O sistema de escrita japonês: Além da fala - … · a simples idéia há de chocar brutalmente...

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Leonardo F. S. Boiko O sistema de escrita japonês: Além da fala São Paulo 2016

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  • Leonardo F. S. Boiko

    O sistema de escrita japons: Alm da fala

    So Paulo

    2016

  • Leonardo F. S. Boiko

    O sistema de escrita japons: Alm da fala

    Universidade de So Paulo

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Programa de Ps-Graduao em Lngua, Literatura e Cultura Japonesa

    Orientadora: Leiko Matsubara Morales

    So Paulo2016

  • Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meioconvencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    Catalogao na PublicaoServio de Biblioteca e Documentao

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo

    B678sBoiko, Leonardo Ferreira da Silva O sistema de escrita japons: Alm da fala /Leonardo Ferreira da Silva Boiko ; orientadora LeikoMatsubara Morales. - So Paulo, 2016. 163 f.

    Dissertao (Mestrado)- Faculdade de Filosofia,Letras e Cincias Humanas da Universidade de SoPaulo. Departamento de Letras Orientais. rea deconcentrao: Lngua, Literatura e Cultura Japonesa.

    1. Escrita (lingustica). 2. Lngua japonesa. 3.Lngua chinesa. 4. Estatstica. 5. Lingustica. I.Morales, Leiko Matsubara, orient. II. Ttulo.

  • Dedico este trabalho comunidade de leitores e escritores japoneses, que, ao optar por manterseu sistema de escrita vivo, enriquecem a cultura mundial com formas nicas de expresso e

    criatividade.

  • Agradecimentos

    minha orientadora, Leiko Matsubara Morales, pela confiana e apoio nas ho-ras difceis, e a meus colegas orientandos;

    Aos profs. John Defrancis, Marshall Unger, Victor Mair e outros que, embora te-nham chegado a concluses opostas minha sobre o valor da escrita kanji, produziramtrabalhos de altssimo nvel, e que foram a minha formao no assunto; e em especialaos profs. Victor Mair e Marshall Unger, pela ateno, cortesia e gentileza nos contatospela Internet;

    A todos os professores que tive na Usp, fontes de entusiasmo tanto quanto deconhecimento, e em particular a Paulo Chagas e Sylvio Horta, que muito me ensinaramsobre sistemas de escrita, despertando o desejo de aprender cada vez mais;

    Ao prof. Jim Breen, cujos dicionrios colaborativos gratuitos so um recursoessencial para todos os aprendizes e pesquisadores de japons, e que graciosamenteorientou a escolha de software usado neste trabalho;

    A todos os comentadores do meu weblog,1 e em particular a Matt Treyvauld,Bathrobe, Flow e Rursha, pelas informaes, discusses e apoio;

    Aos japoneses que, ao saberem do tema deste trabalho, invariavelmente apoiaram-no calorosamente;

    comunidade de software livre, sem cuja dedicao e generosidade este trabalhoproduzido em Debian Gnu/Linux, XLATEX, Python, R, Junicode, Emacs, Git e tantasoutras ferramentasno teria sido possvel;

    Ao Instituto de Matemtica e Estatstica da usp, sempre flexvel em acomodarminhas responsabilidades profissionais s acadmicas;

    Fundao Japo, cujas bibliotecas sempre foram uma parte essencial de minhavida intelectual, e cujo programa de bolsas deu-me a oportunidade de pesquisar in loco,melhorando consideravelmente a qualidade deste trabalho;

    A K., pela inspirao;

    A C., pela companhia.

    1

    http://namakajiri.net/nikki
  • Tal qual uma epifania, descer ento sobre ti a certeza de que a fantstica singularidade dessas ruasdeve-se quase toda profuso de caracteres chineses e japoneses, pintados em branco, preto, ouro, azul, que

    tudo ornamentamat mesmo os umbrais, at mesmo as paredes de papel. Talvez ento, por um breveinstante, imagines tu o efeito que causaria a substituio de tais caracteres mgicos por letreiros inglesa, e

    a simples idia h de chocar brutalmente tua sensibilidade esttica, seja ela qual for; e tornar-te-s ento,assim como eu, um inimigo da Rmaji-Kwaiaquela sociedade fundada com o propsito feio e utilitrio

    de introduzir o uso das letras inglesas para grafar o japons.

    (Lafcadio Hearn, Glimpes of Unfamiliar Japan, 1895)

  • Resumo

    Existem muitos sistemas de escrita em uso pelo mundo. Quase todos eles so repre-sentaes dos sons das lnguas, compostos por poucas dezenas de smbolos. A escritajaponesa, porm, inclui caracteres chineses (kanji), que representam no s os sons mastambm os sentidos; e, para isso, precisa empregar milhares de smbolos. A comple-xidade do sistema de escrita japons torna-o mais difcil de aprender e de processarmentalmente. Por que ento ele continua sendo usado at hoje? Haveria alguma van-tagem?

    Investigando estas questes, descobrimos que a escrita japonesa permite formas de ex-presso que no seriam possveis atravs da transcrio sonora pura, nem em sistemasde escrita mais simples. Esta observao importante, no apenas para os estudos ja-poneses, mas para os estudos da linguagem escrita em geral: o caso japons demonstraque a escrita no pode ser compreendida como um simples registro visual da fala, masdeve ser estudada como um sistema de acesso linguagem com caractersticas prprias.Neste trabalho, analisamos algumas dessas formas de expresso especficas da escrita,tal como se apresentam no japons.

    Palavras-chave: Lngua japonesa. Lingustica. Sistemas de escrita. Kanji. Hnz. Glo-sas. Furigana. Lngua chinesa. Ideograma. Logografia. Morfografia. Fonografia. Lin-gustica de corpus. Estatstica. Tcnicas literrias.

  • Abstract

    There are many writing systems currently in use around the world. For almost all ofthem, the basic mechanism is using graphical symbols to represent the sounds of lan-guage. A few dozen symbols are enough for this purpose. Japanese writing, how-ever, includes Chinese characters (kanji), which are related not only to sound but alsoto meaning; since there are many possible meanings, kanji number in the thousands.The complexity of Japanese writing makes it comparatively harder to learn, and harderto process mentally. Why, then, is it still in use? Are there any advantages to such asystem?

    A closer look show that Japanese writing allows modes of expression which would beimpossible in a phonetic transcription of speech, or in simpler writing systems. This isan important datum, not only for Japanese studies, but for the linguistic study of writ-ing itself; the Japanese case clearly shows that writing cant be adequately describedas merely a visual representation of speech, but must rather be analyzed as an inde-pendent system for accessing language. In this dissertation we discuss, from Japaneseexamples, some of these expressive techniques which can only be realized in a writtenmedium.

    Keywords: Japanese language. Linguistics. Writing systems. Kanji. Hnz. Glosas.Furigana. Chinese language. Ideogram. Logography. Morphography. Phonography.Corpus linguistics. Statistics. Literary techniques.

  • Lista de ilustraes

    Figura 1 Modelo da primazia da fala . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32Figura 2 Comparao entre os modelos da primazia da fala e da autonomia

    da escrita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36Figura 3 Variantes da letra a . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48Figura 4 Exemplo de rebus (emprstimo homofnico de pictogramas) em por-

    tugus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72Figura 5 Exemplo de leitura kundoku: As flores no atrapalham o caminho . 101Figura 6 Distribuio do nmero de componentes por kanji na amostra, em

    quartis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127Figura 7 Frequncia de cada kanji na amostra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128Figura 8 Frequncia de cada componente na amostra . . . . . . . . . . . . . . . 129Figura 9 Os 1% kanjis mais frequentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130Figura 10 Histograma da distribuio do melhor ndice de consistncia fontica

    para ocorrncias de kanjis na amostra . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135Figura 11 Histograma da distribuio do melhor ndice de consistncia fontica

    para tipos de kanjis na amostra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136Figura 12 Ttulo da obra Hotaru no Haka (Cemitrio dos Vaga-lumes) . . . . 140Figura 13 Trecho de anncio publicitrio do videogame Shin Megami Tensei IV . 141Figura 14 Reanlise morfolgica em Ansatsu Kyshitsu . . . . . . . . . . . . . . . 143Figura 15 Paralelismo no mang Rurni Kenshin . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146Figura 16 Exemplo de paralelismo com lngua estrangeira em histria em qua-

    drinhos: Deep Submerge! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150Figura 17 Tipo de caractere como recurso expressivo: Ghost Trick . . . . . . . . 154

  • Lista de tabelas

    Tabela 1 Algumas leituras do caractere . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19Tabela 2 Palavras frequentes cuja grafia inclui o caractere . . . . . . . . . . . 20Tabela 3 Subdiviso da palavra paraquedismo em signos . . . . . . . . . . . 42Tabela 4 Comparao da escrita portuguesa e variao fonolgica . . . . . . . 46Tabela 5 Comparao da escrita portuguesa e pronncia fontica . . . . . . . . 47Tabela 6 Pluralidade na escrita: plurigrafia e plurifonia . . . . . . . . . . . . . 50Tabela 7 Multiplicidade na escrita: pluraridade e polivalncia . . . . . . . . . 52Tabela 8 Morfofonologia do morfema medic- . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53Tabela 9 Usos da letra h em portugus: Heterografia e plurigrafia . . . . . . 56Tabela 10 Polivalncia das letras e e o e acento grfico . . . . . . . . . . . . . 58Tabela 11 Exemplos de caracteres chineses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60Tabela 12 Componentes dos caracteres chineses . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64Tabela 13 Componentes semnticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65Tabela 14 Componentes fonticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67Tabela 15 Progresso histrica dos pictogramas chineses (xingxng) . . . . . . . 70Tabela 16 Caracteres chineses indicativos ou analgicos (zh sh) . . . . . . . . . 71Tabela 17 Caracteres chineses de associao semntica (huy) . . . . . . . . . . 71Tabela 18 Caracteres chineses de rebus ou emprstimos homofnicos (jiji) . . 72Tabela 19 Caracteres fono-semnticos (xng shng) . . . . . . . . . . . . . . . . . 73Tabela 20 Processo gerativo tpico de um caractere fono-semntico . . . . . . . 74Tabela 21 Componentes fono-semnticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75Tabela 22 Pronncias polivalentes eruditas do chins literrio . . . . . . . . . . 78Tabela 23 Exemplos de plurimorfemia no chins: um caractere denota mlti-

    plos morfemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79Tabela 24 Listagem completa de caracteres chineses plurais no dicionrio cc-

    cedict . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80Tabela 25 Grafia Sa-Sb de palavras-borboleta: morfemas dissilbicos cujos ca-

    racteres partilham o mesmo componente semntico . . . . . . . . . . 86Tabela 26 O morfema di . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87Tabela 27 Palavras elsticas no chins . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88Tabela 28 Traduo de Fenollosa de um verso chins . . . . . . . . . . . . . . . 91Tabela 29 Comparao de leituras chinesas e japonesas . . . . . . . . . . . . . . 95Tabela 30 Exemplos de mltiplas leituras sinticas atribudas a um nico caractere 96Tabela 31 Principais fontes dos estratos de leituras on . . . . . . . . . . . . . . . 97Tabela 32 Leituras kun plurimorfmicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103Tabela 33 Leituras kun compostas (jukujikun) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104

  • Tabela 34 Os hiragana atuais, sua pronncia e kanji de origem . . . . . . . . . . . 106Tabela 35 Os katakana atuais, sua pronncia e kanji de origem . . . . . . . . . . 107Tabela 36 Relao entre kana, slabas e moras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109Tabela 37 Processo de vozeamento daku e o sinal dakuten . . . . . . . . . . . . . 110Tabela 38 Caracteres kana histricos para o som /i/ . . . . . . . . . . . . . . . . 111Tabela 39 Confuso de componentes fonticos devido simplificao grfica . 120Tabela 40 Contagens de kanjis e leituras na amostra . . . . . . . . . . . . . . . . 125Tabela 41 Relao entre kanjis e nmero de componentes . . . . . . . . . . . . . 126Tabela 42 Cobertura dos itens mais frequentes sobre o total de ocorrncias . . . 130Tabela 43 Exemplos de sries de componentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131Tabela 44 Exemplos de vizinhanas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131Tabela 45 Exemplos de sries e leituras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132Tabela 46 Exemplos de consistncia fontica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132Tabela 47 Exemplo de escolha da melhor vizinhana fontica . . . . . . . . . . . 132Tabela 48 ndices de consistncia fontica das leituras sinticas (on) que ocorre-

    ram na amostra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134Tabela 49 Formas de uso regulares do kanji na escrita japonesa moderna . . . . 139Tabela 50 Grafia das palavras koro momento, hora e korosu assassinar . . . 143Tabela 51 Exemplos de estrangeirismos como glosa de kanji propostos por Hashi-

    moto et al. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151Tabela 52 Tcnicas de escrita de um trecho de Hakuzsu, de Natsuhiko Kygoku. 157Tabela 53 Notao pnyn e sua pronncia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 184

  • Lista de abreviaturas e siglas

    Abreviaturas e siglas no texto

    Ipa International Phonetic Alphabet (Alfabeto Fontico Internacional)

    jap. japons

    Abreviaturas usadas em glosas morfolgicas

    Sobre abreviaes morfolgicas, ver o padro Leipzig (2008).

    Adv Adverbial

    Adn Adnominal, rentaikei

    Com Caso comitativo, companhia

    Con Flexo conectiva, renykei

    Cop Cpula; verbo ou partcula de ligao

    Ctr Contador (sufixo de contagem)

    Dedu Modo dedutivo (fato deduzido a partir de evidncia indireta)

    Gen Caso genitivo

    Imp Modo imperativo

    Loc Caso locativo

    Neg Negativo

    Nom Caso nominativo (sujeito)

    Nmlz Nominalizador, forma nominal

    Obj Objeto (direto ou indireto)

    Prfv Aspecto perfectivo, ao completa

    Top Tpico

    Quot Quotativo, citao

  • Lista de smbolos

    [] Colchetes denotam transcrio fontica (ver 3.2.1 pgina39).

    // Barras denotam transcrio fonolgica (ver 3.2.1 pgina39).

    Aspas angulares denotam uma forma escrita sendo discutida em si;isto , onde o que importa so os prprios sinais grficos, no aquiloque eles normalmente representam. Por exemplo: Podemos discutiro conceito de amor, a palavra amor, ou a sequncia de quatro letrasamor.

    Asterisco denota a) uma forma histrica reconstruda a partir das mo-dernas, ou b) uma forma que no ocorre na lngua.

  • Sumrio

    1 INTRODUO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

    1.1 Sistema de escrita japons: O pior domundo? . . . . . . . . . . . . . . . . 171.2 Objetivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251.2.1 Descrio abrangente da escrita japonesa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251.2.2 Consequncias para a teoria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261.2.3 Investigar possveis vantagens do sistema de escrita japons . . . . . . . . . . 261.3 Metodologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271.3.1 Pesquisa bibliogrfica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271.3.2 Anlise de corpus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271.3.3 Coleta de exemplos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 281.4 Convenes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

    2 FUNDAMENTOS TERICOS: DUAS TEORIAS DA ESCRITA . . . . . . . . . . . 31

    2.1 A primazia da fala . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 312.2 A autonomia da escrita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32

    3 SOM E SENTIDO NA ESCRITA: A FONOGRAFIA E AMORFOGRAFIA . . . . . . 37

    3.1 Introduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 373.2 A dupla articulao da linguagem: fonemas emorfemas . . . . . . . . . . 373.2.1 Blocos elementares da linguagem: os fonemas . . . . . . . . . . . . . . . . . 393.2.1.1 Variao fontica condicionada e livre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 413.2.2 Elementos bsicos de sentido: os morfemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . 413.2.3 A dupla articulao e a escrita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 453.3 Uma escrita fonogrfica: o portugus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 463.3.1 Grafos e grafemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 483.3.2 Alm do princpio fonogrfico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 493.3.2.1 Dgrafos e plurigrafia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 493.3.2.2 Plurifonia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 493.3.2.3 Polivalncia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 503.3.2.3.1 Polivalncia e profundidade ortogrfica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 533.3.2.3.2 Polivalncia e sentido: heterografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 543.3.2.4 Smbolos e elementos no-fonogrficos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 553.3.2.4.1 A letra h . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 563.3.2.4.2 Pontuao, tipografia e sentido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 563.3.2.4.3 Espaos, sinais diacrticos e heterografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 573.3.2.4.4 Algarismos, sinais matemticos e outros recursos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58

  • 3.4 Uma escrita morfogrfica: chins . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 593.4.1 Contagem dos caracteres chineses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 633.4.2 Estrutura dos caracteres chineses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 633.4.2.1 Contagem dos componentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 653.4.2.2 Componentes semnticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 653.4.2.3 Componentes fonticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 673.4.2.4 Tipos de caracteres chineses: A classificao tradicional . . . . . . . . . . . . . . . . . 683.4.2.5 Componentes de papel duplo: os caracteres fontico-associativos duais . . . . . . . . . . 753.4.2.6 Limitaes no papel dos componentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 763.4.2.7 O mito do ideograma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 773.4.3 Excees e desvios do princpio morfogrfico . . . . . . . . . . . . . . . . . . 773.4.3.1 Polivalncia de leitura na escrita chinesa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 773.4.3.2 Plurimorfemia: um caractere representa uma sequncia de morfemas . . . . . . . . . . . 793.4.3.3 O mito do monossilabismo? Caracteres sub-morfmicos e as palavras-borboleta . . . . . . . 803.4.3.4 Caracteres chineses como fonogramas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 903.4.4 O mito do ideograma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 903.5 Fonografia vs. morfografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 933.6 Uma escrita mista: japons . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 943.6.1 Introduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 943.6.2 O chins no japons: leituras on . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 943.6.2.1 Estratos sinticos: go, kan, ts . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 963.6.3 Fonografia com o kanji . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 973.6.3.1 Terminologia da fonografia em kanji: ateji, kana,Manygana . . . . . . . . . . . . . . . 993.6.4 A traduo como parte integral da escrita: leituras kun . . . . . . . . . . . . . 993.6.4.1 Traduo alm da morfografia: plurimorfemia e os compostos jukujikun . . . . . . . . . . 1033.6.5 Fonogramas japoneses: o kana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1053.6.5.1 Irregularidades na fonografia do kana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1083.6.5.2 Kana, slaba e mora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1083.6.5.3 Diacrticos do kana: dakuten e handakuten . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1093.6.5.4 Kana e sons longos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1103.6.5.5 Polivalncia do kana histrico: o hentaigana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1113.6.6 A escrita mista: kanji-kanamajiribun . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1123.6.7 A escrita em paralelo: as glosas furigana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1133.6.8 Kanji, polivalncia e ideografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114

    4 MEDINDOOGRAUDE FONETICIDADE DO KANJI . . . . . . . . . . . . . . . . 116

    4.1 Introduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1164.1.1 A proposta de DeFrancis: Seria a morfografia uma fonografia? . . . . . . . . . 1164.1.2 Limitaes da anlise de DeFrancis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1184.2 O caso do japons . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119

  • 4.2.0.1 Funes dos componentes fonticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1204.2.0.2 Hiptese . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1214.2.1 Detalhes metodolgicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1214.2.1.1 Tipos e ocorrncias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1214.2.1.2 Os kanjis de uso geral: Jy Kanji . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1224.2.1.3 O corpus e seu tratamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1224.2.1.4 Fontes de erros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1234.2.1.5 Outras abordagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1244.3 Descrio da amostra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1244.3.1 Caracteres kanji e leituras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1244.3.2 Componentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1254.3.3 Frequncias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1274.4 Anlise do corpus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1304.4.1 Definies . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1304.4.2 Pressupostos da anlise . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1334.4.3 Medindo a consistncia das pistas fonticas dos kanjis . . . . . . . . . . . . . 1344.5 Discusso e perspectivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136

    5 TCNICAS DE EXPRESSO CRIATIVA USANDO KANJI . . . . . . . . . . . . . 139

    5.1 Introduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1395.2 Reanlise morfolgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1395.2.1 Reanlise semntica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1405.2.2 Reanlise ldica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1445.2.3 Reanlise de estrangeirismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1445.3 Paralelismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1455.3.1 Com palavras japonesas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1455.3.2 Com estrangeirismos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1475.4 Outras tcnicas grficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1515.4.1 O tipo de caractere como recurso expressivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1515.4.2 Peso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1555.4.3 Estilo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155

    6 CONCLUSES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160

    Referncias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162

    APNDICES 174

    APNDICE A GLOSSRIO DE TERMOS TCNICOS . . . . . . . . . . . . . . 175

  • APNDICE B GLOSSRIO DE TERMOS ESTRANGEIROS . . . . . . . . . . . 183

    APNDICE C A TRANSCRIODOMANDARIM PADRO PNYN . . . . . . 184

  • 17

    1 Introduo

    1.1 Sistema de escrita japons: O pior do mundo?

    Considere as seguintes afirmaes sobre a escrita japonesa:

    O sistema de escrita japons constitui, talvez, a mais complicada formade escrever j imaginada.(FISCHER, 2004, p.167)

    Geralmente considerado o sistema de escrita mais complicado do mundo[] (ROBINSON, 2007, p.205)

    necessrio que eu diga algo sobre a escrita japonesa, amplamente con-siderada a mais complexa atualmente em uso.(SPROAT, 2000, p.132)

    Em mos japonesas, os caracteres chineses transformaram-se no que com frequncia chamado de o sistema de escrita mais intricado, omais complicado j usado por uma populao de tamanho razovel.[] Nem mesmo o sistema original chins se compara adaptao ja-ponesa, no que diz respeito complexidade e aparente impraticabili-dade.(COULMAS, 1989, p.122)

    O sistema de escrita japons moderno ainda retm a distino dbia deser o mais complexo em uso no mundo moderno.(SEELEY, 1984, p.213)

    Foi apenas a partir de 1950 que todas as crianas japonesas em idadeescolar passaram a ter que suportar a plena carga do que considerado,por consenso geral, o sistema de escrita mais oneroso atualmente emuso.(UNGER, 2004, p.11)

    Os japoneses terminaram por ficar com um dos piores sistemas de es-crita jamais criados.(DEFRANCIS, 1989, p.138)

    A ortografia japonesa partilha com a inglesa a distino de ser a piorda sua categoria, exceto que ao invs de ser a pior da categoria boa, ela a pior da categoria ruim. [] Como os fabricantes da Lexus LS-4001e dos melhores microeletrnicos do mundo conseguem viver com umsistema de escrita como esse, um fato que est alm da possibilidadede compreenso.(HANNAS, 1997, p.2628)

    Temos de hesitar ao tentar encontrar um epteto que descreva um sis-tema de escrita to complexo, que ele precisa do apoio de um outro sis-tema de escrita apenas para explic-lo.2 A escrita japonesa, sem dvida,prova ser uma rea de estudos deveras fascinante; mas, enquanto ferra-menta prtica, ela certamente no tem inferiores.(SANSOM, 1928, p.44)

    1 Modelo de luxo dos automveis Toyota.2 Sansom refere-se s glosas furigana; ver seo 3.6.7 pgina 113.

  • Captulo 1. Introduo 18

    A escrita chinesa a pior escrita do mundo, exceto por uma, e esta de-rivada daquela. Falo, claro, da escrita sobre a qual Sir George Sansomdisse que certamente no tem inferiores: a monumental escultura delixo que os japoneses erigiram atravs da bricolagem impiedosa de tex-tos chineses(CIKOSKI, 2011, p.x).

    Algumas das citaes acima talvez soem como julgamentos etnocntricos e de-sinformados da era colonial, mas no so. Todos os trechos so de trabalhos tcnicos delingustica, de autoria de renomados especialistasprofundos conhecedores das vriasescritas do mundo, e da japonesa em particular. Mais para o fim da lista, o tom cido, in-disfarado, destoa do restante das obras dos mesmos autores, quase todo composto deanlises objetivas, sem julgamento de valor. Gottlieb (1995) tambm comentou sobrecomo, no Japo, os debates intelectuais sobre a questo parecem ser particularmenteemotivos (p.38). Por que a escrita japonesa provoca opinies to fortes?3

    O ponto polmico o uso dos kanjiliteralmente caracteres chineses. Origi-nalmente criados para representar o chins literrio, esses caracteres foram adaptadospara o japons progressivamente a partir do sculo viii (SEELEY, 1991). Ao contrrio damaioria das escritas atualmente em uso no mundo, os kanji no representam somenteo som, mas tambm o sentido das palavras. Como h mais sentidos do que sons, onmero de caracteres chineses alcana as dezenas de milhares. Alm disso, a adapta-o para o japons complexificou seu mecanismo de leitura. A representao da lnguajaponesa com kanji resulta nas seguintes desvantagens (SMITH, 1996, p.214):

    Para poder ler textos em japons, preciso memorizar milhares de caracteres.O sistema de ensino japons ensina 2136 caracteres denominado de uso geral(Jy); para participao na vida letrada adulta, este conjunto o mnimo a sermemorizado (MEXT, 2010). Na prtica muitos outros se fazem necessrios, comocaracteres especiais usados em nomes prprios (pessoais ou topnimos).

    Alm disso, cada caractere pode possuir vrias leituras, multiplicando ainda maisa carga na memria. Por exemplo, montanha pode ser lido como yama ousan, e, no caso extremo, vida possui 12 leituras distintassem contar leiturasespeciais usadas em nomes prprios. O padro Jy especifica aproximadamente4407 leituras, de acordo com nossa contagem.4

    Alm disso, h grande quantidade de caracteres homfonosou seja, uma mesmaslaba pode ser representada por inmeros caracteres distintos. A slaba san podeser representada por qualquer um de , depen-

    3 Esta amostra de citaes foi baseada na lista de Joyce (2012).4 Ver programa JoyoDB nos arquivos dessa dissertao.

  • Captulo 1. Introduo 19

    dendo do sentido.5

    Alm disso, no h consistncia sobre qual unidade lingustica os caracteres re-presentam: eles podem denotar apenas uma slaba, como san, ou at cinco, como matsuri-goto governo; podem representar menos do que uma palavra, como otona adulto, palavra indivisvel escrita com dois caracteres; ou uma com-posio inteira, como kokoro-zashi, literalmente direo da mente = inteno.

    E, com todas essas possibilidades, torna-se difcil prever qual a leitura correta emcada situao.6

    Para entender melhor o que os linguistas citados consideram complexidade,consideremos o caractere chuva, (em negrito nos exemplos):

    Tabela 1 Algumas leituras do caractere

    Palavra Escrita japonesa Leitura de TraduoAme ame chuvaAma-dare ama gotas de chuvaHaru-same same chuva de primaveraBai-u u estao das chuvasTsuyu Em conjunto com , tsuyu estao das chuvas

    Nos trs primeiros exemplos, a palavra japonesa ame altera-se para ama- ou -same; mas essa variao no aparece na escrita. As trs variaes so todas grafadas. Para saber como ler as formas ame, amadare e harusame, necessriomemoriz-las uma por uma.

    O quarto exemplo, baiu, um emprstimo do chins.7 A palavra significa literal-mente a chuva (u) das ameixeiras (bai), e se refere a um perodo chuvoso no meiodo vero, quando as ameixeiras vicejam exuberantes. Note que o emprstimo chinsu, chuva, escrito de forma idntica s palavras nativas japonesas ame, ama-, e -same.Ou seja, todas estas quatro palavras so leituras possveis do caractere .

    O quinto exemplo, tsuyu, o mais complexo. Observe, em primeiro lugar, quea grafia das palavras japonesas baiu e tsuyu idntica: . Apenas o contexto e ex-perincia permitem presumir qual das duas leituras o escritor tinha em mente. Essas5 trs, montanha, participar, suporte de madeira, bicho-da-seda, desastre,

    produzir, guarda-chuva, dispersar, calcular, cido e aprovar, todossan. Se incluirmos caracteres e pronncias raras, do tipo listados em um dicionrio, o nmero decaracteres para san chega a 132 (BREEN et al., 2016). Essas pronncias so derivadas do chins clssico,onde toda slaba carrega um sentido; cf. seo 3.4.3.3.

    6 Para um estudo emprico sobre o impacto dessa complexidade no processamento mental, ver Kaya-moto, Yamada e Takashima (1998).

    7 A pronncia em chins medieval era algo como *mui-yuB (SCHUESSLER, 2009, pp.377;587); notaofontica do autor.

  • Captulo 1. Introduo 20

    palavras formam um par de quase-sinnimos: baiu, de origem chinesa, mais literria,enquanto que o equivalente nativo, tsuyu, soa mais natural.8

    Ainda sobre o quinto exemplo, em tsuyu, o caractere no tem leitura in-dividual; a palavra precisa ser lida como um todo indivisvel. Isso acontece porquea grafia chinesa da palavra, , com dois caracteres, foi adotada na ntegra para re-presentar sua traduo em japons, tsuyu. A traduo no literal; tsuyu se refere aomesmo perodo chuvoso, mas um termo indivisvel, que no se decompe em chuvadas ameixeiras.9 No o caso que um caractere represente tsu e outro yu; o par decaracteres , tomado em conjunto, que representa a palavra inteira tsuyu ( jukujikun;ver seo 3.6.4.1 pgina 103).

    As seguintes palavras incluem o caractere na grafia, e esto marcadas no di-cionrio edict como frequentes (BREEN et al., 2015):

    Tabela 2 Palavras frequentes cuja grafia inclui o caractere

    Leitura Palavras Quantidadeame ame, ko-ame, oo-ame, ame-furi, naga-ame, niwaka-ame 6ama- ama-gumo, ama-gu, ama-do, ama-yadori, ama-mori, ama-

    mizu, ama-dare7

    -same kiri-same, ko-same 2u u-ten, u-ry, k-u, g-u, ji-u, f-u, rai-u, bai-u, u-ki 9Outras tsuyu, shigure 2

    Todas as 26 ortografias precisam ser aprendidas caso a caso.10

    E tudo o que foi discutido at agora so as leituras de um nico caractere. Comomencionado acima, para funcionar como cidado letrado na sociedade japonesa, todoestudante precisa aprender na escola cerca de 4407 leituras de 2136 caracteresprocessocompletado apenas na concluso do equivalente ao nosso ensino mdio (MEXT, 2010).

    Comeamos a entender o porqu das opinies negativas sobre a escrita japonesa.

    H ainda mais uma crtica ao uso do kanji: a de que todo esse esforo de memori-zao seria desnecessrio, perfeitamente dispensvel (MATSUNAGA, 1994, pp.122123).A escrita portuguesa, por exemplo, usa apenas 26 caracteres para representar qualquerpalavra. Ela consegue isso porque as letras representam os sons da lngua, que so8 Isso comparvel forma que o portugus distingue emprstimos gregos eruditos, e.g. geolgico ou

    heliocntrico, de palavras nativas latinas, como terrestre e solar.9 A etimologia mais provvel liga a orvalho, tambm tsuyu (LOOKVISE, 2016).10 Ao todo, o dicionrio edict inclui atualmente 279 entradas com o caractere . Porm, no est claro

    quantas entradas so previsveis a partir de outras, j que o dicionrio inclui palavras compostas eexpresses idiomticas. O nmero que apresentamos uma estimativa conservadora. Das palavrasque foram omitidas por baixa frequncia, destacamos haru-same chuva de primavera e samidare chuvas de maio.

  • Captulo 1. Introduo 21

    poucosmenos de 40. No seria mais racional representar o japons tambm com umaescrita assim? E mais, o japons j possui uma disponvel: o kana, que com 46 smbolosconsegue representar qualquer palavra japonesa de forma simples e direta, pelo som.Mas, na grafia atualmente em uso, os kana intercalam-se com kanji no mesmo texto. Elesso usados at mesmo em paralelo: quando um escritor estima que um kanji ser muitodifcil de ler, ele especifica sua leitura atravs de glosas (anotaes paralelas) em kana.11

    Mas ento por que se dar ao trabalho de usar kanji, em primeiro lugar? Se j temos emmos o kana, que mais simples, por que no simplesmente escrever tudo em kana?

    Historicamente, a Coria e o Vietn usavam sistemas mistos semelhantes ao ja-pons. Ambos os pases abandonaram os caracteres chineses com sucesso (COULMAS,1989, cap.7). Os crticos que vimos acima defendem que o Japo deveria fazer o mesmo,especulando que isso traria diversos benefcios sociais. Por exemplo, Unger e Matsu-naga acreditam que existem diferenas no nvel de aquisio de kanji, o que implicariaque o uso de kanji estaria aumentando a desigualdade social (MATSUNAGA, 1994, p.139;UNGER, 1996). Unger argumenta ainda que essa desvantagem na escola seria uma causado alto ndice de suicdio estudantil (UNGER, 1987, p.9495).12 Unger e DeFrancis afir-mam que a escrita japonesa seria difcil de processar digitalmente, o que diminuiriaa competitividade do Japo no mercado informatizado (DEFRANCIS, 1989, pp.266268;UNGER, 1987). Hannas afirma que a didtica do kanji, baseada na memorizao, refora-ria uma cultura de conformismo, atrasando a inovao cientfica (HANNAS, 1997). ParaPullum, os caracteres chineses so um pesado fardo e um grande freio no desenvol-vimento da educao, comrcio e cincia (PULLUM, 2016). Tudo isso, argumentam oslinguistas da escola crtica, iria melhorar drasticamente se os caracteres chineses fossemsimplesmente abandonados.

    No Japo, j no perodo Meiji (18681912) aparecem propostas de simplificar aescritaseja adotando o alfabeto romano, seja a grafia nativa kana. Ainda hoje existemgrupos que defendem a extino dos kanji, como o Nippon-no-Rmazi-Sya13 e o Kana-mojikai.14 Porm, tais grupos sempre foram minoria; o pblico em geral no pareceinteressado em simplificar a escrita (UNGER, 1996, p.127). Em uma pesquisa de opi-nio do governo japons em 2010, 72,4% dos entrevistados julgaram indispensveis oscaracteres kanji, e uma mdia de 91,3% afirmou no ter dificuldades em decodific-losao ler jornais, revistas e pginas da Internet (BUNKACH, 2010). Quando a lista atual decaracteres de uso geral (Jy Kanji) estava em desenvolvimento, em 1977, uma pesquisajunto ao pblico revelou uma tendncia a aprovar toda adio de caracteres extras, e11 Cf. seo 3.6.7 pgina 113.12 Considere, porm, que a Coria possui uma escrita considerada amplamente como simples e racio-

    nal, e contudo o ndice de suicdio um dos maiores do mundo, bem frente do Japo (THE JAPANTIMES, 2013).

    13 Sociedade Japonesa de Caracteres Romanos; .14 Associao dos Caracteres Kana; .

    http://www.age.ne.jp/x/nrs/http://www9.ocn.ne.jp/~kanamozi/
  • Captulo 1. Introduo 22

    rejeitar a remoo de caracteres (GOTTLIEB, 1995, p.191). A tendncia atual na escritajaponesa tem sido em aumentar o nmero de kanji, ao invs de diminu-lo; a lista decaracteres do sistema escolar passou de 1850 (MEXT, 1946) para 1945 (MEXT, 1981) para2136 (MEXT, 2010); e, ao contrrio do que Unger (1987) e Hannas (1997) previram, adifuso dos computadores e celulares facilitou o uso de um nmero ainda maior dekanji, ao invs de limit-lo (MATSUNAGA, 1994, p.15; TABATA, 2015; KESS; MIYAMOTO,1999, p.208).15 E se por um lado o Japo tem a escrita mais complexa do mundo, poroutro o pas mostra uma taxa de letramento altssima, chegando aos 99% da populao(CIA, 2015).

    Como vimos, a escrita japonesa desperta em alguns especialistas uma retrica es-pecialmente cida, agressiva. Porm, em outros casos a reao o inverso: igualmenteemocional, mas apaixonada, elegaca. Considere o trecho de Lafcadio Hearn citado naepgrafe deste trabalho (HEARN, 1895, p.4):

    Tal qual uma epifania, descer ento sobre ti a certeza de que a fants-tica singularidade dessas ruas deve-se quase toda profuso de carac-teres chineses e japoneses, pintados em branco, preto, ouro, azul, quetudo ornamentamat mesmo os umbrais, at mesmo as paredes depapel. Talvez ento, por um breve instante, imagines tu o efeito quecausaria a substituio de tais caracteres mgicos por letreiros inglesa,e a simples idia h de chocar brutalmente tua sensibilidade esttica,seja ela qual for; e tornar-te-s ento, assim como eu, um inimigo daRmaji-Kwaiaquela sociedade fundada com o propsito feio e utilit-rio de introduzir o uso das letras inglesas para grafar o japons.

    Na citao da pgina 17, Sansom se mostra chocado com a combinao de kanji ekana do japons: um sistema to complicado que precisa de outro para explic-lo. Ariga,porm, aprecia o potencial literrio que s existe atravs dessa combinao (ARIGA, 1989,p.335):

    Tal marginalia pode ter sido originalmente acessria; porm, inmerosestilos textuais empregaram-na para causar os mais variados efeitos lite-rrios. Nos trs exemplos de textos gesaku examinados acima, as glosasrubi [=furigana]so vitais na criao de imagens compostas e de espaosemntico [] Examinando sua funo que entendemos o intrincadojogo polifnico e polissmico que se encontra na literatura japonesa.

    Tambm Backhouse (1984) observou que:15 Embora a habilidade de escrever os caracteres mo parea estar sendo erodida (MAIR, 2016a). A

    memria ativa ou de recuperao (recall) sempre mais limitada que a memria passiva ou de re-conhecimento; por exemplo, ns entendemos mais palavras do que empregamos. Para escrever ca-racteres sem consultar referncias, preciso usar memria ativa; consequentemente, o nmero decaracteres que um indivduo consegue ler sempre maior do que o que consegue escrever mo. Aescrita digital aproveita-se disso, listando para o escritor sugestes de caracteres. No computador oucelular, o escritor de kanji s precisa ser capaz de reconhec-los passivamente. Por isso, o nmerode caracteres em uso aumentou, mas a habilidade de escrev-los sem referncia caiu em desuso eenfraqueceu.

  • Captulo 1. Introduo 23

    A presena de uma pluralidade de subsistemas permite flexibilidadeortogrfica em uma escala tal que seria inimaginvel nos sistemas de es-crita mais conhecidos. [] esta flexibilidade amplamente explorada,em grau diferente dependendo do gnero textual; e as implicaes esti-lsticas de tal variao merecem mais estudo do que tm recebido.

    Ernest Fenollosa, em um ensaio cuja correo lingustica viria a ser severamentequestionada (KENNEDY, 1958), mas que foi grande influncia em poetas como EzraPound e Haroldo de Campos (CAMPOS; DANTAS, 1994), elogia o potencial potico daescrita chinesa porque os caracteres chineses so motivadosou seja, ao contrrio dosom das palavras, que arbitrrio,16 a forma visual (pelo menos em alguns caracteresfrequentes) traz uma relao com o que significam (FENOLLOSA et al., 1936). Por exem-plo, o caractere chuva baseado na ilustrao de uma nuvem contendo quatrogotas dgua. Para Fenollosa (pp.6;55),

    A notao chinesa vai muito alm de smbolos arbitrrios; ela base-ada em uma ilustrao vvida e condensada das operaes da natureza.Na varivel algbrica e na palavra falada no h conexo natural entreobjeto e signo; tudo depende de pura conveno; mas o mtodo chinssegue a sugesto natural. [] Estou convencido que a linguagem escritachinesa no apenas absorveu a substncia da natureza e eregiu com elaum segundo mundo de metforas, mas que ela, por sua prpria visibi-lidade pictrica, pde reter a criatividade potica original com muitomais vigor e vivacidade que qualquer linguagem [=sistema de escrita]fontica.

    verdade que muitas das associaes pictricas que Fenollosa faz so imagina-tivas, e no correspondem lgica original dos caracteres (cf. seo 3.4.2.4 pgina 68).Porm, pondera Haroldo de Campos (op.cit., p.51),

    A mente de um poeta no resistiria a essa viquiana fbula em minia-tura que parece pulsar na justaposio do radical e do fonograma[os elementos do caractere].

    Essa vivacidade dos caracteres chineses teve influncia no pensamento dos pr-prios chineses e japoneses (ver por exemplo nota sobre o Shuwn Jiz pgina 68).Elatambm influenciou diversas correntes artsticas pelo mundo, como a poesia imagistade Pound, a poesia concreta brasileira, e criadores de outras reas como o cineasta Ser-gei Eisenstein (EISENSTEIN, 1949, pp.37;42):16 A arbitrariedade do signo uma doutrina clssica da lingustica, mas estudos recentes nos campos

    do simbolismo sonoro e lnguas de sinais tm relativizado a questo. H agora bastante evidnciaestatstica que pelo menos parte dos sons da fala est relacionado aos sentidos de forma icnica;as lnguas preferem, por exemplo, vogais posteriores, que so mais ressonantes, para palavras quedescrevem ideias de grandeza. Ver e.g. Perniss, Thompson e Vigliocco (2010); Berlin (1992, cap.6),et al.

  • Captulo 1. Introduo 24

    O japons domina uma quantidade aparentemente ilimitada de hier-glifos. [] Convivem com estes uma srie de alfabetos fonticos euro-pia: o Manygana, o hiragana e outros. Contudo, o japons escreve emtodas as letras, empregando as duas formas de escrita de uma s vez![] A imagem de gua junto de olho quer dizer chorar []; en-quanto a de orelha sob o desenho de um portal representa o verboouvir []. [] Mas isto nada mais que montagem! Sim, exata-mente o que fazemos no cinema, combinando cenas que so denotativas,de significado nico, de contedo neutro, em contextos e sequncias in-telectualizadas. Isso o meio e mtodo inevitvel de toda exposio ci-nematogrfica; e, e em forma condensada e purificada, o ponto de par-tida do cinema cultdo cinema que busca o mximo de laconismona representao visual de conceitos abstratos. E ns saudamos o m-todo do to lamentado Cangjie [o criador mtico dos caracteres chineses]como um primeiro passo nesse caminho.17

    A viso que classifica os caracteres chineses como uma escrita inferior insere-auma linha evolutiva universal, que parte do desenho, passa pela escrita pelo sentido,evolui para a escrita pelo som, e culmina no alfabeto segmental, tido como pice daeficincia (DEFRANCIS, 1984; BOLTZ, 1994). Nesse caso, a pergunta por que os chineses ejaponeses pararam de evoluir e estacionaram em uma etapa primitiva. O linguistaStephen Dodson,18 em discusso com o autor desta dissertao, levantou a seguinteimagem (MAIR, 2016b):

    como se todos fossem obrigados a gastar anos aprendendo a fazertijolos de cermica e erigir com eles variadas formas de construo, eaqueles que j completaram o aprendizado ficassem indignados coma ideia que as geraes futuras deveriam ser poupadas de continuar oritual [] Minha posio que seria um progresso se todos no fossemobrigados a desperdiar anos de sua vida aprendendo a fazer tijolos.

    Similarmente, uma pesquisadora egpcia da lngua japonesa ponderou (comu-nicao oral): Ns paramos de escrever assim no tempo dos faras! Por que afinal osjaponeses ainda usam essa escrita at hoje?

    A crtica dessa noo evolutiva das escritas um dos argumentos principais domais influente livro de Derrida, De la grammatologie (p.91):

    Se a tarefa analisar realmente aquilo que, sob o nome de escrita,distingue-se por muito mais do que tcnicas de notao, no impor-tante abandonar, dentre outros pressupostos etnocntricos, essa espciede monogeneticismo grfico que transforma todas diferena em diver-gncia, atraso, acidente, desvio?

    Para Derrida, a escrita chinesa desenvolveu-se fora do logocentrismoconceitodo autor que prope uma falcia no pensamento greco-europeu: a noo de signifi-17 Para mais detalhes sobre a juxtaposio de sentidos que Eisenstein denominou montagem, ver

    sees 3.4.2.4 (p.68) e 3.4.2.7 (p.77).18 Autor do stio .

    http://languagehat.com
  • Captulo 1. Introduo 25

    cado como uma presena independente, transcendental, que existe parte da reali-dade concreta (BOHM; STATEN; CHOW, 2001).

    Os caracteres chineses exercem fascnio, atrao, deleite esttico. Muitos japo-neses expressam orgulho nacionalista dos kanji, mesmo sabendo que o sistema no nativo (MATSUNAGA, 1994, p.122). Estrangeiros que sequer entendem como funcionamos caracteres investem dinheiro para t-los decorando as casas, as roupas, at mesmo oprprio corpo (TANG, 2015). Unger, crtico, comentou sobre essa tendncia com visveldesdm (UNGER, 2004, p. xvi):

    A seduo do kanji tem tambm um aspecto esttico que muitas vezesleva a uma paixo pelos gostos da caligrafia do Extremo Oriente. []Em casos extremos, o aficcionado comea a perceber um padro gran-dioso subjacente a todos os caracteres, ignorado at pelos prprios asi-ticos. Tal qual um jogador de xadrez memorizando aberturas, ele gravacada novo caractere na memria como se estivesse tomando um este-roide para o crebro, ou armazenando uma nova prola de sabedoriaem alguma caixinha de joias mentais. Cedo ou tarde, quase todo es-tudante de uma lngua do Extremo Oriente cai presa de tais sentimen-tos, ou conhece um colega que caiu. Este livro para elesno paradesencoraj-los ou diminuir seu apreo pela grande floresta do kanji,mas sim para qualific-lo, colocando a floresta contra um paisagem maisampla e ensolarada. [] Nada aqui est alm do alcance do leitor leigoespecialmente aquele que est contemplando alguns meses, ou quitoda uma vida, de devoo monstica a um rosrio de caracteres chine-ses.

    Mas Unger no se detm no porqu dessa estranha atrao. O que h na escritakanji que motiva opinies to fortes e to contrrias? Por que os japoneses insistemem continuar usando um sistema to complicado? As desvantagens dessa escrita estoclaras, mas haveria alguma vantagemalgo que s ela pode fazer?

    1.2 Objetivos

    1.2.1 Sintetizar uma descrio abrangente do sistema de escrita japons

    Dada a posio particularmente polmica da escrita japonesa, julgamos frutferofazer uma reviso ampla da literatura acadmica, buscando integrar, em um modeloabrangente, os argumentos e os dados levantados em diversas reas. Nossa sntesebusca explicar como o sistema funciona, no s em seus mecanismos bsicos e regulares,mas tambm as tcnicas incomuns ou excepcionais. Com isso, buscamos tornar claroque pontos o sistema de escrita japons tem em comum com os outros, e em que difere.

    Lurie (2006) observou que a crtica da escrita japonesa est associada a um dis-curso que contrape a lingustica, enquanto disciplina institucional, a outras reas, comoa filosofia da lngua e a crtica literria. Ou seja, muitos dos debates tm um carter dis-

  • Captulo 1. Introduo 26

    ciplinar, sendo enquadrados por linguistas como defesa da verdade cientfica contraataques de fora. Por isso, embora o foco desta dissertao seja a lingustica, serprodutivo considerar tambm trabalhos de fora (incluindo filosofia, teoria literria,estudos culturais, psicologia, neurologia etc.), pois cada perspectiva esclarece aspectosdiferentes da escrita japonesa; a mesma complexidade que, para um linguista, pareceuma representao ineficiente, pode ser, para um literato, riqueza de expresso. Es-peramos que esta reviso abrangente da literatura oferea uma modesta contribuioao dilogo interdisciplinar.

    1.2.2 Explorar as implicaes da escrita japonesa para a teoria lingustica

    Para Joyce (2012), a escrita japonesa de grande interesse terico e merece aten-o especial precisamente por ser incomumente complexa e polivalente. Um modelocientfico precisa tentar descrever todos os dados, inclusive os casos extremos e atpicos.Se um modelo terico da linguagem escrita no d conta de explicar os fatos da escritajaponesa, isso significa que esse modelo demasiadamente limitado. Na hierarquia deChomksy (1969), uma teoria cientfica da linguagem precisa buscar ser descritiva eexplicativa: com o que quer dizer, precisa descrever as formas que o falante produze deixa de produzir (adequao descritiva), e tambm os mecanismos que permitemao falante adquirir essa capacidade (adequao explicativa; pp.1827). Aplicandoos mesmos princpios teoria da escrita, conclui-se que uma boa teoria precisa, nomnimo, ser capaz de descrever todas as formas de escrita empregadas pelos seres hu-manos. Sem essa base, no h chance de alcanar o nvel explicativo, que o que possuimaior poder preditivo enquanto teoria cientfica (p.26).

    Nesta dissertao, comparamos duas propostas tericas opostas: a de que a es-crita seria essencialmente uma transcrio da lngua falada; e a de que a escrita seriaum sistema autnomo, isto , uma aplicao independente dos princpios da linguagem(ver captulo 2 pgina 31). Argumentamos que as particularidades da escrita japonesaso descritas mais adequadamente pelo segundo modelo, e apresentamos exemplosnos captulos seguintes.

    1.2.3 Investigar possveis vantagens do sistema de escrita japons

    As desvantagens da escrita japonesa esto bem discutidas na literatura lingus-tica (DEFRANCIS, 1989; UNGER, 2004; ERBAUGH, 2002). O que talvez no esteja to claroso os motivos de seu uso continuado. Segundo o argumento de Unger (1996), a es-crita japonesa continua em uso sobretudo por inrcia, somada ao conservadorismo po-ltico. No entanto, como discutido na seo 1.1, a opinio pblica japonesa bastantefavorvel continuidade do sistema, e muitos observadores expressam admirao oufascnio. A permanncia desta escrita deve-se puramente a apegos sociais, culturais

  • Captulo 1. Introduo 27

    e emocionais (MATSUNAGA, 1994, p.138141), ou haveriam vantagens objetivas? Se aescrita fosse substituda por uma mais simples, algo seria perdido? Para esclarecer es-tas questes, analisamos a escrita japonesa quantitativamente (captulo 4), e elencamosexemplos de formas de expresso que s so possveis com os mecanismos prprios aela (5).

    1.3 Metodologia

    Este trabalho emprega trs mtodos:

    Pesquisa bibliogrfica para sntese terica (captulo 3);

    Anlise de corpus (captulo 4);

    E argumentao por meio de contra-exemplos (captulo 5).

    1.3.1 Pesquisa bibliogrfica

    A metodologia principal deste trabalho a sntese terica a partir de pesquisabibliogrfica. Isso consistente com o objetivo de uma dissertao de mestrado, viz., in-vestigar em profundidade a literatura j existente sobre um tema (SIBI/USP, 2009, p.15).Porm, mais do que simplesmente descrever as teorias existentes, buscamos integr-lasem um todo coerente, investido de senso crtico. Apresentamos modelos abstratos e es-tudos concretos sobre a escrita japonesa, buscando sintetiz-los em um todo coerente.Esta sntese compe o captulo 3.

    A escrita japonesa considerada hbrida ou mista, abarcando dois princpios:a representao pelo som e pelo sentido. Pra ilustrar, discutimos primeiro o alfabetodo portugus, como exemplo da escrita pelo som, e a escrita chinesa, como exemploda escrita pelo sentido. A anlise da escrita japonesa ento apresentada como umacombinao de tcnicas presentes em ambas.

    1.3.2 Anlise de corpus

    Uma proposta sob a qual nos detemos mais tempo a afirmao de DeFrancisde que a escrita chinesa seria 66% fontica (DEFRANCIS, 1984, p.109)dado a partirdo qual o autor conclui que todas as escritas so fonticas. Mas e no caso japons? Afim de estimar uma medida semelhante para o kanji, empregamos a anlise estatsticade corpus, apresentada no captulo 4. O corpus escolhido foi a Wikipedia japonesa,por sua acessibilidade, diversidade de tpicos, e magnitude (mais de 2 bilhes de pa-lavras, na edio coletada). As leituras dos caracteres kanji desse corpus, porm, pre-cisaram ser inferidas automaticamente. Usamos para isso a ferramenta Mecab(KUD,

  • Captulo 1. Introduo 28

    2013), cuja taxa de acertos estimada como superior a 96%(MORI, 2011), e que teve osmelhores resultados em nossos testes.19 A anlise em si foi feita com as ferramentasPython(PYTHON FOUNDATION, 2015) e R(R FOUNDATION FOR STATISTICAL COMPUTING,2015). Usamos tambm informaes sobre kanji dos projetos Kanjidic(BREEN et al., 2016)e KanjiVG(APEL et al., 2013).

    O software empregado para medidas empricas est disponvel nos arquivos in-cludos com esta dissertao, e tambm no endereo , de forma livre e aberta ao pblico. Buscamos com isso estimular testesde reprodutibilidade, e tambm disponibilizar para outros usos ferramentas auxiliaresque foram criadas para nossa anlise.

    1.3.3 Coleta de exemplos

    O terceiro mtodo empregado para argumentao terica foi o levantamentode contra-exemplos, no captulo 5. Buscamos apresentar tcnicas expressivas que soparticulares do sistema de escrita japons, e que ilustram limitaes do modelo trans-cricional da escrita (segundo o qual a escrita se limitaria a transcrever a linguagemfalada). No estado atual do processamento automtico de linguagens naturais, no possvel extrair tais exemplos automaticamente; por isso, a coleta foi manual e em pe-quena escala. Buscamos compensar essa limitao selecionando uma amostra eclticae representativa. Para demonstrar que tais tcnicas so inerentes ao sistema, no limita-das a excees ou malabarismos literrios, extramos exemplos de diversos perodos eregistros lingusticos (literatura, cultura popular, textos acadmicos, propaganda etc.).Esses exemplos foram organizados de forma a propor uma classificao e terminologiapara tcnicas de expresso da escrita em kanji.

    1.4 Convenes

    Por se tratar de um trabalho sinttico sobre teoria lingustica, empregamos grandenmero de convenes. Esta seo lista todas elas, como referncia. Alm disso, quandouma notao tcnica empregada pela primeira vez, ela acompanhada por uma nota(re)introduzindo-a brevemente.

    Ao introduzir e definir um termo tcnico, marcamo-lo em negrito. Os termosassim destacados esto reunidos no no Glossrio de Termos Tcnicos (pgina 175).

    Termos estrangeiros esto grafados em itlico. Exceto quando notado, os termosso do japons. Quando do primeiro uso de cada expresso, uma traduo ofere-cida entre aspas. Estas tradues esto reunidas no Glossrio de Termos Estrangeiros19 Agradeo ao prof. Jim Breen, do projeto edict, pela orientao na escolha de software.

    http://namakajiri.net/letras/mestrado2016http://namakajiri.net/letras/mestrado2016
  • Captulo 1. Introduo 29

    (pgina 183).

    Sons lingusticos esto representados pelo Alfabeto Fontico Internacional (ipa,sigla consagrada, do ingls International Phonetic Alphabet). Para uma descrio com-pleta desta notaco ver IPA (1999), ou manuais de introduo lingustica geral, comoe.g. Tsujimura (2006). Neste padro, transcries fonmicas so representadas entrebarras, como em /ato/; e transcries fonticas, entre colchetes, como em [at] (verseo 3.2.1 para uma explicao do que so transcries fonticas e fonmicas).

    Letras impressas no papel normalmente representam sons ou palavras. Porm,em um trabalho sobre a escrita em si, com frequncia necessrio discutir as prpriasmarcas grficas, e no o que representam. Para fazer referncia aos sinais grficos,citamo-los entre aspas angulares, seguindo o padro empregado por Rogers (ROGERS,2004) e outros autores da rea. Por exemplo: a grafia de /konserto/ pode ser consertoou concerto. Porm, ao citar caracteres sino-japoneses em texto corrido em portu-gus, omitimos as aspas, por legibilidade. Por exemplo: O caractere tem 11 leiturasdiferentes.

    Para representar o japons moderno no alfabeto romano, usamos o padro es-tilo Hepburn (Hebon-shiki), amplamente usado em textos de lngua europia (HEPBURN,1872).

    Os sons do japons antigo esto descritos seguindo a reconstruo e a notaode Frellesvig(FRELLESVIG, 2010).

    Embora popularmente se fale em lngua chinesa, do ponto de vista lingus-tico o chins no uma lngua, mas sim uma famlia de lnguas(DEFRANCIS, 1984; MAIR,1991). Nesta dissertao, o termo chins empregado neste sentido lingustico, comoum termo genrico para a famlia inteira, em suas variaes histricas e geogrficas. Pa-lavras do chins em geral sero apresentadas em duas verses: na lngua-padro mo-derna ( Ptnghu), baseada no mandarim (termo pelo qual a designaremos); eno chins antigo (Old Chinese, Shngg-hny). O mandarim est representadona transcrio oficial da China, o pnyn (GB, 2012; SHIBLES, 1994), descrito no Apn-dice C pgina 184. O chins antigo est transcrito seguindo a reconstruo e notaodo Old Minimal Chinese de Schuessler (2007), escolhida por sua sobriedade (Schuesslerlimita-se s reconstrues mais bem estabelecidas e pouco controversas).

    Tradues de morfemas (glosas morfolgicas) seguem o padro Leipzig (LEIP-ZIG, 2008; HASPELMATH; SIMS, 2002, 2729). Um exemplo deste padro se segue:

    (1.1) yuk-uvai-adn

    kawario

    nogen

    nagar-efluir-nmlz

    watop

    O fluxo do rio que corre

  • Captulo 1. Introduo 30

    O padro Leipzig funciona da seguinte forma:

    A primeira linha apresenta a grafia japonesa. A escrita japonesa normalmenteno usa espaos, mas ns acrescentamos espaos separando as palavras. Usandoos espaos, as palavras so alinhadas verticalmente nas trs primeiras linhas.

    A segunda linha transcreve o japons em romanizao Hepburn (no caso do ja-pons clssico, transcrevemos a pronncia moderna padro). Os morfemas estoseparados por hfens, e correspondem s glosas da linha 3.

    A terceira linha traduz morfema por morfema. A segmentao corresponde exa-tamente da linha 2. Funes gramaticais so notadas pelas siglas do padroLeipzig; as siglas usadas nesta dissertao esto reproduzidas pgina 11. Noexemplo acima, as siglas adn, gen, nmlz e top denotam, respectivamente: adno-minal, genitivo, nominalizador, e tpico.

    A quarta linha, entre aspas, apresenta uma traduo natural livre.

    Note que no separamos os morfemas por hfens na primeira linha. Isso porquea escrita japonesa nem sempre permite separar os morfemas graficamente. Porexemplo, na frase acima, a palavra yuk-u tem uma raiz terminada em consoante,o que no representvel em escrita japonesa; os caracteres , yu.ku, corres-pondem cada um a uma slaba inteira, de forma que impossvel separar yuk- naprimeira linha. Tambm existem caracteres kanji que expressam mais de um mor-fema, como kami-nari divino-grito = trovo. Por isso, a primeira linha no analisada morfologicamente. Quando relevante, discutiremos no texto o quecada caractere representa.

  • 31

    2 Fundamentos tericos: Duas teorias da es-

    crita

    2.1 A primazia da fala

    Qual a relao entre a escrita e a fala? Este captulo introduz duas abordagenstericas opostas, que no decorrer desta dissertao sero contrastadas tomando o japo-ns como estudo de caso.

    Segundo Kuhn (1996), o progresso da cincia se d por uma sucesso de mode-los de trabalho, chamados paradigmas.1 Os paradigmas so estudos influentes, cujomtodo torna-se um exemplar a ser seguido por outros pesquisadoresum exemplode como fazer cincia. Cada paradigma implica uma teoria que explica determinadosfatos, e tambm um programa de pesquisa que nortear o que pesquisar daquele pontoem diante.

    No paradigma atualmente dominante na lingustica, associado a Chomsky e es-cola gerativista, a linguagem considerada uma capacidade inata da espcie humana,geneticamente pr-configurada na estrutura cerebral(CHOMSKY, 2004; PINKER, 2010).Uma evidncia importante para essa teoria a aquisio lingustica: todos os bebsadquirem espontaneamente qualquer lngua a que sejam expostos, independente dahabilidade individual, e sem precisar de nenhuma explicao explcita sobre a gram-tica (GLEITMAN; NEWPORT, 1995). Esse processo dito natural de aquisio, porm, sse d atravs da fala sonora ou dos gestos manuais (no caso das lnguas de sinais); enunca atravs da escrita. A escrita precisa ser aprendida mais tarde, aps a aquisio dafala, com instruo explcita e esforo consciente. Por isso, linguistas desta orientaorejeitam expresses como linguagem escrita; a escrita no faria parte da capacidadebiolgica inata chamada linguagem. A linguagem propriamente dita seria apenasa fala, definida como a capacidade natural que vemos manifesta em voz ou gesto; en-quanto que a escrita seria meramente um artefato cultural de segunda ordem, uma re-presentao indireta da fala (ARONOFF, 1985, p.28; PINKER, 2010, p.2).2 Este princpio chamado de primazia da fala (LYONS, 1972; DEFRANCIS, 1989, pp.217218).

    O princpio da primazia da fala sustentado pelo pressuposto biolgico do para-digma gerativista. A proposta que a fala seria de alguma forma primria em relao escrita possui ainda outros argumentos. Lyons (1972) rene os principais:1 Nesta dissertao, o negrito denota termos tcnicos, que podem ser consultados no Glossrio prprio.2 Para uma opinio contrria dentro da lingustica gerativa, ver Aaron e Joshi (2006).

  • Captulo 2. Fundamentos tericos: Duas teorias da escrita 32

    Todo ser humano precisa aprender a fala antes da escrita (primazia ontogentica);

    Toda cultura conhecida desenvolveu fala antes da escrita (primazia filogentica);

    A escrita seria uma representao da fala (primazia estrutural);

    E a fala serviria a propsitos mais amplos que a escrita (primazia funcional).

    O modelo da primazia da fala remonta a Aristteles (sculo iiia.c.), para quempalavras faladas so smbolos da experincia mental, e palavras escritas so smbolosdas palavras faladas(ARISTTELES, 2009, parte1). No estabelecimento da lingusticamoderna, no comeo do sculo xx, Saussure definiu como objeto lingustico a palavrafalada, e afirmou ainda que a nica razo de ser da palavra escrita representar aquela(SAUSSURE, 2008, p.34). Este pressuposto se manteve entre os estruturalistas america-nos; Bloomfield (1933) famosamente definiu que (p.21)

    A escrita no linguagem, mas meramente uma forma de gravar a lin-guagem por meio de sinais visveis.

    Ou seja, a escrita seria, nas palavras do ttulo do livro de DeFrancis sobre o tema,a fala tornada visvel(DEFRANCIS, 1989).

    Podemos representar este modelo pelo seguinte diagrama:

    Figura 1 Modelo da primazia da fala

    2.2 A autonomia da escrita

    A postura terica oposta primazia da fala a da autonomia da escrita, asso-ciada primariamente escola funcionalista de Praga. Para os linguistas do paradigmafuncional, a estrutura da linguagem est inter-relacionada s suas funes; e a funo daescrita radicalmente distinta da funo da fala (VACHEK; LUELSDORFF, 1989; HALLIDAY,2014). A fala, em seu uso natural, destina-se interao conversacional e efmera; en-quanto que a escrita foi criada para a comunicao persistente, de um para muitos, comaudincia indeterminada. Por exemplo, os sinais de parnteses podem ser entendidos

  • Captulo 2. Fundamentos tericos: Duas teorias da escrita 33

    como ferramentas para criar textos alternativos, em um esforo para atender s necessi-dades de diferentes audincias (Vachek, op.cit.; cf. tambm Nunberg (1990, pp.104).Considere as seguintes frases escritas:

    (2.1) Os sinais de pontuao no necessariamente correspondem prosdia (o ritmoe entonao da fala).

    a. Os sinais de pontuao no necessariamente correspondem prosdia.

    b. Os sinais de pontuao no necessariamente correspondem prosdia,isto , ao ritmo e entonao da fala.

    (2.2) Os sinais de pontuao no necessariamente correspondem ao ritmo eentonao da fala (a prosdia).

    a. Os sinais de pontuao no necessariamente correspondem ao ritmo eentonao da fala.

    b. Os sinais de pontuao no necessariamente correspondem ao ritmo eentonao da fala, isto , prosdia.

    No exemplo 2.1, se os parnteses forem deixados de lado (como em 2.1.a), temosum texto primrio que assume que o leitor sabe o que prosdia. No exemplo ex-tenso, 2.1.b, o escritor acrescentou uma definio, e est portanto supondo que o leitorno conhea a palavra. O exemplo 2.1, com parnteses, uma espcie de representa-o simultnea de a. e b. Para o leitor que conhece o sentido da palavra, os parntesesservem como um sinal de que aquela explicao bsica, que seguro passar por elasem dar muita ateno.

    J o exemplo 2.2 funciona de forma inversa. O autor assume que a audinciaprincipal no conhece a palavra prosdia, ou que conhec-la no importante paraaquele texto. Para esses leitores, a informao entre parnteses pode ser deixada delado, criando uma leitura como 2.2.a. Mas, caso um leitor j conhea o conceito deprosdia, til apontar que disto que o texto est tratando, e para esse leitor o textoequivale ao 2.2.b.

    Em outras palavras, a escolha entre o que vai dentro e fora dos sinais de parnte-ses relaciona-se audincia que o escritor tem em mente. Nesta e em outras tcnicas, aescrita caracteriza-se por buscar a clareza imediata de sentido, a viso panormica (sur-veyability), a busca espacial de informao (Vachek, op.cit.). Para isso, a escrita escora-se no suporte bidimensional (o plano da pgina), fundamentalmente mais panormicoque a sequncia linear de sons que perfaz a fala. Seria por esse motivo, por exemplo,que preferimos estudar lingustica em livros-texto do que por meio de gravaes de u-dio, ainda que estas tenham se tornado tecnologicamente viveis; o meio escrito mais

  • Captulo 2. Fundamentos tericos: Duas teorias da escrita 34

    claro para se obter uma viso geral, para reler um pargrafo at compreend-lo, para abusca de informaes especficas. Esta distino funcional faria com que, em socieda-des letradas, a escrita evolusse para alm da simples representao da fala, tornando-seum sistema autnomo com caractersticas formais prprias(VACHEK; LUELSDORFF, 1989,p.18;5660).

    Tambm para M.A.K. Halliday, a escrita um sistema lingustico de primeiraordem, no uma transcrio da fala. Em sua gramtica funcional (HALLIDAY, 2014), Hal-liday divide a linguagem em estratos, dentre os quais esto a fonologia e a ortografia(grafologia)dois elementos no mesmo nvel, sem que a ortografia seja dependenteda fonologia. Isso porque, embora haja analogia entre a fala e a escrita, a analogiano completa, e Halliday reconhece a existncia de estruturas gramaticais prprias escrita:

    A escrita no a representao do som da fala. Ainda que todo sistemade escrita esteja relacionado ao sistema sonoro de sua lngua de formasistemtica, no-aleatria [] essa relao no direta. H outro nvelde organizao na linguagem, e tanto o sistema sonoro quanto o escritorelacionam-se a ele. Trata-se do nvel da lexicogramtica.3 O sistemasonoro e a escrita so os dois modos de expresso pelos quais a lexico-gramtica de uma lngua pode ser representada, ou realizada.Um vez que a linguagem evoluiu na espcie humana enquanto fala, todosistema de escrita originalmente parastico fala. [] Mas, quandouma escrita evolui, ou, no nvel individual, depois que uma criana emletramento termina por domin-la e pode us-la na prtica, a escritatoma vida prpria, alcanando diretamente a lexicogramtica da lingua-gem ao invs de acess-la atravs do som; e esse efeito reforado pelacomplementariedade funcional entre fala e escrita.

    Na gramtica funcional de Halliday, a grafologia sempre considerada comouma alternativa em p de igualdade com a fonologia, a tal ponto que a terminologiado autor redefine os termos frase [clause ] como uma categoria abstrata da gramtica,e orao [sentence ] como uma estrutura especfica da escrita, anloga frase masno idntica (HALLIDAY, 2014, p.68;436).

    Na mesma linha de Halliday, Geoffrey Nunberg descreve com mais detalhes al-gumas dessas estruturas abstratas prprias da escrita, analisando sua sintaxe especfica,subjacente ao sistema de pontuao; e encontra ali diferenas importantes com a sintaxeda lngua falada(NUNBERG, 1990). O autor observa que, mesmo que a escrita no sejaparte da capacidade natural da linguagem, suas estruturas artificiais tambm podemser analisadas com as ferramentas tericas da lingustica. Isso possvel porque, aindaque seja uma inveno cultural, a escrita uma aplicao da capacidade biolgica dalinguagem (NUNBERG, 1990, p.17):3 Halliday prope que, no nvel profundo, no h distino entre o lxico (o conjunto de palavras) e a

    gramtica (as regras da lngua); da o termo.

  • Captulo 2. Fundamentos tericos: Duas teorias da escrita 35

    Quero dizer com isto que o sistema [de estruturas especficas escrita]surgiu como uma espcie de aplicao dos princpios de design da lin-guagem natural, tomados como ferramenta para impor alguma ordemno contedo lexical dos textos escritos. Quando visto como um todo,o sistema no tem anlogos na lngua falada (embora algumas de suasfunes se assemelhem a vrios mecanismos da fala). O sistema surgiu,no decorrer da padronizao da escrita, em resposta s necessidades co-municativas especficas da escrita, e aproveitando-se dos recursos queapenas a notao grfica oferece. A escrita o que se segue, grosso modo,do ato de assentar a linguagem [setting language down].

    Por exemplo, uma distino simples que Nunberg ilustra como especfica da es-crita (adaptada ao portugus) :

    (2.3) a. O chefe mandou um recado; todos os funcionrios voltaram para casa.

    b. O chefe mandou um recado: todos os funcionrios voltaram para casa.

    c. O chefe mandou um recadotodos os funcionrios voltaram para casa.

    No exemplo 2.3.a, a segunda frase, todos os funcionrios voltaram para casa,nunca corresponde ao contedo do recado; no exemplo 2.3.b, ela precisa corresponder;e no exemplo 2.3.c, ambos os sentidos so possveis. A distino marcada unicamentepelo sinal de pontuao, e no corresponde a nada na falaao contrrio do que s vezes sugerido, a pontuao no se limita a representar a prosdia falada. O argumento deNunberg que, embora esse tipo de notao no tenha correspondente na fala, aindaassim ele trabalha com estruturas sintticas e semnticas tipicamente lingusticas, e quepodem ser estudadas por tcnicas lingusticas.

    Nesta dissertao, classificaremos modelos como os de Vachek, Halliday e Nun-berg como caracterizados pelo princpio da autonomia da escrita, em oposio prima-zia da fala de Aristteles, Bloomfield ou DeFrancis. Podemos comparar os dois modelosesquematicamente pelos diagramas:

  • Captulo 2. Fundamentos tericos: Duas teorias da escrita 36

    Figura 2 Comparao entre os modelos da primazia da fala e da autonomia da es-crita

    Modelo da primazia da fala:

    Modelo da autonomia da escrita:

    Os defensores da primazia da fala esto, claro, cientes de que h elementos naescrita que no correspondem a nada na fala (tais como a pontuao, a tipografia, a dis-tino de homfonos, a organizao bidimensional em tabelas, as notas de rodap etc.).Similarmente, os tericos da autonomia da escrita reconhecem a primazia ontogenticae filogentica da fala (ou seja, sua necessria antecedncia na espcie e no indivduo),e a origem da escrita como registro da fala. A diferena est na importncia dada aoselementos que so especficos escrita: no modelo da primazia da fala, tais elementosautnomos so considerados perifricos ou excepcionais, e a escrita seria fundamental-mente um registro em segunda mo da fala (primazia estrutural). J para o modelo daescrita autnoma, a frequncia e importncia desses elementos provam que a escritaopera com a prpria linguagemalm da fala.

  • 37

    3 Som e sentido na escrita: a fonografia e a

    morfografia

    3.1 Introduo

    Este captulo tem o objetivo de descrever como funciona o sistema de escritajapons, e qual a sua relao com a lngua falada. Para isso, ser proveitoso compar-los escritas alfabtica e chinesa, que sero analisadas primeiro.

    A escrita japonesa baseada na combinao de dois tipos de sinais grficos: osque representam apenas sons, e os que tambm especificam sentidos. Na seo 3.2,faremos uma recapitulao sobre as unidades lingusticas de som e sentido: os fone-mas e os morfemas. Na seo 3.3 faremos uma descrio do alfabeto portugus, comoexemplo de grafia pelo som. Na seo 3.4 estudaremos a escrita chinesa (fonte e baseda japonesa) como uma introduo grafia do sentido. Porm, como veremos, a grafiaportuguesa tambm faz referncia ao sentido, e a chinesa tambm se baseia no som;parece ser difcil ou impossvel construir uma escrita usvel que se escore puramenteem um ou outro.1 Por fim, na seo 3.6 apresentaremos o japons como uma escritamistaisto , com especializao grfica: um tipo de sinal visual depende apenas dosom, e outro carrega tambm informao de sentido.

    3.2 A dupla articulao da linguagem: fonemas e morfemas

    Podemos considerar a linguagem como um sistema de signos, comparvel aosistema dos sinais de trnsito ou dos smbolos cartogrficos. Um signo possui doiselementos: um significante, isto , uma forma que o identifica; e um significado atri-budo quela forma. Por exemplo, nos mapas, o desenho

    um significante cujosignificado aqui h um restaurante. A palavra restaurante, no portugus falado,pode ser entendida como um signo semelhante, cujo significante (forma) um padrosonoro prprio a esta palavra, e cujo significado a idia ou conceito de restaurante.Este o modelo semitico introduzido por Sausurre na aurora da lingustica moderna(SAUSSURE et al., 2011).

    Um sistema que permita a combinao de signos dito articulado. Por exem-plo, uma placa de trnsito com os sinais

    combina o sentido de restaurante ao1 Para uma discusso, ver Sampson (1994); DeFrancis e Unger (1994). Para um possvel exemplo de

    escrita puramente simblica, ver Rogers (2004), pp.263268, sobre o sistema artificial Blissymbols; eUnger (2004) para uma crtica.

  • Captulo 3. Som e sentido na escrita: a fonografia e a morfografia 38

    de curva direita, gerando um sentido composto restaurante virando direita. Alinguagem, naturalmente, articulada: podemos combinar as palavras em palavrasmaiores (como parapeito), frases, oraes, perodos etc., que chamaremos generica-mente de enunciados.

    Alm disso, se compararmos os signos da linguagem aos signos em geral, des-cobriremos nos signos lingusticos uma caracterstica particular: seus significantes socompostos por componentes menores, recorrentes, que podem ser recombinados infini-tamente. Por exemplo, as palavras ave, av e av comeam com os mesmos doissons, sendo distinguidas apenas pelo terceiro. Note que, ao contrrio dos significantesinteiros, esses sons individuais no carregam significado. No o caso que os sons -e, - e - nestas palavras signifiquem um pssaro ou um ancestral masculino oufeminino. A sequncia sonora av tem um significado, mas a unidade isolada -no. O fato de no carregarem sentido permite o reuso; por exemplo, os mesmos trssons que distinguem ave, av e av tambm distinguem de, do e d.

    Ou seja, a linguagem articulada em dois nveis:

    1. composta por signos no sentido de Sausurre, cada um com um significante (som)associado a um significado (sentido);

    2. E, alm disso, cada significante composto por uma sequncia de elementos (sons)menores, recorrentes, que no tm significado, mas que servem para distinguir ossignificantes uns dos outros.

    Esta uma caracterstica econmica e produtiva: combinando um pequeno n-mero de componentes unitrios, podemos criar um enorme nmero de signos. Almdisso, os prprios signos podem se recombinar em enunciados maiores, como frases,discursos e textos. A combinatria da linguagem comparvel talvez a um jogo deblocos de montar, no qual as peas representam unidades como soldado, carrinho,rvore etc.; e, alm disso, essas peas em si so compostas por pecinhas menores, queno representam nada, mas podem ser reaproveitadas para criar novas peas. AndrMartinet famosamente chamou esta propriedade de dupla articulao da linguagem(MARTINET, 1984).

    Os sons unitrios que distinguem signos so chamados fonemas, e os signoselementares que carregam sentido so chamados morfemas (op.cit.). As escritas domundo so baseadas na representao desses dois nveis de articulao. Para entendero que isto quer dizer, vamos rever, nas duas sees a seguir, como funcionam os fonemase morfemas.2

    2 O que apresentamos aqui so definies tradicionais na lingustica, que podem ser encontradas emqualquer manual introdutrio; a nossa discusso baseada em Fiorin (2008), IPA (1999), e Haspel-

  • Captulo 3. Som e sentido na escrita: a fonografia e a morfografia 39

    3.2.1 Blocos elementares da linguagem: os fonemas

    Considere as seguintes palavras do portugus:

    (3.1) V

    L

    J

    Ch

    Ao pronunciar essas palavras, o som que produzimos no final de cada uma, oa, idntico. Descrito de outra forma, os gestos que produzimos para emitir essaspalavras terminam num mesmo gesto bsico, o de abrir bastante a boca e vibrar ascordas vocais. J o som que precede o a diferente em cada palavra, correspondendoa diferentes gestos. Por exemplo, na palavra v, o lbio inferior apia-se nos dentesenquanto o ar passa por eles; enquanto que na palavra l a ponta da lngua que semovimenta, detendo-se no cu da boca atrs dos dentes frontais (a regio do alvolo).Essa diferena de gesto causa uma diferena no som, que serve para distinguir umapalavra da outraou seja, o som distinto muda o sentido de v para l.

    Compare isso com o som final da palavra mar. Dependendo da regio doBrasil, a pronncia deste som diferente. Na capital de So Paulo, a pronncia maisprestigiada com um toque da ponta da lngua no alvolo, como na palavra Maria.Mas, no interior do Estado, mais comum um som produzido dobrando a ponta dalngua para trs, sem tocar o cu da boca (popularmente conhecido como R caipiraembora este som tambm ocorra na capital). J no Rio de Janeiro, a ponta da lngua no usada; ao invs disso, ergue-se o fundo da lngua, alterando a passagem do sopro dear, e gerando o R carioca.

    Cada som distinto que uma lngua usa chamado um fone (do grego phn,som). Observe que, no exemplo da palavra mar, mudar os fones no mudou osentido; embora os fones sejam bem diferentes, todos eles so entendidos como se re-ferindo mesma palavra. Ou seja, a palavra mar aceita todo um conjunto de sons(fones) distintos na ltima posio (o R paulista, caipira, carioca). Um con-junto de fones que desta maneira considerado como sendo o mesmo significante chamado de fonema. Ou seja, um fonema um conjunto de sons (fones) que tm omesmo valor em uma determinada lngua, como os vrios sons de R do portugus.Observe que:

    math e Sims (2002). Porm, estes modelos tm seus detratores, e algumas teorias recentes propemodelos radicalmente diferentes para a fonologia e a morfologia . Para os propsitos de nosso traba-lho, as definies tradicionais, que so as mais difundidas, nos sero suficientes.

  • Captulo 3. Som e sentido na escrita: a fonografia e a morfografia 40

    No exemplo 3.1, v/l/j etc., trocar os sons mudou o sentido. Dizemos porisso que os fonemas foram alterados (ou seja, os fones pertencem a fonemas dife-rentes).

    No exemplo da palavra mar, trocar os sons no mudou o sentido. Dizemos queforam alterados os fones, mas sem alterar o fonema (ou seja, os fones pertencemao mesmo fonema).

    Os vrios fones possveis de um mesmo fonema so chamados alofones (dogrego llos, outro + fone). A distino entre um fone e outro dita fontica, e en-tre um fonema e outro fonmica (ou fonolgica). Segue-se que distines fonticasno alteram o sentido, mas as fonmicas, sim. No Alfabeto Fontico Internacional (ipa),o nvel fontico representado entre colchetes ([]), e o fonmico, entre barras (//). Porexemplo:

    A diferena entre v e l fonmica, ento aparece na notao entre barras:/va / vs. / la /.

    A diferena entre as trs pronncias de mar apenas fontica, ento no aparecena notao entre barras; todas as variantes de pronncia seriam representadascomo /mar /. A diferena s aparece na notao em colchetes: paulista, caipirae carioca seriam [ma], [ma] e [max], respectivamente. Dizemos que [ma], [ma]e [max] so realizaes possveis de /mar /.

    Cada lngua pode empregar fones diferentes; por exemplo, a vogal portuguesaem mo no usada em ingls, e a consoante inglesa de think no usada em por-tugus. Uma variao mais sutil entre as lnguas vem do fato que, mesmo quando osfones so os mesmos, cada lngua pode traar linhas distintas para agrup-los em fo-nemas. Isto , uma variao sonora que em uma lngua s fontica (que no muda osentido) em outra pode ser fonmica (mudar o sentido). Por exemplo:

    Em romeno, a palavra dur com um R paulista, [du], significa duro; e amesma palavra com um R carioca, [dux], significa fantasma. Em romeno, /r / e/x / (o R carioca) so fonemas diferentes; mas em portugus, [] e [x] so alofonesdo mesmo fonema, /r /.

    Em japons, o som l de cala pertence ao mesmo fonema que o r de cara,de forma que os sons [kaa] e [kala] so entendidos como variaes da mesmapalavra, kara (a partir de; porque). Ou seja, em portugus, / l / e /r / so fonemasdiferentes, mas em japons, [l] apenas um alofone do fonema /r /.

  • Captulo 3. Som e sentido na escrita: a fonografia e a morfografia 41

    Em portugus, a palavra t (forma coloquial de estou) pode ser pronunciadacurta ou longa, sem mudar o sentido; ou seja, /to / pode ser realizada indiferen-temente como [to] ou [to], onde [o] simboliza um som mais longo. Em japons,o som longo mudaria o sentido; por exemplo, de porta /to / para torre /to /. Em portugus, a durao das vogais no fonmicano muda sentidomas em japons, sim.

    3.2.1.1 Variao fontica condicionada e livre

    Considere a palavra fofo. Seus fonemas so transcritos como / fofo /; mas, napronncia mais comum no Brasil, as vogais so realizadas de forma diferente no n-vel fonmico, que pode ser transcrito como [fof]. O ltimo smbolo representa o somsemelhante a um [u] que os brasileiros produzem3 ao pronunciar o /o / em fim de pala-vra. Isto , o fonema /o / possui dois alfonos (duas realizaes possveis), [o] e [],4 epodemos prever quando cada uma aparece:

    1. Em final de palavra, /o / se realiza como []2. Caso contrrio, /o / se realiza como [o]

    Quando a variao fontica determinada pelo contexto, como no exemplo acima,dizemo-la condicionada. Quando no h uma regra clara que permita prever qual sero alfono utilizado, a variao fontica chamada livre. Descrevemos acima trs va-riantes do /r / em fim de slaba, consideradas carioca, paulistana e caipira ([x], [] e[]); mas no raro que, por exemplo, um mesmo falante empregue tanto a variantecaipira quanto a paulistana. Como no h um contexto lingustico simples quedetermine regularmente qual o alfono empregado, chamamos esse caso de variaolivre. Muitas vezes a variao livre no completamente livre, mas sim determinadapor variveis externas, como o formalismo da situao, a audincia, o dialeto etc.; masisso parece ser um fenmeno diferente do condicionamento lingustico simples, comoo caso do /o / em fim de palavra.

    3.2.2 Elementos bsicos de sentido: os morfemas

    No comeo da seo 3.2 (p.37), descrevemos a linguagem (seguindo Saussure)como um sistema de signos, isto , pares de significante e significado. At agora, temosusado as palavras como exemplos de signos. Contudo, as palavras podem ser signoscompostos; elas no so os signos mais fundamentais da linguagem. Considere:3 Exceto em alguns dialetos, como os do Sul.4 Por que um smbolo [] distinto de [u]? Quem leitor do portugus pensa nesse som em termos da

    letra u; mas, se ouvimo-lo com ateno, notaremos que ele no to pronunciado quanto a vogalfinal de e.g. caruru. O smbolo [] representa uma vogal cujo som intermedirio entre [o] e [u].

  • Captulo 3. Som e sentido na escrita: a fonografia e a morfografia 42

    (3.2) Paraquedas

    Para-brisa

    Para-lama

    Para-raiosClaramente essas palavras so compostas por mais de uma unidade de sentido.

    Todas comeam incorporando o signo para; ou seja, todas comeam pelos fonemas(significante) /para /, que em todas elas carrega o significado de parar, interromper,proteger de.

    Podemos entender tais palavras como sendo composies de duas outras. Na or-tografia portuguesa, essa composio pode ser indicada pelo sinal de hfen, ou no, deforma arbitrria; dentre as palavras no exemplo 3.2 acima, apenas paraquedas noleva hfen, segundo edio atual das normas ortogrficas (ABL, 2009)embora clara-mente a estrutura de paraquedas seja perfeitamente anloga s demais.

    Agora considere as seguintes palavras:

    (3.3) Paraquedismo

    Trapezismo

    Maratonismo

    (3.4) Paraquedista

    Trapezista

    Maratonista

    Os exemplos em 3.3 referem-se todos a alguma atividade ou prtica, e todos ter-minam em -ismo. J os exemplos em 3.4 referem-se todos aos respectivos praticantesou aderentes, e as palavras so semelhantes, sempre trocando -ismo por -ista.

    Ao contrrio de para ou quedas , -ismo e -ista no so palavras: es-tas sequncias no aparecem sozinhas, mas somente como parte de palavras maiores.Mas, claramente elas so signos: so sequncias de fonemas iguais que carregam ummesmo sentido. Ou seja, podemos dividir a palavra paraquedismo em dois signos,e novamente subdividir o primeiro signo:

    Tabela 3 Subdiviso da palavra paraquedismo em signos

    Significante Significadoparaqued- paraquedas

    para- parar algo, proteger dequed- queda

    -ismo prtica de

  • Captulo 3. Som e sentido na escrita: a fonografia e a morfografia 43

    Note que cada um desses signos aparece em outras palavras, carregando o mesmosentido: qued-, por exemplo, aparece em queda, quedar, quedando etc. Po-rm, no possvel dividir qued- em signos menores. No o caso que que- oud- carreguem um sentido prprio, recorrente em outras palavras.

    Ou seja, sequncias de fonemas como para e qued- so sequncias mnimasque carregam sentido. Qualquer sequncia menor no tm sentido prprio, i.e. no um signo.5 Chamamos tais signos mnimos de morfemas. Um morfema pode serdescrito como uma sequncia de fonemas tal que:

    1. A sequncia possui sentido prprio, e

    2. Nenhuma sub-sequncia possui sentido prprio.

    Morfemas como para, que ocorrem como palavras independentes, so ditoslivres. Morfemas como -ista, que s aparecem como parte de outras palavras, soditos presos.6

    Quando queremos chamar a ateno para os morfemas de uma palavra, sepa-ramo-los por hfens, independentemente da norma ortogrfica (cf. padro Leipzig pgina 29). Por exemplo, para-qued-ista.

    Algumas palavras possuem variaes em seu som e sentido, que so presentestambm em outras palavras da mesma categoria. Considere:

    (3.5) Gato

    Gata

    Gatos

    Gatas

    (3.6) Menino

    Menina

    Meninos

    Meninas5 Ver contudo nota sobre simbolismo sonoro pgina 23.6 Todos os termos e conceitos recapitulados nesta seo podem ser encontrados com explicaes mais

    detalhadas na op.cit., Haspelmath e Sims (2002), ou em outros manuais de morfologia.

  • Captulo 3. Som e sentido na escrita: a fonografia e a morfografia 44

    (3.7) Afinado

    Afinada

    Afinados

    Afinadas

    (3.8) Desafinado

    Desafinada

    Desafinados

    Desafinadas

    Todas as palavras acima possuem uma sequncia idntica no comeo, comogat- ou meni