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  • 8/18/2019 O Sinal

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    O sinal

    Túlio Madson Galvão1 

     Na solidão de nossa bolha automotiva, o sinal de trânsito é uma praça. Carregadores de

    celular, água mineral, peças de carro, serviços inúteis, limpador de para-brisa, água

    explode no vidro, ofertam o serviço, na mais feroz das recusas. O ato de negar torna-se

    mero ritual, após a negação vem a oferta, duas moedas da caixinha de caridades, o

     próximo vem, já não limpa mais, torna-se polimento, quando a placa é de fora, ou o

    carro é da moda, aumenta o tormento.

    Brinquedos, pelúcias, eletrônicos, diante dos olhos, da bolha, das entediadas crianças

    em suas celas, cadeiras. Compra pra mim, agora não dá o sinal vai abrir, mas acabou de

    fechar, aquilo não presta vai logo quebrar.

    Resquício raquítico do circo, malabares, palhaços de instituições de caridade,

    cuspidores de fogo, deficientes em busca de sustento, crianças de colo, doces no

    retrovisor, quer saber, lá poetas deveriam haver.

    Clima de feira, a mão ligeira na corrente, os mendigos, os barracos, as frutas embaladas,

    as nuas também, os doces, sementes, água de coco, é duas por cinco, pago cinco por

    dez, essa está verde, a água está quente, não quer funcionar, esse limpador de para-brisa

    é de outro modelo não quer encaixar.

    Os pedestres no palco, passarela, na faixa, o olhar de desconfiança, para, não para, olha

    a linha, o sinal, já abriu, vai fechar, anda rápido, vem devagar, passo, não passo, dá

    tempo, não dá, agora eu vou, vai dá, fechou. Passa, passa, sai de cima da faixa, mas que

     platéia chata, eles precisam passar, a cidade é minha, o carro sou eu, acidente na

    esquina, pedestre morreu.

    Olha a ciclofaixa, não vira assim, sem seta sem nada, espera passar, vai mais devagar, a

    cidade é minha, o carro é seu, pouco mais de calma, carros com alma, o sinal é pra

    todos, a pista também. Vai logo é protesto, para não para, bomba, fumaça, sai logo

    dispara.

    1 E-mail: [email protected] Página: facebook.com/tulio.madson.galvao

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]

  • 8/18/2019 O Sinal

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    O verde na frente, a esperança acesa, dá tempo, acelero. Diminui, o da frente, sem fé no

    futuro, diminui o ritmo, se conforma e espera a esperança apagar. Eu passo à direita, a

    esperança segue acesa, enquanto o laranja durar; se guarda, ou radar, ou alguém me

    multar, passo mesmo assim, é longo o vermelho, eu preciso ir.

     Na madrugada descansa, pisca o laranja, sem verde sem regras, sem vermelho pecado,

    que se foda e o caralho, passo mesmo assim. Você passa ou eu passo? Que sujeito

    educado, vá na frente obrigado. Olha aquele ali, não para aqui, sujeito noiado, tem

    alguém ali do outro lado, passa mesmo assim.

    Abriu esse lado, não viro à direita, sigo em frente, em frente não pode, é o lado errado, o

    sinal abriu desse lado, siga agora. Pra frente é vermelho? Mas que desespero, que coisa

     perversa, direção diversa, é multa ou linchado.

    Buzina, abriu, mal deu laranja já vai parar, dá tempo amigo, passa por cima, olha o cara

     já vai brigar, sirene é polícia, ambulância, sobe a calçada, o meio fio, a sirene, a morte,

    não pode parar, anda meu filho, o sinal vai abrir, olha o cara, no meio do cruzamento,

    ficou de castigo, que desalento, quão chapéu de burro no canto da sala, todos o olham,

    que sirva de exemplo, em outro momento, fique antes da faixa, o sinal vai fechar.

    O outro lado fechou, aqui vai abrir, engata a primeira, ronca o motor, mas logo agora, o

    carro da frente enguiçou, a fila se forma, dá sinaleira, me deixa passar. Cuidado olha a

    multa, não pare ai, passou no vermelho, não vi. Olha essa moto, não cabe aqui, meu

    retrovisor, cuidado ai.

    Agora dá tempo, responda a mensagem, o celular abaixado, pra ninguém notar, buzina

     buzina, abriu. Os dois da frente anseiam o verde, não pensam em mais nada, quando

    apagar o vermelho começam a arrancada.

     Na janela a cidade para, o céu aparece, aquele pensamento, aquela prece, a solidão dos

    sinais, semáforos, faróis, nos fazem sentir, um pouco mais sós.

    Publicado originalmente na Carta Potiguar em 22/01/2016:

    http://www.cartapotiguar.com.br/2016/01/22/o-sinal/