Silêncio, por favor! - ULisboa

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Silêncio, por favor! Os nossos corpos não estão preparados para a exposição prolongada ao ruído, a causa de cada vez mais problemas de saúde. A poluição sonora está a converter-se numa epidemia, alertam os especialistas

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Silêncio, por favor!Os nossos corpos não estão preparados para a exposição prolongadaao ruído, a causa de cada vez mais problemas de saúde. A poluição sonora

está a converter-se numa epidemia, alertam os especialistas

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SHHHVITIMAS

DO BARULHOO nosso corpo não está equipado para a

exposição prolongada a ruído, causa de cada vez

mais problemas de saúde e morte prematura.A poluição sonora está a converter-se numa

epidemia, alertam os especialistas. Como fazer

uma dieta regrada destes estímulos invisíveis?

CLARA SOARES

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RUÍDO E SAÚDE

0 QUE DIZ A CIÊNCIA.

Atividades e sons ambientaisem função da sua perigosidade

O que significa falar de poluição so-nora quando ela não se vê? Grandeinvasor para uns e prazer sem culpapara outros, o ruído ataca em váriasfrentes e impacta negativamente no

corpo e no comportamento, ao pontode haver quem fale, no meio científico,de estarmos perante a próxima grandecrise de saúde pública.

Comecemos pelo prazer sem culpa:

por dia, segundo a consultora Nielsen,os norte-americanos passam cerca de

quatro horas e meia a ouvir música,bem mais do que os 60 minutos limi-te recomendados pela OrganizaçãoMundial da Saúde (OMS). Entre osmais novos, também apelidados de

geração silenciosa, ninguém dispensao telemóvel e acessórios, de auricula-res e auscultadores a colunas de som

portáteis. A OMS estima que, entre os

12 e os 35 anos, o número de pessoasem risco de perder a audição por vol-ta da meia-idade devido ao uso não

seguro de aparelhos de som para uso

pessoal ultrapasse os mil milhões. Nadade errado com ouvir música; o pro-blema está na relação entre o volumee a duração. Considerando o limiar de

segurança entre os 75 e os 85 decibéis

(dB), estar num bar, numa discoteca ou

num concerto, imerso em 100 decibéis

(dB) durante mais de 15 minutos (ou, se

forem 85 dB, durante oito horas segui-das) é um risco sério para a acuidadeauditiva. A exposição a sons altos porlongos períodos de tempo agride as

células sensoriais do ouvido e resultaem perdas funcionais temporárias ouem surdez, o que justifica a campanhaMake Listening Safe (tornar a audiçãosegura) e o Dia Mundial da Audição,a 3 de março.

Segundo dados do Instituto Na-cional de Saúde e Nutrição norte--americano, a prevalência de perdaauditiva por abuso do nível sonoro dosauscultadores em jovens, nas últimasduas décadas, aumentou 31 por cento.Em Portugal, um estudo recente daDeco veio mostrar que o problematambém existe, especialmente quan-do se associa a outros tipos de ruído.

Após medir o tempo de exposição e a

pressão sonora a que estavam sujeitostrês adolescentes em diferentes con-textos (sala silenciosa, rua e metro) e

com o mesmo equipamento e software,o caso de maior risco foi o do jovemque tinha o volume de som mais alto

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nos auscultadores durante mais tempodo que o recomendável e andava demetro (intensidade média de 94 dBdurante uma hora diária).

Se às escolhas de cada um adicio-narmos outras fontes de ruído quenão temos possibilidade de controlarou de regular diretamente, chegamosà crise de saúde pública mencionadaem publicações de referência como TheNew Yorkere The Atlantic a vibraçãosonora produzida por gente que sediverte lá fora e pelo trânsito, na hora

de dormir, afeta o corpo mesmo que a

mente desligue, do mesmo modo queo facto de estar habituado a viver juntoa uma ferrovia ou a um aeroporto nãoelimina o stresse ambiental de que ficarefém. Até que ponto somos capazesde nos adaptar ao ruído crescente sem

prejuízo para a saúde?

A VIBRAÇÃOSONORAPRQDUZIDA PELO

TRANSITO, NAHORA DE DORMIR,AFETA 0 CORPOMESMO QUE AMENTE DESLIGUE

1,1 MIL MILHÕESEstimativa de pessoas em risco de

perda de audição por uso não seguro de

aparelhos de som (exemplo: exposiçãoa 85 dB durante oito horas ou 100 dB

durante 15 minutos)

IMPACTO DO RUÍDOAMBIENTAL

ESTIMATIVAS POR ANO NA UE

12500crianças com dificuldades

de aprendizagem

12 MILmortes prematuras

48 MILnovos casos de isquémia do

miocárdio

22MILHÕESde casos de incomodidade crónica

6,5 MILHÕESde casos de perturbações

do sono crónicas

FONTES: AGENCIA EUROPEIA DO AMBIENTE

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE.

VIVER COM O INIMIGOOs dados da OMS e da Agência Eu-ropeia do Ambiente mostram que,"a seguir à poluição do ar, a sonora é

a que tem mais impacto na saúde e navida das pessoas [ver Ruído e saúde],mas é negligenciada pelos decisores",lamenta Francisco Ferreira, presidenteda Zero - Associação Sistema TerrestreSustentável. O ambientalista refere oruído da vizinhança como "o mais com-plicado, por ser uma fonte de conflitos e

levar muitos a desistirem e a mudaremde casa". Podem ser os residentes quefazem festas regulares e usam equipa-mentos pessoais ruidosos sem pruridosa qualquer hora da noite (máquinasde lavar, aspiradores, instrumentosmusicais) ou os frequentadores de umbar concentrados na rua, com ou semveículos motorizados. Pode ser ainda

o estabelecimento comercial com as

máquinas a funcionarem sem respei-tar a acústica dos edifícios. Quando se

assiste à "ausência de sensibilidade dasautoridades policiais e à falta de rigorna aplicação de coimas", a solução passapor minimizar danos a título individual,seja com dispositivos e ruído branco -sinal sonoro com frequências na mes-ma potência que atenua sons ambientesmais intensos - ou auscultadores. Po-rém, comenta Francisco Ferreira, "istosó revela que cada vez temos menosdireito ao silêncio". De resto, acrescenta,"andar com protetores isola-nos cadavez mais dos outros e não é com ruído

que se combate o ruído".No entanto, é o que tem acontecido

nos últimos anos, com a corrida aosauscultadores e auriculares que permi-tem o cancelamento ativo de ruído e as

principais marcas hi-tech a disputaremo mercado de consumidores. Segundoa plataforma Kuantokusta, registou-seum aumento de 345% nas pesquisasonline de modelos com a função "noise

cancelmg" entre setembro e dezembrode 201.9 em relação ao período homólo-

go de 2018. Embora mais dispendiosa,esta tecnologia permite captar o som

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exterior e gerar uma onda sonora inver-tida que anula o ruído ambiente, fican-do apenas o som que o utilizador está aouvir, sendo possível anular cerca de 20decibéis num ambiente sonoro unifor-me (viagens de comboio, autocarro ouavião), mas funciona menos bem parabloquear a voz humana (pessoas narua, num cowork ou em open apace).

Os geradores de ruído branco (o site

myNoise, por exemplo, tem mais de 15

mil ouvintes), utilizados para diminuiro incómodo causado pelos zumbidos,estão a tornar-se populares por tam-bém mascararcm o ruído em espaçosde trabalho partilhados e para facilita-rem o sono. Neste cenário, ecologistasacústicos, como Gordon Hempton,admitem que o silêncio está em viasde extinção a uma velocidade superiorà das espécies.

"0 ruído é um veneno mortal"

Os alertas de José Palma-Oliveira, docente de Psicologia Ambientalna Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa e perito da ComissãoEuropeia para a Diretiva do Ruído

Se a poluição sonora éum problema de saúdepública, porque não

parece estar a serlevado a sério?Sim, o ruído é

uma epidemia,embora durantemuitos anos tenhahavido um boicotedas autoridades, casoda própria OrganizaçãoMundial da Saúde e dos

ministérios da Saúde, que bloquearamos resultados dos estudos feitos nasúltimas décadas por entenderem queeram politicamente desconfortáveis.Mas os novos estudos sãoabsolutamente demolidores eé impossível esconder mais. Asestimativas feitas, e só com os dadosda Europa Ocidental, apontam paraque anualmente haja mais de ummilhão de anos perdidos (mortes eanos de vida saudável, designadospor disabiiity odjusted lifeyears).Mesmo com pressupostos muitoconservadores, são 61 mil anosperdidos por doenças cardíacas, 900mil anos em perda de vida saudávelpor distúrbios de sono, que não chegaa ser profundo e reparador, e 45 milpor distúrbios cognitivos de crianças.Isso acontece por o nosso corponão se adaptar?O ruído não é uma causa diretade morte, como aliás a poluiçãoatmosférica não o é. Morre-se e

perdem-se anos de vida saudável dascomplicações de saúde que resultamde uma resposta de stresse agudase converter em crónica. 0 problemaestá no desgaste: quanto menosse conseguir controlar a origem doestímulo e confrontá-10, maior o riscode danos físicos e psicológicos.No início, as pessoas até podem ficarmais ativas na tentativa de controle,mas se os esforços não funcionarem

surge o chamado desamparoaprendido, que leva ao isolamentosocial. Seguem-se as complicações

psico-fisiológicas: primeiro vem o

incómodo, depois a desregulaçãohormonal e a hipertensão até aosproblemas de coração.

O que está a ser feito paramudar este cenário?

A Diretiva Europeia do

Ruído, feita no iníciodos anos 2000, não

apresenta limites

porque os paíseseuropeus não quiserarrDeviam ter sido definidas

as zonas calmas. Defendi,juntamente com os países

nórdicos, que essas zonaspodiam ser aumentadas, em vez

de se classificar apenas as zonasruidosas. Temos uma política muitotímida em relação a isso.Em Portugal passa-se o mesmo?Em Lisboa, a câmara municipal tentaintroduzir a noção de zonas calmas,onde os carros só possam circulara 30 km/hora, e outras medidas parareduzir o ruído ambiente, mas deforma muito lenta. Se extrapolarmosos dados conhecidos em Lisboa a

partir dos estudos epidemiológicos,podemos estimar que morrem dezenasde pessoas na capital com doençasde coração por stresse crónico devidoao ruído. 0 processo vai complicar-sese não houver uma política corretapara o aeroporto e para o tráfego.Há ainda a incapacidade das câmarase do Estado de lidarem com o ruído da

vizinhança e dos transportes. É precisedefinir estas políticas e implementá-las de maneira sistemática em todasas cidades do País e ao nível global.Como se resolve o barulho noslocais públicos?Isso faz-se pelo consenso e um trabalhode zonamento claro, com juntas de

freguesia, câmaras e a população.E solucionar conflitos de utilização do

espaço, para que não haja contradiçõestão frequentes como residências ebares na mesma zona, por exemploO que é pior: a ditadura do ruído oi>a ignorância?Quando colaborei no Plano Diretorde Lisboa e na Diretiva Europeia,foi gritante ver que os engenheiros,arquitetos e médicos não acreditavamnos estudos. O ruído é um venenomortal, com a mesma toxicidade rip

outros agentes tóxicos e mortaiscomo os cancerígenos

PERCEÇÃO DE CONTROLO CONTAOs efeitos do ruído na saúde começa-ram a ser levados a sério pela ciêncianos anos 1960. Se o som podia ter

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benefícios no plano fisiológico e emo-cional, tinha também o potencial de

ser usado como arma de manipulaçãoe tortura - especialmente as baixas

frequências, capazes de provocarvómitos, desorientação, espasmose diarreia. Hoje, os estudos epidemio-lógicos europeus permitem estimar

que a exposição prolongada ao ruídoé a causa de, anualmente, poderemvir a existir 22 milhões de pessoasafetadas por incomodidade crónica,seis milhões e meio com perturba-ções de sono e novos 48 mil casos de

doenças cardíacas, além das cerca de

12 SOO crianças que virão a sofrer de

dificuldades de aprendizagem na es-cola por causa do tráfego aéreo.

Nós, humanos, temos sérias difi-culdades em adaptar-nos ao stresse

ambiental. "Muitos dos pacientes quenos procuram com perturbações de

ansiedade e de sono trabalhavam porturnos ou moravam em locais comruído ambiental considerável", afirmao neuropsicólogo e investigador JorgeAlves, que menciona ainda "o risco de

declínio cognitivo através de efeitos

negativos na saúde vascular cerebral

e com potencial para contribuir parao desenvolvimento de demência".Contudo, há um fator que faz a di-ferença na maneira de gerir o stresse

ambiental, com implicações na saú-

de, ou na falta dela. "Se é o próprioa fazer barulho, acha que o controlae não se sente lesado; se for sujeitoa ele, já tem a perceção de que não

consegue combatê-lo", esclarece José

Palma-Oliveira, psicólogo ambiental

e perito da Comissão Europeia paraa Diretiva do Ruído. Ou seja, "quando

o ruído não é produzido pelos pró-prios e as pessoas estão privadas de

o controlar", os danos para a saúdesão certos, "independentemente de

variáveis como a cultura ou a nacio-nalidade", assegura o especialista, quese baseia nas estimativas feitas comdados da Europa Ocidental: mais de

um milhão de anos perdidos (mortese anos de vida saudável) à conta da

poluição sonora, esse "veneno mor-tal". Trata-se de um custo demasiadoelevado para permanecer ignoradoe sem políticas de redução de ruídoà altura (ver O ruído é um venenomortal).

Segundo um velho ditado, temosuma boca para falar e dois ouvidos

para ouvir. Num ambiente saturadode estímulos, a dureza de ouvido é tal-vez a resposta mais adaptativa a umaexposição prolongada, seja desejada,como sucede com os "viciados" emmúsica em volumes proibitivos, ouindesejada, que toca a muitos, bemmais do que o admissível. Entretanto,

países como a Dinamarca têm vindoa apostar fortemente no controlodo ruído da ferrovia com barreirasacústicas e adotando medidas de in-sonorização das habitações nas proxi-midades. Circular nas composições da

Rail Net Denmark e encontrar zonaslivres de ruído e interdição do usode equipamentos de som parece ser

o novo normal.Embora não estejamos na Dina-

marca, há trabalhos a assinalar no

campo da investigação. Realizadopela Escola de Saúde do InstitutoPolitécnico do Porto em três unida-des neonatais, um estudo contemploua medição dos níveis de pressão sono-ra e inquiriu o pessoal que trabalhava

nas unidades. Apurou-se que 4170

dos profissionais consideram esses

níveis "ligeiramente desconfortáveis"e 48%, "aceitáveis". Mais de metadeda amostra (55%) atribuiu o incómo-do aos equipamentos. Nas mediçõesefetuadas, detetou-se ruído excessi-

vo em todas as unidades, superior às

recomendações internacionais, comníveis entre os 48,74 os 71,7 decibéis.

Podemos habituar-nos a tudo desde

que nascemos, mas o impacto desse

"tudo" vai acompanhar-nos ao longoda vida. Fica a pergunta para decisores

e cidadãos: é de fazer uma dieta sono-

ra, limitar a ingestão diária de ruído,

qual refeição processada que se comecom prazer e sem culpa, uma vez porfesta? l'l csuares@visao ,pt

USADASCOMO ARMADE TORTURA,AS BAIXASFREQUÊNCIASPQDEM PROVOCAR

VÓMITOS, _DESORIENTAÇÃO,ESPASMOSE DIARREIA

O QUE DIZ A LEI

Horas "sagradas": entre as 23h

e as 7h, é proibido ouvir música

atta e usar equipamentos ruidosos

(martelar, usar o berbequim, aspirara casa, etc).

Obras e remodelações: Ruído per-mitido entre as 8h e as 20h nos dias

úteis e interdito fora dessas horas e

nos feriados e fins de semana

(implica ainda afixar aviso no prédio

aos condóminos com a duraçãoprevista das obras)

Eventos de rua: Requerem licençaespecial emitida pela autarquia

Como atuar: Chamar a atençãodo infrator e depois a polícia. Pode

também recorrer aos Julgadosde Paz e aos tribunais e, em casos

específicos, pedir indemnização pordanos, mediante prova (medições,

relatório médico, etc.)

FONTE: REGULAMENTO GERAL DO RUÍDO 12007)

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