conseguiram. Tudo o que eu queria evitar. (Gemendo.) Era tudo o que eu não que-ria… Mas... (Raivoso.) Como vocês são cegos… São surdos. São completamente insensíveis. (Lamentando-se.) Fiz o que pude, já tinha avisado, tentei travar, mas não há nada a fazer, marraram… Que nem mulas… Pronto. Já estão satisfeitos.

Mulher 3 O que foi? O que é que eu disse? Satisfeitos com quê?

Homem 1 (gélido) Nada. Não disseram nada. Eu não disse nada. Agora, vá. Façam o que quiserem. Rebolem-se. Gri-tem. Seja como for, é tarde demais. O mal está feito. Quando penso… (Gemendo outra vez.) Que isto podia ter passado desapercebido... Falhei, pronto, está visto… um erro… mas ainda se podia emendar… bastava deixar andar, deixar pas-sar… Eu recuperava, era o que eu ia fazer… Mas vocês não largam o osso. Sempre com a mão na massa. Agora já está. Continuem. Podem fazer não importa o quê.

Mulher 1 Mas o quê? Fazer o quê!Homem 1 (imitando) O quê? O quê! Não conseguem perce-

ber o que estão a fazer, o que desencadearam? Vocês… Oh… (Chorando.) Tudo o que eu temia…

Mulher 1 Mas o que foi? O que é que temias?Mulher 2 Desencadearam o quê?Mulher 3 Estou a fi car preocupada…Homem 1 Ah, eu preocupo-te… Sou eu…Mulher 3 Claro, és tu. Quem é que querias que fosse?Homem 1 (indignado) Eu… Eu preocupo-te! Eu é que sou

louco! Claro. É sempre assim. E vocês! Quando as coisas vos entram pelos olhos… Não me venham com histórias… Vocês também sentem, só que disfarçam… Acham-se mais espertos, fazendo como se…

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Homem 2 Por amor de Deus, como se quê? Não, realmente, devemos ser todos atrasadinhos… patetas…

Homem 1 Por favor, não me tentem baralhar, não se façam de sonsos. Qualquer pessoa normal percebe imediata mente… Estamos a… São emanações… como se… (Ouve-se um risi-

nho.) Ouviram? Estão a ver? Não se conseguiu conter. Saiu--lhe.

Mulher 1 Foi o Jean-Pierre. Até tem graça. Já nos rimos por menos. Acho que foi ele que se desmanchou.

Mulher 2 O Jean-Pierre? Não é possível, acham que foi ele?Mulher 3 O Jean-Pierre? Tão pacífi co, tão simpático…Homem 1 Quem havia de ser? Quem é que achas que podia

ter sido?… Ainda querem continuar a chatear-me...Homem 2 (voz calma) O Jean-Pierre. Essa é boa! Excelente!

Então foi ele.Homem 1 Não. Foi o Imperador da China. (A gozar.) A Rai-

nha do Sabá. O Xá da Pérsia…Mulher 1 Muito bem, Jean-Pierre. Meu amigo, os meus pa-

rabéns. Você faz as coisas… pela calada… Seu malandro… Dás-te conta do que provocaste? Sentado aí, como se nada fosse…

Mulher 2 Ó Jean-Pierre… Então és tu a causa de todo este desatino.

Mulher 3 Ai o malandro… Vamos a ele… Que horror… O monstro que mete medo… O Jean-Pierre, um rapaz tão simples, tão sensato… Olha o que fi zeste, olha o estado em que puseste o nosso amigo.

Homem 2 Jean-Pierre, o terror. É assim que o vou passar a chamar. O monstro criminoso. Olhem para ele. Cuidado, ele vai atacar! Pistola em punho!

Mulher 1 (risos) Bem, Jean-Pierre, deves estar orgulhoso. Não cedes, hã?

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Homem 1 Perdoai Senhor, que eles não sabem o que fazem. Não ligues… Eu nunca devia… É evidente… Sou o primeiro a reconhecer. Mas tens que compreender…

Mulher 2 (soltando uma gargalhada) Percebeste, Jean-Pierre? Tens que compreender… (Falsamente sentenciosa.) Com-preender é perdoar, Jean-Pierre, não te esqueças. (Várias

vozes e risos.) Estás a ouvir? Sê compreensivo… Suplicamos--te… Piedade, Jean-Pierre, imploramos-te…

Homem 1 (muito sério) Gostavas de saber como é que nos podes sossegar, não é? Tenho a certeza… Era o que farias, se pudesses… E é preciso tão pouco. Só uma palavra. Uma palavrinha tua e estamos livres. Calmos. Em paz. É que eles também são como eu, todos eles. Só que não têm coragem de mostrar, não estão habituados… têm medo… nunca se atrevem, estás a perceber? Fazem de conta, como eles di-zem, acham que têm que disfarçar… Só uma palavra. Um pequeno reparo banal. Um qualquer, garanto-te que funcio-na. Mas deve ser mais forte do que tu, não é? Estás «fechado como um túmulo»? É assim que se diz?… Quer-se sair e não se consegue, hã? Há qualquer coisa que te prende… É como nos sonhos… Eu percebo, sei o que isso é…

Mulher 2 (indignada) Oh não, que mais teremos de ouvir? Olha, eu também sou muito tímida, muito recalcada, mas há uma coisa que consigo dizer: deixa o desgraçado em paz. Tem cá uma paciência… Se fosse eu…

Mulher 3 Ele é muito tímido, é só isso.Homem 1 (ansiosamente) Sim, sim, tímido. É tímido. Pois é.

Sim senhora. Cá está. Não vale a pena pensar mais. Para que é que havemos de andar às cabeçadas à parede? É isso. É ti-midez. Fica assim. É preciso repetir. Ele é tímido. É fantástico como isto acalma. Que calmantes, estas palavras tão precisas, estas defi nições. Procuramos, discutimos, enervamo-nos,

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e duma assentada tudo fi ca em ordem. O que é que foi? Nada. Ou talvez sim. Qualquer coisa de anódino, vulgar… Pron-to… Foi timidez.

Homem 2 (fazendo uma voz grave) Não, não, eu não aceito. Não podemos aceitar isso. Assim perde a graça toda. Eu já estou apanhado. Já me começava a divertir. Não aceito (tom infantil) contentar-me com essas banalidades, esses simplismos preguiçosos… Não, não, agora a sério… Não havia aí qualquer coisa? Uma ameaça estranha? Um perigo mortal? Ah, mas eu adoro fi lmes de terror, romances poli-ciais. Não vamos fi car por aqui. Timidez: fora! Abaixo as frases feitas. Estão-nos a tentar dar a volta. O que é que a timidez tem a ver com isto? Estão-nos a tentar enrolar. É que agora o meu instinto despertou. Ora vejamos. Vamos agarrar o mistério pelo pescoço, ou melhor, vamos à sua origem. Tudo começou por um comentário sobre as per-sianas pintadas como rendas e os jardinzinhos cheios de jasmim. Foi aí que tudo começou. A mim não me dão a volta, não me esqueço assim tão facilmente… Foi isto que desencadeou as emanações, os transbordares, os sufocos e os pedidos de socorro. E pronto, agora querem tapar isto tudo com a timidez… Como uma manta que se atira sobre o fogo… Mas é tarde demais, já está a arder, a crepitar… Não sentem?

Homem 1 (gemendo) Por favor. Não ligues. É louco. Não sabe o que diz. Só uma palavra. Uma palavra de perdão. Eu sei exactamente o que pensas. Já sabia, quando disse aquilo. Eu queria parar, mas não consegui. O vosso silêncio… foi como uma vertigem… fui apanhado… é o diabo… como quando estamos na missa e temos a tentação de dizer palavrões… O silêncio empurrou-me com toda a força… Eu estava com-pletamente noutra. Foi demais.

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Mulher 2 Foi demais, ouviste? Jean-Pierre, diz qualquer coisa. Até eu já começo a ter medo. Estás a enervar-me.

Mulher 3 Deixem-no. Já chega. O jogo já durou tempo de-mais. Vamos mudar de assunto, está bem? Já não tem graça. Qual é a melhor maneira de ir lá? Ainda não nos disseste como é que se vai a esse paraíso.

Homem 1 (assustado) Não sei… Já não sei nada… Ai, depressa, outra coisa… Ai, isto misturou-se tudo… Ai, que isto agora começa a inchar… Ai, tenho que me esconder… Tanta falta de pudor… Que falta de sensibilidade… Estás a ver? Estou a ser castigado. Mais do que merecia. Por ter falhado. Faltou-me o pudor. Foi esse o meu erro. É isso que te provoca desdém, não é? É qualquer coisa que não podes perdoar. Eu descaí--me, foi isso… Tu não suportas. És tão puro. Uma pureza de anjo. Os lugares-comuns que me fazem dizer. Sou ridículo. Já não sei o que digo. Mal estou convosco, fi co enfático… Mas eu sei muito bem. Tu fi caste incomodado por minha causa. Porque percebeste tudo. Quando fi cas assim calado a ver-nos entretidos, como miúdos a fazer palermices, nada te escapa… Ficaste incomodado por minha causa. É que eu gosto daquilo, é verdade, daquelas persianas como rendas pintadas… é isso, eu entreguei-me e de que maneira… Que pirosice, que «lite-ratura»… Hã? Não é? Hã? Não é isso? Não é?

Os Outros (falam, barulho de fundo, soltam-se palavras) É muito nervoso… Já o pai dele… Eu acho que a separação… O colégio… A minha avó… (Com mais nitidez.) Má lite-ratura. Agora desculpa-se com o Jean-Pierre… Jean-Pierre, o grande sábio… Já sabe a história… Mas dêem-lhe um livro.

Não, não, ele já tem um… Ha, ha, ha (Risos.)Homem 1 (retoma) É que são burros. Não percebem nada.

Não é preciso ter lido muito para ter sensibilidade, para sa-ber… É um dom, um talento. Ou se tem ou não se tem. Eles

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podem ter lido bibliotecas inteiras… Mas tu, eu vi logo… as palavras, para ti… Tu nunca disseste nenhuma banalidade. Nada de vago, pretensioso. Claro, deves usar umas palavras de vez em quando. Tem que ser. Para viver. O mínimo. Uma palavra, sabes melhor do que eles, tem peso.

Homem 2 Desculpem intervir nesse aparte, estragar esse am-biente de simpatia, interromper essas confi dências (risos), mas parece-me que se há uma coisa que não se pode dizer ao Jean-Pierre, é mesmo isso, que uma palavra tem peso. Coita-do, duma assentada, fi ca calado para sempre… Se há alguém que saiba que o silêncio é de oiro, é ele… bem demais…

Homem 1 Estás a ver onde eles querem chegar… Estás a ver… eu não penso isso, mas repara, nesta situação tem-se tendência para dizer essas coisas… já quando vieram com a timidez… Mal se põem a vasculhar no fundo, como agora… Oh, nunca chegam a lado nenhum, já se sabe. Mas eles vão encontrar, de certeza… Para já, há o orgulho. Daí a dizer que és complexado… Confesso que eu também… às vezes… quando te vejo assim obstinado… mas no fundo, eh pá, acho que não… Complexado! Que disparate… Tu que…

Mulher 4 (voz jovial, baixinho) Assim não vais lá. Estás en-ganado. Eu também já tive isso… Uma vez… Sei como é: não ligues.

Homem 1 Não ligues? Que boa…Mulher 4 Sim, já sei (mais baixo), mas ele conta com isso…

que tu não vais conseguir. Ele sabe perfeitamente… é assim que te prende. Está-se a divertir. Enquanto tu… Queres ver o que é preciso? Olha: sabem que encontrei o Bonval? Perguntou-me se eu vos tinha visto… mandou abraços para todos… Achei-o muito diferente, envelheceu muito. A mu-lher, pelo contrário, está cada vez mais bonita… (Muito

baixo.) Vá, continua…

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