O Sofá - Crébillon Fils

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Clássico - Literatura Libertina

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Condenado por decreto divino a reencarnar sucessivas vezes como um sofá, o narrador deste livro tem de sustentar e dar apoio, literalmente, a diversos tipos de aventuras amorosas e sexuais, presenciando cenas que vão do alegre ao trágico. De quebra, compartilha com os leitores as mais variadas histórias de sacanagem, além de desmascarar a falsa virtude, a hipocrisia, o instinto, a vaidade, a fantasia e outros tantos vícios humanos. Ele só vai encontrar a libertação quando acomodar o casal perfeito, isto é, duas pessoas verdadeiramente apaixonadas. Com este ponto de partida e uma ambientação digna de As mil e uma noites, Crébillon Fils dá estocadas de aparente imoralismo e impertinência, conduzindo a trama a um desfecho surpreendente. Mas antes de chegar até ele, o leitor vai entender uma das mais famosas máximas do autor – a de que o libertino é, antes de tudo, um impotente – e será levado a uma nova idéia de libertinagem.Junto com Teresa Filósofa, de Boyer D Argens, “O Sofá” é um dos mais importantes clássicos libertinos do século 18.

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PREFÁCIO

Logo de início, pelo seu título, O sofá se impõe como um romancelibertino.Otítulonãomente:nenhumromancedoséculoXVIIInosmantémtão próximos das realidades do amor, dos prazeres, dos mistérios, dasconfissões,dasmisériaspartilhadasnumleito;nenhumevoca,demaneiratão viva e convincente, aquilo que os confessores chamavam de a“veemência” do prazer amoroso. Certamente a obra é audaciosa,plenamente erótica e digna de sua má reputação. Entretanto, ela aultrapassa e de modo paradoxal. Ao colocar como subtítulo de suanarrativa “contomoral”, Crébillon pretendiamesmo ser levado a sério; equando, em sua carta ao lugar-tenente da polícia, em 1742, ele invoca amoralque“tentoudifundiremtodolugar”,certamenteestádeboa-fé.Masninguémpensavaqueessamoraleratiradadopróprioamoresecontinuoua considerá-la, desde La Harpe, como “a arte tão fácil de dissimular asobscenidades”.Anossaépoca,queconheceuareabilitaçãodosÉgarementsdu coeur et de l’esprit, parece reticente em relação ao Sofá. Resta-nos,portanto, perceber a sabedoria que, no Sofá, às vezes guia os gestosamorosos. Algumas pessoas, que não erammaus juízes, a vislumbraram:Voltaire, que chamava Crébillon de “o pai do Sofá”, Diderot, Laclos,Stendhal, que sabiam de cor as suasmelhores páginas. Sem dúvida, elesperceberamaforçadessaobraleve;cabeaindaanósencontrá-la.

Oprojetoélibertinoemtodosossentidosdotermo.Queumnarrador,condenadopordecretodivinoasereencarnaremsofássucessivos,assistaaumaboadezenaderevesesfemininos,alternadamenteagradáveis,bem-sucedidos ou catastróficos, essa ideia é picante. Se ele se aproveita dissopara desvendar todas as artimanhas da falsa virtude, da hipocrisiamundanaoudosescrúpulosreligiosos,istojánosconduzparamaislonge:o instinto, avaidade, a fantasia conduzirãoo seu jogoàs custasdamoralaceita. Se, alémdomais, odestinatáriodo relatoéummonarcabroncoeindiscreto, se os culpados são, de preferência, monges, diretores deconsciência, pessoas da alta sociedade, quase reconhecíveis, o conto setransformaráemsátira.Alibertinagemerótica,oimoralismoaparenteeaimpertinência davam à obra o seu perfume de escândalo; nadamais era

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preciso para condenar o autor. Três meses de exílio para um escritorreconhecido,paraumhomemfrequentadordasociedade,amigodosaltosfuncionários e filho de um dramaturgo célebre, era muito e Crébillonlembrou-sedisso.Duranteosdozeanosqueseseguiram,elenãopublicounada no seu nome; e não mais encontramos, em seus últimos contos, aaudácia tranquila, a verve, a imaginação bem-sucedida de Ecumoire, dosÉgarements ou do Sofá. Com essa derrota termina para Claude Crébillonuma época de livre invenção, de improvisação criadora em que,particularmentenoSofá,elepareceterseabandonado,pararetomarumaexpressãodoNeveudeRameau,a“todaalibertinagemdoseuespírito”.

Essa completa liberdade de um espírito inventivo aparece nacomposição da obra, na qual a ordem e a desordem se sucedem semchoques.Aordeméadeumainvestigaçãosocial,deumromance“delista”.Em 1740, não era raro um narrador fictício conduzir o leitor através dasociedadeafavordeumasériedeintrigasamorosas,eomodelodogênero,ConfessionsduComtede***,deDuclos,encantoudetalformaCrébillonque,dizem, ele desistiu de terminar os Égarements. O cenário oriental,abertamentetomadodasMileumanoites,somentedáaessepercursoumpouco mais de fantasia. Conduzidos por Amanzei, o narrador-sofá,descobrimosportantooamoremdiversascompanhias,asboaseasmás.Odecreto que condena Amanzei aos sofás somente será revogado se doisamantesdeboa-fésederem,mutuamente,nesseleito,assuas“primícias”.A investigação torna-se então busca do amor verdadeiro, através deSodoma e Gomorra. Será essa sociedade corrompida salva pelasobrevivênciamilagrosadonatural?Comonoslembramos,éotemacentraldosBijouxindiscrets,quetantodevemaoSofá;mascertamentenamesmaépoca é a preocupação comum de Crébillon, de Diderot e de Rousseau.Procurando a natureza sob as máscaras da socialidade, Crébillon, à suamaneira,étambémumfilósofo.Entretanto,essainvestigaçãoordenadanãoé o que o apaixona; o realismo social importa-lhe pouco e é num nível“moral” que ele pretende observar as variedades do amor. Sete casaissucessivosnosfarãovislumbraroutrasprofundezas:ahipócritaFatme,emsegredo, se entrega ao seu escravo; Amine, intrépida prostituta, éridicularizada por um administrador não menos abjeto; a doce Fenime,depoisdeoitoanosdevirtude,aceitaapaixãodotímidoZulma;Almaide,aosquarentaanos,deixa-seseduzirpeloseudiretordeconsciência;Zefis,docemente e com ternura, abandona-se a Mazulhim, libertino ameaçadopela impotência, que logo a trai com umamundana depravada, Zulica; eesta,porsuavez,o trai comoseumelhoramigo,Nasses,antesdesever

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humilhadaporambos;caberáaos jovensamantesZeiniseFileasrealizar,sobosolhosdeAmanzei,auniãoperfeitaqueaomesmotempoolibertaeodesespera;poisonarradoracorrentado,repentinamente,apaixonou-seporZeinis e vê consumar-se em si mesmo o que mais temeu, últimametamorfosequedáaocontoumaconclusão inesperada.OqueCrébillonfinalmente descreveu não são as formas convencionais do amor, mas osseusparadoxos.

Ele os encadeia comumaperfeita despreocupação, percorrendoporduasvezesocírculodeintrigasaquesepropôs.Numaprimeiravezpõeemcena as imposturas da falsa virtude, da religião afetada, do esnobismomundano, da galanteria depravada, antesdenos conduzir a umprimeirodesfecho feliz com os amores de Fenime e de Zulma; o sortilégio queamarraAmanzeideveriaserrevogado,mascuriosamentenãooéeoautornada diz sobre isso. Em sete capítulos, que constituem um terço doromance, tudo parece dito. Doravante, o que vai detê-lo é oaprofundamento dos conflitos e o jogo das linguagens hipócritas,prisioneiras de suas próprias convenções. O homem não procura maissenão revelar o desejo e desmascarar as inconsequências do pudorfeminino,enquantoamulhertentadesesperadamenteobteraconfissãodeamorquejustificaráoseurevés.QuersetratededoisseresprofundamentehonestoscomoAlmaideeMocles,oudeperversoscomoMazulhim,ZulicaeNasses, o diálogo se desenvolve ao infinito em curvas deslumbrantes.Crébillon não parece mais se preocupar com o plano e os títulos doscapítulosnãoremetemmaissenãoaoscaprichosdoautor.QuandoiniciaahistóriadeMazulhim,nadamaispareceretê-lo;essacomédiadedevassosedepatetasdesenvolve-seemdezcapítulosencadeados:maisdametadedoromance.SobreumtemaesboçadoporMarivauxnofimdoPaysanparvenu,eledesenvolvecincoouseisvariaçõesquelevamàincandescênciatodasasvirtualidades do conflito. O conto dialogado encontrou definitivamente asuaforma;Crébillonnãoalevarámaislonge.

Uma única pergunta atravessa todas essas intrigas: “Que valor daisatualmente ao amor?” A Zulica e Nasses, que acabam de fazê-la, e estãoprestes a se odiarem, pouco importa; e todos os amantes de Crébillonvoltam a ela sob formas diversas. Para Crébillon o amor é certamente agrandequestãodavidaeoúnico“valor”.Emsuaobranãosevêexistênciaque se deduza de outro princípio, mas onde está a sua verdade? Eledescrevedesvios,designandoassim implicitamenteumcaminhoreto,umeixo de referência, que seria o da sabedoria; mas essa sabedoria jamaisprocederá de outra coisa diferente do próprio amor, cujos caminhos são

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sempre imprevistos. “Somente o amor preside aqui”, escrevia ele noprefáciodosÉgarements;elepoderiadizê-lo,eaindacommaisprecisão,doSofá no qual, por duas vezes, se refere a uma figura perfeita do amorrealizado.Umaprimeiravez,apropósitodosamantesexemplares,Fenimee Zulma, ele evocou a união perfeita do desejo e do sentimento, à qualconvém os termos de “avidez”, de “volúpia”, de “extrema ternura”, de“verdadeiro delírio”, de confiança e de fidelidade. Toda a riqueza dasrelaçõeshumanasseresumenumaligaçãocomoessa:“Elesunirammesmoa todas as delicadezas, a toda a vivacidade da paixão mais ardente, aconfiança e a igualdade da amizade mais terna...” Neste ponto desuspensão, Crébillonparece, numaprimeira vez, terminar a narração.Noúltimocapítuloreencontraremosessamesmauniãododesejo,daternuraeda imaginaçãoapaixonada,masmenosanalisadae comoqueenvoltanasilusões da juventude. A conclusão, entretanto, anuncia-se pelo títuloenigmático de “Divertimentos da alma”: tratar-se-á dos divertimentosduvidososdonarrador,prisioneirodoseusofácomoaalmaoédocorpo?Sem dúvida, e pensaremos mesmo que aqui se trata de representar osdivertimentos do romancista. Mas também pensaremos que “aosdivertimentosdocoraçãoedoespírito”seopõemesses“divertimentosdaalma”,daalmaenfimreencontradapelagraçadoamor.

Não é o menor paradoxo desse romance libertino o fato de que apalavra melhor representada no vocabulário psicológico e moral seja a“alma”. Amanzei é uma alma embusca do amor, que lhe dará um corpo;mas tantas mulheres sensíveis que povoam essa narração (a “dama” docapítuloV, Fenime, Zefis, Zeinis) têmuma alma.Os libertinos não a têm:totalmentesocializados,perderamosseussentimentos,osseussonhos,oseuforoíntimo.Apesardissoencerramemsiumaespéciedenostalgia,queinicialmentesetraduzpelotédio.EsteobcecaoSultãodesdeasprimeiraspáginasdo conto e volta comoum leitmotiv nasmaisbelasdefiniçõesdalibertinagem: “Dizemos, sem senti-lo, que parecemos amáveis;estabelecemosligaçõessemacreditarmosemnós;vemosqueesperamosoamor em vão e nos deixamos por medo de nos entediarmos. Às vezestambém acontece de nos enganarmos quanto àquilo que sentíamos:acreditávamos que era paixão, não passava de gosto, impulso,consequentementepoucodurávelequesegastanosprazeres,aopassoqueo amor parece ali renascer.” Finalmente, a linguagem mais enganadorasempreseservedesseidealdesaparecido,queemúltimainstânciajustificaos reveses mais miseráveis; é nisto que o vício presta homenagem àvirtude;e,paraCrébillon,existeumaúnicavirtude,queéasinceridadeem

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amor. Este talvez seja loucura passageira, ilusão, “prevenção dosentimento”,masparaCrébillonelecontinuasendoaúnicachancedoserhumano,aúnicarealizaçãopossíveldoqueelechamadea“natureza”.

A partir de então, as aventuras libertinas que nos são propostasaparecemigualmentecomodesviosouerrosirremediáveis.Fatmesacrificaasuavidaàsuareputaçãoesecompensaatravésdascaríciasbrutaisdeumescravo; Amine escolheu o dinheiro e se precipita intrepidamente naabjeção; Almaide e Mocles, até os quarenta anos, recusaram a menortentaçãoevãoumparaooutro,desajeitadamente,noremorsoenamá-fé,humilhadosdevergonha,semencontrarafelicidade.OlibertinoMazulhim,encerrado em sua vaidade e obcecado por suas falhas físicas, ignora aternuraindulgentedeZefiseescolheaimpostura,aomesmotempoemquedelegaaoseuamigoecúmplice,Nasses,ocuidadodeexecutarZulica.Emtodasessasempreitadassemsucessoreaparececominsistênciaotemadacarência, do fiasco, no sentido em que Stendhal lhe dava emDe l’amour.Contudo, em Stendhal, em geral o fiasco resulta de um excesso deromanescoedeantecipaçãoimaginária,enquantoque,emCrébillon,elesedeve unicamente à má-fé. O primeiro amante de Almaide e o libertinoMazulhimfracassampelofatodequeosseusprojetosdeseduçãonasceramdeumapuravontade.Semilusõesnemsentimentos,àsvezesmesmosemdesejos,olibertinoécomoqueatingidopelaesterilidade;muitolongedeseabandonar, como faria mesmo a tocante Zefis, Mazulhim recusa assolicitações da natureza e se condena à impotência, ao ponto que o seucastigo parece ainda uma vez moral. É verdade que, por várias vezes,Crébillon imagina a libertinagem triunfante, com o que ele inspiradiretamenteasLigaçõesperigosas. Fatme faz pensar, por um instante, namarquesa de Merteuil: “Devotada à impostura desde a sua mais tenrajuventude, ela pensaramenos em corrigir as inclinações viciosas do seucoraçãodoqueemdissimulá-lassobamaisausteravirtude.”MazulhimeZulicanãoestão longedecomporumcasalperfeitodeamantesmalditos:“Sois leviana – replicou ele –, e confesso que eu era inconstante; masquantomenosfomoscapazesatéagoradeterumaligaçãoséria,maisglóriateremosemnosfixarmosreciprocamente.”Entretanto,aquiéunicamenteumasugestãopassageira:somenteNassesreúnenofim–eénistoqueeledáaocontoumaprimeiraconclusãopessimista–ogostopelojogoerótico,a implacável maldade, a preocupação da obra-prima libertina queanunciam Valmont. Quando Mazulhim e Nasses reduzem a sua vítimametodicamente, com uma crueldade requintada, ao último estado dehumilhação,ogêniodomalfinalmentealçavôo.Masnãoestaremoslonge

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de pensar que esse casal estranho e imprevisto encarna, por uma últimavez,sobtodasassuasformas,adesnaturação.

OsgrandeslibertinosdeCrébilloneassuasmulheres“filósofas”saeminteiramentearmadosdesselivroaparentementefrívolo.Entretanto,omalainda não passa da expressão de um mal-estar social. Atrás dessalibertinagemaventureiraeemgeralinfeliz,discernimosasociedadequeaproduz.Defato,olibertinomaldososomentebuscaumprazerdevaidadeenãoage,absolutamente,porsuaconta.Aopiniãopública,àqualelesemprese refere, está presente em todo lugar. É ela que condena as mulheresfracas ou inconstantes, pelomenos aquelas que traem a sua fraqueza ouque tornam pública a sua inconstância. É ela que denuncia as falsasvirtudes ou que leva ao pináculo os sedutores de ostentação. Tudo aquifunciona segundo um código eternamente mutante como a moda, mastirânicocomoela.Glória,virtude,piedadereduzem-seafigurasdemoda,apurasaparênciasquesedeveadotar.Alinguagemnãoexprimemaisoquese sente, mas sim o que é conveniente dizer nas situações e nos papéisdesignados. A ligação amorosa desenvolve-se segundo contratosreconhecidosousegundoasleiscoletivasdaofertaedaprocura,sendoasmenores infrações punidas com o ridículo ou a exclusão. Denunciar,humilhar,desmascararnãopassamdeengrenagensdeumamáquinasocialfeita para reduzir, nivelar, oprimir. Crébillon não nomeia o poder,mas omostraemtodolugarpresentenalinguagem.Sendooamoraúnicachancedeliberdadedoindivíduo,ossentimentosetodososmovimentosdocorpoamorosoeramlivres,imprevisíveiseinexprimíveis;asrelaçõesprescritas,pelo contrário, vão se inscrever num código de conveniências e numvocabulárioconvencionaldoqualseusaeabusa.OsamantesdeCrébillonfalambemefrequentementebemdemais;apalavrafáciléasuamaldição;somenteelatransformaatrocaamorosaemrelaçãodeforça.Pois,desdeoinício, desde que nos encontramos a dois numa alcova, numa “pequenacasa” ou num sofá, sempre sabemos o que acabará acontecendo: viemosparaisso.Maséprecisoqueoconsentimentosetornederrota,queoamorse confesse como desejo, que todo o pudor seja formalmente renegado.Obter favores ainda não é nada para o libertino; ainda é preciso que avítima confesse a sua dependência, renuncie ao seu orgulho e conte osdetalhes de suas aventuras passadas. Valmont contentava-se com cartas;Mocles, Mazulhim e Nasses querem uma narração em forma, exaustiva,humilhante. Assim o afrontamento dos seres, do início ao fim, estácircunscrito no diálogo. Em temíveis torneios de esgrima, os atoresrivalizam por virtuosidade na arte da definição do eufemismo ou da

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preterição,daesquivaoudaargumentação,paraextorquiraconfissãodeamor ou, às vezes, de ódio, às vezes os dois, como acontece quando olibertinoquerdesfrutarmaislongamentedo“manejo”desuavítima.Essaarte cruel de impelir cada ser para suas últimas trincheiras repousainteiramente no diálogo e Crébillon está perfeitamente consciente de terdotadoanarraçãodeumapropriedadeatéentão inseparáveldo teatro,aação dialogada. Um dos seus personagens observa isso, de passagem:“...essa conversa que vos entedia é por assim dizer um fato em si. Não éabsolutamenteumadissertação inútil equenão faladenada, éum fato...não é ‘dialogado’ que se diz?” Escrevendo o Sofá Crébillon descobre quepodedialogartudo:opercursosecretodaspaixões,amá-fé,avaidade,osseus conflitos e os seus fracassos. Da simples conversa nascerão osconflitos,as revelaçõeseosdesenlaces.Nãopodemos imaginarartemaislúcidaemaismoral.Mas ficaremos tentadosaouvirapalavranosentidoemqueaentendehojeEricRohmer,eletambémautordecontos“morais”,nosquaistodaaluzvemdasimplesconversa.Eseficarámenossurpresocomo fatodequeomais libertinodoscontosseja,àsuamaneira,omaissério.

JeanSgard

OSofáfoipublicadoemfevereirode1742sobotítulo:LeSopha,contemoral.Gaznah,de l’imprimerieduTrèsPieux,TrèsClément&TrèsAugusteSultandesIndes.NoséculoXVIIIteve25edições.

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INTRODUÇÃO

JáháalgunsséculosumpríncipechamadoSchah-BahamreinavanasIlhas.EranetodessemagnânimoSchah-Riar,cujasgrandesaçõeslemosnasMil e uma noites e que, entre outras coisas, se comprazia tanto emestrangular mulheres e em ouvir contos: aquele mesmo que somenteagraciou a incomparável Sherazade em consideração a todas as belashistóriasqueelasabia.

QuerporqueSchah-Bahamnãoeraextremamentedelicadoquantoàhonra,querporqueassuasmulheresnãodormissemabsolutamentecomosseusnegrosou(oque,pelomenos,étambémverossímil)porqueelenãosoubessenadadisso,eraummaridobomeindulgenteesomenteherdaradeSchah-Riarassuasvirtudeseoseugostopeloscontos.Afirma-semesmoquea coletâneade contosdeSherazade,queo seuaugustoavômandaraescreveremletrasdeouro,eraoúnicolivroquealgumavezelesedignoualer.

Pormaisqueoscontosembelezemoespíritoepormaisagradáveisousublimes que sejam os conhecimentos e as ideias que dali tiremos, éperigoso ler somente livros dessa espécie. Existem somente as pessoasrealmenteesclarecidas,acimadospreconceitosequeconhecemovaziodasciências,quesabemoquantoessetipodeobrassãoúteisàsociedadeeoquanto se deve estimar e mesmo venerar as pessoas que têm gêniosuficiente para fazê-las e bastante força namente para se dedicar a elas,apesardaideiadefrivolidadequeoorgulhoeaignorâncialigaramaessegênero.Asimportantesliçõesqueoscontosencerram,osgrandestraçosdeimaginação que ali encontramos com tanta frequência e as ideiasprazerosas das quais estão sempre cheios, nada tomam do vulgar, cujaestima somente podemos alcançar dando-lhe coisas que ele jamaisentende,masquepossasedarahonradeouvir.

Schah-Bahaméumexemplobemmemoráveldainjustiçadoshomenscomrelaçãoaisso.Emborasoubesseaorigemdamagiatãobemcomosefossedaquelestempos,emboraninguémconhecessemaisparticularmenteo célebre país do Ginnistan e fosse mais instruído sobre as famosasdinastiasdosprimeirosreisdaPérsiae,indubitavelmente,ohomemdoseu

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século quemelhor possuía a história de todos os acontecimentos jamaisocorridos,faziam-nopassarpelomaisignorantepríncipedomundo.

É verdade que ele narrava com tão pouca graça (coisa tanto maisdesagradável visto que ele sempre narrava) que era impossível não seentediar um pouco, sobretudo tendo sempre como ouvintes somentemulheres e cortesãos, pessoas que, normalmente tão delicadas quantosuperficiais, seprendemmais à elegânciados rodeiosde frasedoque seimpressionam pela grandeza e pela exatidão das ideias. Sem dúvida éconforme o que se pensava de Schah-Baham em sua própria corte queScheik-Ebn-Taher-Abou-Faraiki, autor contemporâneo desse príncipe, odescreveuemsuagrandehistóriadasÍndias,comoveremosmaisadiante.Énolugarondeelefaladoscontos.

Schah-Baham,primeirodonome,eraumpríncipeignoranteedeumaindolência consumada. Não se podia ser menos espirituoso e (o que ébastante comum aos que nesse ponto se lhe assemelham) não se podiamais levá-lo em conta. Ele sempre se espantava comoque era comumesemprecompreendiabemsomenteascoisasabsurdase foradequalquerprobabilidade. Embora num ano inteiro não lhe acontecesse pensar umaúnica vez,mal conseguia se calarumminutonumdia inteiro. Entretantodizia de si, modestamente, que, quanto à sagacidade de espírito, nãoaspirava a isso, mas que, para a reflexão, não acreditava ter quem oigualasse.

NenhumdosprazeresquedependemdamentetocavaoSultão:todoexercício, fossequal fosse, lhedesagradava e contudo elenão era ocioso.Tinhapássaros,quenãodeixavamdediverti-lomuito;papagaiosdasÍndiasque, graças aos cuidados que tinha com a sua educação, eram os maisimbecis papagaios das Índias, sem contarmacacos aos quais dispensavaumagrandepartedoseutempo;esuasmulheresque,depoisdetodososanimaisdesuacriação,pareciam-lhemuitoapropriadasparadiverti-lo.

Apesar de tão grandes ocupações e de prazeres tão variados, foiimpossívelaoSultãoevitarotédio.Nãoexistiramcontos,atéestesfamosos,objetosperpétuosdoseuespantoedesuaveneraçãoedosquais,sobpenademorte, era proibido fazer críticas, que, de tanto conhecer, não se lhetivessemtornado insípidos.Elecontinuavaaadmirá-los,masbocejavaaofazê-lo.Finalmenteotédiooseguiaatéoaposentodesuasmulheres,ondepassava parte de sua vida vendo-as bordar e fazer recortes: artes pelasquaistinhaumaestimasingular,cujainvençãoeleolhavacomoobra-primadoespíritohumanoeàsquais,porfim,elequisquetodososcortesãosseaplicassem.

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Ele recompensava excessivamente bem aqueles que se sobressaíamnisso, para que houvesse em todo o império alguémque as desprezasse.Bordar ou recortar eram então nas Índias os únicosmeios de chegar àshonrarias.OSultãonãoconhecianenhumaoutraespéciedemérito,oupelomenosnãoduvidavaqueumhomemquetivesseessestalentos,commuitomaisrazãoteriatodosaquelesnecessáriosparaserumbomgeneralouumexcelente ministro. Para provar até que ponto estava persuadido disso,elevara ao lugardeprimeiroVizirumdesses cortesãosociosos, daquelesque,nãosabendocomoempregaroseu tempo,opassamaborrecendoosreiscomasuapresençae,reciprocamente,entediando-secomapresençadeles. Este, que por muito tempo fora confundido na multidão, viu-sefelizmenteparaelecomoumdosmelhoresrecortadoresdoreino,quandoagradouaSchah-Bahamreverenciarorecorte,esemestarobrigado,comomuitos,aarmarintrigas,deveusomenteàsuperioridadedosseustalentosa honra esplendorosa de fazer recortes junto ao seu senhor e de ter oprimeirolugardoimpério.

EntretodasasmulheresdoSultãodistinguia-seaSultana-Rainha,que,porseuespírito,deliciavaaquelesque,numacortetãofrívola,aindatinhamacoragemdepensaredese instruir.Somenteelaconheciaemantinhaoméritoali,eopróprioSultãoraramenteousavadiscordardela,emboraelanão aprovasse os seus gostos nem os seus prazeres. Quando ela oridicularizavaquantoaosseusmacacoseàssuasoutrasocupações,elesecontentava em lhe dizer que ela era cáustica, defeito que os tolos jamaisdeixamdeencontrarnaspessoasespirituosas.

EstandoSchah-Bahamumdia, comtodaasuacorte,noaposentodesuasmulheres, onde olhava recortarem com uma atenção incrível e nãopodendo,contudo,vencerotédioqueooprimia:

– Não me espanto nada – disse bocejando – se adormecer: nãodizemosumapalavra.Oh!eu,euqueriaconversa!

–Ora,edoquequereisquevosfalemos?–perguntouaSultana.–Seilá!–retrucouele.–Seráquesoufeitoparaadivinharisso?Não

bastaquequeiraquemefalemdealgumacoisa,semserobrigadoaindaadizeroquegostariaquemedissessem?Sabeisqueestaislongedesertãoespirituosaquantopensais?Que sonhaismaisdoque falais eexcetuandoalguns ditos espirituosos, que três quartos do tempo nem sequer ouço,acho que não poderíeis ser mais árida? Pensais, por exemplo, que se aSultanaSherazadeaindavivesse e estivesse aqui elanãonos faria, por simesma e sem queminha tia Dinarzade pedisse, osmais belos contos domundo?Mas, falando dela, na realidade, estou pensando uma coisa! Por

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maismemóriaquetivesse,éimpossívelquememorizassetodososcontosque aprendera; que alguém não saiba exatamente os que ela esquecera;que desde o tempo dela não se tenham feito mais contos ou que,atualmentemesmo,nãoseosfaçammais.

– Não há dúvida, Sire – disse o Vizir – e posso assegurar a VossaMajestadequenãosomenteseicontos,masquetenhomesmotalentoparafazê-lostãoestranhosqueosdafalecidaMadamevossaavónadatêmquepossasuperá-los.

–Vizir,Vizir–disseoSultão–jáédemais!Minhaavóeraumapessoaderaromérito.

–Defato–disseaSultana–éprecisomuitoméritoparafazercontos!Ao vos ouvir, não se diria que um conto é a obra-prima do espíritohumano?Econtudo,oqueexistedemaispueril,demaisabsurdo?Oqueéumaobra(seéverdade,todavia,queumcontomereçalevaressenome),oqueé,disseeu,umaobraondeaverossimilhançaésempretransgredidaenaqualasideiasaceitassãoperpetuamentederrubadas;que,apoiando-senum falso e frívolomaravilhoso, emprega seres extraordinários e todo opoderdamagia, inverteaordemdanaturezaeadoselementossomenteparacriarobjetosridículos,singularmenteimaginados,masquenadatêmque resgate a extravagância da sua criação? Muita sorte ainda se essasmiseráveis fábulas somente danificassem a mente e não fossemabsolutamente,pordescriçõesmuitovivas eque feremopudor, levar aocoraçãoimpressõesperigosas?

Propósitos de faladeira! – disse em tom grave o Sultão. – Palavraspomposasquenadasignificam!Oqueacabaisdedizerinicialmentepareceser uma coisa bonita; impressiona, é preciso confessar isso; mas, com oauxíliodareflexão,é impossívelque...No fundo, trata-seaquidesabersetendesrazão,e,comoeuqueriavosdizereacabodeprová-lo,éoqueeunãocreio:porque,certamente,nãoéparapassarporpedante.Mas jáqueum conto sempreme divertiu, está claro que é necessário que um contonão seja uma coisa tão frívola. Com certeza não será a mim que farãoacreditarqueumSultãopossaserumabesta.Aliás,digoentreparênteses,istoétãoclarocomoumacoisamaravilhosa,entendoporissoumadessascoisas...queeudiriabem,sefosseessaaquestão...masfalemosdeboa-fé:finalmente,emqueissonosimporta?Eu,eusustentoquegostodoscontose que, além do mais, somente os acho agradáveis quando são, o quechamamos entre pessoas sensatas, um pouco licenciosos. Isto lança uminteressedeumavivacidade...tãoviva!Deresto,ouço,compreendobem:écomo se me dissésseis que sabeis contos e que os fazeis. Aqui está

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realmenteoquepreciso.Pensavaque,para tornarosdiasmenos longos,seria necessário que cada um de nós contasse histórias. Quando digohistórias, é evidente, quero acontecimentos singulares, fadas, talismãs:pois,nãovosenganeis,pelomenos!,somenteissoéverdadeiro!Poisbem!Portanto,estamostodosdeacordoemfazercontos?QueMaomémeajude!Masnãoduvidoque,mesmosemoseuauxílio,nãoosfaçamelhoresdoquequalquerum,earazãodissoéquevenhodeumacasaondenãoignoramosquesabemosfazê-lose,semvaidade,bastantebons.

Deresto,comonãotenhoqualquerparcialidade,declaroquecadaumfalaráporsuavez;queseráasortequedecidirásobreos lugaresenãoaminhavontade;quepensoquetodomundotemaliberdadedefazercontosparamimequetodososdiassefalarácercademeiahora,maisoumenos,conformemeconvier.

Terminandopor essas palavras,mandou fazer um sorteio de toda asuacorte.ApesardosdesejosdoVizir,elecaiuparaumjovemcortesãoque,depoisdereceberapermissãodoSultão,começouassim.

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PrimeiraParte

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CAPÍTULOI

Omenosenfadonhodolivro

–Sire,VossaMajestadenãoignoraque,emboraeusejaseusúdito,nãosigoavossamesmaleiesomentereconheçoBramacomoDeus.

– Se euo souber–disseo Sultão–, quediferença faráparaovossoconto?Deresto,issoéproblemavosso.Azar,seacreditaisemBrama:seriacemvezespreferívelquefôsseismaometano!Estouvosdizendoissocomoamigo,pelomenosnãopensaiquesejaparabancarodoutor,poisnofundoissonãomeimportanada.Emseguida?

–Nós,sectáriosdeBrama,acreditamosnametempsicose–continuouAmanzei (é o nome do contista) – isto é, para não embaraçardespropositadamente Vossa Majestade, acreditamos que, ao sair de umcorpo,anossaalmapassaparaumoutroeassimsucessivamente,enquantofor do agrado de Brama ou que a nossa alma tenha se tornadosuficientemente pura para ser colocada entre aquelas que finalmente elejulgadignasdeseremeternamentefelizes.

Embora o dogma da metempsicose esteja geralmente estabelecidoentre nós, não temos todos as mesmas razões para acreditar que ele écerto,poisexistemmuitopoucaspessoasaquemsejaconcedidolembrar-sedasdiferentestransmigraçõesdesuaalma.Normalmenteaconteceque,aosairdocorpoemqueumaalmaestavaaprisionada,elaentranumoutro,semconservarnenhumaideia,sejadosconhecimentosadquiridos,sejadascoisasdasquaisparticipou.

Assim, as nossas faltas estão perpetuamente perdidas para nós erecomeçamos uma nova carreira com uma alma tão nova e tão sujeita aerrosevícioscomoquandoBramaatirou,pelaprimeiravez,desseimensoturbilhãodefogodoqual,esperandooseudestino,elafazparte.

Muitos dentre nós se queixam dessa disposição de Brama e duvidoquetenhamrazão.Nossasalmas,destinadasduranteumalongasequênciade séculosapassarde corpoemcorpo, seriamquase sempre infelizes seelasselembrassemdoqueforam.Aquela,porexemplo,quedepoisdeteranimadoocorpodeumreiencontra-senodeumréptilounodeumdessesmortais obscuros que a grandeza de sua miséria torna ainda mais

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lastimáveis do que os animaismais vis, não sustentaria semdesespero asuanovacondição.

Confessoqueumhomemquesevênomeiodasriquezas,ouelevadoàsupremacategoria, se tivesse lembrançasde ter sido somenteum inseto,poderia abusarmenosdo estado feliz oubrilhante emque abondadedeBramaocolocou.Considerando,contudo,oorgulho,adureza,ainsolênciadessaspessoasnascidasnainferioridadeeelevadaspelafortuna,podemosacreditar, pela presteza com que perdem a lembrança do seu primeiroestado,que,deumcorpoparaoutro,asuahumilhaçãoseocultariaaindamaisrapidamentedosseusolhoseemnadainfluiriasobreasuaconduta.

Aliás,aalmaseacharianecessariamentesobrecarregadapelograndenúmerodeideiasquelheficariamdesuasvidasprecedentese,talvezmaisafetada pelo que teria sido do que pelo que seria, se descuidaria dosdeveres que o corpo que ela ocupa lhe prescreve e perturbaria enfim aordemdouniverso,emvezdecontribuirparaela.

–Meucaroamigo–disseentãooSultão–,queMaomémeperdoeseoqueacabaisdemedizernãoéamoral!

–Sire– respondeuAmanzei–, sãoreflexõespreliminaresque, creio,nãosãoinúteis.

–Muito inúteis, sou euqueo afirmo– replicou Schah-Baham–que,assim como me vedes, não gosto da moral e que me faríeis um grandeobséquioemdeixá-laquieta.

– Executarei as vossas ordens – respondeu Amanzei. – Entretanto,resta-me dizer a VossaMajestade que, às vezes, Brama permite que noslembremosdoque fomos,sobretudoquandoelenos infligiualgumapenasingular, e a prova disso é queme lembro perfeitamente de ter sido umsofá.

– Um sofá! – exclamou o Sultão. – Ora, vamos, isso é impossível!Pensais que sou uma avestruz, fazendo-me esse tipo de contos? Tenhovontadedemandarvosqueimarumpouco,paravosensinaramedizer,edemodoafirmativo,semelhantesbanalidades.

–VossaclementeMajestadeestádemauhumorhoje–disseaSultana.–Estánoseuaugustocaráternãoduvidardenadaeelenãoqueracreditarqueumhomempossatersidoumsofá.Issonãoépertinenteàssuasideiashabituais.

– Pensais isso? – replicou o Sultão, aterrorizado pela objeção. –Parece-me, entretanto, que não estou errado. Não que eu não pudesse,contudo... Mas, por Deus, tenho razão! Conscienciosamente, não poderiaacreditarnoquedizAmanzei.Seráportantodegraçaquesoumuçulmano?

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–Perfeitamente!–respondeuaSultana.–Poisbem!EscutaiAmanzeienãoacrediteisnele.

–Ah,sim–retomouoSultão–,nãoéabsolutamenteporqueacoisaéinacreditável que precisarei não acreditar nela, mas porque, mesmo sefosseverdadeira,nãodevoacreditarnela.Compreendobem: issofazumadiferença. Fostes portanto um sofá, meu filho? Isso se constitui numaaventuraterrível!Ei,diga-me,éreisbordado?

– Sim, Sire – respondeu Amanzei –, o primeiro sofá no qual minhaalmaentroueracor-de-rosabordadodeprata.

–Tantomelhor!–disseoSultão.–Deveríeisserummóvelbastantebonito.Enfim,porqueBramavosfezsofáenãoumaoutracoisa?Qualeraaastúciadessabrincadeira?Sofá!Issonãomeentranacabeça!

– Era – respondeu Amanzei – para punir a minha alma dos seusdesregramentos. Em qualquer corpo que ele a tivesse posto, não haviarazão para ficar contente e, semdúvida, ele acreditoume humilharmaisfazendo-me sofá do que me fazendo réptil. Lembro-me que, ao sair docorpodeumamulher,minhaalmaentrounodeum jovem.Comoeleeraafetado, galante, intrigante, difamador, grande conhecedor de futilidades,ocupadounicamentecomassuasroupas, toaletesecomoutraspequenasinsignificâncias,elamalpercebeuquemudarademoradia.

–Gostariamuito–interrompeuSchah-Baham–desaberumpoucooque fazíeis quando éreis mulher. Deve ser um detalhe muito curioso.Sempre pensei que asmulheres tinham ideias singulares. Não sei semefaçoentenderbem,masquerodizerquesetemdificuldadeemadivinharoqueelaspensam.

–Talvez–respondeuAmanzei–ficaríamosmaisesclarecidosquantoa isso se pensássemos que tivessem menos sagacidade. Parece-me que,quando era mulher, zombava muito daqueles que me atribuíam ideiasponderadas, enquanto somente o momento me fazia tê-las, queprocuravamrazõesondeeutomaraleisunicamentedocaprichoeque,porquerermeaprofundardemais,nuncaentravamemmim.Eraverdadeiranotempo em que passava por falsa; acreditavam que eu era galante noinstanteemqueeraterna;erasensíveleimaginavamqueeraindiferente.Quasesempremeatribuíamumcaráterquenãoeraomeuouqueacabavadedeixardesê-lo.Aspessoasinteressadasemmeconheceromáximo,comquem eu dissimulava o mínimo, às quais mesmo, levada por minhaindiscrição natural ou pela violência dos meus ímpetos, eu revelava ossegredosmaisíntimosdaminhavidaouossentimentosmaisverdadeirosdomeucoração,nãoeramaquelasquemaisacreditavamemmimouque

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me compreendiam melhor; elas somente queriam me julgar segundo oplanoquetinhamfeito,enganavam-secontinuamenteeacreditavamtermeconhecidobem,quandotinhammedefinidosegundoasuavontade.

–Oh,eusabia–disseoSultão.–Jamaisseconhecebemasmulherese,comodizeis,pormim,hámuitotemporenuncieiaisso.Masdeixemosesseassunto: ele aguça muito o espírito e é a causa de me terdes feito umgrande preâmbulo com o qual não tinha o que fazer e de não terdesrespondido ao que eu perguntava. Parece-me que eu queria saber o quefazíeisquandoéreismulher.

–Doque eu fazia então – respondeuAmanzei – ficou-meuma ideiamuito imperfeita.Aquilodequemaisme lembroéqueeueragalantenaminha juventude, que eu não sabia odiar nem amar; que, nascida semcaráter,eraalternadamenteoquequeriamqueeufosseouoqueosmeusinteresses e meus prazeres me forçavam a ser; que depois de uma vidamuito desregrada acabei me tornando hipócrita e que finalmente morri,ocupando-me, apesar do meu ar austero, daquilo que, no decorrer daminhavida,maismedivertira.

Aparentemente, foi pelo gosto que eu tivera pelos sofás que Bramatevea ideiadeencerraraminhaalmanummóveldessaespécie.Elequisque ela conservasse nessa prisão todas as suas faculdades, sem dúvidamenosparasuavizarohorrordomeudestinodoqueparamefazê-losentirmelhor. Acrescentou que minha alma somente começaria uma novacarreiraquandoduaspessoas sedessemmutuamente sobremimas suasprimícias.

–Aquiestá–exclamouoSultão–ummontedetrapalhadas,paradizerque...

–Osenhornãovaiterabondadedenosexplicarisso?–perguntouaSultana.

– Por que não? – retomou ele. – Gosto bastante das coisas claras.Contudo, senão tiverdesaminhaopinião, consintoqueAmanzei seja tãoobscuroquantoquiser.GraçasaoProfeta,jamaiseleoseráparamim!

–Restavam-memuitas ideias, tanto do que eu fizera quanto do quevira – continuou Amanzei – para sentir que a condição na qual Bramaqueriameconcederumanovavidamereteriapormuitotemponomóvelqueeleescolheracomoprisãoparamim.Masapermissãoqueelemedeupara me transportar, quando eu quisesse, de sofá em sofá, acalmou umpoucoaminhador.Essaliberdadepunhanaminhavidaumavariedadequedevia torná-la menos tediosa. Aliás, a minha alma era tão sensível aosridículosdeoutremque,quandoelaanimavaumamulher, tantooprazer

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de entrar nos lugaresmais secretos quanto o de estar como terceironascoisas que se acreditaria serem as mais ocultas compensou-a do seusuplício.

DepoisqueBramapronunciouasuasentença,eleprópriotransportouaminhaalmaparaumsofáqueumoperárioiaentregaraumamulherdecategoria,quepassavaporserextremamentebemcomportada;mas, seéverdadequehápoucosheróisparaaspessoasqueosvêemdeperto,possodizer também que, para os seus sofás, existem muito poucas mulheresvirtuosas.

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CAPÍTULOII

Quenãoagradaráatodomundo

Um sofá jamais foi ummóvel de sala de espera, e colocaram-me nacasadadamaaquemeuiapertencernumgabineteseparadodorestodoseu palácio e onde, dizia ela, em geral ia somente parameditar sobre osseusdeveres e se entregar aBramacommenosdistração.Quandoentreinesse gabinete, foi-me difícil acreditar, pela maneira pela qual estavadecorado, que jamais servisse salvo para exercícios tão sérios. Não quefosse suntuoso, nem que algo ali parecessemuito rebuscado; à primeiravista, tudo parecia mais nobre do que galante. Mas, considerando-oatentamente, encontrava-se ali um luxo hipócrita, móveis de uma certacomodidade,enfim,essetipodecoisasqueaausteridadenãoinventaedasquais não está acostumada a se servir. Parecia-me que eumesmo estavacomumacormuitoalegreparaumamulherqueostentavaofatodeestartãolongedacoqueteria.

Poucotempodepoisqueeuestavanogabinete,aminhadonaentrou.Olhou-me com indiferença, pareceu contente, mas sem me louvar emdemasiae,comumarfrioedistante,mandouooperárioembora.Logoquese viu sozinha, essa fisionomia sombria e severa se abriu. Vi uma outraposturaeoutrosolhos;elametestoucomumcuidadoquemeanunciavaquenãopensava fazer demimummóvel de simples exibição. Esse testevoluptuoso e o ar terno e alegreque inicialmente tomaraquando se virasemtestemunhas,nadametiravamdaaltaconsideraçãoquesetinhadelaemAgra.

Eusabiaqueessasalmasqueacreditamosseremtãoperfeitassempretêmumvício favorito,emgeralcombatido,masquasesempre triunfante;que elas parecem sacrificar prazeres que, algumas vezes, somentesaboreiam com mais sensualidade e que, enfim, em geral elas fazem avirtude consistir menos na privação do que no arrependimento. Dissoconcluí que Fatme era preguiçosa e então eu teria me repreendido porlevarminhasideiasmaislonge.

Aprimeiracoisaqueelafezdepoisdoqueacabodedizerfoiabrirumarmárioarrumadocommuitosegredonaparedee,comarte,escondidode

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todososolhares.Dalitirouumlivro.Dessearmáriopassouparaumoutroondeváriosvolumesestavamexpostoscomfausto;ali tambémpegouumlivroquejogousobremimcomardedesdémetédioevoltou,comaqueleque inicialmente escolhera, para mergulhar em toda a maciez dasalmofadasquemecobriam.

– Dizei-nos um pouco, Amanzei – interrompeu o Sultão –, ela erabonita,asuamulherracional?

–Sim,Sire–respondeuAmanzei–,elaerabela,maisdoqueparecia.Sentia-semesmoque, commenosmodéstia,essesaresdesvanecidosque,naverdade, inspiramodesprezomasqueexcitamosdesejos,elapoderianãotersidoinferioraqualquerpessoa.Osseustraçoserambelosmassemefeito,semvivacidadeesomenteexprimiamessearfútiledesdenhososemo qual as mulheres desse gênero acreditariam não ter uma fisionomiavirtuosa.Tudonela,inicialmente,denunciavaoabandonoeodesprezoporsimesma.Emborafossebemfeita,arrumava-semal,eseandavadeformanobreéporqueumacondutalentaepausadaconvémapessoasocupadascomosassuntosmaissérios.Oódioquetestemunhavapelasbijuteriasnãochegava até essa negligência que, quase sempre, torna as mulheresvirtuosasdesagradáveis.Suasroupaseramsimples,decoressombrias,masem sua modéstia encontrava-se nobreza e qualidade. Ela tinha mesmocuidado para que elas não pudessem roubar nada da elegância do seucorpoe,soboaparatodaausteridade,erafácilobservarqueelagostavadadecênciamaisrebuscadaemaissensual.

O livroque ela pegarapor últimonãomepareceu ser o quemais ainteressava.Entretantoeraumaespessacoletâneadereflexõescompostasporumbrâmane.Sejaporqueacreditouestarfartadasqueelamesmofaziaouqueaquelasnãodissessemrespeitoaosassuntosque lheagradassem,elanãosedignoualerduaselogoabandonouesselivroparapegaraquelequetiraradoarmáriosecretoequeeraumromancecujassituaçõeseramdelicadaseasimagensvivas.EssaleituramepareciatãopoucodeverseradeFatmequeeunãopodiamerecuperardaminhasurpresa.“Semdúvida”,disseamimmesmo, “elaquerseprovaresabeatéquepontoasuaalmaestáfortalecidacontratodasasideiasquepodemlevaràperturbaçãonasdosoutros.”

Sem adivinhar então o motivo que a fazia agir de um modo tãocontrárioaosprincípiosqueacreditava seremosdela, somentepresumiaque ela tivesse uma boa razão. Pareceu-me contudo que esse livro aanimava.Osseusolhostornaram-semaisvivos;elaodeixou,menosparaperderasideiasqueelelhedavadoqueparaabandonar-seaelecommais

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volúpia.Voltandoenfimdodevaneioemqueelealançara,elaiaretomá-lo,quandoouviuumbarulhoqueafezescondê-lo.Emtodocaso,elasearmoudaobradobrâmane:semdúvidaelaaachavamelhorparamostrardoqueparaler.

Um homem entrou, mas com um ar tão respeitoso que, apesar danobrezadesua fisionomiaedariquezadesuasvestimentas, inicialmenteeu o tomei por um dos escravos de Fatme. Ela o recebeu com tantaaspereza, falou-lhe tão duramente, pareceu tão chocada com a suapresença,tãoentediadacomosseusdiscursos,quecomeceiacrerqueessehomem tão maltratado somente podia ser o seu marido. Não estavaenganado. Ela rejeitou por muito tempo e com aspereza os veementespedidosqueelelhefezparadeixá-lojuntodelaeenfimsomenteconsentiunisso para acabrunhá-lo com o detalhe inoportuno de suas faltas,pretendendo que ele incessantemente as cometia. Esse marido, o maisinfelizdetodososespososdeAgra,recebeuessaimpacientecorreçãocomumadoçuradaqualeumeindignavaporele.AopiniãoquetinhadavirtudedeFatmenãoeraaúnicacoisaqueo tornavatãodócil.Fatmeerabelae,emboraparecessepoucosepreocupareminspirardesejos,entretantoelaos inspirava. Por menos amável que quisesse parecer aos olhos do seumarido,eladespertouasuaternura.Oamantemaistímidoequefalassedeamorpelaprimeiravezàmulherdasociedadequeelemaistemesseficariamil vezesmenos embaraçado do que essemarido ficou para dizer à suamulheraimpressãoqueelalhecausava.Eleaapressouternamenteecomrespeitoaresponderaoseuardor.Elasedefendeudurantemuitotempodemávontadeeenfimcedeucomosedefendera.

Pormaispersistênciaqueela lherecusassetudo,oquepoderiatê-lofeito pensar que ela não tinha pelo que ele lhe exigia a mais forterepugnância,acrediteiperceberqueelaeramenosinsensíveldoquequeriaparecer. Os seus olhos se animaram, ela ficou com um ar mais atento,suspirou e, embora com indolência, tornou-se menos ociosa. Entretanto,nãoeraoseumaridoqueelaestavaamando.Nãoseiquaiseramentãoasideias de Fatme,mas seja porque o reconhecimento a tornoumais doce,sejaporquequeria animaro seumaridoparanovas atenções,propósitosbastante ternos,emboragravesecomedidos, sucederamesse tomduroeralhadorcomoqualsearmaraaovê-lo.ÉvisívelqueelenãodescobriuomotivoouquenãoficoutocadoporissoenãoestámenosvisívelqueasuafriezaouasuadistraçãodesagradaramaFatme.Semsentir,elainiciouumadiscussão. Num instante viu no seu marido os vícios mais odiosos. Quecostumes horríveis ele tinha! Que devassidão! Que dissipação! Que vida!

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Finalmenteelaosobrecarregoucomtantas injúriasque,apesarde todaasuapaciência,elefoiobrigadoadeixá-la.Fatmeficouaborrecidacomasuapartida.Aperturbaçãodosseusolhos,menosobscuraparamimdoqueohaviasidoparaessemarido,mostrou-mequenãoeraabsolutamenteporsua ausência que ela gostaria de ter sido acalmada, antes mesmo quealgumas palavras singulares que pronunciou, quando se viu sozinha,tivessemepostocompletamenteapardoqueelapensavasobreisso.

Comoessamulher,oexemploeoterrordetodasasdeAgra,quetodasodeiamequecontudotodasgostariamdeimitar,diantedequemamenoscontidadesuaspaixõesseviaobrigadapelomenosaserhipócrita,comoessamulherteriatranquilizadopessoas,seelaspudessem,comoeu,vê-lanasolidãoenaliberdadedogabinete!

–Deveras–disseoSultão–seráqueeraumamulherque,nofundo...como existem as que fazem de conta... É que, pelomenos, isso acontece!Nãosedevepensar,absolutamente,quesejaumacoisatãopoucocomumquantoaquequerodizer.Estaismeentendendobem,espero.

–PelamaneiracomoSuaMajestadeseexplica–retomouAmanzei–nãoémuitodifíciladivinharoqueeladesejae,semquerermegabardetermuitaargúcia,ousopensarquecompreendi.

– Sim! – disse o Sultão, rindo. – Pois bem!Vejamos, o que é que euestavapensando?

–QueFatmenãoeranadamenosdoqueaquiloquequeriaparecer–respondeuAmanzei.

–Éistooumorro!–interrompeuoSultão.–Continuai,realmentesoismuitoespirituoso.

–Fatme,aparentemente,fugiadosprazeres–continuouAmanzei–eissosomenteparaseentregaraelescommaissegurança.Elanãopertenciaaonúmerodessasmulheresimprudentesque,tendodadoasuajuventudeao brilho, à dissipação, aos jovens que o capricho põe namoda, deixamnumaidademaisavançadaapinturadorostoeosornamentose,depoisdeterem sido por muito tempo a vergonha e o desprezo do seu século,querem se tornar o seu exemplo e o seu ornamento, mais desprezíveisafetando virtudes que não têm do que o eram pela audácia com queexpunhamosseusvícios.Não,Fatmeforamaisprudente.Bastantefelizporternascidocomessafalsidadequeanecessidadedesedisfarçareodesejode se fazer estimar inspiram nasmulheres (desejo que nem sempre é oprimeiroqueelasconcebem),cedoelasentiuqueéimpossívelseesquivardosprazeressemvivernostédiosmaiscruéisequeumamulher,contudo,nãopodeseentregaraelesabertamente,semseexporaumavergonhaea

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perigos que sempre os tornam amargos. Dedicada à impostura desde amaistenrajuventude,elapensaramenosemcorrigirastendênciasviciosasdoseucoraçãodoquedisfarçá-lassobaaparênciadamaisausteravirtude.A sua alma, naturalmente... diria eu voluptuosa? Não: não era otemperamento de Fatme. Sua alma era levada para os prazeres. Poucodelicada, mas sensual, ela se entregava ao vício e não conheciaabsolutamenteoamor.Aindanãotinhavinteanos;hácincoestavacasadaehámaisdeoitoantecipara-seaocasamento.Oque,normalmente,seduzasmulheres não fazia nenhum efeito sobre ela. Um aspecto amável, muitoespírito, talvez lhe inspirassemdesejos;mas elanão cedia.Os objetosdesuaspaixõeseramescolhidosentrepessoasnãosuspeitas,comprometidaspor seu gênero de vida a calar os seus prazeres ou entre aqueles cujoestado inferior os esquiva das suspeitas do público, que a liberalidadeseduz,queotemordetémnosilêncioeque,aparentementedevotadosaosempregos mais vis, algumas vezes não parecem menos apropriados aosmaisdocesprazeresdoamor.Fatme,deresto,maldosa,colérica,orgulhosa,abandonava-se sem perigo ao seu caráter. Não havia mesmo um defeitoqueelanãoutilizassecomsucessoparaasuareputação.Altiva,imperiosa,dura, cruel, sem consideração, sem fé, sem amizade, o zelo por Brama, atristeza que o desregramento dos outros lhe causava, o desejo dereconduzi-losasimesmos,encobriamehonravamessesvícios.Erasemprecom uma finalidade tão boa que ela causava prejuízos! Era vingativa deformatãosanta!Asuaalmaeratãopura!Qualomeiodesuspeitardeumcoração tão correto, tão sincero, de ser conduzido nos seus ódios porqualquermotivoquepudesselheserpessoal!

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CAPÍTULOIII

Quecontémfatospoucoverossímeis

Apósasaídadoseumarido,Fatmeiarecomeçarasualeituraquandoentrou um velho brâmane, seguido de duas velhas, das quais se diziaconsoladoredequemeraotirano.Fatmelevantou-seeosrecebeucomumar tão modesto, tão recolhido, que era impossível não ser enganado. Ovelho brâmane precisou mesmo impedi-la de se prosternar diante dele,masfoicomumarorgulhosoquemedescreveumuitobemaimportânciaqueeledavaasimesmo;pareciatãocontentecomoqueelafaziaporele,tãopersuadidomesmoquemereciaaindamais,quemefoiimpossívelnãorirdentrodemimmesmodatolavaidadedesseridículopersonagem.

Eramuitodifícilqueentrepessoasdeumméritotãoraroaconversanão fosse às custas de outrem. Não que os que vivem na dissipação emgeral não falemmal dos outros,mas, ocupadosmais comos ridículos doquecomosvícios,amaledicênciaparaelesnãopassadeumdivertimentoeelesnãosãoabsolutamenteperfeitososuficienteparadelafazerumdever.Àsvezesprejudicam,masnemsempre têma intençãode fazê-lo,oupelomenos a sua leviandade e o gosto pelos prazeres não lhes permitemconservá-lapormuitotempo,nempensaremusá-laemproveitopróprio.Essamaneiraásperaepesadadefalarmaldosoutros,equeachamostãonecessária para corrigi-los, que, sem esse prisma, pareceria condenável,lhesédesconhecida;eles...

– Será que isso vai demorar muito? – interrompeu o Sultão,encolerizado.–Nãovedesqueestaisrepetindoasvossasreflexõespatifes?

–Mas,Sire–respondeuAmanzei–,existemocasiõesemqueelassãoindispensáveis.

–Eeuafirmo–replicouoSultão–queissonãoéverdade;equandofor...Numapalavra, jáqueéparamimquefazemcontos,pretendoqueosfaçamsegundoaminhafantasia.Diverti-meetrégua,porfavor,comtodasessasmorais que não acabammais e queme dão enxaqueca. Gostais depassar pelo bom falante: mas, droga! Colocarei uma boa ordem nisso e,palavra de Sultão, juro quematarei o primeiro que ousarme fazer umareflexão.Veremosagoracomovossaireisdisso.

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–Preservando-medasreflexões–respondeuAmanzei–umavezqueelasnãotêmafelicidadedeagradaraVossaMajestade.

–Estámuitobem–disseoSultão.–Continuai!–Jamaisseésensívelaoprazerdefalarmaldosoutrosquenãoseseja

tambémaodefalarbemdesimesmo.Fatmeeaspessoasqueestavamemsuacasatinhammuitarazãoemseestimarmuitoparanãodesprezartodosaquelesquenãoseassemelhavamaelas.Esperandoqueaprontassemtudooquelheseranecessáriopararepresentar,elascomeçaramumaconversaque em nada desmentiu os seus temperamentos. Entretanto o velhobrâmane falou bem de uma mulher que Fatme conhecia e o elogio lhedesagradou.Entretodasascoisascontraasquaiselaseirritava,oamoreraoquelhepareciamaisdignodecensura.Queumamulheramasse,tivessealiásasqualidadesmaisestimáveis,nadapodiasalvá-ladoódiodeFatme,mas que se tivesse os vícios mais desonrosos e mais odiosos e que nãofossepossíveldarnomeaoseuamante,paraelaeraumapessoarespeitávelecujavirtudenãosepoderiareverenciarosuficiente.

InfelizmenteamulherqueobrâmanelouvavaestavanocasoemquesemereciaaindignaçãodeFatme.

–Umamulherperdida–disseelacomumtomáspero–podemerecerosvossoselogios?–ObrâmanesedefendeudizendoqueignoravaqueelativessecostumestãocondenáveiseFatmeoinstruiucaridosamentesobreasrazõesqueafaziamdesprezá-la.

–Nãotenhodúvidas,Fatme–disse-lheentãoumadasmulheresqueestavam em sua casa –, de que, generosa e inclinada ao bem como sois,sejaisinfinitamentesensívelaoquevouvosinformar.Nahami,essaNahamicuja perda tanto deploramos juntos, Nahami, cansada dos seus erros,repentinamenteacabadedeixarasociedade:elanãosepintamais.

–Pena!–exclamouFatme–comoelaé louvável seesse retorno forsincero! Mas, madame, sois boa e as pessoas de vosso caráter sãofacilmenteenganadas.Sinto issopormimmesma.Quandosenasceucomessa retidão de coração, essa candura que tendes, não se imagina quealguémsejabastanteinfelizparaabsolutamentenãotê-las.Pensandobem,éumbelodefeitojulgarexcessivamentebemosoutros.Mas,paravoltaraNahami, não poderia me impedir de temer que, no fundo da alma,pertencendo inteiramente à sociedade, ela não tenha abjuradosinceramenteosseuserros.Larga-seapinturacommaisfacilidadedoqueos seus vícios, e em geral se toma um armais reservado,maismodesto,menosparacomeçaraentrarnavirtudedoqueparaseimporàsociedadepelosdesregramentosaosquaisaindaseestáligado.

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–Meucaroamigo–disseSchah-Bahambocejando–,essaconversaémortal para mim! Por amor a mim, não a acabe. Essas pessoas meextenuamaumpontoquenãopossodescrever.Conscientemente,issonãoaborreceavósmesmo?Emboagraça,fazei-osirembora!

– Com muito prazer, Sire! – respondeu Amanzei. – Depois de terlevado o mais longe que pôde a conversa sobre Nahami, voltou àsmaledicências gerais e, emmenos de um instante, eu soube de todas asaventuras de Agra. Em seguida elogiaram-se mutuamente, puseram-se ajogartristemente,istocontinuoucomtodooamargoretodaamesquinhezpossível,esaíram.

– Estava impaciente – disse o Sultão. – Acabais de me socorrerconsideravelmente.Vósmedaisapalavradequeelasnãovoltarão,aquelaspessoas?

–Sim,Sire–respondeuAmanzei.–Poisbem!–retomouoSultão.–Paraprovarqueseirecompensaros

serviçosquemeprestam,euvosfaçoEmir.Aliás,soisvósquebordaisbem,trabalhais com ardor, creio que vos saireis bem do vosso conto, enfim...Tudoissomedáprazeredepoiséprecisoencorajaromérito!

OnovoEmir,depoisderendergraçasaoSultão,continuouassim:–ApesardoarafáveldeFatme,acrediteiperceberqueavisitadessas

trêspessoasprovocounelaomesmoefeitoqueemVossaMajestadeeque,se ela tivesse sido a sua amante, teria empregado o seu dia em outrosdivertimentosdiferentesdosqueelaslhehaviamproporcionado.

Logoqueelassaíram,Fatmesepôsasonharprofundamente,massemtristeza,osseusolhosseenterneceram,elesvagaramlanguidamentepelogabinete.Pareciaqueeladesejavafortementealgumacoisaquenãotinhaoudaqualtemiausufruir.Finalmente,elachamou.

Ouvindo a sua voz, um jovem escravo de rosto mais fresco do queagradável se apresentou. Fatme, fixando-o comolhos emque reinavamoamoreodesejo,pareceucontudoindecisaetemerosa.

–Fechaaporta,Dahis–disse-lheenfim.–Vem,estamossozinhos,semperigopodestelembrarqueteamoemeprovaratuaternura!

Com essa ordem, Dahis, deixando o ar respeitoso de um escravo,tomou aquele de um homem a quem se faz feliz. Ele me pareceu poucodelicado, pouco terno, mas vivo e ardente, devorado por desejos, nãoconhecendoabsolutamenteaartedesatisfazê-losporetapas, ignorandoagalanteria,não sentindonadadecertas coisas,nãodetalhandonada,masocupando-se essencialmente de tudo. Não era um amante e para Fatme,quenãoprocuravaadiversão,eraalgumacoisamaisnecessária.Dahisfazia

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elogios de forma grosseira, mas o pouco de finura dos seus elogios nãodesagradavaaFatme,que,contantoquelheprovassemvigorosamentequeelainspiravadesejos,sempreacreditavaestarsendosuficientementebemlouvada.

FatmesecompensoucomDahisdareservacomaqualseforçaracomo seu marido. Menos fiel às severas leis da decência, os seus olhosbrilharamcomumfogomaisardente.EladistribuiuprofusamenteaDahisos nomesmais ternos e asmais ardentes carícias. Longe de lhe subtrairalgodetudooqueelasentia,entregava-seatodaasuaperturbação.Maistranquila, ela fazia Dahis observar todas as belezas que ela abandonavapara ele e o forçava mesmo a lhe pedir novas provas de suacondescendênciaequeelepróprionãoteriadesejado.

Dahis, contudo, parecia pouco tocado. Os seus olhos paravamestupidamentesobreosobjetosquea fácilFatmelheapresentava.Eradeformamaquinal que eles lhe causavam impressão.A sua alma rudenadasentia,oprazernemmesmoseinsinuavaatéela.Entretanto,Fatmeestavacontente.O silênciodeDahis e a suaestupideznão chocavamemnadaoseu amor-próprio e ela tinha razões muito boas para crer que ele erasensível aos seus encantos, para não preferir o seu ar indiferente aoselogiosmaisousadoseaosmaisfogososarroubosdeumalmofadinha.

Fatme, abandonando-se aos desejos de Dahis, anunciavasuficientemente que ela tinha tão pouca delicadeza quanto virtude e nãoexigiadeleessavivacidadenosarroubos,essasternasinsignificânciasqueafinuradaalmaeapolidezdasmaneirastornamsuperioresaosprazeresouque,melhordizendo,sãoelespróprios.

Dahis saiu finalmente, depois de ter bocejadomais de uma vez. Eraumadessaspessoasinfelizesque, jamaispensandoalgumacoisa,tambémjamaistêmalgoadizer,equesãomelhoresparaserementretidasdoqueouvidas.

PorumapequenaideiaqueasdiversõesdeFatmemetivessemdadosobreela,confessareique,depoisdaretiradadeDahis,penseique,nãolherestandomaisnadanoquepudessemeditarnessegabinete,elalogosairiadali. Estava enganado: era sobre esse tipo de meditação uma mulherincansável.Nãofaziamuitotempoqueelaestavainteiramenteentregueaesse tipo de reflexões de que Dahis lhe fornecera matéria tão ampla,quandolheaconteceufazernovasreflexões.

Umbrâmanesério,maisjovem,viçosoecomumadessasfisionomiascujo jeitosóbrionãodestróiavivacidade,entrounoseugabinete.Apesardoseuhábitodebrâmane,poucofeitoparaencantar,erafácilobservarque

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ele era torneado de modo a dar ideias a mais de uma pessoa recatada,assimele era o brâmanedeAgramais procurado, omais consolador e omaisempregado.Ele falava tãobem!–diziam.Era com tantadoçuraqueele insinuava nas almas o gosto pela virtude!Omeio, sem ele, de não seextraviar!Eisoquefalavamdeleempúblico.Logoveremossobreoqueemparticulardeviam-lheelogioseseaquelesqueselhefaziammaisaltoeramosqueelemelhormerecia.

Esse feliz brâmane aproximou-se de Fatme com um ar melífluo eempolado,mais enfadonho do que galante. Não que não procurasse aresleves, mas copiava mal os que tomava como modelos e o brâmanetranspareciaemmeioàmáscaraqueeletomavaemprestado.

–Rainhadoscorações–disseaFatmecomafetação–hojeestaismaisbela dos que os seres felizes destinados ao serviço de Brama! Elevais aminhaalmaaumêxtasequetemalgodecelesteequeeugostariamuitodevosverpartilhar!

Fatme,comumar lânguido,respondeu-lhenomesmotome,comoobrâmanenãomudavanada,estabeleceu-seentreelesumaconversamuitoterna, mas na qual o amor falava uma língua bem estranha eaparentementepoucofeitaparaele.Semassuasações,duvidoquealgumaveztivessecompreendidoosseusdiscursos.

Fatme,quenaturalmentefaziamuitopoucocasodaeloquênciaeque,apesar do que dissesse, não estimavamuito a do próprio brâmane, foi aprimeira a se entediar com o sentimento. O brâmane, ao qual ele nãoagradavamaisdoqueaela,logooabandonoutambémeessaconversatãoenfadonha,tãomelífluaacaboucomoadeDahiscomeçara.

É verdade, contudo, queFatme, fazendo asmesmas coisas, eramaiscuidadosacomasaparências.Elaqueriaigualmenteparecerdelicadaequeobrâmanepudesseacreditarqueelacediasomenteaoamor.

Obrâmane,quepelocaráterepelaaparênciaseassemelhavabastanteaDahis,emnadaficouinferioraeleemereceutodososcumprimentosquecontinuamente lhe prodigalizava a complacente Fatme. Depois de teremdado à sua ternura o que ela exigira deles, ridicularizaram a virtude,entretiveram-secomoprazerqueexisteemenganarosoutrosederam-semutuamenteliçõesdehipocrisia.Essasduaspessoasodiosasfinalmentesesepararam e Fatme foi desesperar o seu marido e exibir as suasmortificações.

EnquantoestiveemcasadelanãoconheciquaisqueroutrasmaneirasdeentreterassuashorasvagassenãoaquelasqueconteiaVossasempreAugustaMajestade.

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Pormaisprudentequefosse,Fatmeàsvezesseesquecia.Numdiaemque, sozinha com o brâmane, ela se entregava aos seus arroubos, o seumarido,queoacasoconduziuàportadogabinete,ouviususpirosecertostermos que o espantaram. As ocupações públicas de Fatme deixavamimaginar tão pouco suas diversões particulares que duvido que o seumarido, inicialmente, adivinhasse de quem partiam os suspiros e asestranhaspalavrasqueacabavamdeatingirosseusouvidos.

Finalmente, seja porque pensou ouvir a voz de Fatme, seja porquesomenteacuriosidadeofezdesejarseesclarecersobreessaaventura,elequisentrarnogabinete.

Paraa infelicidadedeFatme,aportanãoestavabemfechadaeeleaarromboucomumsógolpe.

O espetáculo que fulminou os seus olhos o surpreendeu a tal pontoque, com a sua fúria suspensa, durante alguns instantes pareceu-lheduvidardoqueestavavendoenãosabiaoquedecidir.

–Pérfidos! – exclamouenfim. –Recebeio castigodevidoaosvossosvícioseàvossahipocrisia!

Comessaspalavras,semescutarFatmenemobrâmane,quetinhamseprecipitadoaosseuspés,eleosfezexpirarsobosseusgolpes.

Por mais horroroso que fosse esse espetáculo, ele não me tocou.Ambos tinham merecido a morte para que pudessem ser lastimados efiqueiencantadocomofatodequeumacatástrofetãoterrívelinformasseatodaAgraoque tinhamsidoasduaspessoasquepormuito tempoali seconsideraracomomodelosdevirtude.

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CAPÍTULOIV

Ondeseverãocoisasquesepoderiamuitobemnãoterprevisto

Depois damorte de Fatme,minha alma levantou vôo e foi para umpalácio vizinho, onde tudo parecia mais ou menos estabelecido comonaquelequeestavaabandonando.No fundo,entretanto,alisepensavadeummodobemdiferente.

Não que a dama que o habitava entrasse nessa idade em que asmulheresumpoucosensatas,quandonãocondenamagalanteriacomoumvício,pelomenosaolhamcomoumridículo.Elaerajovemebelaenãosepodiadizerque amava a virtude somenteporquenão era absolutamentefeitaparaoamor.Porseuarsimplesemodesto,pelocuidadoquetinhaemfazerboasaçõeseescondê-las,pelapazquepareciareinarnoseucoração,dever-se-iapensarqueelanasceutalcomoaparentava.Bemcomportada,semconstrangimentoesemvaidade,nãoconsideravaumadificuldadeouummérito seguir os seus deveres. Jamais a vi, por um instante, triste ourabugenta.Asuavirtudeeradoceetranquila,nãoconsideravaumdireitoseuatormentarnemdesprezarosoutrose,quantoa isso,eramuitomaisreservada do que o são essas mulheres que, tendo tudo para secensurarem, não encontram contudo ninguém isento de censura. O seuespírito era naturalmente alegre e ela não procurava diminuir a suajovialidade.Semdúvida,nãoacreditava,comomuitasoutras,quejamaisseémaisrespeitáveldoquequandoseémuitoentediante.Elanãofalavamaldeninguéme, apesardisso, sabiadivertir. Persuadidadeque tinha tantafraquezaquantoasoutras,sabiaperdoarasquedescobrianelas.Nadalheparecia vicioso ou criminoso a não ser o que efetivamente o é. Não seprivava das coisas permitidas para somente se permitir, como Fatme, ascoisas proibidas. A sua casa não tinha fausto, mas era conservada demaneira nobre. Todas as pessoas de bem de Agra tinham a honra de aliseremadmitidas,todosqueriamconhecerumamulherdecarátertãoraro,todosa respeitavame, apesardaminhaperversidadenatural, finalmentemeviforçadoapensarcomoeles.

Quandoentreinacasadessadama,aindaestavadetalformatomado

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pelafalsidadedeFatmequeinicialmentenãoduvidavadequeelafizesseasmesmas coisas e, à primeira vista, confundi a mulher virtuosa com ahipócrita.Jamaisviaentrarumescravoouumbrâmanesemacreditarquemecolocariamnaconversaepormuitotempofiqueiespantadoporseraliconsideradocomonada.

Oócioaoqualmecondenavamnessacasafinalmentemeentedioue,persuadido de que seria em vão esperar que me dessem assunto paraobservações,abandoneiosofádessadama,encantadopormeconvencerdequeexistiammulheresvirtuosas,masdesejandomuitopoucoencontrá-lassemelhantesaessa.

Aminhaalma,paravariarosespetáculosqueoseuestadoatualpodialheproporcionar,aoabandonaressepalácio,nãoquisentrarnumoutroeprecipitou-senumacasabastantefeia,escura,pequenaedetalordemqueinicialmente duvidei se haveria razão para ali me asilar. Penetrei numquarto triste, mobiliado abaixo do medíocre e no qual, contudo, fiqueimuitofelizporencontrarumsofáque,desbotado,danificado,testemunhabem o fato de que era às suas custas que os outros móveis que oacompanhavam foram adquiridos. Antes de saber em casa de quem euestava,essafoiaprimeiraideiaquemeveioe,quandoosoube,nãomudeideopinião.

Defato,essequartoserviaderetiroparaumamoçabastantebonitaeque,sendo,pororigemeporsimesma,oquechamamosdemácompanhia,algumasvezescontudoviaaspessoasque,dizem,compunhamaboa.EraumajovemdançarinaqueacabavadeserrecebidaentreasdoImperadorecujafortunaereputaçãoaindanãoestavamfeitas,emboraconhecesseemparticularquasetodososjovenssenhoresdeAgra,queelacumulavacomassuasbondades,eestes lheassegurassemasuaproteção.Pormaisquelhe tivessem prometido, duvido mesmo que sem um administrador dosdomíniosdoImperadorquetomougostoporelaafortunativessemudadodecaratãocedo.

Abdalathiféonomedesseadministrador,porsuaorigemepeloseumérito pessoal, não fazia uma conquista brilhante. Era naturalmenterústicoebrutale,apartirdesuafortuna,acrescentaraainsolênciaaosseusoutrosdefeitos.Nãoquenãoquisesseserpolido,mas,persuadidoqueumhomem como ele honra alguém quando lhe dispensa atenções especiais,assumira essa polidez fria e seca das pessoas de uma certa posição, queneles consente-se emchamardedignidade,masqueemAbdalathif eraocúmulo da tolice e da impertinência. Nascido na mais profundaobscuridade, não somente a tinha esquecidomasmesmonão havia nada

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quenãofizesseparasedarumaorigemilustre.Elecoroavaoseucaprichodesempenhando eternamente o papel de senhor. Fútil e insolente, a suafamiliaridadeultrajavatantoquantoasuaaltivez. Ignóbilesemgostoemsuamagnificência,neleelanãopassavadeumridículoamais.Compoucoespíritoemenoseducaçãoainda,nãohavianadanoquenãoacreditassesereconheceredoquenãoquisessedecidir.Todavia,talcomoera,tratavam-no com deferência, não que ele pudesse prejudicar, mas sabia tornar ascoisas obrigatórias. As maiores figuras de Agra com assiduidade eramcomplacentescomeleeobajulavam,emesmoassuasprópriasmulheresestavamapontodeperdoá-lodasimpertinênciasque,comelas,elelevavaao excesso, ou de nada recusar aos seus desejos. Pormais em voga queestivesse em Agra, algumas vezes era bem fácil repousar das enormessolicitudesdasmulheresqualificadaseprocurarprazeresque,porseremmenosbrilhantes,nemporissoerammenosardentese(segundooqueeletinhaainsolênciadedizer)emgeralnadamaisperigosos.

Foi numa noite que, saindo da casa do Imperador, diante de quemAminedançara,essenovoprotetorlevou-adevoltaparacasa.Elepasseounoseutristeesombrioalojamentoolharesorgulhososedistraídos,depois,malsedignandoalevantarosolhosparaela:

–Nãoestaisbemaqui–disse-lheele.–Éprecisovostirardaqui.Tantopor mim quanto por vós é que desejo que estejais convenientementealojada.Zombariamdemimseumamoçacomquemmemetonãoestivessedeummodoasefazerrespeitar.

Depois dessas palavras, sentou-se sobre mim e, puxando-abruscamenteparasi, tomoutodasas liberdadesquequeriacomela,mas,comotinhamaislibertinagensdoquedesejos,elasnãoforamexcessivas.

Amine,queeuviraaltivaecaprichosacomossenhoresqueiamàsuacasa, longe de tomar ares familiares com Abdalathif, tratava-o com umextremo respeito e nem mesmo ousava olhá-lo a não ser quando elepareciadesejarqueelaofizesse.

–Vósmeagradaismuito–disseeleenfim–,masqueroquetenhamosjuízo.Nadadepessoasjovens;modos,umacondutaregrada:semtudoissonãoseríamosbonsamigospormuitotempo.Adeus,pequena–acrescentou,levantando-se–amanhãouvireisfalardemim.Nãotendesabsolutamentemóveisparaquehojesepossacearconvosco;vouprovidenciar isso.Bomdia!

Comessaspalavras,elesaiu.Aminereconduziu-orespeitosamenteatéa porta e voltou sobre mim, para se entregar a toda a alegria que lhecausavaasuaboasorteecontarcomasuamãeosdiamanteseasoutras

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riquezasquenodiaseguinteelaesperavadagenerosidadedeAbdalathif.Essamãeque, emboramulherhonrada, era amais complacentedas

mães, exortava a sua filha a se conduzir com juízo na felicidade queagradavaaBrama lheenviare, comparandooestadoemqueestavamaoque elas iam se encontrar, fazia mil reflexões sobre a providência dosdeusesquejamaisabandonaosqueamerecem.

Depois disso, ela fez um longa enumeraçãodos senhores que foramamantesdesuafilha.

–Quãopoucoaamizadedelesvosfoiútil,minhafilha!–dizia-lheela.–Assim,émesmoculpasua!Pormilvezesjávosdisse,nascestesmuitodoce.Ouvosdaisporpuraindolência,oqueéumgrandevício;ou,oquenãovosvalemaisevosdeugrandesridículos,ficaisfantasiando.Nãodigoquenãonos satisfaçamos algumas vezes. Deus me livre! Mas não é preciso sesacrificardetalformaaosseusprazeres,quesenegligencieasuafortuna.Sobretudoéprecisoevitarquesetenhaapossibilidadededizerqueumamoça comovóspossa algumasvezes se entregar aoamor, enesteponto,infelizmente,destes razõesparase falar.Enfim, soisaindamuito jovemeesperoqueissonãovosprejudiquemuito.Nadaperdetantoaspessoasdevossa condição do que essas leviandades que ouvi chamarem decomplacênciasgratuitas.Quandosesabequeumamoçatemoinfelizhábitodesedaralgumasvezespornada,todomundoacreditaserfeitoparatê-laaomesmopreçoou, pelomenos, barato.VedeRoxane,Atalis, Elzire: elasnãotêmumafraquezaasecensurar,assimBramaabençoouasuaconduta.Menosbonitasdoquevós,vedescomosãoricas!Aproveitaibemoexemplodelas,sãomoçasbemracionais.

– Está bem! minha mãe, sim – respondeu Amine, a quem essaexortação tornava impaciente –, pensarei nisso. Mas a senhora meaconselharia,entretanto,apertencersomenteaomonstroqueatualmentetenho?Issoéimpossível,estouavisando.

–Narealidade,não–respondeuamãe–;emrelaçãoaocoração,nãose é a dona dele. Estou dizendo simplesmente que deveis renunciar aossenhores da Corte, a menos que os vejais incógnito e que tenham paraconvoscomelhoresmodos dos que o tiveram até agora. Se quiserdes, eufalarei com eles, eu. Tendes Massoud, que amais, é uma boa escolha.Ninguémoconhece,eleseprestaparatudo,vósofazeispassarporvossoparente, tomam-no por isso e não há nada a dizer. Esse senhor que vosquerbem,seenganará,comoosoutros:conduzindo-voscomprudência,elenãoduvidarádenadae...

–Asenhoraacredita,minhamãe– interrompeuAmine–queeleme

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dará diamantes? Ah, sim, ele me dará. Não que eu tenha vaidade –acrescentou ela –, mas quando se tem uma boa posição, tem-se muitoprazeremsercomotodomundo!

Quanto a isso, ela se pôs a contar todas as moças que ficariamdesesperadastantocomosdiamantesquantocomosbelosvestidosqueelateria:ideiaquealisonjeavamaisdoqueasuaprópriafortuna.

No dia seguinte, bem cedo, um carro veio buscá-la e aminha alma,curiosaemverousoqueAminefariadosconselhosdesuamãe,aseguiu.

Conduziram-na a uma bonita casa inteiramente mobiliada, queAbdalathif tinhanuma rua escondida.Ali chegando, instalei-menum sofámagnífico que puseram num gabinete extremamente ornado. Jamais vialguémnuma admiração tão tola quanto a que Amine testemunhava portudo o que ali se oferecia aos seus olhos. Depois de examinar tudocuidadosamente,elafoisecolocarnoseutoucador.Osvasospreciososcomosquais o viu coberto, umporta-jóias cheio de diamantes, escravos bemvestidosque,comarrespeitoso,apressavam-seemservi-la,comercianteseoperáriosqueaguardavamassuasordens,tudoaarrebatavaeaumentavaoseuêxtase.

Quandovoltouumpoucoasi,pensounopapelquedeviarepresentardiante de tantos espectadores. Falou aos seus escravos com altivez, aoscomerciantes e aos operários com impertinência, escolheu o que quis,ordenouquetudooquequeriaestivessepronto,nomaistardar,paraodiaseguinte, voltouparao seu toucador, ali permaneceupormuito tempoe,esperando asmagnificências que lhe eram destinadas, vestiu-se com umroupão suntuosoque fora feitoparaumaprincesadeAgraequeelamalachousuficientementebeloparaela.

Passou a maior parte do dia ocupando-se de tudo o que via eesperandoAbdalathif.Finalmente,nofimdetarde,eleapareceu.

–Poisbem,pequena!–disse-lhe.–Comovossentiscomtudoisto?Amine precipitou-se aos seus pés e, nos termos mais ignóbeis,

agradeceu-lheportudooqueestavafazendoporela.Estava surpreso, eu que até então estivera em boa companhia, com

tudooqueatingiaomeuouvido.Nãoquejamaistivesseouvidotolices,maspelomenoselaseramelegantesenessetomnobrecomoqualparecequequasenãoseasdiz.

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CAPÍTULOV

Melhorparapassardoqueparaler

Antes de entabular uma conversa mais longa, Abdalathif tirou dobolso uma bolsa comprida cheia de ouro, que jogou numamesa com arnegligente.

– Segure forte – disse-lhe ele. – Tereis pouca necessidade disso.Encarrego-mede todaadespesadevossacasaedevossapessoa.Euvosenvieiumcozinheiro:depoisdomeu,éomelhordeAgra.Comfrequênciapensocearaqui.Nemsempreestaremossozinhos:senhoresamigosmeus,com algumas pessoas cultas, a quem empresto dinheiro, virão algumasvezes.Aissoacrescentaremosvossascompanheiras,asmaisbonitas,claro:issotornaráasceiasalegres,gostodelas.

Com essas palavras, ele a conduziu ao pequeno gabinete onde euestava, e a mãe de Amine, essa mulher respeitável, que até ali estavapresentenaconversa,retirou-seefechouaporta.

–Nãoédeumaconversadessas–disseAmanzeiinterrompendo-se–que prestarei contas exatas a Vossa Majestade. Amine ali pareceucompletamente terna e viva até o arrebatamento. Abdalathif tivera ocuidadodelhedizerantesqueasmulheresreservadasnosseusdiscursosodesagradavam e, com a vontade que Amine tinha de agradar-lhe, a suaeducação e os hábitos que contraíra, Vossa Majestade, sem dificuldade,imagina que ele disse propósitos que seria difícil reconstituir-lhe e que,aliás,nãoalisonjeariam.

– Por que isso? – perguntou o Sultão. – Talvez eu os achassemuitobons.Vejamos!

–Vede!–disseaSultana, levantando-se.–Mas, comoestoucertadequeelesnãomedivertiriam,achareisbomqueeusaia.

– Ora vejam isso! – exclamou o Sultão. – A bela modéstia! Talvezpensaisquevouperderumadessas?Perdeiasesperanças!Agoraconheçoasmulherese,aliás, lembro-mequeumhomemqueasconhecia tãobemquantoeu,oumaisoumenos,disse-mequeasmulheresnão fazemnadacomtantoprazeranãoseroquelheséproibido,equesomentegostamdosdiscursos que parece que não devem escutar; consequentemente, se

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sairdesnãoéporquetendesvontadedesair.Masnãoimporta,Amanzeimediráquandoeumedeitar oquenãoquereis que elemediga agora. Comisso,precisamente,nãoperdereinada,nãoé?

AmanzeiestavalongedediscordarqueoSultãotivesserazãoe,depoisdeterexageradoaprudênciadesuaconduta,continuouassim:

–DepoisdaconversadeAbdalathifedeAmine,quefoimaislongadoqueinteressante,serviu-searefeição.Comoeunãoestavanasaladejantar,não posso, Sire, vos relatar o que ali disseram. Voltaram muito tempodepois.Emborativessemceadoadois,pareceu-mequenãotinhamficadomais sóbrios. Depois de alguns discursos muito ruins, Abdalathifadormeceunoseiodesuadama.

Amine,pormaiscomplacentequefosse,inicialmenteachouruimqueAbdalathif tomasse tão grandes liberdades com ela. A sua vaidade sofriatambémdopoucocasoqueelepareciafazerdela.Oselogiosquelhefizerasobreamaneirapelaqualelamantiveraaconversaquetiveramhaviam-nadeixadoorgulhosaea faziamacreditarquemereciaumesforçodeleparaconversar ainda com ela. Apesar das atenções que devia a Abdalathif,aborreceu-se com a coação em que ele a retinha e irrefletidamente teriademonstrado a sua tristeza seAbdalathif, abrindopesadamente os olhos,não lhe tivesse perguntado, num tom brusco, que horas eram. Ele selevantousemesperarasuaresposta.

–Adeus!–disse-lhe,acariciando-abrutalmente.–Mandareivosdizerseamanhãpudercearaqui.

Comessaspalavras,quissair.PormaisqueAminetivessevontadequeele a deixasse livre, pensoudever retê-lo. Embora levasse a falsidade atéchorarpelasuapartida,elefoiinexorávelelivrou-sedosbraçosdeAmine,dizendo-lhequetinhaprazerqueelaoamasse,masquenãopretendiaserincomodado.

Logoqueele saiu,ela tocouacampainha,honrando-oemtombaixocomtodososepítetosqueelemerecia.Enquantoadespiam,suamãeveiolhefalarbaixo.AnotíciaquedavaaAminefê-laapressarassuasescravas;finalmente ordenou que a deixassem sozinha. Poucos momentos depoisquesuamãeeassuasescravasseretiraram,aprimeiravoltou.Elatraziaum negro malfeito, horrível de ser visto e que Amine contudo nãoperceberaantes,queelaveiobeijarcomarrebatamento.

– Amanzei – disse o Sultão –, se tirásseis aquele negro de vossahistória,pensoqueelanãoseriapior.

–Nãovejonoqueeleaestraga,Sire–respondeuAmanzei.–Euvosdirei,eu–replicouoSultão–,poisnãotendesespíritopara

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vê-lo. A primeira mulher do meu avô Schah-Riar dormia com todos osnegrosdoseupalácio.GraçasaDeus,foiumacoisabastantenotória.Comoconsequência disso, meu supracitado avô não-somente mandouestrangular aquela,mas todas as outrasque ele tevedepois, até aminhaavó Sherazade, que o fez perder esse hábito. Portanto, acho bastantedesrespeitosoque,depoisdoqueaconteceunaminhafamília,sevenhamefalardenegros,comoseeunãotivessequeternenhuminteressenisso.Euvosdeixopassaresse,umavezqueeleveio,masquenãovenhamais,porfavor!

Amanzei,depoisdeterpedidodesculpasaoSultãoporsuairreflexão,continuouassim:

–Ah,Massoud – disse Amine ao seu amante –, como sofri por ficardois dias sem te ver! Como odeio omonstro queme obceca! Como se éinfelizemsesacrificaràsuafortuna!

A tudo isso, Massoud respondia muito poucas coisas. Disse-lhecontudoque,emboraaamassecomtodaadelicadezapossível,nãoficavaaborrecidopelasatençõesdeAbdalathifparacomela.Emseguidaexortou-a a fazer tudo o que fosse conveniente para arruiná-lo e, entregando-sedepois a todo o furor das carícias de Amine, começaramuma espécie deconversaemqueaalegriadeenganarAbdalathifaumentavaaindamaisavivacidade. Antes de sair do gabinete, ela pagou muito generosamenteMassoudpeloextremoamorqueestelhetestemunhara.

Passoucomeleamaiorpartedanoiteeomandoufinalmentedevoltaquando viu nascer o dia; e a mãe de Amine, que por uma porta do seuaposento,quedavanodasuafilha,aliointroduzira,fê-losairpelomesmocaminho.

Amine passou a manhã experimentando todas as roupas queencomendaraeordenandoafeituradeoutras.FoioseudivertimentoatéahoramarcadaparairdançarnacasadoImperador.FoilevadaparaaliporAbdalathif;eramseguidosporalgumasjovenscompanheirasdeAmine,poralgumas jovensomrahs e por trêsdasmais renomadaspessoas cultas deAgra. Eles se empenharam pela vontade de louvar a magnificência deAbdalathif, o seu gosto, o seu ar nobre, a delicadeza do seu espírito e asegurança de sua sabedoria. Eu não concebia comopessoas que, por suaorigemouoseutalento,conservavamumaposiçãoprivilegiadapodiamseperdoar a baixeza e a falsidade dos seus elogios. Eles nem mesmoesqueciam de louvar Amine; mas, na verdade, era de uma maneira quedeveriafazê-lasentirqueelanãopassavadeumasubalternaeque,semoque se queria obsequiar a Abdalathif, ter-se-ia sido com ela tão familiar

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quanto o que pouco se procurava parecer. Depois dos louvores deAbdalathif, cada um se dispersou no salão com quem lhe agradou. Aconversa era, segundo os que falavam, ora viva, ora insípida, e no totalpareceu-mequesetratavacompoucadeferênciaasdamasquedeviamcearemcasadeAmineequeelasnãoseachavamabsolutamenteofendidas.

Finalmentedesceu-separacear.Comonãohaviaabrigoparaaminhaalma no lugar onde se comia, não pude ouvir os discursos ali feitos.Julgandopelos queprecederama ceia e os que a seguiram, não se podialastimarnãoestaraoalcancedeouvi-los.

Abdalathif,afogadonovinho,embriagadopeloselogiosqueoméritodescoberto em seu cozinheiro tornaramais vivos emaisnumerosos, nãodemorounadaparaadormecer.Umjovem,quetinhagrandeinteressequeele deixasse logo Amine em condições de dispor dela, ousou mesmodespertá-lopara lheobservarqueumhomemcomoele,encarregadodosmaioresnegóciose tãonecessárioaoEstadoquantooera,podiaàsvezespermitirqueosprazeresodistraíssem,masnãodeviajamaisseabandonara eles. Finalmente provou tão bem aAbdalathif o quanto ele era caro aopríncipeeaopovoqueoconvenceuanãopoderdemoraremirsedeitar,semqueoEstadocorresseoriscodealiperderoseuapoiomaisfirme.

Elesaiuetodomundocomele.AlgunsolharesquesurpreenderaentreAmineeojovem,quetãobemacabaradepassarumsermãoemAbdalathif,fizeram-meacreditarque logovoltaria a vê-lo.Ela começoua sua toaletecom um ar displicente e, livre desse acompanhamento esplêndido, maisincômodoaindaparaosprazeresdoqueoéparaoamor-próprio,ordenouqueadeixassemsozinha.

ArespeitávelmãedeAmine,finalmenteconquistadapelorelatoqueojovemlhefizerasobreosseussofrimentos(poisnãopoderiaacreditarqueuma alma tão bela pudesse ter sido sensível ao interesse), introduziu-odiscretamentenoaposentodesuafilhaesomenteseretiroudepoisqueelelheafirmounão fazeraAminenenhumapropostaquepudessealarmaropudordeumajovembemcomportadaemodesta.

–Na verdade – disseAmine ao jovem, quando ficaram sozinhos – éprecisoqueeuvosamecommuitaternuraparatermedecididoafazeroqueestou fazendo!Pois,enfim,estouenganandoumhomemdebem,quenaverdadenãoamoabsolutamente,masaquemcontudodeveriaserfiel.Estouerrada,sintobemisso:masoamoréumacoisaterrível,eoquehojeelemefazfazerestábemlongedomeucaráter.

–Euvossoumuitomaisreconhecido–respondeuojovem,querendobeijá-la.

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–Oh, por isso – replicou ela, repelindo-o – eis o que não quero vospermitir: confiança, sentimento, prazer em vos ver, eu vos prometi isso,massefossemaislongetrairiaomeudever.

– Mas, minha filha – disse-lhe o jovem –, estás ficando louca? Quejargão é esse de que te serves? Certamente, acredito que tens todo osentimentodomundo;masparaquequeresqueelenossirva?Seráparaissoquevimaqui?

–Vósvosenganastes–respondeuela–seesperastesdemimalgumacoisa diferente. Embora não ame absolutamente o senhor Abdalathif, fizvotodelheserfielenadapodemefazerfaltaraisso.

– Ah, pequena rainha – recomeçou o jovem, zombando –, paracomeçar,quefizestesumvoto,nãotenhonadaadizer,issoérespeitávele,pela raridade do fato, eu te permito permanecer fiel a ele. Eh! diga-me,fizestesmuitosvotosparecidosemtuavida?

–Nãozombeis!–respondeuAmine–soumuitoescrupulosa.–Oh,nãomeespantasnada!–replicouele.–Vós,moças,porpouco

quesejaispúblicas, ficais todascheiasdeescrúpulosegeralmente tendesmais do que as mulheres virtuosas. Mas a propósito do teu voto, teriasigualmentefeitobememmeinformarhápoucoedenãomefazermedaraotrabalhodevirpassaranoiteaqui!

– É verdade – respondeu ela com um jeito embaraçado –, mas mefizestespropostas tãobrilhantesque inicialmenteelasmedeslumbraram,confesso.

– Eh! – perguntou ele. – A reflexão as estragou, portanto? Olha –prosseguiu ele puxando uma bolsa –, aqui está o que te prometi; souhomem de palavra; aqui dentro existe o suficiente para curar os teusescrúpulos e te desligar de todos os votos que pudestes fazer. Concordacomisso,pelomenos!

–Comosoissimplório!–respondeuela,tomando-lheabolsa.–Vósmeconheceisbempouco!Euvosjuroquesemainclinaçãoquesintoporvós...

–Acabemos com isso! – interrompeuele. –Para teprovaroquantosounobre,eu tedispensodosagradecimentosemesmodessaprodigiosainclinaçãoquetenspormim:aindaporcima,notratoquefizemosjuntos,ela nãome serviuparanada. Estou te pagandomesmo tão caro como sefosseoprimeiroesabesqueissonãoestánasnormas.

–Parece-mequese–respondeuAmine–eufizerumaperfídiaporvóse...

–Seeunãotepagasse–interrompeuele–senãonaproporçãodoqueela te custa, eu te respondo que te teria por nada. Mas, uma vez mais,

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acabemos com isso. Embora tenhas tanto espírito quanto se possa ter, aconversameaborrece.

Pormais impaciência quemostrasse, não pôde impedir Amine, queeraaprópriaprudência,decontarodinheiroqueacabaradelhedar.Não,diziaela,quedesconfiassedele,maseleprópriopoderia terseenganado.Enfim,elasomenteseentregouaosseusdesejosquandoteveacertezadequeelenãocometeranenhumerrodecálculo.

Quandoodiajáianascer,amãedeAminevoltouedisseaojovemqueestava na hora de se retirar. Ele não tinha exatamente amesma opinião,emboraAminelhepedisseparaterabondadedezelarporsuareputação.Essa consideração certamente não o teria abalado e, apesar dos seusapelos, ele teria ficado se Amine não lhe tivesse prometido conceder nofuturotantasnoitesquantaspudesseroubardeAbdalathif.

Além de Abdalathif,Massoud e esse jovem com quem, às vezes, elamantinhaapalavra,Amine,quereconheceraautilidadedosconselhosquesua mãe lhe dera, recebia indiferentemente todos os que a achavambastantebelaparadesejá-la,contantoquefossembastantericosparafazê-la aceitar os seus suspiros. Bonzos, brâmanes, imãs, militares, cádis,homensdetodasasnações,detodososgêneros,detodasasidades,nadaera rejeitado. É verdade que, como ela tinha princípios e escrúpulos,custavamaisparaosestrangeiros,sobretudoàquelesqueelaolhavacomoinfiéis,doqueparaosseuscompatriotaseparaosqueseguiamamesmaleique ela. Somente ao preço de dinheiro eles podiam vencer as suasrepugnâncias e, depois que ela se dera, triunfar sobre os seus remorsos.Quanto a isso, ela fizeramesmo alguns arranjos singulares. Havia cultosque ela tinha mais horror do que a outros e sempre me lembrarei quecustoumais a umguebro, paradela obter complacências, doque custaraemsemelhantecasoadezmaometanos.

SejaporqueAbdalathifestivessemuitopersuadidodoseuméritoparaacreditarqueAminepudesseser infiel, sejaporque,de forma igualmenteridícula, ele contasse com os juramentos que ela lhe fizera de jamaispertencer senão a ele, por muito tempo ficou com ela na mais perfeitasegurançae,semumacontecimentoimprevisto,emboranãofosseinédito,évisívelqueeleteriaficadosempremergulhadoali.

–Compreendobem–disseentãooSultão.–Alguémlhedissequeelaerainfiel.

–Não,Sire–respondeuAmanzei.– Ah, sim – retomou o Sultão –, vejo agora que era uma coisa

completamentediferente;dáparaadivinhar;elepróprioasurpreendeu.

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–Nadadisso,Sire–recomeçouAmanzei–;eleteriaficadomuitofelizemsedesobrigarportãopouco.

–Nãoseimaisdoquesetratava,portanto–disseSchah-Baham.–Nofundo,nãotenhonadaavercomissoenãotenhonecessidadedeesquentaracabeçaparaadivinharalgumacoisaquenãomeinteressa.

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CAPÍTULOVI

Nãomaisextraordináriodoquedivertido

Chegaraomomentofatalemquetodasasgrandezas,asriquezasqueAmine possuía iam se desvanecer. Pelo menos, para se consolar da suaperda, restava-lhe a lembrança de um belo sonho e Abdalathif, supondoquetivessesonhado,nãosonharadeformatãoagradávelquantoela.

Jáháalgunsdias,euobservaraqueAmineestavamaistristedoqueonormal. De noite, a sua casa estava fechada e de dia ela via somenteAbdalathif. Escreveram-lhe muitas cartas e todas a haviam entristecido.Perdia-me em reflexões para adivinhar o que ela poderia ter e, nãopodendo descortiná-lo, fui suficientemente imbecil para acreditar quesomenteos remorsospelosquais estava agitada causavama tristezaqueelapareciater.

Emboraoconhecimentoquetinhadoseucaráterdevessemeproibiressa ideia, a dificuldade em descobrir a causa de sua inquietaçãome fezformá-la.Nãoleveimuitotempoparaverquemeenganaraquantoatudooquehaviaimaginado.

Numamanhã,Amine,comjeitoembaraçado,pensativo,sombrio,faziaa sua toalete. Abdalathif entrou. Ela enrubesceu ao vê-lo. Não estavaacostumada a vê-lo de manhã e essa visita inopinada desagradou-lhe.Confusa e tímida, mal ousou levantar os olhos para ele. Pela caracarrancudadeAbdalathif,pelosolharesterríveisquedevezemquandoelelhe lançava,nãoeradifícil pensarqueestavaatormentadoporuma ideiadesagradávelque,provavelmente,elaocasionara.Semdúvida,Aminesabiaoqueera,poisjamaisousouperguntar-lhe.Elepermaneceuemsilêncioporalgumtempo.

–Soisbonita!–disse-lheenfim,comumafúriairônica.–Soisbonita!Sim,muitofiel!Oh,porDeus,minharainha,porDeus!Saberãovosensinaraserbemcomportadaevoscolocaremsituaçãoemquesereis forçadaasê-lo,pelomenosporalgumtempo.

–Quediscursoéesse,senhor?–respondeu-lheAminecomaraltivo.–Seráaumapessoacomoeuque,emalgummomento,elepodesedirigir?Mediumpoucoasvossaspalavras,porfavor!

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A insolência de Amine, na situação presente, pareceu tão singular aAbdalathifque,deinício,elaoconfundiu,masfinalmente,vencendoafúria,eleaencheucomtodasas injúriasecomtodoodesprezoqueacreditavadeveraela.Aminequissejustificar,masAbdalathif,que,semdúvida,tinhatestemunhasconvincentesdaquiloqueacusava,ordenou-lhebruscamentequesecalasse.

AmineconcordounessemomentoqueAbdalathiftinharazãoparasequeixar,masparecia-lhe tãopoucopossívelque fossedela,quecustavaaacreditar.Porsuavez,elapensouterqueoprimi-locomcensurassobreassuasinfidelidades,fazer-lhemesmorepreensõesquantoàmáescolhaqueele fazia: todas coisas que ela não lhe dizia, acrescentou, somente peloextremointeressequeelaousavaterparacomoquediziarespeitoaele.

Um descaramento tão firme finalmente impacientou Abdalathif aopontodefazê-lopensaremdesaparecercompletamente.Amine,vendoqueele não se iludia com a sua altivez nem com as suas reprimendas, etemendo, pela fúria em que o via, que essa cena terminasse para ela damaneira mais trágica, finalmente pensou que devia tomar o partido daslágrimas e da submissão. Foi em vão, nada acalmou Abdalathif. Não vosdirei o que ele tinha, mas nunca vi um homem tão zangado. A cadamomento ele entrava em acessos de fúria durante os quais, sem dúvida,teriaquebradotudonacasa,seoquealiestavanãolhepertencesse.Essasábiaconsideraçãoodetinhanumestrépitoindecentequetalvezotivessealiviado, e a violência que fazia contra si para se conter quanto a issoaumentavaasuacóleracontraAmine.Oquemaisoultrajavaéquetivesseousadofaltardemaneiratãocruelaoquesedeviaaumhomemcomoele.Somenteissoparecia-lheinconcebível.

Depois de ter dito todas as impertinências que a sua fúria e a suapresunção lhe ditavam alternadamente, apoderou-se em geral de tudo oquederaaAmine.Elaesperava serabandonadae se consolava com isso,lançandodevezemquandoosolhossobreosdiamanteseasoutrascoisasqueacreditavaquelherestariam.Mas,quandoviuoimpiedosoAbdalathifdispostoatudoretomar,elagritouda formamaisagudaemaisdolorosa.Então a sua mãe entrou, jogou-se mil vezes aos pés de Abdalathif eacreditou acalmá-lo muito confessando-lhe que era ummaldito bonzo acausadetudooqueestavaacontecendo.

Longe de enternecer Abdalathif com o que se dizia do bonzo, istopareceudeterminá-loausardetodoorigorpossível.

– Infelizmente – acrescentou tristemente a mãe de Amine –, fomosbastante punidas por confiarmos num infiel! Minha filha sabe o que eu

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pensavaequeeusemprelhedissequeissosomentepodialhetrazerazar!Duranteesseslamentos,Abdalathif,tendonasmãosumalistadetudo

oquederaaAmine,fazia-serestituirtudoporordem.Quandoissoacabou:–Quantoaodinheiroquelhedei–disseeleaAminecomumarsério–

euvosdeixo.Nãodependeudemim,pequenarainha,quenãotivésseissidomaisfeliz.Estamortificação,semdúvida,vostornarámaisprudente:desejoisso sinceramente. Vamos – acrescentou ele –, nãonecessitomais de vósaqui.DaigraçasaDeusqueeunãolevemaisadianteaminhacólera!

Com essas palavras, ordenou aos seus escravos que as mandassemsair,não ficandomaisemocionadocomas injúriasatrozesqueentãoelasvomitavam contra ele do que ficara com as lágrimas que ele as viuderramar.

AcuriosidadedevercomoAmineusariaasuahumilhação,apesardarepugnância que os seus modos me causavam, fez-me decidir segui-lanesse reduto sombrio de onde Abdalathif a tirara e para onde retornou,escondendoasuavergonhaeadordenãotersabidoarruiná-lo.

Foinesse lugarque fui testemunhados seus arrependimentos edasimprecaçõesdesuavirtuosamãe.Osrestosdesuafortuna,queaindaeramconsideráveis,finalmenteasconsolarampeloqueperderam.

–Poisbem,minhafilha!–diziaumdiaamãedeAmine.–Seráqueéumadesgraçatãograndeoquevosaconteceu?Concordoqueessemonstroquetínheiseraapróprialiberalidade;maseleéoúnicoaquempoderíeisagradar? Aliás, se não encontrásseis um único tão rico, acreditaríeis serinfelizporcausadisso?Não,minhafilha:ondefaltaaespécieéprecisosecompensar pelo número. Se quatro não são suficientes para substituí-lo,pegaidez,mesmomaissefornecessário.Talvezmedireisqueéumacoisasujeitaaacidentes:éverdade.Masquandonoscolocamosacimadenada,quetememostudo,ficamosnoinfortúnioenaobscuridade.

Pormais que Amine quisesse aproveitar desses sábios conselhos, oabandonoemqueseencontravanãolhepermitiuservir-setãocedoquantooteriadesejado.AsuaaventuracomAbdalathifdera-lhetantoemAgraareputaçãodeumapessoapoucoseguranocomércioque,excetuando-seofielMassoud,cujaternuraeraatodaprova,durantemuitotempoviemsuacasa somente algumas colegas que vinham vê-la, sem dúvida mais paragozardasuadesgraçadoqueparaconsolá-la.

O tempo,queapaga tudo, apagara finalmente aopinião ruimque setinhadeAmine. Pensou-seque elamudara, imaginou-seque as reflexõesquelhedeixaramtempoparafazerateriamcuradodafúriadeserinfiel.Osamantesvoltaram.Umsenhorpersa,quechegounaqueletempoemAgrae

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que conhecia as suas anedotas somente de forma medíocre, viu Amine,achou-a bonita e meteu-a na cabeça, tanto mais que um desses homensobsequiosos, que somente se ocupam do nobre cuidado de proporcionarprazeres aos outros, assegurou-lhe que, se ele tivesse a felicidade deagradar a Amine, ele deveria lhe ser tanto mais grato porque seria aprimeirafraquezaqueelateriaasereprovar.

Qualquer outro teria achado a coisa impossível. O persa somente aachou extraordinária. Essa novidade o tocou e, com a ajuda doirrepreensível testemunho da virtude de Amine, comprou no preçomaisaltoosfavoresque,emAgra,começavamasertaxadosnopreçomaisbaixoeentretantoaindanãoeramtãodesprezadosquantodeveriamtê-losido.

EssatristecasaemqueAminemorava,aindaumavezfoiabandonadaporumpalácioimponente,ondebrilhavatodoofaustodasÍndias.Nãoseise Amine empregou de modo sábio a sua nova fortuna: a minha alma,rejeitandoestudarasua, foiprocurarobjetosmaisdignosdeocupá-la,nofundo talvez igualmente desprezíveis, mas que, mais embelezados, arevoltavammenoseadivertiammuitomais.

Voei para uma casa que, pela sua magnificência e pelo gosto alireinanteem todosos lados, reconheci comosendoumadaquelasemquegostavadepermanecer,ondesempreseachaoprazereagalanteriaeondeoprópriovício,disfarçadosobaaparênciadoamorembelezadoportodaadelicadezaepor todaaelegânciapossíveis, jamais seofereceaosolhosanãosersobasformasmaissedutoras.

A dona desse palácio era encantadora e, pela ternura que tinha nosolhos tanto quanto pela sua beleza, julguei que a minha alma aliencontrariadiversões.Permaneciporalgumtemponoseusofásemqueelasomentesedignassealisentar.Todavia,elaamavaeeraamada.Perseguidaporseuamante,perseguidaporsimesma,nãohaviasinaisdequeeu lhefossesempretãoindiferentequantoelapareciatersecomprometido.

Quandoentreinasuacasa,elejáobtiveraapermissãodelhefalardoseu amor mas, embora fosse amável e insistente, e já a tivesse mesmopersuadido,aindaestavabemlongedevencer.

Fenime (é assimque ela se chamava) renunciava à sua virtude comdificuldade, e Zulma, muito respeitoso para ser atrevido, esperava dotempo e dos seus cortejos que ela tivesse por ele tanto amor quanto eletinhaporela.MelhorinformadodoqueeledasdisposiçõesdeFenime,eunãoconcebiaqueelepudesseconhecertãopoucoasuafelicidade.Fenime,naverdade,aindanãolhediziaqueelaoamava,masosseusolhossempreo diziam. Estava lhe falando de alguma coisa indiferente? Sem que ela o

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quisesse, mesmo sem percebê-lo, a sua voz se enternecia, as suasexpressões tornavam-semais vivas. Quantomais constrangimento ela seimpunhacomele,maiselalheassinalavaoseuamor.Nadadoseuamantelhepareciaindiferente:dele,elatemiatudo,easpessoasquemenosamava,aparentemente, erammelhor tratadas do que ele. Algumas vezes ela lheimpunhasilêncioe,esquecendoissonamesmahora,continuavaaconversaque quisera terminar. Todas as vezes que a encontrava sozinha (e semperceberelalhedavamilocasiões),aemoçãomaisternaemaisacentuadaapossava-sedelainvoluntariamente.SenodecorrerdeumencontrolongoeanimadoocorriaqueZulmabeijassea suamãoou se lançasseaos seuspés,Fenimeseassustava,masnãoseaborrecia.Eramesmode forma tãoternaquesequeixavadosseusatrevimentos!

–E,contudo–interrompeuoSultão–,elenãooscontinuava?– Não, com certeza, Sire – respondeu Amanzei – quanto mais ele

estavaapaixonado...–Maiserabobo–disseoSultão–,dáparaver.–Oamornuncaémaistímido–retomouAmanzei–doquequando...–Sim,tímido–interrompeuaindaoSultão–:eisumbeloconto!Será

que ele não via que deixava essa dama impaciente? No lugar daquelamulher,euoteriamandadoemboraparasempre,euqueestouvosfalando!

–Nãohádúvida–retomouAmanzei–dequecomumacoqueteZulmanãoestariaperdido,masFenime,querealmentedesejavanãoservencida,comunicavaaoseuamanteasuatimidez.Aliás,quantomaisdeferênciaeletinhaparacomosescrúpulosdeFenime,maiseleasseguravaasuavitória.Ummomentodadopelocapricho,senãoéaproveitado,talvezjamaisvolte,masquandoéoamorqueodá,parecequequantomenosoaproveitamosmaiseleseapressaemdevolvê-lo.

– Entretanto ouvi dizer – replicou Schah-Baham – que asmulheresnãogostamnadaquenãoasadivinhemos.

– Isso pode acontecer algumas vezes – respondeu Amanzei –, masFenime pensava de modo diferente e jamais amava tanto Zulma do quequandoeleforamaisrespeitosodoqueelaprópriaaindanãoodesejara.

–E–perguntouaindao Sultão– acontecia-lhede se equivocar comfrequência?

–Sim,Sire–respondeuAmanzei–,eàsvezesdemodotãogrosseiroqueeraridículo.Umdia,porexemplo,entrounacasadeFenime.Hámaisdeumahoraque,entregueàsuaternura,elasomenteseocupavadele.Elacomeçaradesejando-o fortemente e, coma sua imaginação aquecendo-seporgraus,elaseabandonouvoluptuosamenteàsuadesordem.Estavano

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ponto mais alto quando Zulma se apresentou aos seus olhos. A suaperturbação aumentou, ela enrubesceu mais ao vê-lo. Ah, se ele tivesseadivinhadooqueentãofaziaFenimeenrubescer!Setivessemesmoousadoabraçá-la! Mas ele se sentia muito mal com ela por algumas liberdadesmuito inocentes que na véspera quisera tomar e empregou em lhe pedirperdãootempoemqueelanãoteriaficadoofendidacomnada.

–Ah,oestúpido!–exclamouoSultão.–Nãoécrívelqueseseja tãobobo!

– Este fato, contudo, não deve vos espantar, Sire – recomeçouAmanzei. – Durante todo o tempo em que fui sofá, vi perderem maismomentos do que vi apreendê-los. As mulheres, acostumadascontinuamenteanosesconderoquepensam,ficamsobretudoatentasparanosdissimularosímpetosqueaslevamàternuraeumadelastalveztenhaque se gabar do fato de jamais ter sucumbido, devendo menos essavantagemàsuavirtudedoqueàopiniãoquedelasoubedar.

Lembro-meque,estandoemcasadeumamulhercélebreporsuararavirtude,aliestivepormuitotemposemnadaverquedesmentissea ideiaquesetinhadelanomundo.Éverdadequeelanãoerabonitaequesedeveconvirquenãoexistemquaisquermulheresaquemsejamais fácil seremvirtuosasdoqueaquelasaquemfaltamatrativos.Estaacrescentavaàsuafeiúra um caráter de espírito duro e severo, que assustava pelo menostanto quanto a sua aparência. Embora ninguém tivesse ousado tentartorná-lasensível,dequalquermodoseacreditavaserimpossívelqueelasetornasse assim.Não seiporqual acaso,umhomemmaisousadooumaiscaprichoso do que os outros ou que não acreditava na virtude dasmulheres,encontrando-seumdiasozinho juntodela,ousou lhedizerqueeleaachavaamável.Emboraotivesseditodemodobastantefrioparaquenãosedessecrédito,umdiscursotãonovoparaelacausou-lheimpressão.Elarespondeumodestamente,masperturbada,quenãoeraabsolutamentefeita para tais sentimentos. Ele beijou a suamão; ela estremeceu. O seujeitoembaraçado,oseurubor,obrilhoqueimediatamenteanimouosseusolhosforamgarantiassegurasdadesordemqueselevantavanasuaalma.Elelherepetiu,apertando-anosbraçoscomarroubo,queelalhecausavaaimpressão mais forte. Não sei (enquanto ela continuava a se espantar)comoelefezparalheprovarquediziaaverdade,masessamodéstiacomaqualelasearmaracomeçouacederàevidência.Dequalquernaturezaquefosseaprovaqueelelheoferecia,convencendo-a,eleacabouporsubjugá-la.Sejaporqueassuntos tãonovosparaela lhe inspirassemrespeito, sejaporquenessemomentosentissecansaçopelopesodasuavirtude,elamal

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se lembrou que o decoro pedia-lhe pelomenos que combatesse e ela seentregou commais presteza do que as mulheres mesmo acostumadas aresistirmenos.Esseexemploealgunsoutrosdomesmoestilofizeram-meacreditarqueexistemmuitopoucasmulheresvirtuosasquenãosepossaatacarcomsucessoequenãoexistemmulheresmaisfáceisparasevencerdo que as que têm menos o hábito do amor. Mas vou voltar aos doisamantescujahistóriaestavacontandoaVossaMajestade.

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CAPÍTULOVII

Ondeseencontrarámuitacoisaaserretomada

Uma noite, deixando Fenime, Zulma perguntou-lhe quando poderiarevê-la. Embora temesse muito a sua presença, não sabia ficar sem ele;assim,depoisdesonharporalgumtempo,ela lherespondeuquepoderiavê-lanodiaseguinte.

Fenime,quesentiabemoperigoquecorriaemficarsozinhacomele,pensaraemtermuitagenteàvoltaeentretantomandoudizer,nodiadoencontro,queelanãoestavaparaninguém,excetoparaZulma.Parecia-lheque,quandoeleencontravaalguémemsuacasa,quantomenos liberdadetivesse de lhe falar do seu amor, por mil coisas imaginadas, mais eletentava fazê-la compreender que estava perpetuamente preocupado comisso,enasociedadeseétãosagaz!ElaentendiatãobemZulma!Amaldadedos espectadores não podia lhes dar essa perspicácia que ela deviasomenteaoamor?Zulmaeramenosperigosoparaelaquandoestavamasós, pois então ele sabia ser respeitoso, enquanto que, diante detestemunhas ele não era prudente o suficiente; portanto, acompanhado,seriaprecisovê-loomenospossível.

Aliás,ele ficavatãotristequandonãopodiafalarcomela!Nãohaviadesumanidadeexcessivaemprivá-ladeumprazerqueatéentãoelatinhaencontradotãopoucosriscosemlheconceder?

Todas essas razões haviam feito Fenime decidir, ou pelomenos elapensavaisso,efundamentavasempreounoshábitosouemcoisasquelhepareciamigualmentesensatasaquiloquesomenteoamorafaziafazeremproldeZulma.

Nesse mesmo dia estivera extremamente tentada a fazer a suafelicidade.Elasedisseratudooquepodesedizeraumamulherquequervencer a simesma, sobre o que ela opõe ao seu amor; exagerara para simesmaaconstânciaeoscortejosdeZulma,essedesejotãoprementequeeletinhadeagradá-la:elaselembravamesmocomprazerqueelesemprepreferiraserenganadoaserinfiel.Aliás,Zulmaerajovem,espirituoso,bemfeito, todas as coisas sobre as quais ela pensava não insistir mas que,mesmoassim,nãodeixavamdeserasqueatocavammais.

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–Quem,diabos,aprendia,então?–perguntouoSultão.–Estamulhermeirrita!

– Oito anos de virtude – respondeu Amanzei –, oito anos dos quaisumaúnicafraquezaialhetirartodoomérito.

–Defato–exclamouoSultão–,aíestáoquesechamadeumaperda!–Paraumamulherquepensa,elaémaisconsideráveldoqueVossa

Majestade acredita – respondeu Amanzei. – A virtude está sempreacompanhada de uma paz profunda; ela não diverte, mas satisfaz. Umamulher bastante feliz por possuí-la, sempre contente consigo mesma,jamaispode seolhar senãocomcomplacência; a estimaque tempor si ésemprejustificadapeladosoutroseosprazeresqueelasacrificanãovalemosqueosacrifíciolheproporciona.

– Dizei-me um pouco – disse o Sultão –, o senhor acredita que, setivessesidomulher,euteriasidovirtuosa?

–Naverdade,Sire–respondeuAmanzei,estupefatocomapergunta–,nãoseinadasobreisso.

–Porquenãosabeisnadasobreisso?–perguntouoSultão.–Masécrívelquesefaçamtaisperguntas?–disseaSultana.– Não é à senhora que estou perguntando – replicou ele. – Quero

somentequeAmanzeimedigaseeuteriasidovirtuosa.–Sire,pensoquesim–recomeçouAmanzei.–Poisbem,meucaro!Osenhorseengana–retomouSchah-Baham–,

eu teria sido exatamente o contrário. De resto, o que digo sobre isso –acrescentou,dirigindo-seàSultana–nãoéparavosdesgostarporserdesvirtuosa,vós.Oquepensosobre issodiz respeito somenteamimepodeser que se eu fosse mulher mudaria de opinião: sobre essa espécie decoisas,cadaumpensacomoquiserenãoforçoninguém.

– O vosso senhor está embaraçado – disse sorrindo a Sultana aAmanzei–,evosrespondoqueelevosserámuitogratosecontinuardesovossoconto.

–Oqueouçonãoéruim–replicouoSultão–,nãodiriamquesoueuqueestouinterrompendo?

–Zulmaentrou–retomouAmanzei–,e,emboraviessemaiscedodoqueelapensava,Fenimenãodeixoudelhedizerqueelevinhamuitotarde.

–Comoestoufeliz,Fenime–disse-lheeleternamente–,quemeacheisculpado!

Somente nesse instante Fenime se apercebeu da força daquilo queacabavadedizer.Elaquissedesculparenãosoubeoqueresponder.Zulmasorriudoembaraçoquevianelaeelaenrubesceuportê-lovistosorrir.Ele

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lançou-seaosseuspésebeijou-lheamãocomumardorextremo.Ela fezummovimentopararetirá-la,mas,comoelenãofaziaesforçospararetê-la,elaadevolveu.

Zulma,contudo,dizia-lheascoisasmaisternas.Elanãolherespondia,masoescutavacomumaatençãoeumaavidezquecertamenteelateriasecensuradosetivessepodidodeslindarosseusimpulsos.Oseucoloestavaumpoucodescoberto,elapercebeuqueosolhosdeleparaalisedirigiamequiscobri-locomoseuvestido.

–Ah,cruel!–disse-lheZulma.Essa exclamação bastou para reter amão de Fenime. Para permitir

queZulmausufruíssedo leve favorque lhe concedia, sempoder concluirnadacontraela,fingiuteralgoaajeitarnopenteado.OsolhosdeZulmanãopuderam,semseinflamarem,sefixarpormuitotemposobreoobjetoqueFenime lhe abandonara. Inicialmente ela se entregou ao prazer de seradmirada por quem amava, os seus olhos ficaram perturbados, olhouZulmademaneiralânguidaepareceumergulhadanomaisternodevaneio.

–Vamos,Zulma!–disseentãooSultão.–Maselenãoviaisso,ele!Ah,abestacruel!

– Fenime, apesar da desordem que dela se apossava – prosseguiuAmanzei–,percebeuadoseuamantee,temendoigualmenteaemoçãodeZulmaeasua,levantou-sebruscamente.Elefezalgunsesforçospararetê-lae,não tendomais forçapara lhe falar, regandoasuamãocomprantosque espalhava, tentou fazê-la compreender o quanto estava tocado pelacruelresoluçãoqueelatomava.TantorespeitoacaboucomovendoFenime,mas,comooamoraindanãoavenceracompletamente,elatriunfoutantosobre os seus próprios desejos quanto os do seu amante, para ela talvezmaisperigososdoqueosseuspróprios.

Logo que se achou livre dos braços de Zulma, fez-lhe sinal para selevantar; ele obedeceu. Por algum tempo eles se olharam, guardando osilêncio.Fenimedisse-lheenfimqueelaqueria jogar.Pormaisdeslocadoque esse desejo parecesse a Zulma, ele não sabia resistir às vontades deFenimeepreparou tudo, elemesmo, com tantavivacidadecomose fosseeleque tivessedesejadoo jogo.Essanovaprovade sua submissão tocouextremamenteFenimeeeuaviprestesalhepedirperdãoporumafantasiaqueentãoelaachavaridícula.

O arrependimento de Fenime não durou tanto tempo quanto seriaprecisoparaa felicidadedeZulma, equantomaisela se sentia comovidamais achava quedevia esconder a sua perturbação. Pôs-se então a jogar,mas sentiu um tédio que logo a fez saber que o que imaginara contra

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Zulma,paraela, eraumrecursobem fraco.Entretantonãoquisacreditarinicialmente que as disposições em que se achava quanto a ele lhecausassemesselangoremquesesentiae,atribuindo-ounicamenteaojogoque escolhera, apressou o seu amante para começar um outro. Eleobedeceu suspirando e mesmo assim ela não ficou menos atormentada.Essadesordemqueelaacreditavaacalmar,essasternasideiascomasquaisprocuravasedistrair,pelaviolênciaquefaziacontrasi,pareciamaumentaredominarmaisasuaalma.Abismadaemseudevaneio,elaacreditavaolharoseujogoeseocupavasomentedeZulma.

Oarcompenetradoquevianele,osprofundossuspirosqueeledava,assuaslágrimasqueelaviaprestesacorrerequesomenteoseurespeitoporelapareciaaindareter,acabaramenternecendoFenime. Inteiramenteentregue aos ternos impulsos que ele lhe inspirava, ela se dedicouunicamenteaolhá-lo.Sejaenfimporqueficouconfusacomoestadoemquese encontrava ou que não pôdemais sustentar os olhares de Zulma, elaapoiouasuacabeçanamão.Zulma,assimqueaviunessaatitude,jogou-seaosseuspés.OuFenime,muitoocupada,nãooviuounãoquisimpedi-lodefazer isso. Ele aproveitou dessemomento de fraqueza para beijar amãoqueelatinhalivreeabeijoucommaisexaltaçãodoqueumamantecomumsenteaogozardetudooquepodetorná-lofeliz.

Satisfeitocomumfavorque,pelo tempoemqueestavam juntos,eleaindanão ousava esperar, quis procurar nos olhos de Fenimequal deviaseroseudestino.Elacontinuavacomacabeçaapoiadanamão.Elepegou-adocemente e Fenime, descobrindo o rosto, deixou vê-lo coberto por suaslágrimas. Esse espetáculo comoveu Zulma a ponto de fazer ele própriochorar.

–Ah,Fenime!–exclamouele,dandoumprofundosuspiro.–Ah,Zulma!–respondeuelaternamente.Comessaspalavraselesseolharam,mascomaquelaternura,aquele

ardor,aquelavolúpia,aqueledesvarioquesomenteoamor,eoamormaisverdadeiro,podefazersentir.

Zulma finalmente,comavozentrecortadapelossuspiros, retomouapalavra:

– Fenime – disse ele com exaltação. – Ah! se for verdade quefinalmente o meu amor vos toca e que ainda temeis dizê-lo, deixai pelomenos a cargo desses olhos encantadores, desses olhos que adoro, aliberdadedeseexplicaremameufavor.

–Não,Zulma–respondeuela–,euvosamoenãomeperdoareidevossuprimiralgodeumtriunfoquemerecestestãobem.Euvosamo,Zulma;a

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minhaboca,omeucoração,osmeusolhos,tudodevedizê-loetudovosdizisso...Zulma!meuqueridoZulma!Sou felizsomenteapartirdomomentoemquepossovosrevelartudooquesintoporvós!

Diante de palavras tão doces e tão pouco esperadas, Zulma pensoumorrercomasuaalegria.Pormaiordesvarioemqueelaomergulhasse,elenão esqueceu que Fenime podia torná-lo ainda mais feliz. Embora nãoignorassequeaconfissãoqueelalhefaziaoautorizavaarealizarmilcoisasqueatéessemomentoelemalousaraimaginar,orespeitoquetinhaporelavencendoos seus desejos, ele quis esperar que ela acabasse de decidir oseudestino.

Fenime conhecia muito Zulma para se enganar com o motivo queinterrompiaoseuempenho.Elaoolhouaindacomumaextrematernurae,cedendofinalmenteaosdocesimpulsosqueaagitavam,precipitou-separaelecomumímpetoqueostermosmaisforteseaimaginaçãomaisardentejamaispoderiamdescrevercorretamente.

Quanta verdade! Quanto sentimento em seus arroubos! Não, jamaisum espetáculo tão enternecedor se apresentara aosmeus olhos! Ambos,embriagados, pareciam ter perdido toda a posse dos seus sentidos. Nãoeramabsolutamenteesses impulsosmomentâneosqueodesejodá,eraoverdadeiro delírio, essa doce fúria do amor, sempre buscados e tãoraramentesentidos.

–ÓDeuses!Deuses!–diziadevezemquandoZulma,sempoderdizermaiscoisas.

Fenime, por seu lado, abandonada a toda a sua agitação, apertavaternamenteZulmanosseusbraços,separava-sedelesviolentamenteparaolhá-lo,lançava-senelesnovamente,olhava-oaindaumavez.

– Zulma – disse ela, arrebatada –, ah, Zulma! como conheci tarde afelicidade!

Essas palavras eram seguidas por esse silêncio delicioso ao qual aalma tem prazer em se entregar, quando faltam as expressões aosentimentoqueainvade.

Zulma,contudo,tinhaaindamuitascoisasadesejareFenime,aquemo ardor as tornava nesse momento quase tão necessárias quanto a elemesmo, longe de querer opor algo aos seus desejos, a eles se entregoucegamente.Pareciamesmoqueele faziamaisporeladoqueelaparaele.Quantomaissedefendiacontraoseuamor,maiselaacreditavaterquelheprovar o quanto a sua resistência lhe custara e lhe dar uma espécie desatisfação pelos tormentos que o fizera sentir por tanto tempo. Ela teriaenrubescido por se armar com essa falsa decência que com tanta

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frequência perturba e corrompe os prazeres e que, parecendo pôrincessantemente o arrependimento ao lado do amor, deixa, no seio daprópria felicidade, uma felicidade ainda mais doce para ser desejada. Aterna, a sincera Fenime teria se sentido culpada para com Zulma sehouvesselheroubadoalgumacoisadaprópriapaixãoqueelelheinspirava.Ela voava diligentemente na frente de suas carícias e, como algunsmomentosanteselajulgavaresistiraele,punhaentãotodaasuaglóriaemconvencê-lomesmodesuaternura.

Num desses intervalos que, por mais curtos que fossem, elespreenchiampormilternasexaltações:

–Fenime–disse-lheZulmacomoolharmaisapaixonado–, colocaisbastanteverdadeemtodososvossosimpulsos,paraquealgumasvezeseunão devesse acreditar que me amáveis: por que retardastes por tantotempoessaconfissão?

– O meu coração decidiu-se prontamente pelo vosso – respondeuFenime –, mas a minha razão por muito tempo se opôs aos meussentimentos. Quanto mais eu me sentia capaz de sentir a paixão maissincera,mais temiame engajar. Sem ter amado, sentia que exigiriamaisternura do que poderia inspirar. Somente vós me fizestes saber queexistem ainda homens capazes de amar; vósme tínheis tocadomas nãovencido.Euvosconfessaria,Zulma?Essavirtudequehojevossacrificocomtantoprazer,pormuito tempocombateucontravós.Não imaginava, semdesespero,queumaúnicafraquezaiameextasiartantopeladocecertezadequeeueraestimávelquantopelafelicidadedeserestimada.Ah,Zulma–acrescentouela,apertando-onosbraços–comome tornasodiosos todososmomentosquenãopasseiabsolutamentea teprovaraminhaternura!Quem?eu,Zulma,eupuderesistirati!Eutefizderramarlágrimasenemsempreforamasquehojederramas!Perdoai-me;eueramaisinfelizdoquetumesmo!Sim,Zulma,sempremecensurareiporterpodidoacreditarquesertuanãodevessepreenchertodososmeusvotosemesubstituirtudo.Tumeamavaseeupodiadevanearcomaestimadosoutros!Ah,possoaindamereceratua?

–Semdúvida,VossaMajestadeadivinha–continuouAmanzei–qualfoiacontinuaçãodeumaconversadessetipo.Pormaisprazerqueelametenha dado, ser-me-ia impossível lembrar os discursos dos dois amantesque, enebriados consigo mesmos, se interrogavam e jamais se davam otempopararesponderecujasideias,semternenhumaligaçãoentãoentresi, somente descreviam a desordem de suas almas e não deviam ter umterçodomesmoencantoqueparaeles.Fiqueisurpresocomavivacidade

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dasuapaixãoecomosrecursosquenelaencontravam.Elessesepararamsomentemuitotardee,malZulmatinhasaído,Fenime,quelheconsagraratodososseusmomentos,pôs-sealheescrever.

Zulma voltou no dia seguinte bem cedo, sempre mais apaixonado,sempremais ternamente amado, para usufruir aos pés ou nos braços deFenimeosmomentosmaisdeliciosos.

Apesardaminhainclinaçãoemmudarsemprededomicílio,nãopuderesistiraodesejodesaberseZulmaeFenimeseamariampormuitotempoeessacuriosidademeprendeuemcasadelacercadeumano;masvendoenfimqueoseuamor,longedediminuir,pareciatomarnovasforçasacadadia, e que eles acrescentaram mesmo a todas as delicadezas, a toda avivacidadedapaixãomais ardente, a confiançae a igualdadedaamizademaisterna,fuibuscaremoutrolugaraminhalibertaçãoounovosprazeres.

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CAPÍTULOVIII

AosairdacasadeFenime,entreiemoutraonde,vendosomenteessascoisasque,detantoseremcomuns,nãovalemapenaseremolhadas,nemcontadas, não fiquei por muito tempo. Ainda passei alguns dias semencontrar,nosdiferenteslugaresparaondeaminhainquietudeeaminhacuriosidademe conduziram, nada queme divertisse ou que pudessemeparecer novo. Aqui, as pessoas se entregavam por vaidade; acolá, ocapricho,ointeresse,ohábito,mesmoaindolênciaeramosúnicosmotivosdas fraquezas de que me tornava testemunha. Com bastante frequênciaencontrava esse impulso vivo e passageiro que se honra como nomedegosto,masemnenhumlugarvolteiaencontraresseamor,essadelicadeza,essaternavolúpiaque,emFenime,portantotempoconstituíramaminhaadmiraçãoeosmeusprazeres.

Cansadodavidaerrantequelevava,convencidodequeosentimentocom o qual incessantemente queremos parecer estar preenchidos écontudoaquelequemenossentimos,comeceiameaborrecercomomeudestinoeadesejarvivamenteencontraressaocasiãoquedeviaterminarosuplícioaoqualestavacondenado.

– Que costumes! – exclamava eu às vezes. – Não, Brama que osconhece lisonjeou-mecomumavãesperança;elenãoacreditouque, comessegostodesenfreadopelosprazeresquereinaemAgraeessedesprezopelosprincípiosquealiestãogeralmentedifundidos,eupudessealgumdiaencontrarduaspessoascomoeleaspede,paramechamarparaumaoutravida!

Inteiramenteentregueaessaspenosasreflexões,transportei-meparaumacasaondetudotinhaoarcalmo.Umamoça,deunsquarentaanos,alihabitavasozinha.Emboraaindaestivessebastantebempara,semridículo,entregar-seaoamor,elaerabemcomportada,fugiadosprazeresruidosos,via poucas pessoas e parecia mesmo ter procurado menos fazer umasociedade agradável doque a viver compessoasque, sejapor sua idade,seja pela natureza dos seus empregos, pudessem colocá-la ao abrigo dequalquersuspeita.Assim,emAgrahaviapoucascasasmaistristesdoqueasua.

Entreoshomensqueiamàsuacasa,aquelequeelapareciavercom

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maior prazer e que tambémmenos a deixava era um homem já de umacertaidade,sério,frio,reservado,maisaindaportemperamentodoqueporestado,emborafossechefedeumcolégiodebrâmanes.Eleeraduro,odiavaos prazeres e não acreditava que houvesse algum pelo qual a alma doverdadeirosábiopudessenãoseraviltada.Poressemauhumor,poresselado exterior sombrio, inicialmente eu o tomei por uma dessas pessoasmaisferozesdoquevirtuosas,inexoráveisparacomosoutros,indulgentesparaconsigomesmas,ecensurandoasperamenteempúblicoosvíciosaosquais elas se entregam em segredo: finalmente o tomei por um falsodevoto. Fatme estragara terrivelmente omeu espírito quanto às pessoascujo lado exterior era bem comportado e regrado. Embora nunca tivessemeiludido,pensandomaldeles,enganava-mequantoaMoclesequandooconhecielemereciaqueeutivesseoutrasideiasquantoaele.Suaalmaeraentãodireita,e suavirtude, sincera.TodaAgraacreditavaque fossemaisbemcomportadodoquequeriaparecer.Ninguémduvidavadequea suaaversãopelosprazeresfosserealeque,pormaisdurosquefossemosseusprincípios,elenãoosseguissesempre.Tinha-sedeAlmaide(éonomedamoça em cuja casa eu estava) ideias igualmente favoráveis. A estreitaligaçãoexistenteentreelaeMoclesnãoderamargemaquaisquersuspeitasquelhesfossemdesvantajosase,qualquerquefosseamaldadedopúblicosobreasligaçõesíntimas,nãohavianinguémquenãorespeitasseadelesequenãoacreditassequeela fossebaseadasobreogostoque tinhampelavirtude.

Mocles vinha todas as noites à casa de Almaide e, estivessem elesacompanhadosou sozinhos, as suasaçõeseram irrepreensíveiseos seusdiscursossábiosecomedidos.Normalmente,elesdiscutiamalgunspontosdemoral.Mocles,nessasdiscussões, fazia semprebrilharo seu sabereasuaretidão.Somenteumacoisamedesagradava:eraqueduaspessoas,tãosuperioresàsoutrasequecontinhamtodasassuaspaixõesemlimitestãoestreitos, não tivessem absolutamente triunfado sobre o orgulho e quemutuamenteelassepropusessemcomoexemplo.Frequentementemesmo,não repousando na estima que tinham um para com o outro, cada umempreendia o seu panegírico e se louvava com uma complacência, umcalor, uma vaidade com a qual, certamente, a sua virtude não deveria seorgulhar.

Emboraumacasa tão tristemeentediassemuito,decidiali ficarporalgum tempo. Não que esperasse ali me divertir um dia ou encontrar aminha libertação. Quanto mais pensava que Almaide e Mocles erambastante perfeitos para operá-la, menos ousava esperar deles uma

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fraqueza; mas, cansado ainda das minhas corridas, enojado do mundo,sentindo então com horror a que ponto ele me pervertera, não ficavaaborrecido em ouvir falar de moral, seja porque a novidade que elasignificavaparamimfosseunicamenteoquea tornavaagradável,ouquenasdisposiçõesemqueestava,euaolhassecomoumacoisaquepodiamesersalutar.

–Ah,realmente!–exclamouoSultão.–Nãoestoumaisespantadoqueseme tivésseis sobrecarregado com ela. Vejo onde a tomastes;mas paraque não sejais ainda tentado a memostrar a vossa eloquência ou vossamemória,reiteroasameaçasquevosfizcomtantaprudêncianocomeçodovossoconto.Se fossemenosclemente,não interviriae, comoprazerquetendes em falar, sem dúvida iríeis longe. Mas não gosto do embuste econsintoemvosdizernovamentequenadaémenossalutardoqueamoral.

– Apesar da rara virtude da qual Almaide eMocles eram dotados –retomouAmanzei–,algumasvezeselesmisturavamàmoraldescriçõesdovício um pouco detalhadas demais. Sem dúvida, as suas intenções eramboas,masnãolhespareciamaisprudentesedeterememideiasdasquaisnão poderíamos afastar demais a imaginação, se quiséssemos escapar àperturbaçãoquenormalmenteelastrazemaossentidos.

Almaide eMocles, que não sentiam perigo nisso, ou se acreditavamsuperiores, não temiam o suficiente dissertar sobre a volúpia. É bemverdade que, depois de terem exposto todos os seus encantos, elesexageravamasuavergonhaeosseusperigos.Concordavammesmoqueafelicidadeseencontrasomentenoseiodavirtude,masconcordavamcomisso de modo seco e como se fosse uma verdade reconhecida de formamuitogeralpara ternecessidadede serdiscutida.Nãoera comamesmarapidezquefaziamoexamedoprazer;elessealongavamnumamatériatãointeressanteecarregavamnosdetalhesmaisperigosos,comumaconfiançacomaqualenfimeuousavaesperarquepudessembemiludirasimesmos.

Faziapelomenosummêsque,todasasnoites,elessedivertiamcomessasdescriçõesvivasqueeupensavaseremtãopouco feitasparaeleseque, qualquer assunto que tratassem inicialmente, sempre recairiamnaquele que deveriam ter evitado. Mocles, cujo humor esses discursosinsensivelmenteabrandavam,vinhaàcasadeAlmaidemaiscedodoquedecostume,alisedivertiamuitomaisesaíamaistarde.Almaide,porseulado,oesperavacommaisimpaciência,via-ocommaisprazer,escutavamenosdistraidamente.QuandoMocleschegavaemsuacasaehaviamuitagente,alificavacomarconstrangidoeembaraçadoeelapróprianãopareciaestarmais contente. Finalmente sozinhos, eu observava em seus rostos essa

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alegria que sentem dois amantes que, pormuito tempo perturbados poruma visita inoportuna, finalmente encontram a felicidade de poderem seentregar à sua ternura. Almaide e Mocles aproximavam-se um do outrocomempenho,queixavam-sedequenãolhesdeixavamotemposuficienteparasimesmoseseolhavammutuamentecomumaextremacomplacência.Eramaisoumenosamesmamaneiradefalar,masnãoeramaisomesmotom. Enfim, eles viviam com uma familiaridade que devia levá-los tantomais longe quanto se atordoavam com o que a fizera surgir, ou (no queacreditariamaisfacilmente)nãoocompreendiam.

Umdia,MocleslouvouexcessivamenteAlmaidequantoàsuavirtude.– Para mim – disse ela –, não é muito singular eu ter sido bem

comportada: numa mulher os preconceitos ajudam a virtude, mas numhomemelesacorrompem.Éumaespéciedetolicenãoserdesgalantes,emnóséumvíciosê-lo.Vósquemelouvais,porexemplo,pensandosomentecomoeu,deveistermerecidocontudomaisestima.

–Deixandodeexaminarascoisascomessaexatidãoderaciocínioqueasmostracomosão–respondeueleemtomsério–, imaginariamque,defato, soumais estimável doque vós e se enganariam.Paraumhomem, éfácilresistiraoamoretudoentregaasmulheresaele.Senãoforaternuraqueaslevaaele,sãoossentidos.Nafaltadessesdoisimpulsos,quetodososdiascausamtantasdesordens,elastêmavaidadeque,porserafontedesuasfraquezasmenosdesculpáveis,talvezmesmoassimnãosejaamenoscomume–acrescentouelesuspirandoelevantandoosolhosparaocéu–oque é ainda mais terrível para elas, é a perpétua ociosidade na qualdefinham.Essaindolênciafatalentregaoespíritoàsideiasmaisperigosas;a imaginação, naturalmente viciosa, adota-as e as alonga; a paixãoque jánasceuadquiremaispodersobreocoraçãoou,seeleaindaestiverlivrededesordem, esses fantasmas de volúpia que gostamos de apresentar opredispõem para a fraqueza. Quando sozinha e abandonada a toda aatividadedesuaimaginação,umamulherpersegueumaquimeraqueasuaociosidade a obrigou a gerar; para não ser perturbada nesse gozoimaginário,elaafastatodasessasideiasdevirtudequeafariamenrubescerpelas ilusões quedesenvolve.Quantomenos o objeto que a seduz é real,maiselapensaserinútilresistiraele.Énosilêncio,édiantedesimesmaqueelaéfraca;oquetemelaatemer?Masessecoraçãoqueelaalimentacom ternuras, esses sentidos que ela submete ao hábito da volúpia, seráque sempre se contentarão com ilusões? Supondo-semesmoque ela nãoprocureoque feremais realmente a virtude,podeela se gabarquenummomento (e que será talvez umdaqueles nos quais interiormente ela se

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perde) em que um amante terno, ardente, solícito, vier gemer ajoelhadodiante dela e ali trazer ao mesmo tempo as suas lágrimas e os seusarroubos,elareencontraránumcoraçãoqueportantasvezeselaentregouaosencantosda languidez, essesprincípiosque, sozinhos,podiam fazê-latriunfarsobreumaocasiãotãoperigosa?

– Ah, Mocles – exclamou Almaide enrubescendo –, como é difícilpraticaravirtude!

–Soismenosfeitadoqueumaoutraparaacreditarnisso–respondeuele–,vósque,comtodososadornospossíveis,nascidaparavivernomeiodosprazeres,sacrificastestudoaessamesmavirtudequehojesesacrificaàsprópriascoisasquemenospareceriamdevervencê-la.

– Não me gabo absolutamente – replicou ela – por ter chegado àperfeição;maséverdadequetemitudo,sobretudoessaociosidadedequeacabaisdefalar, tantoquantoesses livroseessesespetáculosperniciososquesomentepodemamoleceraalma.

– Sim, eu sei – retomou ele –, e é a esse cuidado contínuo em vosocuparquedeveissobretudoovossobomcomportamento,pois(euovejopornósmesmos)nadanosentregamaisàspaixõesdoqueaociosidade;ese ela nos é inteiramente prejudicial, nós que nascemos menos frágeis,imaginaioqueelapodesobrevós.

–Éverdade–replicouela–quedevemoscombatertudo.–Infinitamentemaisdoquenós–replicouele–,eeraoqueestavavos

dizendo.Alémdomais,éprecisoconsiderarqueasmulheressempresãoatacadaseque(seexcetuardesalgumas,sempudoresemprincípiosque,mesmo sem amar, são as primeiras a dizer que amam), por maiscorrompido que se esteja hoje, não nos ocorre ter que combater essesgalanteios,essesprantoseessaobstinaçãoque,comtantosucessotodososdias empregamos contra as mulheres. Aliás, se acrescentardes àshomenagensquelhesprestamos,oexemplo...

–Quantoa isso– imterrompeuela–,não temosnenhumavantagemsobre vós. O exemplo deve mesmo tanto mais vos conduzir, que soisgalanteporestado.

–Issonãoéabsolutamenteverdadeparatodososhomens–retomouele–,poisexistemmuitosaquemoseupróprioestadoproíbeessefrenesidaalma,quechamamosprazerdeamar:eu,porexemplo,estounestecaso.

– Quando esse prazer não tiver nascido – replicou ela – com sortesuficienteparaficarinacessívelàspaixões,sempreteríeis...

AquiMocleslevantouosolhosparaocéu,suspirando.–O quê! – continuouAlmaide. – Vos censuraríeis alguma coisa?Ah,

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Mocles!Senãoestaiscontenteconvosco,quempoderiaousarestarconsigomesmo?Oquê!Teríeisqueridoconheceroamor?

–Sim–respondeueletristemente–,essaconfissãomehumilha,maseu a devo à verdade. É verdade também que não cedi a essa funestatentação.Confessando-vosquealgumasvezesfuiobrigadoacombater,semdúvidamostro aos vossos olhos fraquezas das quais, pelo vosso espanto,vejobemquenãomeacreditaríeiscapaz;mas,tirando-medeumerroqueme era desvantajoso, temo vos fazer ainda pensarmuito bemdemim. Émenos humilhante ser tentado do que é glorioso resistir à tentação.Confiando-vos as minhas fraquezas, sou forçado a vos falar dos meustriunfos.Oquepercoporumladoparecequequeiravoltaraganharpelooutro,enãoseisedevotemerqueatribuaisaoorgulhoumaconfissãoquesomentevosfaçoparaevitaramentira.

Terminandoessemodestodiscurso,Moclesbaixouosolhos.–Oh,nãoarriscaisnadacomigo–disse-lheAlmaide–,euvosconheço!

Pois bem! algumas vezes, portanto, fostes tentado a sucumbir. Não meespantais:pormaisquenosesforcemosemandarcomumpassoconstanteemdireçãoàperfeição,jamaischegamosaela.

–O quedizeis, infelizmente, estámais do queprovado – respondeuele.

– Desgraçadamente! – exclamou ela dolorosamente. – Pensaisportantoquetenhotantoparamelouvardemimmesmaequeestejaisentadessasfraquezasdasquaisvoscensurais?

–Oquê!–disse-lheele.–Vóstambém,Almaide?–Confiomuitoemvósparaquerervosesconderalgo–retomouela–

e vos confessarei que tive que combater cruelmente. O que, por muitotempomeespantouequeaindahojenãoconceboéqueessaperturbaçãoque se apodera dos sentidos e os confunde seja independente de nósmesmos.Cemvezeselamesurpreendeunasocupaçõesmaissériaseque,naturalmente,deviamtornaraminhaalmamenosacessívelaela.Algumasvezes eu a combatia combastante sucesso; emoutrosmomentos,menosforte contra ela, apesar daminha vontade, elame subjugava, arrastava aminha imaginação, submetia todas as minhas faculdades. Que essesimpulsos vergonhosos subjuguem uma alma que gosta de alimentá-los eque se acha feliz somente quando está em suas presas, isso não mesurpreende;masporqueseficaexpostoaelesquandosetomaomaior,omaiscontínuodoscuidadosparaaniquilá-los?

– O que se chama de bom comportamento – respondeu Mocles –consistemuitomenosemnãosertentadodoqueemsabertriunfarsobrea

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tentação,ehaveriamuitopoucoméritoemservirtuosose,parasê-lo,nãosetivesseobstáculosavencer.Mas,jáqueestamosfalandodisso,dizei-mepor favor, desde que estais nessa idade em que o sangue, correndo nasveias commenos impetuosidade, vos tornamenos suscetível aosdesejos,tendesaindaessesimpulsoshorrorosos?

–Elessãomuitomenosfrequentes–recomeçouela–masaindaestousujeitaaeles.

–Tambémestounomesmocaso–respondeuele,suspirando.– Mas estamos loucos em falar como o fazemos – disse Almaide

enrubescendo–,eessaconversanãoéfeitaparanós.–Refletindobem,duvidoquedeveríamostemê-lamuito–respondeu

Mocles,sorrindocomumarfrívolo.–Ébomdesconfiardesimesmo;mastambémnosacreditarmostãosuscetíveisseriaterumapéssimaimpressãodenósmesmos.Estoudeacordoqueoassuntoquetratamosnosreconduznecessariamente a certas ideias;mas é bem diferente discuti-las visandoesclarecê-las ou se seduzir e, sem nos enganarmos, penso, podemos nosresponder pelos nossos motivos e nos repousar sobre eles pela nossatranquilidade.Aliás, nãoénecessárioqueessas espéciesde assuntos, tãoperigososparaaspessoasquevivemnadesordem,possamcausaramesmaimpressão sobre nós. Em simesmos, eles não são nada. Pessoas damaisraravirtudeàsvezessãoobrigadasapararneles,semqueadiscussãomaisexatasobreessasmatériasprejudiqueainocênciadosseuscostumes.Tudoé mal e corrupção para os corações corrompidos, como as coisas queparecem mais contrárias ao bom comportamento não têm poder sobreaquelesqueabsolutamentenãoprocuramsedeleitarcomelas.

– Não há dúvida, já que acreditais nisso – respondeu ela –, e estoulongedeterescrúpulos,quandovosparecequenãodevotê-los.

– Jamais adivinhareis –disse ele – a curiosidadequemeocupa;nãoousorevelá-la,porquepensoqueéindiscreta,econtudonãopossoresistiraela.Gostariadesabersealgumdiaalguémvosfezpropostasdeumcertotipo, se enfim alguma vez (para vos mostrar por inteiro a minhacuriosidade) suportastes os arroubos de algum homem, sejavoluntariamente,sejacontraavossavontade?

Com essa pergunta que Almaide não previra, ela ficou espantada,enrubesceuepareceusonhar.Enfim,decidindo-se:

–Masclaro–respondeuelaembaraçada.–Ejáquequereissabervosconfessareinaturalmentequeumdiaumjovemdoidivanas(poisnãoquerovosdissimularnada),que,apesardaminhaaversãoparacomoshomens,parecia-mebastante amável, encontrando-me sozinha,disse-meesse tipo

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de galanteios que os homens pensam nos dever, quando ainda nãochegamosaessafelizidadequenãolhesinspirapornóssenãoorespeitoou que somos bastante lamentáveis por ter uma aparência que nosexponha aos seus desejos. Estávamos sozinhos. Respondi-lhe segundo osprincípios aos quais me habituara. Longe de que a minha palavra lheimpusesserespeito,eleacreditouqueeuprocuravamenosesquivar-medasua conquistadoque fazê-la valer: ousoumesmomeassegurarque euoamaria.Imaginaisbemquelheafirmeivigorosamenteocontrário.Nãoseicomquemulheres vivia normalmente esse doidivanas,mas seguramenteelasnãoohabituaramaorespeito.Eleseaproximoudemime, tomando-me bruscamente nos seus braços, derrubou-me num sofá. Por gentileza,dispensai-medorestodeumrelatoque feririaomeupudoreque talvezaindaperturbariaosmeussentidos.Quevosbastesaber...

– Não – interrompeu Mocles –, vós me direis tudo: é menos, estouvendoisso(enãoovejosemestremecerporvós),otemordeemocionarosvossos sentidos ou de ferir o pudor que fecha a vossa boca do que avergonhade confessar que fostes excessivamente sensível e essemotivo,longedeser louvável, somentepoderiasermuitocensurado.Posso, creiomesmo,devoacrescentaraoquevosdigoque,seéverdadequetemeisqueo relato que exijo de vós vos lance numa emoção perigosa, não podeissuprimi-lo nem suavizá-lo sem ser culpada. Portanto, para vós, não temnenhumaimportânciaofatodeignoraropoderdecertasideiassobrevós?Ousaríeiscontarconvoscoquandonãovostivésseispostoàprova?Assim,portanto, poupando sempre a vossa alma, sempre ignorais quais são assuas forças!Almaide, acreditai emmim, jamais tememos suficientementeum perigo que não conhecemos e normalmente se cai por ter contadomuitoconsigomesmo.Nãopodeis,portanto,pensarmuitosobre todasascircunstâncias de vossa história; somente pelo efeito que hoje elas vosfarãopodereis saberatéondevãoosprogressosque fizestesnocaminhodavirtudeou(oqueéaindamaisessencial)oqueaindavosrestaparaserdestruídoparachegaraessaaversãototalaosprazeresquesozinhafazosvirtuosos.

Esse conselho, na boca de Mocles, me surpreendeu; conhecia a suaretidãoeoseusaberenãoconcebiaoque,nesseinstante,ofaziaraciocinardeumamaneiratãocontráriaaosseusprincípios.

–Oquê!–disse-mecomespanto.–ÉMocles,essesábioMoclesqueaconselha a Almaide a carregar nos detalhes que podem ferir o pudor elevaràcorrupção?

OdesejoquetinhadeesclarecerosmotivosdeMoclesmefezolhá-lo

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comatençãoevitantodesvarionosseusolhosquecomeceiaacreditarquepoderiabemencontraraminhalibertaçãonolugardomundoquemenosteriaousadoesperar.

Enquanto construía tão doces esperanças, tanto sobre a ideia davirtudedeAlmaideedeMoclesquantosobreaperturbaçãoemqueosdoiscomeçavamasecolocar,Almaidecontinuouasuahistória.

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CAPÍTULOIX

Ondeseencontraráumagrandequestãoaserdecidida

– Eu vos obedecerei cegamente – respondeu Almaide a Mocles. –Acabaisdeme fazer sentirque somenteavaidadecalavaaminhabocaevou me punir disso confessando-vos sem disfarces as circunstâncias deminhaaventuraquemaismemortificam.Parece-mequevosdissequeessejovemdequemvosfalavaderrubara-menumsofá.Aindanãomerefizerademeuespantoquandoelealiseprecipitousobremim.Emboraoexcessodeminhasurpresamalmepermitisselheexprimiraminharaiva,elealeufacilmentenosmeusolhose,querendotomarprecauçõescontraosmeusgritos,apesardaminharesistência,eleconseguiufecharaminhabocacomo beijo mais insolente. Ser-me-ia impossível vos dizer o quanto,inicialmente, fiquei revoltada. Entretanto eu o confessarei: a minhaindignaçãonãodemoroumuito.Anatureza,quemetraía, logo levouessebeijo para o fundo do meu coração, repentinamente, à minha raivamisturaram-seimpulsosquenãoadeixarammaisagirsenãocomfraqueza.Todososmeussentidosdespertaram,umardordesconhecidodeslizouportodasasminhasveias:nãoseiqueprazerque,detestando-o,mearrastava,preencheu insensivelmente toda a minha alma; os meus gritosconverteram-seemsuspirose,exaltadaporimpulsosaosquais,apesardaminharaivaedaminhador,nãopodiamaisresistir,gemendopeloestadoemquemevia,nãotinhamaisaforçademedefender.

– Aqui está – exclamou Mocles – uma situação terrível! E aí? –continuou,olhando-acomolhosardentes.

–Oquevosdirei?– retomouela.–Quandopodia, censurava-o:masera de modo automático. Penso que lhe falava, tratava-o com todo odesprezoquemerecia;digoquepenso,poisnãoousariavosassegurarisso.À medida que essa agitação cruel aumentava, sentia expirarem a minhaforçaeaminha fúria;umaconfusãosingularreinavaemtodasasminhasideias. Entretanto, ainda não tinha me entregado. Mas que resistência!Comoelaerafraca!Epormaisfracaquefosse,aindamecustava!Mocles,somente recordo dessa lembrança com horror, e a vergonha que elamecausa torna-a tão presente quanto se eu gemesse ainda entre os braços

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desse jovem atrevido. Que momento para a minha virtude! Ah, Mocles!Como,sentindotodoopesodessainocênciaqueprocuravammearrebatar,nadatemendomais,mesmonomeiodadesordemàqualestavaentregue,doqueadesgraçadeperdê-la,encontravatantadoçuranessavolúpiaquede mim se apoderara? Como temores tão vivos não me arrancaram dosprazeres ou por que os prazeres ainda deixavam no meu coração tantopoder à virtude? Eu desejava (mas com que esforços! o quanto eu nãosofriadesejandoisso!)queviessemmearrancardasinaquemeameaçava.Aomesmotempoemqueformavaessaideia,ummovimentocontrárioqueagia sobre mim com a última violência e que, contudo, me desagradavamenos do que o primeiro fazia-me desejar fortemente que nada seopusesse à minha derrota. Enrubescendo pelo que sentia, queimava devontadedesentirmais;semimaginarnovosprazeres,desejava-os;o fogoquemedevoravacomeçavaasetornarumsuplícioparamimeacansarosmeus sentidos. Qualquer que fosse a embriaguez em que estavamergulhada,aindanãoconseguiraabafaressavozinoportunaquegritavano fundo do meu coração e que, não podendo me arrancar da minhafraqueza, continuava censurando-a em mim, quando esse jovem, semdúvidaobservandoaimpressãoquemecausava,finalmenteimpeliuatéofimosultrajes queme fazia. Ele...Mas comopoderia vos exprimir aquilopelo que ainda enrubesço? Ocupada unicamente, tanto quanto a minhaagitação o permitia, em me defender dos seus beijos, com que ele mecumulava incessantemente, eu, aliás, não tomara nenhuma precauçãocontraele.Apesardoestadocruelemquemeencontrava,essenovoinsultodespertou a minha fúria. Infelizmente, não foi muito tempo! Logo sentiaumentaraminhadesordem;atéosesforçosquefaziaparaescaparaessejovematrevidooupelomenos,paraatrapalhá-lo,tudocontribuíaparaisso,tudo acabava me seduzindo. Perdida enfim em arroubos inexprimíveis,numêxtasecujaideiameseriaimpossívelvosdar,caísemforçaseimóvelentreosbraçosdocruelquemefaziaafrontastãosangrentas.

– Que estado! – exclamou Mocles. – E como temo as suasconsequências!

– Elas não foram, contudo, como as que imaginais – respondeuAlmaide. – No meio de uma situação em que tinha tanto mais a temerporquenão temiamaisnada,não seiporqueomeu inimigo,de repente,suspendeu todo o seu furor e as suas empreitadas. Por umprodígio quejamais pude conceber e no qual talvez não acreditareis, de tãoextraordinárioqueé,noinstanteemquenãotinhamaisnadaalheoporeno qual ele mesmo parecia no cúmulo do desvario, os seus olhos, cujo

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brilho e a expressão eu não podia sustentar, mudaram; uma espécie delangor,quealiveioreinar,dalibaniuofuror;elecambaleoue,apertando-me em seus braços, com mais ternura e menos violência do que antes,tornou-se (justa punição pelosmales queme fizera) tão fraco quanto eumesmaestava.Nessemomentoaminhaagitaçãocomeçavaasedissiparefiqueibastantefelizempodergozardetodaahumilhaçãodomeuinimigo.Após tê-la considerado com todo o prazer possível e ter agradecidointeriormente aBramapela proteção visível queme concedera, levantei-mecomviolência.Àmedidaqueosmeussentidosseacalmavamequeasminhas ideias se tornavam mais claras, sentia mais vivamente a minhavergonha. Por vinte vezes abri a boca para encher esse jovem temeráriocom as censuras que ele merecia: mas essa confusão secreta, pela qualestavaoprimida,sempreafechoue,depoisdeolharcomtodaaindignaçãoquemereciaainsolênciadoseuprocedimento,deixei-obruscamente.Paravosdizeraverdade,eupreferiaguardarsilêncioaentraremdetalhesqueteriammefeitoenrubescerequeafraquezadaqualacabaradesercapazme fazia temer. Aqui está – prosseguiu ela – a única vez em que meencontrei nesse perigo que sempre temera antes de conhecê-lo e quesomente conheci para evitá-lo commais cuidadodoquenunca. Senti-metantomaisobrigadaafugirdeleporquenãoduvidava,pelosimpulsosquesentira,dequetivessemaisinclinaçãoparaoamordoquepensara.

–Vedes–disseMocles–comoéimportantetestarasuaalma.Mas,apropósito, como vai a vossa? Esse relato produziu em vós as impressõesquetemíeis?

– Mas enfim – respondeu ela, enrubescendo –, ela não está tãotranquilaquantoestava.

– De modo que – retomou ele –, se atualmente encontrásseis umtemerário,nãodeixaríeisdeficarumpoucoembaraçada.

–Ah,nãomefaleismaisdisso!–exclamouela.–Seriaadesgraçamaiscruelquepoderiameacontecer!

–Sim–respondeueledistraidamente–,issoéfacilmenteconcebível.Ao terminar essas palavras, ele caiu no devaneiomais profundo: de

vez em quando olhava Almaide com um ar proibido e com olhos quedescreviam os seus desejos e a sua indecisão. A confissão que Almaideacabaradefazersobreasuaagitaçãoencorajava-o,masasuainexperiêncianão lhe permitindo saber aproveitá-la, por pouco ela não se lhe tornouinútil.AmaneirapelaqualdeviaagirparaterminardeseduzirAlmaidenãoeraaúnicacoisacomaqualsonhava.Contidopelalembrançadoquefora,tiranizado pela ideia dos prazeres, seduzido, deixando de sê-lo, eu o via,

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alternadamente,prestesafugirouatentartudo.Enquantoelepassavapor tantoscombates,Almaidenãoestavanum

estadomaistranquilo.OrelatoqueMocleslhepediraproduziratudooquetemera. Os seus olhos se animaram; um rubor diferente daquele que opudor faz nascer, suspiros entrecortados, inquietação, langor, tudo memostrou,melhordoqueaelamesma, a forçadodesvarionoqual estavamergulhada.Euesperavacomimpaciênciaoquesetornariaasituaçãoemque duas pessoas tão bem comportadas tinham imprudentemente seengajado.Poralgumtempotemimesmoqueelessentissemoerroaqueasua enorme segurança os induzira e que, em corações tão acostumadoscom a virtude, ele não fizesse todo o progresso que o meu estado e aspromessasdeBramaforçavam-meadesejar.

Finalmenteacrediteiver,pelosolharesdeAlmaideedeMocles,que,acada momento, se tornavam menos tímidos e se carregavam com maisvolúpia, que era menos o temor de sucumbir que os retinha do que oembaraço de trazer a sua queda. Ambos estavam igualmente tentados,ambos pareciam-me ter o mesmo desejo e a mesma necessidade de seconhecer. Essa situação, para duas pessoas que tivessem sido um poucohabituadas aomundo,não teria sidoembaraçosa;masAlmaideeMocles,longede saber a arte de se ajudaremmutuamente, não ousavamnem seconfidenciaremos seus estados, nem se definiremde outra forma, senãoporolharesaindamalassegurados,ofogopeloqualsesentiamqueimados.Ainda que acreditassem que um tinha as mesmas ideias que o outro,sabiam eles a que ponto ambos estavam seduzidos? Que vergonha nãoseriaparaaquelequefalasseprimeiro,seencontrassenocoraçãodooutroresquícios de virtude; e como poder se esclarecerem, quando ambostinham tantas razões para não romper o silêncio? Supondo que Almaideainda tivesse mais fraqueza do que Mocles, mesmo assim era forçada aesperá-lo. A essa sabedoria, que sempre professara, acrescentavam-se opudoreasconveniênciasdoseusexo,quenão lhepermitiamdeclararosseus desejos, emesmo que para todas asmulheres essa lei nem semprefosse inviolável, Almaide, ou inteiramente novata ou pouco feita para agalanteria, temia o desprezo tão justamente ligado a um passo dessanatureza. Aliás, será que sabia por quem Mocles a tomaria? Talvez setivesseacertezadequeMocles,desprezando-a,quisesseceder,elateriaseatordoadocomisso;masseeleseativessesomenteaodesprezo?

Depois de se inquietarem por algum tempo, internamente, pelamaneira pela qual poderiam se falar sem se exporem à vergonha defracassar, Mocles, cujo orgulho e o estado teriam sidomuito feridos por

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uma confissão formal dos seus sentimentos, pensou que não poderia sermaisbemsucedidodoquepelosofisma;supondo-secontudoqueaescolhadosmeiosaindadependessedoexamequedelespodiafazerasuarazãoequeeleaindanãoprocurasse fascinarmaisa simesmooua salvara suaglória,nocasoemqueaprovaqueiatentarnãodesseabsolutamentecertopara ele, senão enganando Almaide. Sorte se, para se defender, tivessequeridoempregar somenteametadedaartequeusouparaacabarde seseduzir,ouparajustificarasuaseduçãoperantesimesmo!

–Oh,porDeus!–disseentãooSultão.–Podemosdizerque,seeleformalsucedido,nãoseráporculpadetersonhadomuitocomisso.

–Mas–disseaSultana–nãoseiporqueestaistãoespantadoqueeletenha feito tantas reflexões. Parece-me que a situação em que seencontravaexigiaqueelefizessealgumasdelas.

–Algumas, está bem– respondeuSchah-Baham. –E é precisamenteporque somente algumas eram necessárias que ele não precisava fazertantas.Eraprecisoqueaquelaspessoasestivessemterrivelmentetentadasparanãovoltarasimesmas,comotempoquesedavamparaisso.

–Arriscastesafazerumaobservaçãosensata–retomouaSultana.–Arriscastes!–disseSchah-Baham.–Ousariamesmovosperguntaro

que isso quer dizer? Tendes pequenas maneiras de falar, tão poucorespeitosas quanto conheça e com as quais talvez não haja Sultão nomundoquetenhaqueridosehabituar.

–Masestouquerendodizer–respondeuaSultana–queelaé falha.TodasessasideiastumultuadasqueocupavamAlmaideeMoclessucediam-secomumaextremapresteza;e,sequereispensarbemnisso,vereisqueoque Amanzei nos disse somente em quinze minutos não deve terinterrompidopordoisminutosassuasresoluções.

–Poisbem–replicouoSultão–,ocontadoréportantoumabestaseempregatantotempoparadizeroqueaspessoasdequemfalapensaramcomtantapresteza.

–Gostariamuito–retomouela–quefôsseisobrigadoadescreverissodamesmaforma.

–Tenhoasminhasrazõesparaacreditarquemesairiamuitobem–recomeçouele.–Masaindamelhordoqueisso;pois,oqueachareidifícilparadizer,nãotereiabsolutamentenenhumadificuldadeemdispensar.

– As ideias nas quais Mocles estava absorvido, os seus desejos, osesforçosquefaziaparaextingui-los,oprazercomoqualseentregavaaelesdavam-lhe um ar tão sério e tão ocupado queAlmaide finalmente julgouoportuno perguntar-lhe o que ele tinha para guardar silêncio por tanto

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tempo.–Temo–acrescentouela–quetenhaisideiasfunestas.–Tendesrazão–recomeçouele–,eéorelatoqueacabaisdemefazer

quefeznascê-lasemmim.Almaidepareceuespantadacomoqueelelhedizia.–Nãovossurpreendaiscomisso–continuouele–enemfiqueismais

chocadacomoquevouvosdizer,pormaisextraordinárioqueissopareçaem minha boca. Estou desolado porque esse jovem temerário, que vostratoucomtãopoucadeferência,nãotevetempodeterminaroseucrime.

–Ah,Mocles!–exclamouela.–Eporquê?– Porque – respondeu Mocles – estaríeis em condição de acalmar

dúvidasquemeatormentamhámuitotempo,queacabaisdemedevolvercomtodaasuaforçaequeanossainexperiênciarecíprocasempredeixarásubsistir, uma vez que não podereis absolutamente responder àsminhasperguntas e que será muito perigoso para mim interrogar uma outrapessoa que não seja vós sobre aquilo queme agita. Aminha curiosidadegiraemtornodecoisasdeumanaturezatãoestranhaparaumhomemdomeu caráter e da minha profissão que, a menos que me conheça, comofazeis,nãodeixariamdeatribuí-laaummotivoquenãomehonraria.

– É certo – respondeu ela – que podeisme dizer tudo sem arriscarnada.

–Éissomesmo–retomouele–quemefariaquasedesejarquefôsseismais instruída,pois tendoemmim tanta confiançaquanto tenhoemvós,certamente não me esconderíeis nada. Quando tiver podido duvidar devossa amizade e da maneira pela qual contais com a minha discrição, averdade com a qual acabais de me confiar até os vossos mais íntimosimpulsoster-me-áconvencido.

–Assimmesmo,vejamosoquevosocupa–replicouela.–Talvez,detantoraciocinar,consigamos.

–Oh,não!– interrompeuele.–Somentepoderíeisme fazeralgumasconjecturas;oquemeocupaédeumanaturezaqueexigeamaiscompletacerteza.Semvosinquietarmais,vosdireioqueée,pensandocomopenso,julgareis semedeve ser indiferente estarnuma ignorância tãoprofunda,numassuntodessanatureza.Aliás,ovossointeresseseencontraunidoaomeu,poisnãoépossívelque,virtuosacomosois,nãoestejaisatormentadapelasmesmasideiasqueeu.

–Vósmeassustais!–disse-lheAlmaide.–Falai,euvossuplico!– Pois bem – disse ele –, penso na possibilidade de termos muito

poucoméritoemjamaisnostermosafastadodosnossosdeveres.

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– Pode ser que sim – exclamou ela, comum ar bastante aborrecidopelofatodequeaconversatomasseumrumotãosério.

– Sem dúvida – retomou ele –, e vos convencerei disso. Vós jamaisprovastes asdoçurasdoamor (pois, oquequerquepossaispensardele,não há dúvida de que o que vos aconteceu com esse jovem não vos deusenãouma ideiamuito imperfeita dele); eu sempre fugi dele. Existe aquialgo para nos acreditarmos tão perfeitos? Mas, direis, tivemos desejos etriunfamos sobre eles. Será esta uma grande vitória? Sabíamos o quedesejávamos? Temos absoluta certeza de ter tido desejos? Não! O nossoorgulho nos enganou; o que tomamos pelos desejos mais ardentes, semdúvida, eram tentações bem leves. Somente por ignorância, talvez, nostenhamosequivocado:queiraDeus!Masseéverdade(comotenhomuitotemor) que somente o desejo que tínhamos de exagerar sobre os nossostriunfosoudequeos alcançávamos, nos enganouquanto a isso, emqualerro culpável não vivemos?Nos gabamos de sermos virtuosos, enquantotalvez não fôssemos mais imperfeitos do que aqueles que ousávamoscensurarequeanossavaidadenosdavamesmoumvícioamaisdoqueaeles.

–Éverdade–disseAlmaide–,acabaisdefazerumareflexãoaflitiva!–Nãoédehojequeelameatormenta–replicouelecomumartriste

–,etantomaisque,paramecurardeminhasdúvidas,nãovejosenãoummeioque,pormaissimplesqueseja,nãodeixadeserperigoso.

–Mesmoassim,vejamos–pediu-lheela.–Comoestouprecisamentenomesmocasoqueovosso,tenhoomaisurgenteinteressedomundoemsaberoquepensastes.

–Épreciso vos conhecer como conheço – respondeu ele –paranãotemer vos dizê-lo. Pensamos ser virtuosos, vós e eu;mas como vos diziaagora há pouco, não sabemos exatamente o que é isso e não ireis maisduvidardisso.Emqueconsisteavirtude?Naprivaçãoabsolutadascoisasquedeleitamosnossossentidos.Quempodesaberqualéacoisaquemaisosdeleita?Somenteaquelequegozoude todas.Seunicamenteogozodoprazerpodeensinaraconhecê-lo,aquelequeabsolutamentenãoosentiunão o conhece: o que, portanto, pode ele sacrificar? Nada, uma quimera;pois qual outro nome dar a desejos que se dirigem a alguma coisa queignoramos? E se, como está decidido, somente a dificuldade do sacrifícioconstitui o seu preço, quemérito pode ter aquele que somente sacrificauma ideia?Mas,depoisde ter se entregadoaosprazeres e ter se sentidosensível a eles, renunciar, se imolar, eis a grande, a única, a verdadeiravirtudeeaquelaquenemvósnemeupodemosnosgabardepossuir.

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– Vejo isso com muita clareza – disse Almaide. – É certo que nãopodemosnosgabardisso.

–Entretanto,nósnosgabamos–dissevivamenteMocles,quetemiaofatodeque,deixandoaAlmaideotempoderefletir,elasentisseoquantoosraciocíniosqueempregavaeramfalsos.–Ousamosacreditarnissoe,apartir desse momento, eis-nos culpados de orgulho. Estimo muito –continuouele–eestousinceramentesatisfeito tantopeloquesentisque,enquantonãonoscolocarmosaoalcancedepoderfazerumacomparaçãoexatadovícioedavirtude, somentepodemos ter ideias falsasdeambos.Aliás (poisessemal,pormaiorqueseja,nãoéoúnico), incessantementeestamosatormentadospelodesejodeaprenderaquiloquenosobstinamosemignorar.Aalmaexercitada,contraasuavontade,poressemovimentode curiosidade certamente negligencia mais os seus deveres. Presa dedistrações frequentes, ela perde raciocinando, entrevendo, seguindo,detalhando, aprofundando o que concebeu, o tempo que, sem essatormentosa ideiaquesempreaobceca,eladariaunicamenteàpráticadavirtude. Se ela soubesse ao que se ater quanto ao que deseja conhecer,ficaria mais tranquila. Mais tranquila, seria mais perfeita. Portanto, épreciso conhecerovício, sejapara sermenosperturbadonoexercíciodavirtude,sejaparaestarsegurodasua.

EmboraAlmaideestivessenumasituaçãodenãopoderentendernadadaquilo que, demonstrando-lhe a necessidade do prazer, a libertaria dotemordosremorsos,essesofismaafezestremecer.Poralgunsmomentoselapermaneceuconfusa:masavontadequetinhadeseesclarecerquantoàvolúpia, ou de nela se perder, vencendo o seu terror, ela me pareceufinalmentemaissurpresadoqueassustadacomoqueacabavadeouvir.

– Acreditais então – perguntou ela com uma voz trêmula – queseríamosmaisperfeitoscomisso?

–Realmente – replicou ele – não tenhodúvidas: pois, por gentileza,considerai a situação em que estamos e julgai se existe alguma maishorrível.

–Estámaisdoqueclaro–disseela.–Érealmentepavorosa!–Primeiramente,nãosabemossesomosvirtuosos:tristeestadopara

pessoasquepensamcomonós.Essadúvida,pormaiscruelqueseja,nãoéaúnica desgraça que a nossa situação acarreta: é mais do que certo que,contentescomaprivaçãoàqualnos impusemos,existemmil coisasmaisessenciais, talvez, quanto às quais pensamos estar dispensados de nosobservarmos; consequentemente, à sombra de uma virtude que bempoderiaserunicamenteimaginária,cometemoscrimesreaisou(oque,não

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sendodamesmaimportânciatem,contudo,inconvenientesconsideráveis)negligenciamos o fato de fazer boas ações. Enfim, supondo-nos ser comonos acreditávamos até agora, ainda duvidarei de uma virtude queescolhemos e não imaginaria que houvesse um grande mérito em tê-la.Colocaidiferentesfardosàescolhadeumhomem,nãohádúvidadequeseencarregarádomaisleve.

–Euvosentendo–disseela,suspirando–,quereisdizerquefizemosomesmo.Aquantosescrúpulosnãomeentregais–continuouela,baixandoosolhos–ecomonãoficarsempreatormentada,quandooúnicomeioquetemosparanoslivrarmos,elemesmofaznascertantosoutrosemnós!

–Essemeio–retomouelevivamente–nofundoémenostemíveldoqueparece.Suponhoque(equiseraqueeunãosupusessenada!),cansadode nossa incerteza, sentindo enfim que é nosso dever sairmos dela,queiramosconheceroprazerejulgarosseusencantosporsimesmos;qualseriaoperigodessaprova?Denãopodernosarrancarmosdeleumavezque o tivéssemos conhecido? Para almas um pouco fracas, confesso queisso seria arriscado;mas parece-meque, semmuita presunção, podemoscontarumpoucoconosco.Se,paranãovosescondernada,comopresumo,esse prazer for menos sedutor do que se diz, não valerá a pena nosentregarmosacoisasdecujaprivação, lisonjeadorasounão,atribuímosaglória;se,pelocontrário,elaspuderemtrazeràalmaumaperturbaçãotãograndequanto se assegura, nos privaremosdelas com tantomais alegriaqueestaremoscertosdequehámuitavirtudeemfazê-lo.

Esseraciocínioque,semdúvida,Almaideteriadetestadosefossemaissenhora de si mesma, fez, para uma alma que não esperava mais parasucumbir senão a aparência de uma desculpa, todo o efeito que o infelizMoclesseprometera.Depoisde tê-loolhadoporalgumtempocomolhosincertoseperturbados:

– Como vós – disse ela –, sinto a necessidade absoluta dessa prova;mascomquempoderíamosfazê-lacomsegurança?

Comessaspalavras,elaseinclinoulanguidamentesobreMoclesque,pouco a pouco, se aproximara dela, a ponto de que, nesse instante, ele aseguravaemseusbraços.

–Creio–respondeuele–que,sequiséssemosarriscá-la,issosomentepoderiaserentrenósdois:estamosambosseguros,ecomonãopodemosduvidar demodo algumnada que seja para umamaior busca da virtudequenos decidimospor ações queparecem feri-la, estamos certos de nãoadquirirmos um hábito de um movimento de curiosidade que somentepartedeumprincípiotãobom.Dequalquermaneiraquepossaser,enfim,

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ganharemoscomisso,jáquepelomenosalembrançadenossaquedanosgarantiráumorgulho.

Embora Almaide nada respondesse, ela parecia ainda estar incerta.Mocles que, a qualquer preço, queria fazê-la se decidir, para acabar devencê-la,propôs tentaressaprovasomenteporgraus,a fimdeque,diziaele,seemsuasprimeiras tentativasencontrassemvolúpiasuficienteparaassentarassuasdúvidas,elesnãofossemmaisadiante.Elaconsentiunisso.Logo ficaram desvairados e, irritando os seus desejos por coisas que,embora fossem feitas sem encantos e desajeitadamente nem por issodeixavamdedominarosseussentidos,elesperderamdevistaocontratoque tinham acabado de fazer. Ambos, achando demais oumuito pouco oquesentiam,julgaramoportunoprosseguirounãopuderamparare...

–Derepentevostornastesoutracoisa?–interrompeuoSultão.–Não,Sire–respondeuAmanzei.–Nãoestouentendendonadadisso– retomouSchah-Baham–e sei

muitobemporque: éque isso é incompreensível. PoisnãohádúvidadequeobtiveramtudooqueovossoBramapedia.

– Inicialmente acreditei nisso, como vossa invencível Majestade –recomeçouAmanzei.–Entretanto,eraprecisoquepelomenosumdosdoistivesseiludidoooutro.

–Imaginoqueficastesbemaborrecido–replicouoSultão–,e,dizei-me,dequaldosdoisdesconfiastesmais?

– O relato de Almaide – respondeu Amanzei – deu-me grandessuspeitascontraela,eaignorânciaquefingiuquandoseentregouaMocles,apesardeserextrema,nãomeimpediudepensarque,fazendoorelatodesuaaventura, ela suprimira a circunstânciaqueme fizerapermanecernaminhaprisão.

–Coisa típicadasmulheres! – exclamouoSultão. –Oh, sim!avossareflexãoécorreta.Poisbem!nadadissesobreisso,masteriaapostadoqueelanãoestavadizendotudo.Setivessemevangloriadodisso,existemaquipessoas que teriam me acusado de bancar o espírito independente. Oravamos,tendecertezadisso;foielaqueimpediuquefôsseislibertado.

– A coisa, por mais provável que seja – respondeu Amanzei –,apresentadificuldades;Mocles, paraumhomematé então irrepreensível,pareceu-meterexperiência...

–Istomudaatese–disseoSultão–pois...Ah,sim!Estábemclaro,eraele.

–Mas,ponham-sedeacordo–disseaSultana.–Eraela,eraele.Porque,semseatormentartanto,nãopensarqueosdoisestavamdemá-fé?

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– Tendes razão – replicou o Sultão –; a todo rigor, isso poderiaacontecer:parece-meentretantoqueseriamaisdivertidosefosseumdosdois;nãoseiporque,masprefeririaisto.Continuemos,oquedisseramelesdepois?Nãoéissooquemeinteressamenos.

–Moclesfoioprimeiroavoltardoseudesvario; inicialmenteelemepareceu como que surpreso por se encontrar nos braços de Almaide e,voltandopoucoapoucoàrazão,àsurpresaseguiu-seohorror.Parecia-lhenãopodercompreenderoquevia;procuravaduvidardisso,aselisonjearde que somente um sonho lhe ofereceria tão cruéis objetos. Enfim,imensamente seguro de sua desgraça, levantou os olhos dolorosamentesobre si mesmo e, retraçando tudo o que fizera para seduzir Almaide, oquanto a sua cruel paixão criminosa o cegara, com que arte ele acorromperaporetapas,elecaiunamaisamargador.

Almaide finalmente abriu os olhos: mas, ainda perturbada, nãodistinguindoosobjetostãobemquantoMocles,primeiramenteficoumaisconfusadoqueaflita.Seja,enfim,porqueodesesperoemqueelaoviafez-lhe sentir a sua queda, seja porque, por elamesma, soubesse tudoo quetinhaparasereprovar:

–Ah,Mocles!–exclamouela,chorando.–Vósmeperdestes!Moclesconcordoucomisso:eleconfessoutê-laseduzido,lamentou-a,

tratoudeconsolá-laelhefaloucomohomemrealmentehumilhadosobreoperigo que existe em contarmuito consigomesmo. Enfim, depois de terditotudooquepodeminspiraramaisvivadoreoarrependimentomaissincero,semousarfitá-la,elesedespediudelaparasempre.

Ficandosozinha,Almaidenemassimficoumenosenvergonhadanemmais tranquila.Passouanoite inteiraachorareasecensurar tudo,atéacensura que fizera a Mocles e no qual, então, ela achava muita vaidade.Mocles,apartirdodiaseguinte,tomouopartidodoretiromaisaustero...

–Eisoqueacabademedeterminar–interrompeuoSultão–:nãoeraele.

–EAlmaide–continuouAmanzei–,sempreinconsolável,algunsdiasdepoisseguiuoseuexemplo.

– Issome atrapalha – retomouo Sultão –, portanto, nãodeveria serela. Jamais uma questão mais difícil de resolver se oferecera à minhamente,eadeixoaquempuderfazê-lo.

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CAPÍTULOX

Onde,entreoutrascoisas,seencontraráamaneiradepassarotempo

Por mais gosto que tivesse tomado pela moral, começava a meentediaremcasadeAlmaide,quandoMoclesaseduziu.Umdiadepoisteriasaídode lá,persuadidodequehaviaemAgrapelomenosduasmulheresinsensíveis.Felizmenteaminhapaciênciamesalvoudeumafalsaideia.

DepoisdeterdeixadoAlmaide,vagueipormuitotempo.Prometendo-me pouco a pouco as coisas ridículas ou os vícios de um gênero que jáconhecia,eviteicuidadosamenteessascasasondetudotinhaaaparênciadedecenteedearrumado.MinhasandançasmeconduziramaumarrabaldedeAgraqueeracheiodecasasmuitoenfeitadas.Aquelapelaqualmedecidipertenciaaumjovemsenhorquenãomoravaali,masquealgumasvezesalivinhaincognito.

Umdia após terme instalado ali, à noite vi chegarmisteriosamenteumadamaque, pela suamagnificência emais aindapelanobrezado seuporte,tomeiporumamulherdamaisaltacategoria.Osmeusolhosficaramdeslumbradoscomosseusencantos.CommaisbrilhoaindadoqueFenime,tinhaamesmamodéstiaeumafisionomiatãodocequenãopudevê-lasemmeinteressarvivamenteporela.Pelojeitocomqueentrounogabineteemque eu estava, parecia espantada com a atitude que tomava. Somentetremendo,falouaoescravoqueaconduziae,semousarlevantarosolhos,veiosesentarsobremim,sonhando,mascomtantalanguidezquenãomefoidifíciladivinharqualeraoimpulsoqueaocupava.

Malficousozinhaeentregueasimesmae,ocupando-secomasmaistristes reflexões, depois de suspirar várias vezes, os seus belos olhosderramaramlágrimas.Asuador,contudo,pareciamaisternadoqueforteeelapareciachorarmenospordesgraçasdoqueportemê-las.Malenxugaraos prantos e um jovem muito bem feito e suntuosamente vestido, comimpetuosidadeecantando,entrounogabinete.Asuapresençaacaboudeperturbar a dama; ela enrubesceu e, desviando os olhos de cima dele eescondendoorosto,tentouocultar-lheaconfusãoemqueestava.

Quanto a ele, avançou na sua direção como armenos terno emais

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galantedomundo,elançando-seaosseuspés:– Ah, Zefis! – disse-lhe ele – osmeus olhos nãome enganam? Será

Zefisqueestouvendoaqui?Soismesmovós?Vós,queeuadoroequequasenão ousava esperar! O quê! Sois vós que finalmente seguro nos meusbraços?

– Sim – respondeu ela, suspirando –, sou eu que jamais deveria tervindo aqui; sou eu quemorro de vergonha de aqui me encontrar e quecontudonãotemiviratéaqui.

– Comome tornais cara essa solidão – exclamou ele, beijando-lhe amão.

–Ah!–respondeuela–comotalvezumdiaelamecustaráremorsos!Asprovasqueaquivosdoudaminhafraquezasetornarãomaiscruéisparamim, àmedida que se apagarão de vossa lembrança, e elas se apagarão,Mazulhim;ou,sevoslembrardesalgumasvezes,seráunicamenteparamedesprezarpeloquetereifeitoporvós.

–Masqueerro!–replicouelecomumtomjocoso.–Belacomosois,podeis vos formar esse tipo de quimeras? Sabeis que,de verdade, jamaisamei alguém de forma tão terna quanto a vós? E duvidais dos meussentimentos!

– Não, não tenho de modo algum a felicidade de duvidar deles –retomouelatristemente.–Seiquenãopodeissernemconstante,nemfiel:duvidomesmoquesaibaisamar;contudoeuvosamo,euvosdisse issoevenhoaquidizê-loainda.Sintoaminhafraquezaemtodaaminhaextensão,causopiedadeamimmesma,vejotodasassuasconsequênciaseentretantocedo a isso. Aminha razãome faz ver tudo o que tenho a temer, omeuamormefazenfrentartudo.

–Mas,naverdade–respondeuele–,sabeismesmoquecometeisumverdadeiroerrocomigo,umerromortalpornãomevertãoternoquantosou?

–Ah,Mazulhim–exclamou–,éassimquesentistudooquesacrificoporvósequetranquilizaisomeucoração?Euvosamo,Mazulhim.Semeconhecêsseis melhor, não duvidaríeis disso. Esse coração que vos adora,sempre (nãopodeis ignorar isso)pertenceusomenteavós.Dizei-mequedesejais que ele sempre esteja aqui. Se soubésseis o quanto precisoacreditar queme amais, não recusaríeisme dizer isso,mesmo que fosseporhumanidade.Hojeésomenteavósqueaminhafelicidadeestáligada.Vos ver, amar sempre, é omeuúnico beme osmeus únicos votos. Seriamesmo verdade que fôsseis incapaz de pensar emmim como penso emvós?

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–Ah!–exclamouele–euvosgaranto...–Mazulhim–interrompeuela–,deixai-meocuidadodevosjustificar;

eumesaireimelhordoquevósmesmoetenhomaisvontadedeacreditarquemeamaisdoquevósdemepersuadirdisso.

–Euvosconfessarei,Madame–retomouelecomumarmaissériodoque tocado –, que nãome acreditava suficientemente infeliz para que asprovas deminha ternura que, há seismeses, tentei vos dar vos tivessempersuadido tãopouco. Seibemqueumamorextremo, comooque tive afelicidade de vos inspirar, sempre é acompanhado de um pouco dedesconfiança.Seoquesentispormimpudesseatormentarsomenteamim– acrescentou ele, apertando-a entre os seus braços – eu me queixariamuito menos e o prazer de vos achar tão delicada me faria esquecer oquantosoisinjusta.Masaquisetratadovossorepousoe,seconhecêsseismelhor osmeus sentimentos, não vos seria difícil acreditar que eleme éinfinitamentemaiscarodoqueomeu.

Ao terminaressaspalavras, elequis tomarcomZefis asmais ternasliberdades, mas ela se defendeu com um ar tão verdadeiro que, nãopodendomaisimaginarquehouvessenelavontadedetermodosafetados,nos quais somente não se presta mais atenção hoje, ele a olhou comespanto.

– E então, Zefis – disse-lhe ele –, é assim que me provais a vossaternuraedeveriaeuesperartantaindiferença?

–Mazulhim–respondeuela,chorando–,dignai-vosmeescutar!Nãovimaquisemsaberaoqueestavameexpondoemeveríesderramarmenoslágrimasseeunãoestivessedecididaameentregaràvossaternura.Euvosamoe, se acreditasse somentenos impulsosdomeu coração, estarianosvossos braços. Mas, Mazulhim, ainda está em tempo e não noscomprometemos tantoumcomooutroparaquemeescondaisosvossossentimentos.Nãoexistetempoemquenãomesejahorrívelsaberquenãomeamais;masjulgaioquantoteriademequeixardevós,julgaiqualseriaomeuestadoseosoubesseunicamentedepoisqueaminhafraquezanãovos tivesse deixado nada a desejar! Dominado pelo desejo de agradar,acostumado à inconstância por sucessos que não são absolutamentedesmentidos,nãoprocuraissenãovencerenãoquereisamar.Talveztenhasidosempaixãopormimquemeatacastes?Examinaibemovossocoração,soissenhordomeudestinoenãomereçoqueotorneisinfeliz.Senãoforoamormaisternoquevosligaamim,numapalavra,senãomeamaiscomovosamo,nãotemaisdeclararisso.Nãoenrubescereiporseropreçodeumamor,masmorrerei de vergonha e dedor seme visse unicamente como

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objetodeumcapricho.Embora essas palavras e os prantos que Zefis derramava ao

pronunciá-lasnãoenternecessemMazulhim,elasofizeramtomarumtommenosfriodoqueaquelequeinicialmenteempregaracomela.

–Comoosvossos temoresme tocam–disse-lheele–,mas comoosmereço pouco! Será possível que imaginais que vos confundo com essesobjetosdesprezíveisque,atéhoje,parecerammeocupar?Confessoqueamaneira pela qual vivi pôde causar vossas suspeitas;mas, Zefis, queríeisque tivesse unido ao ridículo de ter tido asmulheres que constituíramomeu entretenimento a vergonha de tê-las amado? É verdade, eu temia oamor;ora!oquepodia fazerdemelhorparasempreescapardeledoqueviver com mulheres sem costumes e sem princípios que, no momentomesmoemquemeseduziammaisporseusagrados,peloseucarátermesalvavam do perigo de uma paixão? Estou, dizeis, acostumado àinconstânciapelo sucesso.Vósmeestimais tãopoucoparaacreditarque,antes de vos ter tocado, eume vangloriavapor ter tido alguns sucessos?Não há uma dessas vitórias que, talvez, vós me achais tão fútil,interiormentenãometenhacobertodeconfusão;nenhumaenfimque,aopreçodetodoomeusangue,eunãoquisesseabsolutamenteterganho,poiselasmetornammenosdignodevós!

Comessaspalavras,Zefispareceuumpoucotranquilizadaeestendeuamão aMazulhim, fixando nele os seus belos olhos, com essa expressãoternaetocantequesomenteoamorpodedar.

– Sim, Zefis – continuou Mazulhim –, eu vos amo! E com queintensidade!Comqueprazersinto,ajoelhadodiantedevós,quenomeiodetodos os arrebatamentos mais ardentes, não era ao amor que estavafazendo sacrifício! Como me é doce conhecê-lo e somente conhecê-loatravés de vós! Sem os vossos encantos,mesmo sem as vossas virtudes,semdúvidaeuteriaignoradosempreessesentimentoaoqual,atévós,eumerecusaraameentregar.Ésomenteavósqueodevo,ésomenteporvósquedesejosereternamentepreenchidoporele!

–Ah,Mazulhim–exclamouela–, comoseremos felizes sepensaisoquedizeis!Seéverdadequemeamáveis,sempremeamareis!

Com essas palavras, ela se inclinou para Mazulhim e, apertando-oternamenteentreosseusbraços,aproximouasuacabeçadadele.Omaisterno enlevo estava estampado em seusolhos e logoMazulhim, por seusarroubos,penetrouem todaa suaalma.Oh,Deus!Queolhos, quandoeleacaboudeperturbá-los!JamaisviraosmesmosanãoseremFenime.

Contudo, pormais preparada que estivesse para tornarMazulhimo

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amantemaisfelizdomundo,elanãopôde,semvoltaraselembrardosseustemoresetalvezdasuavirtude,vê-lotãopertodesuafelicidade.

–Nãoduvidaisqueeuvosame–disse-lheela,opondo-lheamaisfracaresistência–,masnãopodeis...?

–Ah,Zefis!–interrompeuele–Zefis!Podeistemeraindameprovaravossaternura?

Zefissuspirouenadarespondeu.Maisvencidapeloseuamordoqueestava persuadida do amor de seu amante, finalmente cedeu aos seudesejos. Que sorte, Mazulhim! Quantos encantos se ofereceram aos teusolhos e o quanto o pudor de Zefis não aumentava o seu preço? AssimMazulhim pareceu-me fortemente impressionado. Tudo o surpreendia,tudoemZefiseraoobjetodeumelogioedeumbeijo.Embora, longedecondenaraadmiraçãoemqueeleestavamergulhado,euapartilhassecomele, pareceu-me, para a situação em que ele se encontrava, ela duravatempo demais e que parecia mesmo suspender ou fazê-lo esquecer dosseusdesejos.

É bem verdade que quantomais se é delicadomais nos divertimoscomcoisassem importância.Somenteosentimentoconheceesses ternosdesvios que ele imagina e varia incessantemente; mas, enfim, não sepoderia sempre se deleitar com isso e, se pararmos, é menos para alilimitarosseusdesejosdoqueparaencontrarnovasfontesdepaixão.PoralgunsinstantestiveumaopiniãobastanteboadeMazulhimparaatribuiroaniquilamentoemqueoviasomenteaumexcessodeamor,eosencantosde Zefis justificavam essa ideia. Provavelmente Zefis também pensou omesmoepormaistempodoqueeu.Eunãoconcebiacomoosarroubosdeumamantetãoterno,tãoapressadoemserfeliz,seenfraqueciamàmedidaqueencontravamcomoqueseampliarem.Eleeravivosemserardente;louvava,admiravasempre:mas,nãoé,portanto,somenteporelogiosqueumamantesabeexprimirosseudesejos?

Por mais habilidade com que Mazulhim dissimulasse a suainfelicidade, Zefis percebeu o pouco sucesso de seu encantos; ela nãopareceu surpresa nem chocada e virando os seus belos olhos para o seuamante:

–Levantai-vos!–disseela,comosorrisomaisdoce.–Estoumaisfelizdoquepensava.

Mazulhim, com esse discurso que lhe pareceu somente insultante,esforçou-se,masemvão,paramostraraZefisqueelenãomereciaqueelativesse dele a ideia que parecia ter formado. Forçado finalmente a fazerjustiçaconsigomesmo:

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–Infelizmente,Madame–disse-lheele,comumtomquemefezrir–,soisvósquemeentristecestes!

–Avossaperturbaçãomedivertiu– respondeuZefis–,masavossadormeofenderia.Seriaexcessivamentecruelparamimqueacreditásseismeucoraçãoferido...

–Ah,Zefis–interrompeuMazulhim–,comoéhorrorosoestarerradoconvoscoedifíciljustificarisso!

– Cessai então de vos afligir! – respondeu ternamente Zefis. – Creioqueme amais, faz somente um instantemesmoque acredito nisso e nãopodíeismelhormeprovaravossaternurasenãopelascoisasquecensuraisemvós.

–Ah!isso,comosediz,ébomparaodiscurso–disseoSultão–,masno fundo da alma certamente aquela dama não estava contente.Primeiramente,porqueemsimesmoissoéaflitivoe,aparentemente,oqueafligetodasasmulheresnãopoderiadivertiruma,oupelomenosconvireisquenaquelecasoelaseriabemcaprichosa.Aliás,équeosentimentonãoéumacoisa tãoconsoladora,quando issoacontece,quantosepoderiabemdizê-lo.Quantoaisso,lembro-mequeumdia(porDeus,euerabemjovem)havia uma mulher... Não vos direi como isso aconteceu; entretantoestávamososdois...Realmente,jamaisteriadesconfiadodisso;enãoéque,de repente... não seibemcomovosdizer isso.Poisbem!Esforcei-mepormanter-lhe os propósitosmais galantes domundo: quantomais eu falei,maiselachorou. Jamaisvi issoanãoserumavez,maséverdadequeerauma coisa bem enternecedora. Disse-lhe, entretanto, entre outras coisas,que não era preciso se desesperar com nada, que eu não fizera depropósito...

–Ei,acabaiavossacruelhistória!–interrompeuaSultana.–Achoótimo– retomouSchah-Baham–quenãome sejapermitido

fazerumconto,esobretudoemminhacasa!Daí,comoestavavosdizendo–prosseguiuele–,concluíeparasemprequenãohámulheralgumaaquemissodêumcertoprazer;consequentemente,adamadeMazulhim,quediziacoisastãobonitas...

– Teria igualmente gostado de não ter que dizê-lo – interrompeu aSultana–,issoéprovável.Massaibai,entretanto,queoquepensaissertãoaborrecidoparaumamulheraafligemenosdoqueaembaraça.

–Ah,sim–retomouoSultão–,porexemplo,nãotereisenãoque...masnãotendemedo!Continuai,Emir.

– Por mais desconcertado que Mazulhim me parecesse com a suaaventura,pareceu-mequeestavaaindamaissurpresocomamaneirapela

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qualZefisaencarava.– Se alguma coisa – disse ele – pode me consolar desse horrível

infortúnio équeelenão façanenhummalparaovosso coração.Quantasmulheresmedetestariam,setivessemtantodequesequeixardemim!

–Euvosconfesso–respondeuZefis–quetalvezfizessecomoelas,sepudesseatribuiresseacidenteàvossafrieza;masse,comomedissesteseeuacredito, somenteoamorperturbaosvossossentidos,nessaaventurasomenteencontromilcoisasmaislisonjeadorasparamimdoquetodososvossos arroubos. Eu vos amo demais para não acreditar que me amais.Talvez, também, tenhavaidadedemais–acrescentouela, sorrindo–paraimaginar que haja erromeu,mas, qualquer que seja omotivo daminhaindulgência, a verdade é que vos perdôo. De resto vos aviso que ficariamenostranquilaquantoàmaissimplessuspeitasobreavossafidelidadedoquequantoaoquechamaisdeumcrime.Sim,Mazulhim,sedefielamimeque eu possa sempre vos encontrar como sois atualmente! O que euperderiadoladodaquiloquechamaisdeprazereseunãooreencontrariamesmonacertezadequeseríeisconstante?

Enquanto Zefis falava, Mazulhim, que bem gostaria de ter menosobrigaçãoparacomela,nãopoupavanadadetudooquepodiafazeroseuinfortúniocessar.Zefisseprestavaaosseusdesejoscomumacomplacênciaque,internamente,talvezelenãoaprovasse,porqueacadamomentoelaotornavamenos desculpável. Essa complacência cada vez se tornavamaisterna,aumentavainsensivelmente.Zefisdefendiamenosouconcediacommelhorboavontade;osseusolhosbrilhavamcomumardorqueaindanãoviranela;pareciaquesomentenaqueleinstanteelarealmenteseentregara:até ali, ela somente se submetera aos empenhos de Mazulhim, então osdividiacomele.Essarepugnância inseparáveldoprimeiromomento,quetantasmulheresrepresentamequesentemtãopouco,tinhacessado.ZefissustentavasemembaraçooselogiosdeMazulhimepareciamesmodesejarqueelepudessesecolocaremcondiçöesdelhefazernovos.Elaenrubesciaenãoeramaisopudorqueafaziacorar;osseusolharesnãosedesviavammais dos objetos que inicialmente pareceram feri-los. A piedade queMazulhimlheinspiroufinalmentenãotevemaislimites.Contudo...

–Ah, sim– interrompeuoSultão–, contudo... Compreendobem, eisumhomenzinho impaciente.Não conheçonadaque, há longo termo, sejamais insuportáveldoqueosprocedimentosqueele temcomZefis.Estoubemcertodequeelaseaborreceu.

–Eeu–disseaSultana–soudaopiniãocontrária:aborrecer-secomuminfortúniodessesémerecê-lo.

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–Bem–retomouoSultão–,pensaisqueumamulherfazumareflexãodessas? O que há de certo para mim é que num caso assim eu meaborreceria e, claro, não pensaria ser menos razoável por isso, não!Vejamos entretanto o que disse Zefis; pois, pelo que estou vendo, nissocomoemqualqueroutracoisacadaumtemoseugosto.

–Pormaisindulgentequefosse–retomouAmanzei–,aobstinaçãodoinfortúniode seuamantepareceu-meentediá-la; sejaporque, tendo feitomais por ele do que da primeira vez, ela pensou merecê-la menos; sejaporque, estando naquelemomento disposta de formamais favorável, elaencontrasseemsuarazãomenosforçaparasustentá-lo.

Mazulhim,menosconvencidodoqueZefisdoseuinfortúnio,outalvezacostumadoaenfrentarsemelhantesdesgraças,nãopensandodeZefistãobemquantodevia, tentou o que, se fossemais sábio oumais polido, nãoteria tentado. Pareceu-me que ela não concedia prova que lhemostrasseaindamenospresunçãoemMazulhimdoqueamáopiniãoqueeleousavaterdosseusencantos.

Apesar da sua perturbação, escapou-lhe um sorriso malicioso queparecia dizer aMazulhimque ela não era absolutamente alguéma quemessa temeridade fossedispensadaepudesse ficar feliz.Certadeque logoeleseriapunidoporisso,elaseentregouàssuasridículasempreitadascomuma intrepidez que qualquer mulher é bastante frívola para ter emsemelhantecaso,masque,emtodas,absolutamentenãoéjustificadapelosucesso.EmboranessemomentoMazulhimfossemenoslamentáveldoquefora, não estava contudo numa situação em que se poderia felicitá-lo e,quaisquerquefossemosseusesforços,Zefisteverazãoemnãotemê-los.

Pelo ar espantado deMazulhim, tive que acreditar que, se estivesseacostumado a uma parte do que lhe acontecia, ele não o estava paraencontrar mulheres que, como Zefis, não pudessem deixar em seusinfortúnios nenhum recurso. O que digo, contudo, sem querer ofender anenhuma.E,sabe-se láseseriasempreaelasaquesedeveriaatribuirasculpas?

Dequalquerforma,asurpresadeMazulhimfoimarcadadeformatãoengraçadae, às custasdemuitasoutrasmulheres, elogiava tãobemZefisqueelanãopôdeseimpedirderirdisso.

–Setivésseismeperguntado–disse-lheela–,euvosteriadito,mastalveznãotivésseisacreditadoemmim.

–Certamente estaria errado – respondeuele –,masnãodevia estaresperando por isso; uma experiência de dez anos, sempre feliz, fez-meacreditarsersemprepossívelaquiloque,convosco,tenteiinutilmente.Ah,

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Zefis – acrescentou ele –, será preciso que encontre naquilo que deveriasatisfazerosmeusdesejosnovasrazõesparamelastimar?

–Defato–respondeuela,rindo–,concebocomosoisinfelizedeveistambémterbastantecertezadaminhapiedade.

–Zefis–retomouele,comumarrebatamentomaisverdadeirodoquetodos os que eu vira nele –, nada, a não ser os vossos encantos, nada seiguala à minha ternura; cada momento aumenta o meu ardor e o meudesespero;esinto...

– Ei! Mazulhim – interrompeu ela –, qual teria sido portanto essafelicidadecujaperdatantolamentais?Não,seforverdadequemeamáveis,nãosoislastimável.Umúnicodosmeusolharesdevevostornarmaisfelizdoquetodosessesprazeresqueprocurais,seostivésseisencontradojuntoaumaoutra.

–Osvossossentimentosmeencantamepenetramemmim–disseele–mas,redobrandoomeuamor,aumentamosmeusarrependimentoseaminhador.

–Acabemoscomesseencontro–disseZefis,levantando-se.–Oquê?–exclamouele.–Jágostaríeisdemedeixar?Ah,Zefis,nãome

abandonaiaohorrordaminhasituação!– Não, Mazulhim – replicou ela –, eu vos prometi passar este dia

convosco.Ai!queelenãopossaabsolutamentevosparecermaislongodoqueamim!Massaiamosdestegabinete,vamosgozardodeliciosofrescorquecomeçaaseespalhar,distrairavossa imaginação,desviá-laenfimdecima dos objetos que talvez a entristeçam. Mazulhim, quanto maisprocuramos o prazer, menos podemos saboreá-lo; tentemos ver se, neleparandomenosonossopensamento,nãoficaremosmelhordispostos.

Aoterminaressaspalavras,agenerosaZefissaiueMazulhimlhedeuamãocomoarmaisrespeitosodomundo.

O fato singular é que esse Mazulhim, que empregava tão mal osencontrosque lhemarcavam,eraohomemmaisprocuradodeAgra;nãohavia umamulher que não o tivera ou não quisesse tê-lo como amante:vivo,amável,volúvel,sempreenganadoremesmoassimencontrandomaispessoas para enganar, todas as mulheres o conheciam e contudo todasprocuravam agradá-lo. Enfim, a sua reputação era surpreendente.Acreditavamqueeleera...Oquenãosepensavadele?Eentretanto,oqueeraele?Oquenãodeviaeleàdiscriçãodasmulheres,eleque,procedendotãomalcomelas,astratavacontudocomtãopoucadeferência?

Depoisdeumahoradepasseio,Zefiseelevieramdevoltadojardim.Procurei imediatamente em seus olhos para saber se estavam mais

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contentesdoquequandosaíram.PeloarmodestodeMazulhim,penseiquenãoenãoestavaenganado.Zefissentou-sesobremim, indolentemente,eMazulhim se pôs aos seus pés, num chão ladrilhado. Tendomuito poucacoisa a lhe dizer e inicialmente não imaginando nenhuma espécie dediversão que tivesse condição de lhe proporcionar, abandonou-se aodevaneio, olhando-a com muita ternura. Pouco tempo depois, comvergonhadopersonagemqueelerepresentavajuntoàmaisbelamulherdeAgra, mas ainda consternado com os seus infortúnios, tremendo equerendorepará-los,prontoasofrernovasafrontas,poralguns instantesnãosabiaoquedecidir.Finalmente,temeuqueoseusilêncioeasuafriezaparecessemmaisaZefiscomoprovasdeindiferençadoquedetemoroudearrependimento. Tomou-a bruscamente nos braços e, dando-lhe os maisternos beijos, numa grande ostentação, pareceu querer sair da profundaletargiaemqueestavamergulhado.InicialmenteZefispareceudecidiremsimesmaseelaseprestariaàsnovasempreitadasdeMazulhim.Seasuaternura pedia-lhe para tudo conceder, essa mesma ternura a fazia verdolorosamente que jamais era mais cruel para com Mazulhim do quequandonadalherecusava.Desejavaeleficarfelizouaconheciabempoucopara acreditar que, se ele não procurasse fazê-lo, ela ficaria magoada?Enfim,seriaoamorouavaidadequeofaziavoltartãoterno?

Enquanto ela se ocupava com essas ideias, Mazulhim (seja porquebuscasseunicamentesesairdeumasituaçãoqueoaborrecia,sejaporque,comoeraadmirávelnosmínimosdetalhesdoamor,quisesseimpedirqueZefis se entediasse) acreditou ter que empregar essas insignificâncias,encantadorasquandoprecedemouseseguemaumaconversaséria,masque, por sua frivolidade, não são feitas para fazer as vezes dela.Inicialmente Zefis se recusou a se prestar a isso, mas acreditando nodesveloextremocomoqualMazulhimlhepediamaiscomplacênciadoqueprecisavaqueelativesse,porpuragenerosidadeelaconsentiu,balançandoosombros,fatopeloqualeleimaginavagrandesideiasedoqualela(poiséprecisofazer-lhejustiça)esperavamuitomenosdoqueele.

Oardesatentoemesmode tédioqueelaguardoupormuito tempo,longedeimpacientarMazulhim,ofezredobrarosseusgalanteiose,comoeraohomemdoseutempoquemelhorsabiatrataraspequenascoisas,elea forçou a prestar mais atenção nele; da atenção ele a conduziu aointeresse. O pouco de realidade dos objetos que ele lhe ofereciadesapareceuinsensivelmenteaosseuolhos;elamesmaauxiliavanailusãoemqueelealançavae,finalmente,soubedequantosprazeresaimaginaçãoéafonteeoquanto,semela,anaturezaserialimitada.

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Para cúmulo da felicidade, o que talvez Mazulhim tivesse olhadomenoscomoumrecursoparaeledoquecomoumaespéciedeindenizaçãoqueeledeviaaZefis,causou-lheumaimpressãomaisfortedoqueaqueelese lisonjeava. Os encantos de Zefis, tornando-se mesmo mais tocantes,fizeram-no sentir essa emoção que até ali buscara em vão e, na docedesordem que começava a se apoderar dos seus sentidos, perdendo alembrança dos seus infortúnios ou estando então mais irritado do queabatidoporeles,finalmentevenceugloriosamenteessesobstáculoscruéis,pelosquaissevirapresopormuitotempoedeformatãocruel.

–Compreendo–disseentãooSultão–,émuitobemfeito:antestardedoquenunca;querdizerque...

–Nãoireisnosexplicarisso–interrompeuaSultana.–EpensaisqueAmanzeitenhatidoaprudênciaoudelicadezadenosdeixaralgumacoisaparaadivinhar?

–Nãoseidenada–retomouoSultão–,nãotenhonadacomisso;masenfim,o fatoéque, comosabeis tãobemquantoeu,esseMazulhiméumpouco sujeito a acidentes e que me parece bem simples que nosinformemos... porque, por acaso, poderia ser que... pois bem! Dizei-meentãoumpouco:Mazulhim?

– Sire, ele foi feliz. Mas sabia melhor ofender do que reparar osultrajesquefaziaeduvidoque,setivessetratadocomumapessoamenosgenerosadoqueZefis,teriapodidoobteroseuperdãoportãopouco.Maisfrívolo do que apaixonado, ele me pareceu sentir menos a felicidade depossuir Zefis do que o prazer de ter que enrubescermenos diante dela.Começaram uma conversa terna onde Zefis colocou muito sentimento eMazulhimgíriaemexcesso.

Pouco tempo depois serviram uma ceia na qual ele esgotaria adelicadeza e o gosto. Zefis, cada vezmais animada pela presença do seuamante,disse-lhemilcoisas finaseapaixonadas,queme fizeramadmirarigualmente o seu espírito e a sua ternura. Embora ele mesmo ficassesurpresocomtantosencantos,estesnãoagiramsobreeledeformatãovivaquantosobremimepareceu-mequeoseuorgulhoestavamaislisonjeadocom a conquista de Zefis do que o seu coração estava tocado por essapaixãovivaedelicadaquetinhaporeleepelaqual,apesardoquetemiadesuainconstância,estavaunicamentetomada.

Se a posse de Zefis não tornara Mazulhim tão apaixonado quantodeveriatê-lofeito,pelomenoselesetornaramaisardente.Oseucoração,inacessívelaosentimento,aindaesmorecia;todasasvirtudesdeZefis,queoingratolouvavasemconheceretalvezsemacreditarnelas,longedeligá-

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lo a ela, pareciam afastá-lo e reprimi-lo. Eu não o via nem mesmoemocionadocomoamorternoeverdadeiroqueelatinhaporele,maselacomeçava a lhe inspirar desejos. Ele a olhava com exaltação, suspirava,falava-lhe com entusiasmo da felicidade que usufruíra e pareceu esperarcomimpaciênciaqueaceiaterminasse.Elelhedissemesmoisso;massejaporque se divertia ali ou que não tivesse tão boa opinião quanto a delesobre a pós-ceia, ela estava menos impaciente. Contudo o amava; ele aapressou, logo... Ah, Mazulhim! como terias sido feliz se tivésseis sabidoamar!

Poucotempodepois,ZefissaiueMazulhimaseguiu,protestando-lheamor e reconhecimento que eu pensei serem tanto menos verdadeirosquantomaiselaosmerecia.Zefiseraexcessivamenteamávelparaqueelepudesse se ligar constantemente a ela. Era verdadeira, semmaquilagem,semcoqueteria;Mazulhimeraoseuprimeirocaso,masoqueteriafeitoafelicidadedeumoutro,paraessecoraçãocorrompidonãopassavadeumaligaçãoondenãoencontravaprazernemdiversão.Elesomenteprecisavadessas mulheres que, nascidas sem sentimento nem pudor, têm milaventuras sem ter um amante e que, à indecência da sua conduta,poderíamosacusardebuscaraindamaisadesonradoqueoprazer.Nãoera espantoso que Mazulhim, que não passava de um pretensioso,agradasseàsmulheresdessegêneroeque,porsuavez,eleasprocurasse.

– Mas, Amanzei – perguntou a Sultana –, como um homem de tãopouco mérito pudera tocar uma pessoa tão amável quanto vós nosdescrevestesZefis?

– Se Vossa Majestade tivesse a bondade de voltar a se lembrar doretratoquefizdeMazulhim,elaseespantariamenoscomofatodequeelesoubesseagradaraZefis;eletinhagarboesabiafingirvirtudes.Aliás,Zefisnãoseriaaprimeiramulherracionalqueteriatidoadesgraçadeamarumpresunçoso,eVossaMajestadenãoignoraquetodososdiasnãosevêoutracoisa.

–Semdúvida!–disseoSultão.–Oraessa,eletemrazão,somentesevêisso!Deresto,nãomepergunteisporque,poisnadaseisobreisso.

– Também não é a vós que o pergunto – retomou a Sultana. – Sãocoisasque, comtodooespíritoque tendes,parece-mesimplesquenãoosaibais.Queumamulherracional–continuouela–seentregueaumamorigualmenteternoeconstante;que,seguradossentimentosedaprobidadedeumhomemqueaama(secontudoalgumacoisapodeassegurá-ladisso),elafinalmenteseentregaaele,issonãomesurpreende;masquesejacapazdecometerfraquezasporumMazulhim,eisoquenãopossocompreender!

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–Oamor–respondeuAmanzei–nãoseriaoqueése...– Se, se – interrompeu o Sultão. – Bancareis por muito tempo os

pedantes?Enãotendesmaisalembrançadequeeuproibiasdissertações?Oquevos importa,dizei-me,queessaZefisameesseMazulhim,queumasejaumafalsabeataeooutroumpresunçoso?Poisbem!Elaoamaassimcomoele é.Quereis saber por quê?Por quenãoperguntáveis aAmanzeienquantoeleeramulher?Acreditaisqueeleselembredisso,ele,agora?Deresto,soisacausa,comtodososvossosdiscursos,dofatodequetodososcontosquemefazemnuncaacabameissomecansa.Vejamos,Emir,ondeestáveis? O que é feito dessa Zefis tão racional que acaba aborrecendo?Qualfoiofimdetudoisso?

– O que devia ter – retomou Amanzei. – Mazulhim, não querendoinicialmente faltar totalmentecomorespeitoaZefis,enganou-ada formamais secreta possível. Ou os cuidados que teve para com ela não foramempregadosdeformahábilosuficienteparaenganá-lapormuitotempoouas infidelidades que ele lhe fazia eram exageradamente frequentes eacentuadasparaqueelepudessesempreocultá-las.Dequalquerforma,elase queixou;mas, como com todas as delicadezas do amormais terno elatinhatodaasuacegueira,eleconseguiuacalmá-lafacilmente.Elecontinuouassuas infidelidadeseelarecomeçouassuascensuras.Finalmenteeleseimpacientoue,poucotocadopeloseuamorepelassuaslágrimas,rompeucompletamentecomelaeadeixouentregueàvergonhadetê-loamadoeàdordetê-loperdido.

–Palavra–disseoSultão–,elefezmuitobememdeixá-la;eaprovadissoéqueeuteriafeitoomesmo!Seimuitobemqueelaeramuitobonita,que tinha muito mérito, mas aquele mérito, a mim que desejo que medivirtam,teriameaborrecidoexatamentecomoaele.Entretanto,nãoéqueeu sejaumMazulhim,pensoquenãome censurarão isso.Mas équenãodeixadeseragradáveldeixarmulheres,nemquesejasomenteparaouviroqueelastêmadizersobreisso.

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CAPÍTULOXI

Quecontémumareceitacontraosencantamentos

Três dias depois que vi Zefis pela primeira vez, Mazulhim chegousozinho.Maltiveratempodedaralgumasordenseumamulherbaixa,deaparência viva, indecente, travessa e entretanto afetada, entrou nogabinete. De longe, não lhe faltava brilho. De perto, não passava de umafiguramedíocreeque,semosseusridículos,ostrejeitoseessaprodigiosavivacidadequeostentava,nemseterianotado.Assim,eraaúnicacoisaquefizeranasceremMazulhimodesejodevê-la.

–Ah!–exclamouele,vendo-a–,soisvós!Massabeisquesoisdivinachegandotãocedo?

Essabelezaque,apesardosseusaresinfantis,tinhapelomenostrintaanos, avançou em direção a Mazulhim com essa nobre indecência quecompunha quase todas as suas graças e, sem responder-lhe, nem quaseolhá-lo:

–Tendesmuitarazão–disse-lheela–emmedizerquevossapequenacasa era bonita; mas é que ela é encantadora! Mobiliada com um gosto!Comumavoluptuosidade!issoédivino!

–Nãoéverdade–respondeuele–queéamaisbonitadoarrabalde?–Quantoaisso–replicouela–,nãodiriamqueconheçomuitas?Este

gabineteéencantador–continuouela–,galantetantoquantoopossível.–Estouencantado–disseele–emvosverneleequeelevosagrade.– Oh! paramim – replicou ela – talvez não tenha vindo tão afetada

quantodevia.Nãoqueeunãosaiba,tãobemquantoumaoutra,aartedeiremboraedepôrdecêncianumcaso:mas...

– Não a praticais – interrompeu ele. – Oh, por isso fazem justiçaconvosco.

–Équeissoéverdade,pelomenos–retomouela.–Exatamente,nãosou nada falsa. Ontem, quando me dissestes que me amáveis e que mepropusestes vir até aqui... estive entretanto bastante tentada em vosresponder não, mas a verdade do meu caráter não me permitiu isso deformaalguma.Soufranca,natural,vósmeagradaiseaquiestou,talveznãopensaismaismaldemimporisso?

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–Quem?Eu?–respondeuele,balançandoosombros.–Eisumabelaideia!Semefossepossível,pensariamilvezesmelhor!

–Naverdade,soisencantador–retomouela.–Mas,dizei-meentão,hámuitotempoqueestaisaqui?

– Estava chegando – recomeçou ele – e enrubesço por isso, estouconfuso.Maspensastesemseraprimeiraaestaraqui.

–Issoteriasidorealmentebonito–disseela–,eeunãoteriadeixadodevosserreconhecida!

–Concebeisbem–respondeuele–quenão fazemosessascoisasdepropósitoequeelaspodemaconteceràspessoasmaissolícitas.

–Sim,sim–retomouela–,concebobemisso;entretantonãogostariadisso. Escutai então algumas notícias. Neste instante Zobeide acaba dedeixarAreb-Chan.

–Elasomentelhefezisso?–perguntouele.–ESofie–continuouela–acabadetomarDara.–Elatomousomenteele?–continuouainda.Enquantoelafalava,Mazulhim,queaconheciademaispararespeitá-la

somente umpouco, tomava com ela asmaiores liberdades. Longe demeparecermais comovidadoqueele,passeouos seusolhosdistraidamentenogabinete,depois,voltando-osparaoseurelógio:

–Masqueloucuraentão,Mazulhim!–disseela.–Ficaremossozinhosodiatodo?

–Aíestáumaboapergunta–respondeuele.–Semdúvidaestaremossozinhos!

–Mas,realmente–retomouela–,eunãocontaracomisso.Largai-me,então–acrescentouela,semnenhumdesejoqueele terminassenemquecontinuasse (assim ele não ficou mais embaraçado do que ela) –; naverdade, sois deuma loucuraque anada se assemelha. E apropósitodoqueestarmossozinhos,porfavor?

– Parece-me – respondeu friamente Mazulhim – que essa conversanãoimpediadenosdivertirmos,queissoestavacombinadoentrenós.

– Combinado? – disse ela. – Que conto! Onde inventastes isso? Nãofaleiumapalavrasobreisso,juro;esabeoquemais,paramimtantofazesaberei bem vos conter. Ah! para isso, deixai comigo! Tendes modossingulares...

–Nemtanto,parece-mequenãosoumaissingulardoqueumoutro.Aliás,estandojuntoscomoestamos,devoacreditarquenãoexageronada.Ah!Zulica!Vósquetendesgosto,dizei-meoqueachaisdesseteto?

–Estavasonhandocomisso–disseela–,gostariaqueelefossemenos

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carregadodedourado.Assimcomoestá,contudo,euoachomuitobonito!–acrescentou ela, sentando sobre os seus joelhos e, segundo tudo parecia,nãoeraparaatrapalhá-lo.

– Quando penso nisso... – retomou ela. – É preciso que esteja bemlouca para acreditar que me sereis fiel, vós que ainda não o fostes comninguém.

– Ah! não falemos disso – replicou ele, continuando a se ocupar e(graçasàsbondadesdeZulica)deformamuitocômoda–,talvezestivésseisbemembaraçadaseeufossemaisconstantedoquesuspeitaisqueeuseja.

–Portanto,nãoquereismedeixar?–disseela,nãofazendoomenormovimento para escapar dele ou para constrangê-lo. – Com relação àconstância – continuou ela tão friamente quanto se ele não tivessecontinuado–tenhoissonocaráter,ousodizê-lo!

– Hoje a constância não é uma virtude, de tão comum que é –respondeu ele –, e, sem nos vangloriarmos, podemos dizer que somoscapazesde ser constantes.Vós, entretantoe apesarda constânciadequepodeisalardear,mudastesalgumasvezes...

–Nemtanto,nãoacreditareisnisso!–Masconheço,enãooignorais,todososamantesquetivestes.–Poisbem–disseela–,nessecasoconvireisquedependeusomente

demimtermuitosmais.Acabaicomisso,portanto,vósmeatormentais!–Muitomenosdoquedeveria.–Mas,enfim–replicouela–,ésempremaisdoquequero.– O quê! – disse-lhe ele. – Nãome amais? Tereis um capricho? Não

combinamostudo?–Estábem!Claroque... sim– respondeuela –,mas... Ah!Mazulhim,

vósmedesagradais!–Éumconto–recomeçouelefriamente–,issonãopodeacontecer!Entãoeleacolocousuavementesobremim.–Euvosasseguro,Mazulhim–,disseela,arrumando-seali–queestou

indignadaconvosco.Estoulhedizendo,jamaisvosperdoarei!ApesardessasterríveisameaçasdeZulica,Mazulhimquisterminarde

melindrá-la. Como, entre outras coisas, ele tinha omau hábito de jamaisesperarasiequeaparentementeelatinhaodejamaisesperarninguém,defato ele amelindrou a um ponto que não se poderia imaginar. Contudo,apesar de sua raiva, ela esperou e a sua vaidade fê-la suspender o seujulgamento.Emtodasasocasiõesemqueseencontrara(ecertamenteelasforam frequentes), jamais tinham lhe faltado ao prometido; para ela erauma prova incontestável do que ela valia. Aliás, esse Mazulhim que ela

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achavatãopoucodignodeestima,seacreditássemosnopúblico,dequaisprodígios não seria capaz? Se (como parecia-lhe estar bastante provado)ela não tinha nada a se censurar, por qual acasoMazulhim que, dizia-se,jamaisprocederamalcomalguém,porqueofizeratãosingularmentecomela? Ela ouvira de todo mundo que era encantadora; a reputação deMazulhimerabelademaisparaqueelenãoamerecesse,pelomenos,sobalgum ponto de vista; portanto o que o fazia refletir tanto não era nadanaturalenãopodiadurar.

Comessasideiasconsoladorasedeboatoemboato,Zulicasearmarade paciência e escondia da melhor forma possível o seu despeito.Mazulhim, contudo, mantinha os mais galantes propósitos do mundoacercadasbelezasdela,quepareciamtocá-lotãopouco.Erapreciso,diziaele, que para torná-lo assim como se encontrava todos os mágicos dasÍndiastivessemtrabalhadocontraele.

– Mas – continuou ele – o que podem os encantos deles contra osvossos?Amável Zulica, elesdivergiramdo seupoder,masnão triunfarãosobreele!

A tudo isso, Zulica, mais aborrecida do que Mazulhim estavadesconcertado, somente lhe respondeu por sorrisos maliciosos, mas aosquais,compenadeterminarcomele,elanãoousavadartodaaexpressãoquedesejariater.

–Estais–perguntou-lheelacomumardebochado– indispostocomosmágicos?Aconselho-vosavosreconciliarcomeles;pessoascapazesdefazerumacoisadessassãoinimigosperigosos.

–Eles seriammenos se tivésseispostobemna cabeçade lhesdarodesmentidodisso–respondeuele–,eduvidotambémque,apesardasuamávontade,seeuvosamassecommenosardor,euteriasentido...

–Oh!éumpropósitonoqualfaçomuitopoucafé,estequemedizeis–interrompeuZulicaque, tendodeterminadoemsimesmaotempoquesepoderiaficarencantado,acreditavaentãoterconcedidobastanteprazo.

– Sei bem – retomou ele – que seme julgais com rigor, não deveisestarcontente;mas,quantomenosestiverdes,maisdeveríeisacabardemetirararazão!

–Duvido–replicouela–queissofosseconveniente.–Acreditoquefôsseismenosligadaàdecência–retomouelecomum

arzombeteiro–eousavaesperar...– Certamente usais bemo vosso tempopara zombar – interrompeu

ela.–Tendesrazão;nadaétãogloriosoparavósquantoessaaventura!–Mas, Zulica – retomouele –, nãopoderíeis portanto sentir alguma

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vezqueotomquetomaissomentepodemeaborrecereperpetuaraminhahumilhação?

–Euvosjuro–disseela–,istoéoquemenosmepreocupa.–Mas–perguntouele–,sevospreocupaistãopoucocomisso,como

quevosaborreceistanto?–Permitireisquevosdiga,Senhor,queéumaperguntamuito tolaa

quemefazeis.Comessaspalavrasela se levantou,apesarde todososesforçosque

elefezpararetê-la.–Deixai-me–disseelacomumtomáspero.–Nãoquerovosvernem

ouvir.–Certamente–exclamouele–vimulheres igualmente infelizesmas

jamaistãoaborrecidas!EssaexclamaçãodeMazulhimnãoagradouaZulica.Desesperadacom

o acidente que estava acontecendo, exasperada com o jeito frio deMazulhim,emsuafúriaapoderou-sedeumgrandevasodeporcelanaqueencontrouàmãoeoquebrouemmilpedaços.

– Infelizmente,Madame–disse-lheMazulhimsorrindo–,não teríeisencontradoaquinadaparaquebrarsetodasaspessoasquenãoestivessemcontentes comigo tivessem se vingado da mesma maneira. De resto –acrescentou ele, sentando-se sobre mim – suplico-vos para não vosincomodar.

–Eisumamulherquemeagradainteiramente–disseSchah-Baham–;elatemsentimentoenãoécomoessaZefis,paraquemtudoéigualeque,aliás, eramesmoapreciosamais tolaqueencontreiem todaminhavida!Sintoqueelameinteressainfinitamenteearecomendoparavós,Amanzei;compreendeis?Façacomquenãoamagoemsempre.

–Sire–respondeuAmanzei–,euafavorecereitantoquantoorespeitodevidoàverdadepoderápermiti-lo.

Mazulhim,terminandodefalar,pôs-seasonharcomumardistraído.Zulica, que fora se sentar num canto e longe dele, durante algum tempomantevemuitobemaindiferençadesdenhosaqueelelhetestemunhavae,paradevolvê-la,pôs-seacantar.

–Ouestouenganado–disseelequandoela terminou–,ouo trechoqueMadameacabadecantarédaóperatal.

Elanadarespondeu.– Tendes – continuou ele – uma bonita voz, pouco extensa, mas

aflautadaecujossonsvãodiretamenteaocoração.–Felizmenteelavosagrada–continuouela,semolhá-lo.

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– Talvez não acrediteis nisso – recomeçou ele –, mas é verdade,entretanto, que poderíeis ficar lisonjeada com isso e que poucas pessoasconhecem tão bem esse assunto quanto eu. E outro agrado que acho emvós, e que vos diria agora se pudesse vos parecer dignode vos louvar, éumaexpressãoencantadora,quenadadeixaadesejarporsuavivacidadeeporsuaexatidãoequevossosolhosapóiamtãobem,queéimpossívelvosouvirsemsesentircomovidoatéo fundodocoração. Ireismeresponderaindaqueémuitasortequeissomeagrade.

–Não–respondeuelacomumtommaisdoce–,nãoestouaborrecidaporqueencontráveisemmimcoisasmaisamáveis, equantomais seiquesoisperito,maisosvossoselogiosdevemmelisonjear.

– Aí está precisamente – disse ele – a razão que me faria desejarmerecerosvossos.

–Ah,semdúvida!–disseela.– Ireisme dizer que não entendeis nada disso – respondeu ele – e,

paracúmulodainjustiça,nãoimaginaistambémquemeéindiferenteofatodepensardesbemoumaldemim?Acrescentareisessainjúriaatodasquejá me fizestes? Ah, Zulica! seria possível que o que deveria aumentar avossaternuranãosirvasenãoparavosirritarcontramim?

– É também possível – retomou ela com arrebatamento – queacreditais que eu seja tão simplória para olhar como prova de amor aafrontamaissangrentaquejamaispoderíeismefazer?

– Uma afronta – exclamou ele –, amável Zulica! Conheceis pouco oamor, se pensais que deveríamos, vós e eu, enrubescer com o que nosaconteceu.Nãotemereivosdizermaiscoisas:aspessoasaquemhonrastesbastantecomavossaternuravosamarambempouco,senãoasachastestodastãoinfelizesquantoeu.

–Oh!para isso,senhor–disseela, levantando-se–, terminai,ouvosdeixo. Não posso mais sustentar o ridículo e a indecência de vossospropósitos.

–Nãoignoroqueelesvosferem–respondeuele–,eestousurpreso,confesso, por causarem este efeito sobre vós, mas com o que não meconformoéquevosobstineisameachartãoculpado.Achariabemsimplesque uma mulher comum, sem sociedade, sem hábitos, se ofendessemortalmente com uma aventura semelhante; mas vós! Que sejaisprecisamentecomoalguémque jamaisviucoisaalguma!Naverdade issonãoéperdoável.

–Defato!–disseela.–Éprecisosertolaaoextremoparanãoachá-lalisonjeira e não me espanto de, absolutamente, não ter ainda vos

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agradecidopelaimpressãosingularquecauseiemvós!–Zombariaàparte–disseele,querendoselevantar–,vouvosprovar

quenãoestouerrado.–Não,senhor–exclamouela–,euvosproíbodevosaproximar!–Executareiasvossasordens,pormaisinjustasquesejam,eprovarei

delonge,poisjulgaisissoconveniente.– Sim – replicou ela –, certamente isso vos serámais cômodo. Mas

façamos melhor: não faleis mais disso; de qualquer forma, não sou tãoimbecilparaquealgumdiapossaismepersuadirdeque,quantomaisumamantetemternura,menospodeexprimi-laàquelequeama.

– Quer dizer – retomou ele, com um ar negligente – que acreditaisprecisamentenocontrário,vós?

–Sim–recomeçouela–,precisamente;équenãosepodeestarmaispersuadidodeumacoisadoqueestoudesta.

– Pois bem, Madame! Podeis vos gabar de ser a mulher menosdelicada que existe nomundo e se eu não vos amasse ao ponto que nãoconheço sob o céu nada tão forte para me arrancar de vós, eu vosconfessariaqueessamaneiradepensarmeafastariaparasempredevós.

– Seria bastante surpreendente – disse ela – que essa maneira vosagradasse!

– Oh, não! – retomou ele com um ar despreendido. – Não estouinteressado, tanto quanto quereis me dar a honra de acreditar, em medeclararseuinimigo;mas,portodosostempos,estádecididoquequantomais se temamor,menos se temousodos seus sentidos e que somentecorações grosseiros e incapazes costumam se deixar penetrar pelosencantosdavolúpia,desepossuirnosmomentosemquemeencontrastestãolongedemimmesmo.Seaesperançadoprazerbastasseparaperturbarumamante,julgaioquedeveproduzirneleaaproximaçãodessesinstantesfelizesqueeledesejou tão intensamente.Oquantoa suaalmadeveestargastanosarroubosqueosprecedemeseessadesordemquemecensuraisétãodescortêsparaumamulherquesabepensarquantoessesangue-friodeque,semdúvidapornãorefletir,gostaríeisdequeeutivessesidocapaz.Francamente – acrescentou ele, indo lançar-se aos seu pés –, seria aprimeiravezquevós...

–Ah!acabaicomessabrincadeirademaugosto–interrompeuela.–Deixai-me;querosairejamaisvoltaravosver.

– Mas, Zulica – disse-lhe ele trazendo-a para o meu lado –, jamaisdesejareis sentir que, pela maneira pela qual tomais o meu infortúnio,parecequenãoacreditaisterdesencantossuficientesparafazê-locessar?

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Seja porque as delicadas distinções de Mazulhim já tivessempredispostoZulicapara a clemência, sejaporquea grande reputaçãoqueeleadquiriatornasseoqueelediziamaisverossímil,elasedeixouconduzirsobremim,fazendoessaleveresistênciaque,normalmente,abrasamaisdoque detém. Pouco a pouco, Mazulhim obteve mais dela e tornou a seencontrarnamesmacircunstânciaemqueZulicasezangara.

Já perturbada pelos arroubos de Mazulhim, ela começava a desejarvivamentequeelesedeixasseimpressionarmenoscomossentidosdoquedaprimeira vez. Ela já estavamesmo esperandoquandoMazulhim,maisdelicadodoquenunca, faloucruelmenteemsuasmaisdocesesperanças.Elaficoutantomaisindignadaque(vaidadeàparte)teriaentãotidoprazeremsecomportardemododiferente.

–Oh!estábem–disseoSultão–,queeletambémacabeentão;issomeaborrece tanto quanto ela. Não é porque tomei o partido de Zulica, maspergunto-vos se existe alguém a quem isso não impacientaria, se apaciênciadeumdervixeaguentaria?PorDeus,valemesmoapenafazê-laesperar?Amanzei,nãomeprometestesisso,pelomenos?Nofimacabaríesme fazendo acreditar que quereis mal àquela mulher e vos digonaturalmente,nãoachariaissobom,masnadabom.

– Seria – respondeu Amanzei –, se fizesse um conto para VossaMajestade; ser-me-ia fácil arranjar os assuntos como ela o quisesse,masestoucontandooquevienãoposso,semalteraraverdade,daraMazulhimprocedimentosdiferentesdosqueeletinha.

– Ah, que tolo esse Mazulhim – exclamou Schah-Baham –, e comoestouirritadocomele!

–Mas–disseaSultana–nãoseiporquequereistãomalaele;elenãofaziaaquilomaisdepropósitodoquevós.

– Ele? – retomou o Sultão. – Palavra, não sei nada disso: era umhomemmaldoso!

–Aliás–disseaindaaSultana–,équeessaZulicaquetantovosagradaeraaúltimadas...

–Peço-vos,Madame–interrompeuele–,parapensarbaixinhooquevosagradareparanãomefalarnadamaldela.Seimuitobemquebastaeuteramizadeporalguémparaqueelavosdesagradeeissomechoca,estouavisando.

–Avossacóleranãomeassustanada–respondeuaSultana–,e,alémdomais,eunãoficarianadaespantadaseessaZulica,quehojeamaistanto,amanhãvosaborrecessemortalmente.

– Duvido! – retomou o Sultão. – Eu nãome predisponho como vós;

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esperandoqueissoaconteça,continuemosaverorestodahistória.ZulicaenrubesceudefúriadiantedanovaafrontaqueMazulhimfazia

aosseusencantos:–Naverdade,Senhor–disseela,empurrando-ocomviolência–,seé

umapreferênciaquemedais,ousodizerqueelaémalempregada.–Seriaoprimeiroadizê-lo–respondeuele–sepudesseimaginarpor

umsómomentoqueacreditásseismerecerosdanosquevos causei;masnão vejo aparência disso e sem dificuldade confessarei que nada mejustifica.

–Ofatoéque,quandonosconhecemosdeumacertaforma–disseela–,devemosdeixaraspessoastranquilas.

– Sem dúvida, será este o partido que tomarei, se isto tiverconsequências – replicou ele. – Permitireis entretanto que me gabe docontrário.

–Naverdade–disseela–nãovosaconselhoafazerisso!Então ela se levantou, pegouo seu leque, recolocou as suas luvas e,

tirandoumacaixaderuge,foiparaafrentedeumespelho.Enquanto,comtoda a atenção possível, ela procurava se arrumar como estava quandoentrou,Mazulhim,quevieraatrásdela,atrapalhandoasuaobra,pediu-lheternamenteparaabsolutamentenãoterotrabalhoquecertamenteelateriaque recomeçar. Zulica, inicialmente, não respondeu senão por uma caraquedeveterlheprovadoapoucaféqueelatinhaemsuaspredições;masvendofinalmentequeelecontinuavaaatormentá-la:

–Poisbem,senhor–disseela–,seriaissoeternoenãoquereisqueeupossasair?Ésómedizer.

–Mastantoquantopossamelembrar–respondeuele–disso,tudojáfoidito;nãoceareisaqui?

–Nãoqueeusaiba–retomouela.–Vereis–disseelesorrindo–quetambémnãocontastescomisso.–Enfim–disseela–estoucomprometidaeestátarde.–Eisumaloucurabastanteboa!–disseele,tornandoadeitá-lasobre

mimequerendoaindatentarencontrarfinalmenteomeiodelhetornarashorasmenoslongas.

–Olhai,Mazulhim–disseelacomumtomdoce–,acreditareisemmimse quiserdes, digo-vos isso sem raiva; mas o personagem que me fazeisrepresentaréinsustentável.

–Maisbondadedevossaparte–respondeuele–metornariamenoslastimável;massoistãopoucocomplacente!

–Naverdade– recomeçouela – tambémseriamuitodesumanovos

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tiraraúnicadesculpaquepudessevosrestar.Elelherespondeucomfirmezaque,debomgrado,estavacorrendoo

risco.Entãoeladeixou-seconvencer,para teroprazerdesatisfazê-locom

todososatoscondenáveisquesepossaimaginar.Quantomaiselemereciaasuapiedade(poiselanãonasceragenerosa),maiselasesentiaindignada.Feridaporeletersesentidotãopoucosensívelaosseusencantos,pareciaestar ainda mais indignada por ele ter respondido mal às suas últimasbondades:somenteasuavaidadeafaziasuportaroqueaferiademodotãosensível.Malsegabaradotriunfo,elaoviasedesvanecer.Porvintevezesesteve prestes a renunciar a uma esperança que somente parecia se lheapresentarparadepoisenganá-lamaiscruelmente.Masora,depoisdetudooquefizeraporMazulhim,elaoabandonariaaoseudestino?Ummomentoamais pôde vencer a sua ingratidão. Se para ela tivesse sidomais docedevertudoàternuradeMazulhim,devesermaisgloriosotirar-lhetudo.

EsseraciocíniotalveznãofosseomaisjustoqueZulicapudessefazer;mas,paraasituaçãoemqueseencontrava,aindaeramuitoseelapudesseraciocinar.

Mazulhim, que sentia, pelo jeito com que ela o olhava, que, pararesistir à frieza perseverante que, mesmo contra a sua vontade, ele lhetestemunhava, ela tinha necessidade de ser apoiada, fazia-lheincessantemente os elogios mais lisonjeiros sobre o seu carátercompassivo.

–Certamente–exclamouelaporsuavez,numinstanteondetalvezaimpaciência,levandoamelhor,fazia-aacharmaisméritonasbondadesqueelatinhaporMazulhim–,certamenteéprecisoconvirquetenhoumabelaalma!

Diante dessa exclamação tão bem colocada, Mazulhim não pôde seimpedir de dar uma gargalhada e Zulica, que sabia o quanto, às vezes, éperigosorir,zangou-semuitoseriamentepeloqueelerira.

A alegria de Mazulhim, contudo, não lhe foi tão funesta quanto elatemera. Os feiticeiros, que até aquelemomento o tinham perseguido tãocruelmente,começaramaretirarosseusbraçosmalfeitoresdecimadele.Emborafaltassemuitoparaqueavitóriaqueelaconseguiasobreelesfossecompleta, ela não deixou de se felicitar bem alto. Não que, com ainteligência que tinha, ela se enganasse, mas queria fortificar Mazulhimpelaconfiançaqueelapareciater:elaoconheciabempoucoparaacreditarqueeletivessenecessidadedisso.

MalMazulhim,queeraohomemmaispresunçosodomundo,sesentiu

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menos abatido, que teve a temeridade de se achar capaz dos maioresempreendimentos.PormaisqueZulica,queestavaemcondiçõesdejulgaros assuntosde formamais sadiadoque ele, pudesse lhedizer, nãopôdedetê-lo. Seja imaginandoqueelenãopodia sedemorar semseperderouque (o que é mais verossímil) acreditasse não precisar dizer nada maisjuntodela,elequistentaraquiloque(eaindapelomaiorriscodomundo)jamais lhe faltara a não ser uma vez. Zulica, que não se deslumbravafacilmenteequealiásnãoeraamulherdeAgraquemenospensavabemdesi mesma, ficou surpresa com a presunção de Mazulhim e lhe fez asobjeçõesmais razoáveis. Elasnão tiveram sucesso eMazulhim, teimandosempre, por uma consequência necessária de sua confiança em seusencantoseparahumilhá-la,elanãoserecusoumaisdoqueZefisa ideiascujoridículoelanãopodiaadmirarosuficiente.

–Ah,sim!–disseelacomumardesdenhoso.De repente a sua fisionomia mudou e, pelo seu rubor e pelo seu

despeito,tantoquantopeloarzombeteiroeinsultantedeMazulhim,julgueiqueoqueelaanunciaracomoimpraticáveleraextremamentefácil.

– Imaginai isso! – exclamou o Sultão. – E depois as mulheres sequeixarãooupassarãoporexcêntricas!Ébomsaberdisso.

–Oquê?–perguntou-lheaSultana.–Qualaadmiráveldescobertaqueacabaisdefazer?

–Oh,estousendobemclaro–respondeuoSultão–,éque,sealgumdia alguém tiver a audácia de me censurar, sei agora o que terei queresponder.Estou, contudo,muitoaborrecidopelo fatodessamortificaçãoaconteceraZulica,certamenteelaamereciamenosdoqueninguém.Mascontinuai,Emir;existemcoisasmuitobelasnoqueacabaisdenoscontareessefatomedáumaótimaopiniãodoresto.

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SegundaParte

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CAPÍTULOXII

Aproximadamente,amesmacoisaqueoanterior

SeodissaborqueaconteciaaZulicaamortificoumuito,nãolhetirouapresençadeespíritoque lhe eranecessárianumacidente tãodeplorável.ElafelicitouMazulhim,queixou-sedeumacoisabemdiferentedaqueaqueaenchiadefúriae,paratentarsalvarasuaglória,nãotemeudar-lheumahonraqueelenãomereciaabsolutamente.

Não sei se foi para mortificar Zulica ou se, contrariamente ao seunormal,elequeriasefazerjustiça:mas,pormaisqueelafizesse,elejamaisquis acreditar que fosse o que ela dizia.Havia, dizia ele obstinadamente,diasinfelizes,diasque,seosprevíssemos,seriapreferívelmorreraesperá-los.

Zulica concordava que, de fato, havia dias que não começavam demodobrilhantemasdosquais,no fim, seencontravamais coisaspara selouvardoqueparasequeixar.

–Euvosconfesso–acrescentouela,comumaternuradaqual,nessemomento, estavabemafastada–que tiveocasiãodeacreditarqueoqueme dissestes cem vezes sobre aminha beleza não era sincero ou que ascoisasqueparecestesadmiraremmimestavamapagadaspordefeitosquevos chocavam tanto mais quanto os havíeis menos previsto: mas metranquilizastes.

–Ah,Zulica–exclamouo impiedosoMazulhim–,osvossos temoreseramentãobemmedíocres!Sintotudooquedevoàsvossasbondades;maselasnãomecegam;equantomaisvosachogenerosa,maisaumentaisosmeusremorsos.

– Mas que loucura! – recomeçou ela. – Pelo menos não ireis vosimpressionarcomumaideiatãofalsa:nadaseriamaisinjusto!

Comessaspalavras,puseram-seapassearpeloquarto,ambosmuitoembaraçadosumcomooutro,semamor,semdesejosereduzidos,porsuamútua imprudência e pela combinação que acarreta um encontro numapequena casa, a passar juntos o resto de um dia que eles não pareciamdispostos a empregar de ummodo que pudesse agradá-los. Zulica tinhabelas reflexões a fazer sobre a falsidade das reputações. O que

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interiormente a desesperava (pois eu lia facilmente em sua alma) era aimpossibilidadedesevingardeMazulhim.

– Se eu contar isso, quem acreditará? – dizia-se ela. – Ou, seacreditarem,seráqueaprevençãoquesetemcontraelepermitirápensarqueeleteriamecausadotantosdanos,setivessetidocomoqueimpedi-lode causá-los? Qualquer coisa que eu fizer, ser-me-á impossível desiludirtodomundo.

Essas ideias a ocupavam com bastante tristeza. Para Mazulhim,parecia que isso não tinha qualquer interesse para ela. Eles passearamalgum tempo semnada se dizerem; de vez emquando, contudo, sorriamumparaooutrodemaneirafriaeconstrangida.

–Estaissonhando!–disseelefinalmente.– Estais surpreso com isso? – respondeu ela comumar hipócrita. –

Pensais que estar com alguém como estou convosco não seja, para umamulherracional,umacoisaextraordinária?

– Não – replicou ele –, penso que as mulheres racionais estãointeiramenteacostumadascomisso.

–Parece–retomouela–queignoraisoqueissoproduzsobreelaseoquanto,antesdeserenderem,elastêmquecombater.

–O que dizeis, por exemplo, émuito provável – replicou ele – pois,pelamaneirapelaqualelasabreviaramoscombates,eraprecisoqueelesascansassemcruelmente.

–Aquiestá–exclamouela–umdospiorespropósitosquesepossamanter. Acreditais ter tido muito espírito quando dissestes semelhantescoisas? Sabeis bem que isso não passa de um verdadeiro discurso dealmofadinha?

–Eunãooconsiderariapiorporisso–respondeuele.–Pelomenosoacharíeisbastantefalso–retomouela–sesoubésseis

oquemecustouparavospegar.–Oque–exclamouele–,sonhastescomisso!Issomeultraja;eume

lisonjeavadocontrárioeestoudescontenteconvoscopormetirarumerrono qual eu ganhava, semque nisso perdêsseis nada nomeu espírito. Eh!dizei-me,porgentileza,Zadisvoscustoutantasreflexões?

–Oquequereisdizer?–perguntouelafriamente.–QueZadiséesse?–Peço-vosdesculpas–respondeuele,zombando–,teriajuradoqueo

conhecíeis.–Sim–respondeuela–,comoseconhecetodomundo.– Creio, por pouco conhecido que vos seja, que ele ficaria bem

aborrecido se soubesseque estais aqui – continuouele –, e oumuitome

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enganoouasvossasbondadesparacomigoodeixariammuitocontristado.Tendeboa-fé – acrescentouele, vendo-abalançarosombros–; Zadis vosagradava antes que eu tivesse a felicidade de vos agradar e apostariamesmoqueatualmenteestaisbemjuntos.

–Eisumabrincadeira–respondeuela–demuitomáqualidade!– No fundo – continuou ele –, se lhe fôsseis infiel, ele ainda ficaria

muitofeliz.UmhomemcomoZadisépoucofeitoparaseramadoesempreme surpreendi com o fato de que, viva como sois e de uma alegriaencantadora,tivésseispodidoarrumarumamantetãofrio,tãotaciturno!

–Estaisenganado,Mazulhim–respondeuela–,eleésomenteterno.Eu o sacrifiquei a vós, inútil dizer o contrário, mas temo que logo meforçareisamearrependerdisso.

–Soisleviana–replicouele–,econfessoqueeusouinconstante;masquanto menos fomos capazes, até agora, de ter uma ligação séria, maisglóriateremosemnosfixarmosumaooutro.

Comessaspalavras,eleaconduziuparaomeulado,mascomumarque facilmentedeixava saberque somentea conveniência guiavaos seuspassosatéali.

–Éverdadequesoisencantadora–disse-lheele–,e,semumarumpouco exageradamente decente quemesmo comigo não abandonais, nãoconheçoninguémque,melhordoquevós,pudessefazerafelicidadedeumamante.

– Confesso – respondeu ela – que naturalmente sou reservada;entretantonãocabeavósvosqueixardisso.

–Semdúvida,mefazeisfeliz–replicouele–mas,tendonascidosemdesejos,nãoconcedeismuitoaosquefazeisnascer.Sintoconstrangimentoemtudooquefazeispormim:temaiscontinuamentevosentregarmuitoe,entrenós,suspeitodequesoisbempoucosensível.

Mazulhim, falando assim a Zulica, apertava-lhe as mãos com um arapaixonado.

– Embora o excesso de vossos encantos já tenha me prejudicado –prosseguiu ele –, não poderiame recusar ao prazer de ainda admirá-los.Mesmo que tivesse que perecer por eles, tantas belezas não me serãoescondidaspormuito tempo!Deus!– exclamouele comarroubo–ah! sepossível,tornai-medignodaminhafelicidade!

QualquercoisaqueZulicativesseditosobreasuapoucasensibilidade,aadmiraçãoemqueMazulhimpareciamergulhado,aveemênciadosseusarroubos,ocuidadoquetomavaparadividi-loscomelaacomoverameaperturbaram.

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–Vósvosqueixareis?–disse-lheelaternamente.Ele não lhe respondeu senão querendo lhe provar todo o seu

reconhecimento. Mas Zulica ainda se lembrava da pouca confiança quedeviaterneleetemendotudododesvarioemqueovia:

–Ah,Mazulhim–disseelacomumtomquemarcavatodooseutemor–,nãoireismeamardemais?

EmboraMazulhimnãopudesseseimpedirderirdoseuterror,elaseachoumenosamadadoquetemiasê-lo.

A sua felicidade mútua tirou-lhes esse constrangimento e esse araborrecido que há algum tempo tinham um para com o outro. A suaconversaseanimou.Zulica,queacreditavaterlivradoMazulhimdasmãosdos feiticeiros, aplaudia a si mesma pela obra dos seus encantos eMazulhim, mais contente consigo mesmo, também se abandonava à suagraça.

Quando estavam nessas felizes disposições, vieram servir. A suarefeição foi alegre. Zulica eMazulhim, que talvez fossemasduaspessoasmaismaldosasexistentesnacortedeAgra,nãopouparamquemquerquefosse.

–Nãopoderíeismedizer–perguntouMazulhim–apropósitodoqueAltun-Cantomouesseartãoimportantequeháalgunsdiasvemosnele?

–MeuDeus!semdúvida–respondeuela.–SeráqueignoraisqueeleestáinfinitamentebemcomAischa?

–Mas,peloquemeparece–respondeuele–,seriaumarazãoamaisparasermodesto.

– Sim,paraumoutro – recomeçouela –,mas seráquenãoo achaisfelizdemais,ele?

–Euvosconfessareiquenão–recomeçouele.–Pormaisridículoqueseja Altun-Can, não posso me impedir de lastimá-lo; um homem quepertenceaAischa,indubitavelmente,éohomemmaisinfelizdomundo.

–Oquehádeparticular–disseela–équeelafazmistériocomisso.–Ah!Desta feita– respondeuele–procurais lhe fazerumaafronta!

JamaisAischa escondeuos seus amantes e posso vos jurar que, na idadequetemepelaenormefiguradaqualelaé,estarámenosdispostadoquenuncaaisso.

–Entretanto,nadaémaisrealdoqueoqueestouvosdizendo.–Poisbem–respondeuele–, seéassim,équeAltun-Can lhepediu

segredo.EapequenaMesem–perguntouele–,parece-mequenãoavedesmais?

–Équenãosepodemaisvê-la–replicouela,tomandoumarrecatado

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–equeelatemumacondutamiserável.–Tendesrazão–recomeçouelemuitoseriamente–;paraumamulher

queserespeita,nadaétão importantequantoterboacompanhia.Acho–continuouele–queelaestáficandomaisbela.

–Bempelocontrário–respondeuela–,estásetornandohorrenda.–Não tenhoavossaopinião– retomouele–, jáháalgumtempoela

toma cores amareladas, um ar de abatimento que lhe caimuito bem; secontinuarateroardesaúderuim,elasetornaráencantadora.

– Não acabarei, Sire – disse então Amanzei, interrompendo-se –, sequisesserelataraVossaMajestadetodosospropósitosmantidosumcomooutro.

– Ah, concebo bem isso – respondeu o Sultão – e permito que osabrevieis. Entretanto, quando eu pensar nisso, dar-me-eis o prazer devoltaramedizertodosessespropósitos.

– Ousaria objetar a Vossa Majestade – retomou Amanzei – quehaveriammuitosquenãoseriamtãointeressantespara...

–Sim,justamente–interrompeuoSultão–,issonãomeinteressaria;masporque(poisfizvintevezesaquelareflexão),porque,disseeu,numahistóriaounumconto,comoquiserdes,tudonãoéinteressante?

–Pormuitas razões–disseaSultana.–Oqueservepara trazerumfato,porexemplo,nãopoderiasertãointeressantequantooprópriofato.Aliás, se as coisas estivessem sempre no mesmo grau de interesse, elascansariam pela continuidade; o espírito não pode estar sempre atento, ocoraçãonãopoderiasuportarficarsempreemocionadoe,necessariamente,tantoumquantoooutroprecisamdostemposderepouso.

– Compreendo – respondeu o Sultão –, é como, para se divertirmelhor,àsvezestemcabimentoseaborreceralgumasvezes.Quandotemosum certo julgamento, quando pensamos de uma certamaneira, pormaisquenosesforcemos,adivinhamostudo.Enfim,então,Amanzei?

– Mazulhim, ainda menos tocado depois da ceia pelos encantos deZulicadoqueestiveraduranteodia,entremilideiasdedivertimentoqueele lhe propôs, jamais encontrou o que pudesse lhe convir e Zulica sepreparouparasair,comumarquemefezduvidarquetornasseavê-la.

Contudo, apesar do mau humor de Zulica e da maneira pela qualMazulhima tratara, antesdedeixá-la, eleousouentretantopedir-lhequevoltassemasevereacrescentouprontamentequeseriaprecisoserdentrodedoisdias.Emboranessemomento,penso,elativessepoucavontadedelheconcederoqueelepareciadesejarcomtantoardor,elalherespondeuqueteriamuitoprazernisso,masdeformatãofriaqueeunãoimaginava

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quequisessecumprirasuapalavra.Nesse instante refleti que, após a partida de Mazulhim, eu me

entediaria na sua pequena casa; que bastaria que voltassse quando elepróprioalivoltasseequenãopodiafazermelhor,paramedivertireparameinstruir,doqueseguirZulicaatéasuacasa.Abandonei-meaessaideiae subi com ela na sua liteira. Logo que cheguei ao seu palácio, pelomovimento de atração que Brama colocou emmim, fui me esconder noprimeirosofáqueseofereciaaosmeusolhos.

No dia seguinte, Zulica acabava de iniciar a sua toalete, quando lheanunciaramZadis.Elalhepediuparaesperar,oupornãoquererapareceraosseusolhossenãocomtodaabelezaquetinhanormalmentequandosepreparava ou que imaginasse que seria indecente que ele a visse nadesordem em que estava então. Visto a falsidade de Zulica, essa últimarazãotalveznãofossetãoimagináriaquantopodiaparecer.

Zadisfinalmenteentrou.Senãootivessemchamadopelonome,peloretrato que ouvira fazerem na véspera para Mazulhim eu o teriareconhecido. Ele era sério, frio, contraído e tinha todoo jeito de tratar oamorcomessadignidadedesentimento,essaescrupulosadelicadezaquehojesãotãoridículasequetalvezsempreforammaisaborrecidasdoquerespeitáveis.

ZadisseaproximoudeZulicacomtantatimidezquantoseaindanãolhe tivesse declarado a sua paixão. Por seu lado, ela o recebeu com umapolidez estudada e cerimoniosa e um ar tão recatado quanto necessárioparacontinuaraenganá-lo.

Enquanto as camareiras de Zulica estiveram presentes, eles sefalaram, indiferentemente, sobre novelas ou outras coisas igualmentefrívolas. Zadis, que acreditava ser o único que Zulica amara e que nãoachavaqueasmaioresdeferênciasbastavamparaoqueelamerecia,nãosepermitiaomenorolhar,eZulica,quecontrariamenteaqualqueraparênciaachava um homem suficientemente imbecil para estimá-la, imitava a suareservaousomenteoolhavacomessesolhoshipócritase inclinadosquenormamente são vistos nas falsas beatas, em qualquer ocasião que seencontrem.

PormaiscuidadocomqueZadissecontivesse,Zulicapensouobservarnos seus olhos uma tristeza diferente daquela que sempremostrava. Emvãoela lheperguntouoqueele tinha.A todasasperguntasque lhe faziacomumtommuitodoce,elesomenterespondiaporprofundasreverênciaseporsuspirosaindamaisprofundos.

Quandoficoupronta,assuascamareirassaíram.

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–Quereisterabondade,Zadis–pediuelacomumarautoritário–,deme dizer o que tendes? Pensais que, interessando-me pelo que vos dizrespeito,comosabeisquefaço,nãodevomezangarcomovossosilêncio?Numa palavra, quero saber, respondei-me: não vos perdoarei se vosobstinardesemcalar.

–Talvezmeperdoaríeismenosporterfalado–respondeueleenfim–,eaquiloquemeagitadeformaalgumavosdeveserconfiado.

Zulica insistiuedeumaformatãopertinazqueelepensouque,semofendê-la,nãopodiasecalarpormaistempo.

– Será que acreditareis, Madame? – disse ele, enrubescendo com oabsurdoqueeleachavanoqueialhedizer:–Estoucomciúmes!

– Vós, Zadis! – exclamou ela com um ar de espanto. – Sou eu queamais,euvosamoeestaiscomciúmes?Pensaismesmonisso?

– Ah, Madame – replicou ele com ar compenetrado –, não mesobrecarregueis com a vossa cólera! Sinto todo o ridículo das minhasideias; eu mesmo enrubesço com isso. A minha mente se recusa aosmovimentosdomeucoraçãoeosrenega;todaviaelesmearrastametodoorespeitoquetenhoporvós,todaaestimaquevosdevo,nãoimpedemqueeu seja cruelmente atormentado. Finalmente, a vergonha que tenho dasminhassuspeitasnãoasdestróiabsolutamente.

–Escutai-me,Zadis–respondeuelacomumarmajestoso–,elembrai-vospara sempredoquevoudizer.Euvos amo,não temoabsolutamenterepeti-loevouvosdardosmeussentimentosumaprovaque,paravós,nãodeveterréplica:éadevosperdoarporvossassuspeitas.Talvezeupudessevosdizerqueoquevoscustouparamevencereamaneirapelaqualvivonãodeveriamvosdeixarnenhumaocasiãodeduvidardemimequeumapessoadomeucaráterdeveinspirarconfiança.Deveriamesmodesprezarosvossos temoresouofender-mecomeles;masémaisdoceparaomeucoraçãovostranquilizareomeuamordebomgradoaceitadesceratéumaexplicação.

–Ah,Madame–exclamouZadis,prosternando-seaosseuspés–,creioquemeamaisemorreriadedorsepensassequesuspeitas,nasquaisnãomedetivepormuito tempo, fossempara vósuma razãoparaduvidardomeurespeito.

– Não, Zadis – respondeu ela, sorrindo –, não duvido disso; massaibamosumpoucooquevosdeixouinquieto?

– O que importa, Madame, quando não tenho mais inquietações? –retomouele.

–Querosaber!–replicouela.

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– Pois bem – disse ele –, os cuidados que Mazulhim pareceu vosdispensar...

–O quê? – interrompeu ela. – É dele que tínheis ciúmes?Ah, Zadis!será que sois feito para temer Mazulhim e me desprezastes tanto paraacreditarquealgumavezelepudessemeagradar?Ah,Zadis!devoepossoalgumdiaperdoá-lo?

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CAPÍTULOXIII

Fimdeumaaventuraecomeçodeumaoutra

Comessaspalavras,osseusolhossemolharamcomalgumaslágrimaseZadis,acreditando-assinceras,nãopôdeseimpedirdenelasmisturarassuas.

–Sim,estouerrado–dizia-lheele ternamente–e,pormaisviolentaquesejaaminhapaixãoporvós,sintoqueelanemmesmopodemeservirdedesculpa.

–Ah,cruel!–respondeuelasoluçando.–Tendeciúmes,sequiserdes;abandonai-vos a toda a vossa exaltação, consinto nisso, mas se meconheceis tão pouco para desafiar a minha ternura, pelo menos nãosuspeitaiqueeuameMazulhim.

– Creio que não o amais – replicou ele – e jamais imaginei quepudésseis passar a gostar dele:mas, sem estremecer, não pude vê-lo viraqui.

– E entretanto – respondeu ela –, de todos os que aqui vedes, é omenos perigoso para mim. Quando eu não tivesse o coração cheio dapaixãomais viva, queMazulhimme adorasse, que a quantidade de suasqualidades ultrapassasse, se isso fosse possível, a quantidade dos seusvícios, diante demeus olhos ele ainda seria o último dos homens. Comoquereríeisqueumamulher(nãodigoqueserespeitemasquenãoperdeutodaavergonha)quisessetomarMazulhim,eleque jamaisamou,quedizbemaltoqueéincapazdeterumapaixãoeparaquemosentimentomaisfracoaindaéumaquimera;eleenfim,quenãoconheceoutroprazersenãoo de desonrar asmulheres que tem?Deixo aqui as suas coisas ridículas,certamente não que não tivesse do que me alongar; mas na verdadeenrubescerei em vos falar dele por mais tempo. De resto, estou bem àvontade,emboraacheasvossassuspeitastãoinjuriosasquantodescabidasporme terdes confiadoo assuntodevossas inquietações e vos respondoquenãovereisMazulhimaquianãosero temponecessáriopararompercomelesemescândalo.

Zadis, beijando-lhe amão com arrebatamento, rendeu-lhemil vezesgraçaspeloqueelafaziaporele.

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–Ora,doquemeagradeceis?–perguntou-lheela.–Nãoestoufazendonenhumsacrifícioporvós.

–Mas,Madame–disseele–,serápossívelqueMazulhim jamaisvosdissequelheparecíeisamável?

– Eis uma bela ideia! – exclamou ela sorrindo. – Oh, não: eu vosasseguroqueMazulhimmeconhecemelhordoquevóseque,pormaistoloquequeiraparecer,nãooéosuficienteparasedirigiramulheresdeumcerto gênero. E ainda por cima, entretanto, não ficaria surpresa se, semjamaistermedesejadoesemnuncaemsuavidatermefaladodenada,eledisserpublicamente,numdiadesses,queesteveouestácomigonomelhor.Naverdade–acrecentouela,rindo–,somenteumhomemciumentocomovóspoderiaacreditarnisso.Nãoéverdade?

–Não–retomouele–;possoteroridículode,àsvezes,temer,masvosjuroquejamaistereiodeacreditarnisso.

–Eeunãojuraria–respondeuela.–Comohumorquetendes,deveser uma coisa deliciosa para vós ouvir falar mal de vossa amante e virprovocarumadiscussãocomela,amaiordomundo,sobreospropósitosdoprimeiro pretensioso que, conhecendo o vosso caráter, terá querido vosinquietar.

–Pormisericórdia,poupai-me–disseele–epensaiqueociúmequetendesabondadedemeperdoar...

–Talveznãosejaoúltimohoje–interrompeuela.–Paravosverrecairnasvossastristezas,somentegostariadachegadadaMazulhim.

– Não falemos mais dele – respondeu ele –, e uma vez que meperdoastesequeatéasminhas injustiças, tudovosprovaquevosadoro,nãopercamosmomentospreciososedignai-vosconfirmaraminhagraça.

ComessaspalavrasqueZulicacompreendiamuitobem,elaficoucomumarembaraçado.

–Comosoisincômodocomosvossosdesejos!–disseela.–Portanto,jamais os sacrificareis por mim? Se soubésseis quanto eu vos amaria sefôsseismaisrazoável...Éverdade–acrescentouela,vendo-osorrir–,euvosamariamilvezesmais.Pelomenosacreditarianissoenadatendoatemerde vós do lado do que odeio, ver-me-íeis entregar-me com muito maisardoràscoisasquemeagradam.

Aomesmotempoemquediziaessasaugustaspalavras,elasedeixavaconduzirlanguidamenteparaomeulado.

–Euvosjuro–disseelaaZadis,quandoestavasobremim–queportodaaminhavidanãomeindisporeiconvosco.

–Gostariamuito–respondeuele–,masnãooespero!

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– E eu – respondeu ela –, pelo que me custam as reconciliações,começoaacreditarnisso!

Apesardasuarepugnância,ZulicacedeuaosarroubosdeZadis,mascomumadecência!umamajestade!umpudordoqualtalveznãosetenhaexemploemcaso semelhante!Umoutroquenão fosseZadis, semdúvidateria se queixado. Para ele, ligado às mais minuciosas conveniências, avirtudedescabidadeZulicaarrebatou-odeprazereele imitoudamelhorformaquepodiaoardegrandezaededignidadequevianelaeficoutantomaiscontentecomelaquantomenoselalhetestemunhavaamor.

Entretanto,nãoseicomoascoisassemodificaramna imaginaçãodeZulica,maselalhepropôspassarodiacomela.Paraqueninguémsoubessequeestavamjuntoseotempoquealipermaneceriam;numapalavra,maisparaevitarosfalatóriosdoqueporqualqueroutrarazão,elaordenouquesedissessequenão estava em casa. Zadis, cujo ciúme, comode costume,somente tornara mais amoroso, respondeu muito bem às bondades deZulicae,apesardesuataciturnidade,nãoaaborreceunemporumminuto.Finalmente ele saiu aproximadamente nomeio da noite e deixou Zulica,persuadido, tanto quanto possível, que ela era a mulher mais racional emaisternadeAgra.

Eu disse que não acreditava, pelo ar com o qual Zulica deixaraMazulhimemuitomaisaindapelo seumododepensar,queelaquisessecontinuar uma relação ilícita pouco agradável para uma mulher do seucaráterenaqualnemoamornemosprazeresainteressavam.Contudo,acuriosidadevenceutodasasrazõesqueelapodiater.EladisseaZadis,aodeixá-lo, que um negócio muito importante a impediria de vê-lo no diaseguintee,malchegadaanoitemarcadaparaoencontro,elasubiunasualiteirae,comaminhaalmaqueaseguia,tomouocaminhodapequenacasaonde somente encontramos um escravo que esperava tanto ela quantoMazulhim.

–Ora, como–disseelaaoescravo,numtombrusco–eleaindanãoestáaqui?Acho-oencantador,fazendo-seesperar!Éadmirávelqueeusejaaprimeiraaestaraqui!

OescravoassegurouqueMazulhimiachegar.–Mas–retomouela–sãoaresbempeculiaresosqueeleseatribui!O escravo saiu e Zulica veio se colocar sobre mim, com um ar

encolerizado.Comoeranaturalmenteimpetuosa,alinãoficoutranquilae,se acusando em voz bem alta de ser de uma facilidade ímpar, juroumilvezes não mais ver Mazulhim. Enfim, ouviu parar uma carruagem.PreparadaparadizeraMazulhim tudooquea cólerapodia lhe fornecer,

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levantou-sevivamentee,abrindoaporta:–Naverdade, senhor–disseela–, tendesmodos tãosingulares, tão

raros...!Ah!Céus!–exclamouela,vendoohomemqueestavaentrando.Fiquei quase tão surpreso quanto ela vendoumhomemque eunão

conhecia.–Oquê!–perguntouoSultão.–NãoeraMazulhim?–Não,Sire–respondeuAmanzei.–Nãoeraele!–disseoSultão.–Issoébemsingular!Eporquenãoera

ele?–Sire–respondeuAmanzei–,VossaMajestadevaientenderisso.–Sabeismesmo–retomouoSultão–quenadaé tãocômicoquanto

isso?Aquele homem aparentemente se enganava. Ah! semdúvida, ele seenganava, está se vendo isso. Mas dizei-me, Amanzei, enquanto pensonisso,oqueéumapequenacasa?Desdequefalaisdisso,façodecontaqueseioqueé,masnãopossomaisaguentar.

– Sire – recomeçou Amanzei –, é uma casa, afastada, onde, semconsequêncianemtestemunhas,sevai...

–Ah,sim–interrompeuoSultão–,adivinho, issoérealmentemuitocômodo.Prossegui.

–Acóleraeasurpresa tomaramZulicapeloaspectodohomemqueacabavadeentrar,impedindo-adefalar:

– Sei,Madame – disse-lhe esse hindu comar respeitoso –, o quantodeveisestarsurpresaemmever.Nãoignoromaisasrazõesquevosfariamdesejar aqui uma visão completamente diferente da minha. Se a minhapresença vos desorienta, a vossa não me causa menos emoção. Nãoesperava que a pessoa a quem Mazulhim me pediu para trazer as suasdesculpas,entretodasseriaaquelacomquem(setivessetidoafelicidadedeestarno lugar dele)menos eu gostaria de falhar. Entretanto, não queMazulhimsejaculpado;não,Madame,elesabetudooquedeveàsvossasbenevolências,estavaloucodedesejodevirajoelhar-sediantedevósparavosfalardoseureconhecimento.Ordenscruéis,àsquaiselepensoumesmodesobedecer,pormaissagradasquedevemserparaele,arrancaram-nodetãodocesprazeres.Elepensouterquecontarmaiscomaminhadiscriçãodoqueadeumescravoenãoimaginouquefosseprecisodeixaraoacasoumsegredoemqueumapessoa comovós seachava tãoparticularmenteinteressada.

Zulica estava tão espantada com o que lhe acontecia que o hindupoderia ter falado muito mais tempo sem que ela tivesse forças parainterrompê-lo. O embaraço em que se encontrava fazia-amesmo desejar

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que ele tivesse ainda mais coisas a lhe dizer. Consternada e quase semmovimento,elabaixavaosolhos,nãoousavaolharparaele,enrubesciadevergonha e de cólera, enfim pôs-se a chorar. O hindu, tomando-lhecivilizadamenteamão, conduziu-a sobremimonde, sempronunciarumaúnicapalavra,elasedeixoucair.

–Estouvendo,Madame–continuouele–,vósvosobstinaisempensarque Mazulhim é culpado e tudo o que posso vos dizer para justificá-lopareceaumentaracóleraquetendescontraele.Comoeleéfeliz!Pormaismeu amigo que seja, como invejo as preciosas lágrimas que ele vos fazderramar!Quantoamor!...

–Quemvosdissequeoamo,senhor?–interrompeuorgulhosamenteZulica, que tivera tempo de se refazer. – Não posso ter vindo aqui porcoisasemqueoamornãotemamínimaparte?NãosepodeverMazulhimsemconceberparaeleossentimentosquepareceisatribuiramim?Emqueenfimousaisjulgarqueeleofendeomeucoração?

– Ouso acreditar – respondeu o hindu sorrindo – que, se minhasconjecturasnãosãoverdadeiras,pelomenos sãoverossímeis.Osprantosquederramais,avossacólera,ahoraemquevosencontronumlugarquejamais foi consagradosenãoaoamor, tudome fezacreditarquesomenteeletiveraopoderdevosconduziratéaqui.Nãovosdefendais,Madame–acrescentou ele. – Se quiserdes, fazei-vos um crime do objeto e não dapaixão.

– O quê! – exclamou Zulica, que nada fazia renunciar à falsidade. –Mazulhimousouvosdizerqueoamava!

–Sim,Madame.–Eacreditaisnisso?–perguntouelacomespanto.–Permiti-mevosdizer– respondeuele–queacoisaé tãoprovável

queseriaridículoduvidardela.– Pois bem, sim, senhor – replicou ela –, sim, eu o amava, disse-lhe

isso, vinha aqui para lhe provar isso: o ingrato finalmente soubera metrazeratéaqui.Nãoenrubesçoemvosdizerisso,masopérfidojamaisteráoutrasprovasdaminhafraquezasenãoaconfissãoquelhefizdisso.Umdiamaistarde,céus!oqueeuteriametornado?

– Ei, Madame! – disse friamente o hindu. – Pensais que Mazulhimtenhatidotãomáopiniãodemimparametercontadosomenteametadedosegredo?

–O que, então, ele pôde vos dizer? – perguntou ela asperamente. –Acrescentoueleacalúniaaoultrajeeseriaelebastanteindigno?...

– Mazulhim pode ser indiscreto – respondeu ele –, mas tenho

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dificuldadeemacreditarqueémentiroso.–Ah,ovelhaco!–exclamouela.–Éaprimeiravezquevenhoaqui.–Tudobem, jáquedesejais isso– replicouele–, eprefiroacreditar

que Mazulhim me enganou a duvidar do que me dizeis. Mas, Madame,diante de quem vos defendeis? Se quisésseis ser justa comigo, ouso melisonjearquetemíeismenosqueeufosseodepositáriodevossossegredos.Estaischorando?Ah, istoéhonrardemaiso ingrato!Belacomosois, fica-lhe bem acreditar que não poderíeis vos vingar? Sim, Madame, sim,Mazulhimmedissetudo!Nãoignoroquerealizastestodososseusdesejos;sei mesmo detalhes de sua felicidade que vos surpreenderiam. Não vossintais absolutamente ofendida – prosseguiu ele. – A felicidade dele eramuito grande para que pudesse contê-la; menos contente, menosarrebatado,semdúvidaeleteriasidomaisdiscreto.Nãoéasuavaidade,éasuaalegriaquenãopôdesecalar.

– Mazulhim! – interrompeu ela exaltada. – Ah, o traidor! O quê!Mazulhimmesacrifica!Mazulhimvosdissetudo?Elefezbem–prosseguiuelanumtommaisponderado–;euaindanãoconheciaoshomense,graçasaosseuscuidados,ficareiquitesomenteporumafraqueza!

–Ei,Madame–respondeufriamenteohindu,quefingiaacreditarnela–,issonãoévosvingar:évospunir.

– Não – respondeu ela –, não, todos os homens são pérfidos, estoupassando por uma experiência cruel para poder duvidar disso, todos seassemelhamaMazulhim!

–Ah,nãoacrediteisnisso–exclamouele–,ousovosjurarquesemetivésseiscolocadonolugardele,jamaisoteríeisvistonomeu.

–Mas– retomouela–essasordensqueo retiveramnãopassamdeumpretextovãoe,semdúvida,eleestámeabandonando?Ah,nãotemaismecomunicarisso!

–Poisbem,Madame–respondeuohindu–,seriainútilvosesconderisso,Mazulhimnãovosamamais.

– Ele não me ama mais! – exclamou ela dolorosamente. – Ah, essegolpememata!Oingrato!eraesteoprêmioqueelereservavaparaaminhaternura?

Terminando de dizer isso, ela fez ainda algumas exclamações erepresentou,aoseutempo,aslágrimas,afúriaeoabatimento.Ohindu,queaconhecia,anadaseopunhaesemprefingiuestarcheiodeadmiraçãoporela.

– Sintoqueestoumorrendo–disse ela, depoisde chorarpormuitotempo–;nãoénumcoraçãotãosensível,tãodelicadoquantoomeuquese

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pode,impunemente,dargolpestãorudes.Masoqueteriaentãoelefeito,seotivesseenganado?

–Elevosteriaadorado–respondeuohindu.–Nãoconcebonadadesseprocedimento–retomouela–,eumeperco

nele.Seoingratonãomeamassemaisetemesse,elepróprio,meanunciarisso, nãopodiame escrever?Romper-se-ia de formamais indigna comoobjetomaisdesprezível?Porqueéaindanecessárioque sejavósqueeleescolhaparamemandardizerisso?

– Somente vejo muito bem – replicou o hindu – que a escolha doconfidentevosdesagradamaisaindadoqueaprópriaconfidênciaepossovosjurarque,conhecendocomoconheçoavossainjustaaversãopormim,nãometeríeisvistoaquiseMazulhimdesseonomedadamaàqualelemepedia para apresentar as suas desculpas. Duvido mesmo (tendo paraconvoscodisposiçõesmuitodiferentesdasquetenhoadesgraçadeverquetendesparacomigo)queeutivesseacreditadoseeletivessedadoonomedeZulica.Jamaispoderiapensarquehouvessenomundoalguémquenãopudesse realizar a sua felicidade sendo amado por ela. Portanto, é commuita inocência–acrescentouele–quecontribuoparavosdara tristezamaissensívelquepoderíeisreceberequemeachometidoemsegredosquecertamentepreferiríeisvernasmãosdequalqueroutrodoquenasminhas.

– Não sei o que vos faz acreditar nisso – respondeu ela com um arembaraçado.–Ossegredosdanaturezadaquele,dosquaishojevosachaispossuidor, normalmente não se confiam a ninguém, mas não tenhoabsolutamenterazõesparticulares...

–Perdoai-me,Madame–interrompeuelevivamente–,vósmeodiais.Não ignoroqueemqualquerocasiãoaminhamente, omeuaspecto eosmeusmodos foram objeto de vossas zombarias ou de vossa críticamaissevera.Confessareimesmoque,se tenhoalgumasvirtudes,euasdevoaodesejo que sempre tive de me tornar digno de vossos elogios ou pelomenos de vos obrigar ame agraciar com esses traços amargos comque,desdequeestamosnomundo,nãocessastesdemesobrecarregar.

–Eu,senhor–disseela,enrubescendo–,jamaisdissenadadevósquepudessevosaborrecer.Aliás,malnosconhecemos;jamaismedestesrazãoparamequeixardevós,enãopensoquesoutãoridícula...

–Mudemosdeconversa,porbondade,Madame!–interrompeuele.–Umaexplicaçãomais longa vos incomodaria.Mas já que estamos falandonisso, permiti-me vos dizer somente que, pelos sentimentos que sempretiveporvós(sentimentostaisqueavossainjustiçanãopôdealterarporummomento),eueraohomemdomundomaismerecedordevossapiedadee

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menosdevossoódio.Sim,Madame–acrescentouele–,nadafoicapazdeapagarodesgraçadoamorquemeinspirastes;osvossosdesprezos,ovossoódio, a vossa obstinação contra mim me fizeram gemer, mas não mecuraram.Conheçomuitobemovossocoraçãoparamelisonjeardequeumdiaelepossa tomarpormimossentimentosqueeupoderiadesejar,masesperoqueaminhadiscriçãoquantoaoquevosdizrespeitovosfarávoltaratráscomavossaprevençãoeque,seelaéatalpontoquejamaispodereisme conceder a vossa amizade, pelo menos não me recusareis a vossaestima.

Zulica, conquistadaporumsentimento tão respeitoso, confessou-lheque, de fato, por um capricho cuja origem jamais pôde descobrir, ela sedeclararaabertamentesuainimiga,masqueeraumerroqueelaesperavareparar tãobemquenãomaisseriaumaquestãoentreelesequeela lheasseguravaasuaestima,asuaamizadeeoseureconhecimento.

Depoisdelhepedirparaterabondadedelheguardarosegredomaisinviolável,elaselevantoucomaintençãodesair.

–Ondequereisir,Madame?–disse-lheohindu,detendo-a.–Aquinãotendesninguémdosvossos.Mandeiemboraomeupessoaleahoraemquedevemvoltaraindaestámuitolonge.

–Não tem importância – replicouela –, nãopossopermanecernumlugarondetudomecensuraporminhafraqueza.

– Esquecei Mazulhim – retomou ele –, hoje esta casa não éabsolutamente dele, ele a cedeuparamim. Permiti ao homemdomundoque mais verdadeiramente se interessa por vós de vos rogar paracomandar aqui. Pelomenos, pensai no que quereis fazer. Pela hora, nãopodeis sair semcorrero riscode serencontrada.Queavossa cóleranãovos faça esquecer o que deveis a vós mesma! Imaginai o escândalohorrorosoquefaríeis,imaginaiquetalvezamanhãseríeisafábuladetodaAgra e que, com uma virtude e sentimentos que se deve respeitar,acreditar-se-iaquesoisapessoaaquemessetipodeaventurasénormal.

ZulicaresistiupormuitotempoàsrazõesqueNasses(esteeraonomedohindu)lhetraziaparafazê-laficar.

– Tudo estava preparado para vos receber – acrescentou ele. –Consintaqueaquipasseanoiteconvosco.Oquesois,oquesoueumesmo,tudo deve corresponder aomeu respeito. Não tomo a direção dosmeussentimentos: se ainda ouso falar convosco sobre isso, é unicamente paravos fazer sentir a que pontome interesso por vós e para tentar tirar asimpressõessinistrasqueaindiscriçãodeMazulhimpareceterdeixadoemvós.

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Depois de alguma resistência, Zulica, persuadida pelo que lhe diziaNasses,finalmenteconsentiuemficar.

–Pensandocomopensais,Madame–disse-lheele–,deveisestarbemsurpresaemvosachartãosensível?...

– Bom– interrompeu o Sultão –, ele não sabe o que diz, pois, tantoquantopossomelembrar,éessamesmamulherqueestavaaborrecidacomofatodequeMazulhimnãotinhabonsmodosparacomela?

–Semdúvida–disseaSultana–éamesma.–Ummomento,porfavor–retomouoSultão–,orientemo-nos.Seéa

mesma,porqueelelhediz...oquelhediz?Estaisvendoqueeleseengana.Aquela mulher está acostumada a ver amantes, consequentemente éridículoqueelelhedigaqueeladeveestarbastantesurpresa?

–Nãovêdesqueelequerridicularizá-la?–respondeuaSultana.– Ah, é um outro caso – replicou o Sultão. – Mas por que não me

avisaram? Onde querem que eu vá adivinhar isso? Ah! ele zomba dela,estou vendo. Mas a propósito do que ele zomba? Eis o que gostaria desaber.

–E,semdúvida,éoqueAmanzeivoscomunicará,sequiserdesdeixá-locontinuar.

–Estábem–disseoSultão.–Oquedigodisso,comoconcebeisbem,nãoéqueissomesejaindiferente;fala-seporfalar,issodiverteequantoamimnãoodeioaconversa.

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CAPÍTULOXIV

Quecontémmaisfatosdoquediscursos

Nodiaseguinte,Amanzeicontinuouassim:–Pensando comopensais,Madame–diziaNasses a Zulica –, deveis

estarbemsurpresaemvosachartãosensível?–Nãohádúvida– respondeuela–, e, asseguro-vos, éumaaventura

bemsingularnaminhavidaestaquemeacontece!–Quetenhaisamado–retomouele–nãoéoquemeespanta,existem

bem poucas mulheres que tenham escapado do amor. Mas que sejaMazulhim que tenha triunfado sobre o vosso coração, esse coração queparecia feito tãopoucoparaconheceroamor,euvosconfessareiqueéoquenãocompreendoabsolutamente.

–Eumesmanãocompreendo–respondeuela–erealmente,quandomeexamino,nãopossoconcebercomoelepôdemeagradaremeseduzir.

–Ah,Madame–exclamouelecomumarcompenetrado–,quedestinocruelonosso!Amaisquemnãovosamamaiseamoquemnãomeamarájamais. Por que, sempre detido por essa injusta aversão que sabia quetínheis por mim, não vos disse a que ponto me havíeis tocado? Talvez,infelizmente, osmeusgalanteios, aminha constância, omeu respeitovostivessemdesarmado!

–Etalveztambém–disseela–metivésseistratadocomoMazulhimmetrata!

– Não – respondeu ele pegando em suamão –, não! Zulica teria sevistoadoradatãoreligiosamentequantomerecesê-lo.

–Mas–recomeçouela–Mazulhimmefezosmesmosdiscursosquevós:porqueeuacreditariaquenãoteríeisfeitoasmesmascoisasqueele?

– Tudo devia vos fazer duvidar da verdade dos seus sentimentos –respondeuele.–Mazulhim, inconstante,disperso, jamaissoubeoqueeraamar.Nãopodíeisignorarqueeramaisindiscretoemaisenganadordoquenosépermitidoser.Éverdade,contudo,quepormaisinfielquefosse,semser acusadadeorgulhoexcessivo,podíeispretender a glóriade fixá-lo.Adificuldadedevosagradar,osvossosencantos,oprazertãodoceetãorarode reinarnumcoraçãoqueantesdeleninguémse submetera, tudodevia

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vos fazer esperar, dapartedele, uma ternura eterna.Oque emqualqueroutrateriasidoumavaidaderidícula,paraZulicasomentesetornavaumaideiatãosimplesqueelanãopodiaseimpedirdeter.

– É certo – respondeu ela – que, porminhamaneira de pensar, eupodiamerecercertasconsiderações.

– Considerações! Vós! – exclamou ele. – Ah!, considerações vosdevolvem tudo o que vos devemos? Assim, portanto, como prêmio devossas bondades, somente exigiríeis o que se devemesmo àmulher quemenosseestima?

–Vedes,entretanto–retomouela–,queaindaexigidemais!–Semefossepermitidovosfalar–recomeçouNasses...–Podeisfazê-lo–interrompeuela.–Nãodeveisduvidardequeoque

hojesepassaaquientrenósdevanosligarpelamaisternaamizade.–Sim,Madame–disseelevivamente–,pelamaisterna;masserápara

mim, para esse Nasses por tanto tempo odiado, que Zulica se dignaprometeraamizademaisterna?

–Sim,Nasses–respondeuela–,éZulicaquereconheceasuainjustiça,queestádesesperadacomelaequevos jurarepará-laporsentimentoseumaconfiançaaqualquerprova.

Então ela olhou cortesmente para ele. Tinha uma aparência muitoagradávele,emboramenosnamodadoqueMazulhim,nãolheeraemnadainferior.

–Oquê!–exclamoueleainda.–Soisvósquemeprometeismeamar?–Sim– replicouela –, omeu coração se abriráparavós,nele lereis

como eu mesma; os meus menores sentimentos, as minhas ideias,conhecereistudo.

–Ah,Zulica–disseele,lançando-seaosseuspésebeijandoamãodelacomardor–,comoaminhaternurasaberávosrecompensarbempeloquefareis por mim! Com que prazer eu vos submeterei todos os meuspensamentos!Senhorasoberanadaminhavida,somenteasvossasordensregularãoaminhaconduta.

–Deixemos isso–disseela, sorrindo–, e levantai-vos!Nãogostodevosverajoelhadodiantedemim.Voltemosaoquequeríeismedizer.

Ele se levantou, sentou-se junto dela e, continuando a segurar-lhe amão,prosseguiuassim:

– Vou vos interrogar, pois tendes a gentileza de permitir isso. Porquais viasMazulhimpôde vos agradar?Porqual encantamento amulhermaisrespeitávelpelosseussentimentosepelasuaconduta,Zulicaenfim,oachou amável? Como um homem tão fútil, tão impetuoso, pôde convir a

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umamulher tão sensata, tãomodesta quanto vós? Pois que ele agrade amulheresdoseucaráter,aessasmulheresfrívolas,doidivanas,dispersas,aquemnenhumobjetoinspiraamoreque,contudo,sãovencidasportodososqueseapresentamaosseusolhos,queelelhesagrade,digo,issonãomeespanta.Masvós!

– Para começar convosco a troca de confiança que vos prometi –respondeuZulica–,vosdireinaturalmentequenãodeviatemerquealgumdiaMazulhimpudessemeserquerido.Nãoqueeumeacreditasseincapazdecometerfraquezas.Semterfeitoacruelexperiênciadisso,comodesdeentão a fiz, não ignorava que somente um momento é necessário paramergulhar a mulher mais virtuosa nos desvarios mais funestos: mastranquilizadapormeussentimentos,mesmopelo tempoque faziaqueeuestava no mundo sem ter faltado ao menor dos deveres que nos sãoprescritos,ousavamegabardequeessacalmaseriaeterna.

–Semdúvida–disseNassescomumarmuitosério–,nadaperdemaisasmulheresdoqueessasegurançadaqualfalais!

– Isso é verdade, pelomenos – respondeuela. –Umamulhernuncaestá mais exposta a sucumbir do que quando se acredita invencível. Euestava nessa calma enganadora – continuou ela – quando Mazulhim seofereceuaosmeusolhos.Nãovosdireicomoelefezparameseduzir.Oqueseiéque,depoisdeterresistidoaelepormuitotempo,omeucoraçãoseemocionou, a minha cabeça se perturbou. Eu sentia impulsos que mefaziammal,tantomaisquenãotinhaohábitodesenti-los.Mazulhim,quesabiamelhordoqueeumesmadequenaturezaeraaminhaperturbação,aproveitou-se disso para me induzir a tentativas cuja consequência euignorava; finalmente eleme levou ao ponto deme fazer vir até aqui. Euacreditavaeelemeprometeraquesomentequeriameentretercommaisliberdadedoquenotumultodomundopodíamosesperar.Vimatéaqui.Asuapresençamecomoveumaisdoqueeupensara.Sozinhacomele,achei-memenosfortecontraosseusdesejos.Semsaberoqueconcedia,nãopudelherecusarnada.Finalmenteoamormeseduziuatéofim.

Com estas palavras, ela tinha os olhosmeiomarejados de lágrimasqueelaseesforçavaporespalhar.Nasses,quepareciatomarapartemaissinceradesuador,fingindoconsolá-ladizia-lheascoisasmaisprópriasdomundo para desesperá-la. Sobretudo, ele insistia maldosamente sobre opoucotempoqueMazulhimaguardara.

– Certamente – disse ele –, não que não tenhais do que tornar umhomem feliz, pelomenos se deve julgar assim. Entretanto é verdade queessa inconstância tão repentina de Mazulhim, se fosse qualquer outra

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mulherquenãofossevós,fariapensarascoisasmaisprejudiciais.Diante desse propósito, Zulica fez uma cara que assinalava bastante

paraNassesqueelaacreditavaterrazãoemnadasereprovarquantoaisso.– Não se ignora – retomou Nasses – que os homens são

suficientementeinfelizespornãopodergozarpormuitotempodopróprioobjetomais amável semque os seus desejos diminuam;mas pelomenosama-se três meses, seis semanas, mesmo quinze dias, mais ou menos.Jamais se imaginou deixar uma mulher de forma tão brusca quantoMazulhimvosdeixou,vós;édeumridículo,deumhorrormesmo,quenãose pode imaginar! Ah, Zulica – acrescentou ele –, ouso ainda repeti-lo,teríeismeachadomaisconstante!

Zulicarespondeu-lhequeestavabempersuadidadissomasque,nãoquerendomaisamar,issodoravantelheeraumacoisaindiferente,queoshomens fossem constantes ou não, que ela desejavamesmo, pela sinceraamizade que tinha por ele, que o amor que ele dizia sentir não fosseverdadeiro e que ficaria extremamente zangada se ele conservassesentimentosquejamaispoderiaverrecompensados.

–Sim–respondeuNassescomumartriste–,sintobemtudooquemedizeis.Achoaindanovossocaráteressafirmezaquesempretemiemvóseque não posso me impedir de admirar, embora ela faça a minhainfelicidade.Sefôsseismenosestimável,euseriamuitomenoslamentável;pois, enfim, ser-me-ia permitido imaginar que, uma vez que amastesMazulhim,nãoseriaimpossívelquemeamásseistambém.Éumaideiaquesepoderiaconcebercomtodasasmulheresdomundo,semofendê-las;masinfelizmente não vos assemelhais a ninguém e é sem acarretarconsequênciasgravesparaofuturoquetivestesumafraqueza.

Zulica,que,semdúvida,riainteriormentepelafalsaideiaqueNassespareciaterdela,assegurou-lhequeelelhefaziajustiçaealongou-semuitosobre a feliz maneira de pensar que ela recebera da natureza, a poucadisposiçãoquetinhaparasedeixartocareafriezanaqualadeixara,oqueparamuitasoutrasmulhereseramprazeresdeumextremoardor,mesmoapesardoamorviolentoqueMazulhimsouberalheinspirar.

– Pior para vós, Madame! – disse-lhe Nasses. – Quanto mais soisestimávelmaissoislamentável.Avossainsensibilidadevaifazeradesgraçadavossavida.Mazulhimsempreestarápresentediantedevós.Amaneirahumilhantepelaqual ele vosdeixounão sairánemum instantedevossamemória: é um suplício que vos acabrunhará na solidão e do qual adissipaçãoeosprazeresdomundojamaisvosdistrairãoosuficiente.

–Masoquefazer–perguntouela–paraapagardaminhamenteuma

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ideiatãocruel?Concordoconvosco,queumnovoamorpoderiametiraralembrança de Mazulhim; mas sem contar as novas desgraças que a eletalvezestivessemligadas,possoeuacreditarqueomeucoraçãogostariadeseentregaraeletantoquantoseriaprecisoparaasseguraraminhacura?Não,Nasses,acreditaiemmim:umamulherquepensadeumacertaformanãopoderiaamarduasvezes.

–ideiafalsa!–exclamouele.–Conheçoalgumasqueamarammaisdeseisequenãosãomenosestimáveisporisso.Vós,aliás,estaisnumcasotãocruel que ele vos põe acima das regras e que, se soubessem da vossaaventura, vos veriam amar dez homens ao mesmo tempo, que não seachariaqueaindaestaríeisrecompensada.

–Certamenteteriambondadedesobra–replicouelasorrindo.– Mas não! – recomeçou ele. – Achariam isso mais simples do que

acreditais. Concebeis bem, de resto, que o que vos digo não é para vosaconselharatomá-los,jáqueumseriaosuficienteparamefazermorrerdedor.

– Ah – disse Zulica sonhando –, é que nos acham tão censuráveisquandoamamosque,comumaúnicapaixão,amaislongaeamaissinceraquesepossater,aindatemosmuitadificuldadeemescaparaodesprezoeque a nossa desgraça é tanta que o que se olha em vós como virtudessempre,paranós,écontadocomovícios.

– Sim, outrora pensava-se isso – respondeu ele –, mas os costumesmudaram,asnossasideiasmudaramcomeles.Oh,não!Sefossesomenteotemordacensuraquevosdetivesse,poderíeisvosentregaraoamor.

–No fundo–retomouela– tendesrazão,poisoque importaqueseocupeoseucoração?Essencialmente,nãovejonissoomenormal.

–Econtudo–replicouele–,comumespíritoquevosfazdiscernirtãobem o verdadeiro do falso, vós vos sacrificais aos preconceitos comoalguémquenãosaberiaraciocinar.Aquiestais,determinadaachorarportoda a vida a vossa fraqueza por Mazulhim, em vez de pensarajuizadamente em vos consolar com ela; acreditais que umamulher quepensadeumacertaformadeveamarsomenteumavez.Beminteriormentesentisqueoprincípiosegundooqualagisnãoéverdadeiro,masresistisàvossa inteligência, para gozar do nobre prazer de vos afligir e,aparentemente, tambémpara quenão se parededizer que é a perdadeMazulhim que quereis continuar chorando. Não serão esses belospropósitosaseremconservadosporsi?

–Pormim?–respondeuela.–Maseumelisonjeiodequenãosefalarádisso!

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–Acredito–replicouele.–Seiquevós,Madame,nãodireisnadadisso.É certoqueeu,eunão falarei.AcoisahonramuitopoucoMazulhimparaque ele se acredite obrigado a guardar o silêncio; e contudo, se nãomudardesabsolutamenteamaneiradepensar,todomundosaberádisso.

–Masporquê?–perguntouela.–PorDeus!–retomouele.–Acreditaisqueavejamaflitasemquese

procure entrar na razão pela qual o estais e que, se obstinadamenteprocurada, finalmente não a descubram? Pensais que Mazulhim mesmo,cuja vaidade a vossa dor lisonjeará, resista ao prazer de comunicar aopúblicoqueéaperdadelequecausaisso?

–Issoéverdade–disseela–,mas,Nasses,seráquedependerádemimnãoficarmaisaflita?

–Semdúvida–respondeuele–,issodependedevós.Nofundo,agora,o que lamentais? Mazulhim? Se ele voltasse para vós, consentiríeis emrecebê-lo?

–Eu?–exclamouela.–Ah!prefeririapertenceraoúltimodoshomensdoqueaele.

–Se,qualquercoisaqueelepudessefazer,nadapoderialhedevolverovossocoração,éportanto–retomouele–bemridículoqueolamenteis.

–Dizei-meporuminstante–perguntouoSultão–;demorareisaindamuitotempo?

–Sim,Sire–respondeuAmanzei.– Por Maomé! paciência! – replicou Schah-Baham. – Estes são

discursos que me aborrecem furiosamente, estou vos avisando. Sepudésseis suprimi-losoupelomenosabreviá-los,dar-me-íeisprazereeunãoseriaingratoporisso.

–Estaiserradoemvosqueixar–disse-lheaSultana.–Essaconversaquetantovosaborreceéemsimesmaumfato.Nãoéabsolutamenteumadissertaçãoinútilequenãofaladenada,éumfato...nãoé“dialogado”quesediz?–perguntouela,sorrindo,aAmanzei.

–Sim,Madame–respondeuele.– Essamaneira de tratar as coisas – retomou ela – é agradável; ela

descrevemelhor e de formamais universal os caracteres que se põe emcena,masestásujeitaaalgunsinconvenientes.Detantoquereraprofundartudo ou de captar cada nuance, por exemplo, arriscamos a cair emminúcias,talvezfinasmasquenãosãoassuntosbastanteimportantesparaque neles se deva parar e exasperamos com detalhes e alongamentosaqueles que nos escutam. Parar precisamente onde é preciso, talvez sejaumacoisamaisdifícildoquecriar.OSultãoestáerradoemquererque,no

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lugar em que estais, andeis tão rapidamente,mas vós o tereis diante demimediantedetodapessoadegosto,seafúriadefalarvosarrebataesenão souberdes sacrificar, de vez em quando, mesmo as coisas que vosparecerão mais agradáveis, quando não puderdes nos dizê-las senão àscustasdaquelasqueesperamos.

–OSultãoestáerrado–disseSchah-Baham–;issoéfácildedizer!Eeu,euvossustentoqueesteAmanzeinãopassadeumfalador,quesemiraemtudooquedizeque,oueunãomeconheço,temovíciodegostardaslongasconversasedepassarporumpedante.Issovoschoca–acrescentouele,virando-separaoladodeAmanzei–,maséquesoufrancoe,sequereissê-lo,apostoqueconfessareisquetenhorazões.

– Sim, Sire – respondeu Amanzei –, e, benevolência de cortesão àparte, sou tantomais forçado a concordar com isso, quehámuito tempoachamquetenhoodefeitoqueVossaMajestademecensura.

–Corrigi-vos,então!–disseSchah-Baham.–Sefossetãofácilmecorrigir,quantomefoifácilconcordarcomisso

–recomeçouAmanzei–VossaMajestadenãoteriacensurasamefazer.AforçadoraciocíniodeNassesimpressionouZulica–prosseguiuele.

–Nofundotendesrazão–disse-lheela.–Assim,nãoémaisMazulhimque choro: é aminha fraqueza, o fato deme ter dado a um homem tãoindignodemim.

–Confesso–replicouNassescomumarsimples–queapeçaqueelevos prega não deve torná-lo amável aos vossos olhos. Contudo, sequiserdes julgá-lo sem prevenção, não duvido que acharíeis coisasagradáveisnele,poisenfimeleastem.

–Comoquiserdes – retomouela desdenhosamente. – Para começar,elenãoébemfeito.

–Nãosei–retomouele–,masninguémtem,contudo,maisgraçadoque ele; tem a cabeça e as pernas mais belas do mundo, o ar nobre edesembaraçado,amenteviva,ligeira,divertida.

– Sim – retomou ela –, não nego absolutamente que ele seja umafutilidadebastantebonita;mas,mesmoassim,nãopassadissoe,aindaporcima,euvosasseguroquelhefaltamuitacoisaparaquesejatãodivertidoquanto dizem. Entre nós, é um vaidoso, de uma presunção, de umconvencimento!...

–Perdôoumpoucodeorgulhoparaumhomembastantefelizporvosteragradado– interrompeuNasses.–Pormenos, fica-seorgulhoso todososdias.

–Mas,Nasses–respondeuela–,paraumhomemquemedizqueme

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ama e que aparentemente quer que eu acredite, dizei-me propósitossingulares.

–PormaisodiosoqueMazulhimvossejaagora–respondeuNasses–,elevoséaindamenosdoqueeueacreditoarriscarmaisfalando-vosdeumamante que jamais amareis, do que faço vos entretendo com um queamastesternamente.Eleocupaavossamenteaindadeformatãovivaquenunca pronuncio o seu nome sem que os vossos olhos se marejem delágrimas.Aindaagoraelesseenchemeemvãoquereisesconder-meisso.Ah! Guardai os vossos prantos, amável Zulica – exclamou ele –, elesatravessamomeucoração!Semumenternecimentoquesetorna funestoparamim,nãopossovê-loscorrerdevossosolhos.

Zulica, que hámuito tempo não tinha vontade de chorar, não pôdeouvir esse discurso sem se acreditar obrigada a verter novas lágrimas.Nasses,quesedivertiacomtodaamanobraqueeleaobrigavaafazeràsuavontade, deixou-apor algum temponessador fingida. Contudo, paranãoperderosseusmomentos juntodela,elesedivertiuembeijaroseucolo,que estava extremamente descoberto. Ela ficou bastante tempo sem sedignar a pensar no que ele fazia e, somente depois de lhe ter deixadointeira liberdadequantoa isso, lembrou-sedeacharalgumacoisaadizernovamente.

–Nãopensaisnisso,Nasses–disseela,semprecomumlençosobreosolhos–,aquiestãoliberdadesquemeferem.Realmente!

–Acreditonisso–respondeuele–,nãoireistomarissoporumfavor?Olhaiparamim,então,paraqueeuvejaosvossosolhos.

–Não–retomouela–,eleschorarammuitoparaestarembonitos.–Semasvossaslágrimas–replicouele–,parecer-me-íeismenosbela.

Escutai-me– continuouele. –O estado emquevos vejomeaflige: queroabsolutamente que vos livreis disso. Eu vos provei a necessidade quetendesdeamaraindae, tantoquantopossível, vouvosprovaragoraquesoueuquedeveisamar.

–Duvido–respondeuela–queconsigais.–Éoqueveremos–retomouele.–Primeiramente,concordaiscomo

fato que me odiais sem motivo: é uma injustiça que somente podereisrepararamando-meapaixonadamente.

Elasorriu.–Aliás–continuouele–,euvosamoepormaisfácilquevossejafazer

com que qualquer pessoa tenha mais amor mesmo do que talvez vosagrade lhe inspirar, jamais encontrareis alguém tãodispostoquantoeuavos amar com toda a ternura que mereceis. Que estejamos errados ou

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certos, é fato que, em geral, pensamos mal das mulheres. Ficamospersuadidos que elas não são fiéis nem constantes e, baseados nisso,acreditamos não lhes dever constância nem fidelidade. Paixões,consequentemente, não se vê absolutamente; para nos determinar a teruma, seria necessário que soubéssemos que uma mulher merecesentimentosmenoslevianosdosquecomumentelheatribuímos;examinaroseucarátereasuamaneiradeviveredepensarecomissoregularograudeestimaquepodemoslhedever...

–Poisbem–interrompeuela–,oquevosimpededefazê-lo?– Estais zombando, Madame – respondeu ele –; esse estudo leva

tempo. Enquanto estivéssemos ocupados com isso, uma mulher nosinformariasobreinconstânciae,paranóséumacidentetãocruelque,paranão ficar exposto a isso, nós a deixamos, em geral, antes de saber se elamerecequeaamemospormuitomaistempo.

–Mas–perguntouela–oquetudoissopodevosfazerconcluir?–Voudizê-lo – respondeu ele. –Mas esse lenço estará eternamente

sobreosvossosolhos?–Eunãoolheiparavós?–disseela.–Nãoo suficiente, nãoqueromais que esse lenço apareçaou então

vosodiarei,seforpossível,tantoquantomeodiastes!Entãoelaolhouparaelesorrindoedeummodobastanteterno.–Continuai,portanto–disse-lheela,inclinando-sesobreele.–Sim–respondeuele,apertando-afortementeemseusbraços–,vou

continuar, nãoduvideisnada.Oque aqui vi sobre vós –prosseguiu ele –vale-me o estudo do qual vos falava, angariou toda a minha estima e,consequentemente,redobrouomeuamorporvós.Umoutroquenãofosseeu não pode, portanto, vos amar tanto quanto eu vos amo; de vós, elesomenteveriaosencantos,eabondadedevossaalmaseriaumacoisadaqual ele jamaispoderia ter certeza,poisnada lheprovaria atéquepontotendesadelicadezadossentimentos.Eleaprenderia,direis,vendo-meagir.Eh! Madame (vou falar mal de nós), pensais que um homem disperso,tonto, sem costumes, sobretudono que concerne àsmulheres e que, nãoencontrandomeiomaiscertoparadesprezá-lassempredoquejamaislhesdar a honra de examiná-las, pensais, digo, que ele percebe as coisas quedeveriamvosassegurarasuaestimaouqueelenãovosacusedeforçarovosso caráter e de fazer desfilar diante dos seus olhos virtudes que,absolutamente,nãopossuís?

–Sim,acredito–disseela.–Oqueestaisdizendo,porexemplo,nãopodesermaissensato.

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Nasses, para agradecê-lapor esse elogio, quisprimeiramentebeijar-lheamão,mas, abocadeZulicaachando-semaispertodele, foiparaelaqueachouconvenientetestemunharoseureconhecimento.

–Ah,Nasses–disse-lheeladocemente–,nósnosindisporemos.–Estaisvendo,portanto–prosseguiuele, sem lhe responder–,que,

umavezquesouohomemdomundoquemaisvosestimaequetemmaisrazãoemfazê-lo,devosertambémoúnicoquepossaisamar.

–Não–respondeuela–,oamorémuitoperigoso.–Velhamáximadeópera,tãoinexpressiva,tãogasta–replicouele–

quesomentehojenãosegostariadepassá-laparaummadrigaleque,deresto,emnadaimpediráquemeameis.Estoulheavisando.

–Senãoforelaquemeimpede...–respondeuela.–Masporquemepediramor?Eunãovosprometiamizade?

–Semdúvida–replicouele–oesforçoégeneroso!Écertoque,senãovosamasse,euvosconsiderariadesobrigadaporissoetalvezmesmopormenos,masossentimentosquetenhoparaconvosconãopodemserpagossenãopelamaisternareciprocidadedevossaparteepossovos jurarquenãoesquecereinadaparavosinspirartodooardorquevospeço.

– Eu vos prometo categoricamente – respondeu ela – que nadaesquecereiparamedefenderdisso.

– Ah, ah – disse ele –, quereis tomar precauções contramim. Estouencantado, istoprovaquesouperigoso.Tendes razão.Amando-voscomoamo, eu o serei para vósmais doqueninguém. Comumamulhermenosestimáveldoquevós,eunãoestariatãocertodaminhavitória.

– Contudo – retomou ela –, quanto mais eu for estimável, maisresistirei.

–Exatamenteocontrário–replicouele–:somenteasgalanteadorassãomaisdifíceisparasevencer.Facilmenteaspersuadimosdequeelassãoestimáveis,masnãoastocamosdamesmaformae,detodasasconquistas,amaisfáciléaqueladeumamulherracional.

–Certamenteeunãoteriaacreditadonisso–disseela.– Entretanto nada émais verdadeiro – respondeu ele. –Não podeis

duvidarquevosamo,vós,porexemplo.Respondei,duvidaisdisso?Tendeboa-fé!

–Acabodesertãotolamentecrédula–recomeçouela–quecreioquenãomepersuadirãopormuitotempo.

–Mas,Mazulhimàparte–insistiuele–,oqueestaispensandosobreisso?

Ela respondeu que acreditava que ele não a odiava. Ele persistiu e

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finalmenteobtevedelaaafirmaçãodequeestavapersuadidadequeeleaamava.

–Evós–prosseguiuele–nãomeachaismaisodioso?–Odioso!–disseela.–Não,semdúvida:possoquererserindiferente,

masnãoqueromaisserinjusta.–Acreditaisquevosamo–exclamouele–,nãomeodiaiseimaginais

queresistireisamimpormuitotempo!Vós,comessaverdadequetendesnocaráter,vosgabaisdequepodereismetornarinfeliz,quandoosvossosprópriosdesejos falarãoameu favor;dequevos fixareisum tempoparacederequeserásomentequandotiverchegadoqueacreditareispodervosentregar comdecência?Não,Zulica,não, tenhomelhoropiniãodevósdoquevósmesma.Nãotereisabsolutamentefalsidadesuficienteparaquererdesesperarumamantequeamais;ignorareisaartepérfidademeconduzir,defavoremfavor,atéaquelequedeve,parasempre,satisfazerereanimarosmeusdesejos.Noinstanteemquevosenternecereiseráaqueleemquemorrerei de prazer nos vossos braços, e essa boca encantadora –acrescentouelecomarrebatamento...

–Muitobemisso,muitobem!–interrompeuoSultão.–Melivraisdeuma grande dificuldade. Palavra! começava a acreditar que isso jamaisacontecesse.Ah!quetolacriaturaessaZulica,comosseusmodos!

– De fato – disse a Sultana – deve-se convir que não se pode fazeresperarfavorespormuitomaistempo.Como,então,resistirporumahora?Issoéumacoisaímpar!

– A verdade – respondeu o Sultão – é que isso me aborrecia tantocomosetivesseduradoquinzediaseque,porpoucoqueAmanzeitivesseainda retardado a coisa, eu estaria morto de tristeza e de vapores, masantesissoteriacustadoasuavidaeeulheteriaensinadoafazerperecerdetédioumacabeçacoroada.

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CAPÍTULOXV

Quenãodivertiráaquelesqueosfatosanterioresaborreceram

Pelo silêncio que se fez naquele instante em que Vossa Majestadeestavaontem tão contente –disseAmanzei nodia seguinte – julguei queNassesimpediaZulicadefalarequeelaoimpediadeprosseguir.

–Ah,Nasses–exclamouela logoquepôde–,Nasses,pensaisnoqueestaismefazendo?Semeamásseis!...

Quanto mais Nasses temia as censuras de Zulica, menos ele lhedeixava a liberdade de fazê-las. Jamais concebi, melhor do que naqueleinstante,oquantoévantajososerpersistentecomasmulheres.

– Mas, escutai-me – dizia Zulica –, Nasses, escutai-me! Quereisportantoqueeuvosdeteste?

Todaspalavrasque,entrecortadas,pronunciadasfracamenteperdiamasuaforçaenãoseimpunham.Zulicaviuoquantoerainútil falarmaisaumhomemperdidonosseusarrouboseaquem,semnenhumresultado,seteriaditoascoisasmaisbelasdomundo.Oquefazer?Oqueelafez.DepoisdetomarprecauçõescontraosempreendimentosqueNasses,nomeiodasuaperturbação,tentavacomtodaatemeridadepossível,edeseterpostoforadequalquer temorquantoa isso,elaesperoupacientementequeeleestivesseemcondiçõesdeouvirosdiscursosqueela lhepreparavasobreassuasimpertinências.Nasses,contudo,sejaparaobtermaisfacilmenteoseuperdão,sejaporque,defato,Zulicaotivesseperturbado,nãoadeixouemliberdadeanãoserparacairsobreoseuseioenumaprostraçãoquenãodeviadeixá-lo sensível aqualqueroutra coisa anão sero estadoemqueseencontrava.

NovoembaraçoparaZulica, pois, paraque serve falar a alguémquenãopoderiaouvir?Nesseinstante,oquepodiatornar-lhemenospenosoosilêncio ao qual estava forçada é que não havia aparência que Nassestivesse a mente suficientemente livre para fazer comentários sobre isso.Entretanto, ela tentou se retirar inteiramente dos seus braços e nãoconseguiunada.Quandovoltoudesuaperturbação,eletinhaoartãoterno!Os seus primeiros olhares vagaram sobre Zulica de uma maneira tão

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tocante!Elevoltouafecharosolhosdeformatãolânguida,deuprofundossuspirosque,longedepoderlhemostrartantacóleraquantoselisonjeara,apesardesuainsensibilidadenatural,elacomeçouasesentircomovidaeapartilhardosseusarroubos.Essapessoavirtuosaestavaperdida,seNassespudesse ter percebido os impulsos pelos quais estava agitada. Nasses,enfim,voltandoasi,segurouamãodeZulica.

–Nasses–disseela,comumtomcolérico–,éassimqueacreditaisvosfazeramar?

Nasses desculpou-se quanto à violência do seu ardor que, dizia ele,não lhe permitira mais cautela. Zulica sustentou que o amor, quando ésincero,estavasempreacompanhadoderespeitoequenãosetinhamodostão pouco comedidos quanto os seus, senão com as mulheres que sedesprezava. Ele, por seu lado, sustentou que somente àquelas queinspiravam desejos se faltava com o respeito e que nada devia provarmelhoraZulicaa forçadoseudoqueoarrouboqueelaseobstinavaemcondenarnele.

–Setivessevosestimadomenos–prosseguiuele–,teriavospedidooqueacabodearrebatar;maspormaislevesquefossemosfavoresquevosroubei,nãoignoravaquemerecusaríeisestes.Certodeobtê-losdevós,nãoteriapensadodevê-lossomenteamimmesmo.Quantomaissepensabemdeumamulher,maisseéforçadoaserculpadodeousadiademasiadaparacomela,nadaétãoverdadeiro.

–Nãoacreditonumapalavra–respondeuZulica–masquandooqueacabais deme dizer for verdade, continua sendo uma regra estabelecidanãocomeçaraconfissãodosseussentimentospormaneirastãosingularescomoasquetendes.

–Suponhamosqueeutenhaprecipitadoascoisastantoquantodizeis–replicouele.–Seriaaindaumaatençãoparaconvosco,quedeveríeismeagradecer.

–Não–retomouelacomimpaciência–,tendesnamenteopiniõesdeumaestranhezasemigual!

– É engraçado – recomeçou ele – que essas opiniões que tratais deestranhassejamtodasfundamentadasnarazão.Aquemecensuraisagoraédeumaverdadequecertamentevosfareisentir,poisnãosomentetendesespírito,masaindaotendesjusto,méritobastanteraronovossosexo,paraquesepossavosfelicitardisso.

–Ocumprimentonãomeseduz–disseela,comumtombrusco–,evosavisoquelhedousomenteaimportânciadevida.

–Semdúvidaéumdissaborparamim–respondeuele–vosvertão

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poucosensívelaosdiscursosobsequiososquevosfaço.–Numapalavra,senhor–interrompeuela–,paraempreendercertas

coisas,énecessáriopelomenosterpersuadido;sortesuaqueeuvosdigaisso.

–Estouvosentendendo,Madame–retomouele.–Quereisqueeuvospercanomundo;poisbem,euofarei.Queriavoscolocaremcondiçõesdeme amar, sem que ninguém suspeitasse disso, mas já que essa minhaconsideração vos desagrada, eu vos cortejarei,Madame, saberão que vosamo e não vos pouparei nenhuma das ternas loucuras que poderãoinformaraopúblicoquaissãoossentimentosquetenhoparaconvosco.

– Mas o que quereis dizer? – perguntou ela. – Sois um homemestranho! É por respeito a mim que me fazeis uma impertinência quejamais deveria vos perdoar, é por uma atenção infinita pelo queme dizrespeitoquemetrataisbruscamente,comoamulherdomundoquemenosmereceria consideração!Soisvósque fazeismil coisas condenáveise soueuqueestouerrada!Dizei-me,porgentileza,comotudoissopodeocorrer?

– Se fôsseismenos novata no amor – replicou ele –, poupar-me-íeistodas aquelas explicações. Entretanto vos direi que, pormais incômodasque me possam ser, sem comparação, prefiro vos dar lições sobre esseassuntoavosversuficientementeinstruídaparanãoprecisardelas.Aindaestaisporsaberquesãomenosasbondadesqueumamulhertempeloseuamantequeaperdemdoqueotempoqueelaofazesperá-las?Acreditaisquepossovosamareserinfeliz,semqueasminhaspresençasfrequentesjuntoavós,semqueoscortejosqueadotareiparavosenternecerescapemao público? Tornar-me-ei triste e (por mais extrema que fosse a minhadiscrição) não ignorarão que somente os vossos rigores causam aminhamelancolia. Enfim, pois sempre é preciso chegar lá, tornar-me-eis feliz.Pensaisque,comalgumaatençãoqueeuvosobserve,osvossosolhos,osmeus, essa terna familiaridade que, apesar dos nossos esforços, nasceráentrenós,nãorevelamonossosegredo?

Zulica,peloseuespantoepeloseusilêncio,pareciaaprovaroquelhediziaNasses.

– Vedes bem, portanto – prosseguiu ele –, que, quando vos apressoparametornarprontamentefeliz,éaindamenospormimdoqueporvósque o peço. Seguindo os meus conselhos, se me poupardes tormentos,evitareisoescândaloquesempresegueocomeçodeumapaixão.Aliás,nasituação em que estivemos juntos, sem revelar tudo, eu não poderiainicialmenteassinalaromeuamorporvós.Ambosdeacordo,causaremosrespeito ao público quanto aos nossos casos até quando julgarmos

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conveniente;persuadidodequemedetestais, jamaiselepoderá imaginarque,deumsentimentoquelheétãocontrário,passastestãorapidamenteao amor. De resto, ser-vos-á fácil conduzir naturalmente a nossareconciliação. Na corte ou na casa da primeira princesa onde nosencontraremos juntos, captareis qualquer ocasião para me fazer umacortesia; não vos inquieteis com a conjuntura, cuidarei para que elaapareça.Respondereicomdesveloaoquemetiverdesditodecortês,falareibemaltodavontadeque tenhodequenãomeodieismais. Fareimesmocomquemefaçaisumaproposta,atravésdeumdenossosamigoscomuns,adequequereisqueeuvosveja;direisque tendesomaiorprazernisso,far-me-ei apresentaravós, voltareiparavosver, louvareiosencantosdevossa ocupação e a infelicidade que tive de ser privado disso por tantotempo. Não serão necessáriasmuitas coisasmais para justificar osmeusdesvelos:elesparecerãosimplesenaturaiseteremostantomaisprazerdenosamarquantodegozarmosdaqueledeescondê-lodetodomundo.

– Não – respondeu ela, sonhando –, se eu vos tornasse tãoprontamentefeliz,temeriademaisavossainconstância.Confessoquenãoficarei aborrecidaemestabelecer convoscoumnegócio fundadoemmaisestima, confiançaeamizadedoquenormalmente seencontranomundo;euvosdireimais,nãoodiariaoamorseumamantepudesseexigirdeumamulhersomenteaconfissãodasuaternura.

– O que pedis – retomou ele ternamente – é uma coisamais difícilconvoscodoquecomqualqueroutramulherquefosse.Confessotambémque, pormenos que concedais, devemos ficarmais lisonjeados do que ofatodeobtertudodeumaoutra.MasZulica,acreditai-me,euvosadoro,vósmeamais, fazei a felicidadedohomemda sociedadeque sentepor vós apaixãomaisardente!

–Sesoubésseislimitarosvossosdesejos–respondeuelacomemoção–eseaquiloqueeupoderiavosconcedernãofosseparavósumdireitodepedirmais,poder-se-iatentarvostornarmenosinfeliz:mas...

–Não,Zulica– interrompeuelevivamente–, ficareiscontentecomaminhaobediência!

ComessapalavraqueZulicasentiabemsertãoperigosaquantooera,elaseinclinouindolentementesobreNassesque,precipitando-sesobreela,usousemconsideraçãoosfavoresqueacabavamdelheserconcedidos.

– Ah, Zulica – disse-lhe ele ternamente ummomento depois –, serásomente por vossa benevolência que deverei instantes tão doces e nãoquereis,portanto,queelessetornemparavósomesmoquejáosãoparamim?

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Zulicanãorespondeunada,masNassesnãosequeixoumais.LogoelefezpassarparaaalmadeZulicatodoofogoquedevoravaa

sua.Logoesqueceuapalavraqueacabavade lhedareelamesmanãoselembrou do que exigira dele. Na verdade, ela se queixou, mas tãodocemente,quefoimenosumacensuradoqueumternosuspiroaespéciedequeixaquelheescapou.Nasses,sentindoaquepontoeleadesvairava,acreditounãodeverperderinstantestãopreciosos.

– Ah, Nasses – disse ela com uma voz abafada –, se nãome amais,comometornareislamentável!

SeostemoresdeZulicasobreosamoresdeNassestivessemsidotãoverdadeirose tãovivosquantopareciamser, aparentementeosarroubosdeNassesosteriamdissipado.Assim,quasecertodequeelanãoduvidariapor muito tempo do seu ardor, ele não julgou pertinente perder,respondendo-lhe, um tempo que devia empregar em tranquilizá-la e deuma maneira mais forte do que poderia ter feito pelos discursos maistocantes. Zulica não se ofendeu absolutamente com o seu silêncio. Logo,mesmo(pois,emgeral,nãoéprecisomaisdoqueumaninhariaparafazerperderdevistaascoisasmaisimportantes),elanãopareceuseocuparmaiscomumtemorque,semfazeruma injúriamortalaNasses,elanãopodiamaisguardar.Outrasideias,semdúvidamaisdoces,sucederam-seàquela.Ela queria falar, mas somente pôde proferir algumas palavrasinconsequentesequenadamaisexprimiamdoqueaperturbaçãode suaalma.

Quandoelapassou,Nasseslançou-seaosseuspés.–Ah,deixai-me–disseela,empurrando-olevemente.– O quê! – respondeu ele com um ar espantado. – Será que tive a

desgraçadevosdesagradareseriapossívelquetivésseisalgoavosqueixardemim?

–Senãomequeixar–retomouela–,nãoéporquenãotivessedoquefazê-lo.

– Oh! do que vos queixaríeis? – replicou ele. – Não devíeis estarcansadadeumaresistênciatãocruel?

– Concordo – respondeu ela – que muitas mulheres teriam seentregadomaiscedo,masnempor issodeixodesentirquedeviaresistirpormaistempo.

Então ela o olhou com perturbação, esse langor nos olhos queanunciameexcitamosdesejos.

–Vósmeamais?–perguntou-lheNassesdeformatãoternaquantoseelepróprioativesseamado.

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–Ah,Nasses–exclamouela–,queprazervosdariaumaconfissãoqueosvossosarroubos jámearrancaram?Quantoa isso,medeixastealgumacoisaparavosdizer?

–Sim,Zulica–respondeuele–, semessaconfissãoencantadoraquevospeço,nãopossoserfeliz;semela,jamaispossomeolharanãosercomoumraptor.Ah!Quereismedeixarfazerumacensuratãocruel?

–Sim,Nasses–disseelasuspirando–,euvosamo!NassesiaagradecerZulicaquandooescravodeMazulhimveioservir;

elesuspiroucomisso...–PorDeus!Acreditonisso–interrompeuoSultão.–Eiscomosãoos

lacaios! Jamais os vemos, salvo quando temosmenos necessidade de suapresença.Não temais que ele tivesse vindo há pouco, enquantoNasses eZulica me aborreciam tanto! É necessário, precisamente, que ele venhainterromper,quandotenhomaisprazeremouvir.

– Vós me surpreendestes, vós – disse a Sultana –, por não ter ditonada.

–Oraessa!–replicouele.–Eumeacautelaraparanãoperturbá-los;tinha muita vontade de saber como tudo isso acabaria. Estou muitocontentecomisso–acrescentouele,virando-separaAmanzei–;eisoquepodesechamarumasituaçãotocante,aindaestoucomlágrimasnosolhos!

–Oquê!–disseaSultana.–Choraisporisso?–Porquenão?–respondeuele.–Issoémuitointeressanteoumuito

meengano.Paramimécomoumatragédia,esenãochoraisnadaéporquenãotendesocoraçãobom!

Com essas palavras, que ele considerava como um epigramainsultante contra a Sultana, ordenou a Amanzei, com ar satisfeito, paracontinuar.

–Nasses suspiroupor se ver interrompido – prosseguiuAmanzei. –Nãoqueestivesseapaixonado,mastinhaessaimpaciência,esseardorque,semseramor,produzemnósimpulsosqueaeleseassemelhamequeasmulheressempreolhamcomoossintomasdeumaverdadeirapaixão,sejaporque sentemo quanto lhes é necessário, convosco, parecer se enganarnisso ou que, de fato, elas não conhecem nada de melhor. Zulica, quesomenteatribuíaaos seusencantosa impaciênciaquenotavaemNasses,tinha-lhetodooreconhecimentopossívelmas,parasustentaressecaráterdepessoa reservadaqueela sedera, fez-lhe sinal, apertandoamãodele,para ter um pouco de circunspecção diante do escravo de Mazulhim.Puseram-seàmesa.Depoisdaceia...

–Bemdevagar,por favor– interrompeuSchah-Baham.–Se issonão

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vos desagrada, quero vê-los cear. Acima de todas as coisas, gosto dasconversasdemesa.

–Tendesnoespíritouma inconsequênciabemsingular–disse-lheaSultana. – Mil vezes vos impacientastes com discursos que eramnecessárioseagorapedisoutrosque, absolutamente foradahistóriaquevoscontam,somentepodemalongá-la!

–Poisbem–respondeuoSultão–,seeuquiserserinconsequente,háalguémaquiquepossame impedi-lo?Vejamos:queromuitoquesesaibaqueumSultãoéfeitopararaciocinarcomolheagradar;quetodososmeusancestraistiveramomesmoprivilégioqueaquelequemequestionam;quenuncaumamulherpedanteteveaautoridadedeimpedi-losdefalarcomoeles queriam e que minha própria avó, a quem, acredito, não tendes aaudácia de vos comparar, jamais teve a de contradizer Schah-Riar, meuancestral, filho de Schah-Mamoun, que engendrou Schah-Techni, o qual...Deresto,oqueestoudizendo–continuouelecommaismoderação–émaisparavosfazerverqueconheçoaminhagenealogiadoqueparacontrariaralguém,epodeisprosseguir,Amanzei.

– Amaneira pela qual os acontecimentosmais marcantes de nossavidasãoocasionadoséumacoisabemsingular!–disseZulica,uminstantedepois que ela se sentou àmesa. –Quemdissesse a umamulher: “Nestanoite amareis furiosamente um homem, não somente em quem jamaispensastes,mas que odiaismesmo”, ela não acreditaria. E entretanto nãofaltamexemplosdequeissoacontece.

– Eu vos respondo por isso – recomeçou Nasses – e ficaria muitoaborrecidoseissonãoacontecesse.Deresto,écertoquenadaétãocomumquanto ver as mulheres amarem violentamente alguém que vêem pelaprimeira vez ou que odiaram. Daímesmo é que nascem as paixõesmaisardentes.

–Eentretanto–retomouela–,encontraispessoas,masdigo:muitas,quevosafirmamquequaseabsolutamentenãoexistemlancesdesimpatia.

– Sabeis – respondeu Nasses – quem afirma isso? São ou pessoasjovens que ainda não conhecem o mundo, ou mulheres cuja mente éhipócrita e o coração é frio; dessasmulheres indolentes que somente seapaixonam com todas as precauções possíveis, somente se excitamgradualmenteevosfazemcomprarbemcaroumcoraçãoondeencontraismaisremorsosdoqueternuraedoqualjamaisgozaisperfeitamente.

– Pois bem – respondeu ela –, aquelasmulheres, pormais ridículasquesejam,aindatêmadeptos;eeuquevosfalo,nãofazmuitotempoquepensavacomoelas.

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–Vós!– replicouele.–Massabeisque tendes todosospreconceitosquesepodeter?

– Pode ser – retomou ela –, mas agora tenho um a menos, poisacreditonoslancesdesimpatia.

–Quantoamim–disseele–,seiqueelessãomuitocomuns.Conheçomesmoumamulherqueétãosujeitaaelesque,comumente,encontratrêsouquatroduranteodia.

–Ah!Nasses–exclamouela–,issonãoépossível!–Quandodisserdessimplesmentequeissonãoécomum,sabeisbem

–recomeçouele–queaindavosenganaríeisequeumamulherquetemadesgraça de ter nascido terna demais (se, entretanto, isto for umadesgraça)nãopoderesponderummomentoporsimesma?Suponhoquetendes,vós,anecessidadedemeamar:oquefareis?

–Euvosamarei–respondeuela.–Poisbem!Agorasuponhamos–continuouele–umamulherque,por

dia,tenhaanecessidadedeamartrêsouquatrohomens.–Euaachobemlamentável–disseela.–Que seja! Concordo,mas o quequereis que ela faça?Que fuja,me

direis?Masnãosevailongenumquarto;quandoalisepasseouporalgumtempo, cansou-se, é necessário voltar a se sentar. Esse objeto, que osimpressionou, sempreestápresenteaosvossosolhos.Osdesejos ficaramirritadospelaresistênciaquesefezeanecessidadedeamar,longedeestardiminuída,somentesetornoumaispremente.

–Mas–respondeuela,sonhando–amarquatro!–Umavezqueaquantidadevoschoca–replicouele–,tirodois.– Ah – disse ela –, isso se torna mais verossímil e mesmo mais

possível!–Quantascerimônias,entretanto,não fizestes– reclamouele–para

amarsomenteum!– Calai-vos! – disse ela, sorrindo. – Não sei onde arrumais todos os

raciocínios queme fazeis e onde arrumo, eu, todas as respostas que vosdou.

–Na natureza – respondeu ele. – Sois verdadeira, sem arte, vósmeamais o suficiente para não querer me esconder qualquer coisa do quepensaiseeuvosestimotantomaisqueexistemmuitopoucasmulheresquetenhamtantaverdadenocaráter.

Com todos esses propósitos e alguns outros que não foraminteressantes, Nasses conseguiu ganhar a sobremesa. Mal estava servidoque, vendo-se sozinhos, ele se levantou comentusiasmo e, ajoelhando-se

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diantedeZulica:–Vósmeamais?–disse-lheele.– Então! Já não vos disse isso o suficiente? – respondeu ela

languidamente.–Céus!–exclamouele,levantando-seetomando-aemseusbraços.–

Posso ouvi-la dizer excessivamente isso e podeis me provar isso emdemasia?

–Ah!Nasses!–respondeuela,deixando-searrastarsobreeleesobremim.–Queusofazeisdaminhafraqueza?

–Eque,diabos–disseoSultão–,queriaelaentãoqueelefizesse?Issonãoestámal.Pensoqueelaficariabemaborrecidaseeleativessedeixadotranquila. Não! As mulheres são de uma singularidade... bem singular!Jamaissabemoquequerem!Sempreignoramoscomoestamoscomelas...

–Quecólera!–interrompeuaSultana.–Quetorrentedeepigramas!Oquenósvosfizemos,portanto?

–Não–disseoSultão–,ésemcóleraqueestouvosdizendotudoisso.Será que para achar asmulheres ridículas precisamos estar aborrecidoscomelas?

–Soisdeumacausticidadeímpar–disseaSultana–,etemomuitoquevós,queodiaisospedantes,acabeisvostornandoum,ininterruptamente.

–ÉessaZulicaquemeaborreceu–recomeçouoSultão–;nãogostonadadosmodosinconvenientes.

– Que Vossa Majestade fique menos indisposta contra ela – disseAmanzei–;elanãoofezpormuitotempo.

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CAPÍTULOXVI

Quecontémumadissertaçãoquenãoseráapreciadaportodomundo

Depois de dizer essas poucas palavras que desagradaram a VossaMajestade,Zulicasecalou.

–Acreditais–perguntou-lheenfimNasses–queMazulhimvosamassemelhordoqueeufaço?

–Elemelouvavamais–respondeuela–,masmeparecequemeamaismelhor.

–Nãoquerovosdeixarnenhumaocasiãodeduvidardaminhaternura–recomeçouele.–Sim,Zulica,logosabereisoquantoMazulhiméinferioramimemsentimento.

–Oquê!–retomouela.–Ora!...Nasses não a deixou acabar e ela não se queixou de ter sido

interrompida.–Ah!Nasses! – exclamou ela ternamente. – Como sois digno de ser

amado!Nasses não respondeu a esse elogio senão como homem que

acreditavaqueolouvariammenosquantoaopresentese,comisso,nãosepretendesseabsolutamenteencorajá-loquantoao futuro.EleenterneceraZulica, chegou a surpreendê-la; assim ela teve uma consideração, umaespéciemesmoderespeitoporeleque,vistoomotivoqueofaziaobtê-las,tornavam-seextremamenteagradáveisequedevemlisonjearumhomem,tanto mais que, entre as mulheres essas coisas não são o efeito daprevenção,comoosentimento.Nasses,bastantecontenteconsigomesmo,acreditouque,porummomento,podiasuspenderaadmiraçãoquecausavaaZulica.Tertriunfadosobreelanãoeranada;eleaconheciademaisparaficar lisonjeado com isso e as atenções que ela lhemanifestava, longedediminuir o ódio que tinhapor ela, o tinham aumentado. Ele sentia em siessedesprezoprofundoporelaquenostornaimpossíveladissimulaçãoeasconsideraçãescompessoasquenô-loinspiram;enessadisposição,nãoacreditavapoder lhemostrar commuita rapidez toda a impressão que asuacondutacomeledeixaraemsuaalma.

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–Achais,portanto–perguntou-lheele–,queeunãovoslouvotãobemquantoMazulhim?

–Sim–respondeuela–,masachoaomesmotempoquesabeisamarmelhordoqueele.

– Aqui está – respondeu ele – uma distinção que não entendo; quevalordaisagoraàpalavraamar?

–Oqueelatem–recomeçouela.–Somenteconheçoumvalorparaelaeéaqueledoqualpretendofalar;masvósquemepareceisamartãobem,porquemeperguntaisoqueéoamor?

–Seperguntoisso–replicouele–,nãoéporqueoignore,mascomocadaumdefineessesentimentosegundooseucaráter,queriasaberoqueemparticularvósentendeis,vós,dizendoqueeuvosamomelhordoqueMazulhimvosamava.Nãopossoconheceradiferençaquefazeisentreeleeeu,senãomeensinardesoqueeraasuamaneiradeamar.

– Mas – respondeu ela fingindo enrubescer – é que ele, ele tem ocoraçãoesgotado.

– O coração esgotado! – retomou ele. – Eis uma expressão que,segundoaminhaopinião,nãoofereceabsolutamentesentidodeterminado.O coração se esgota, sem dúvida, com uma paixão muito longa, masMazulhim não podia se achar convosco naquele caso, pois, para os seusolhoseparaasuaimaginação,éreisumobjetonovo.Consequentemente,oquemedizeisdelenãoéoquedeveríeismedizer.

–Entretantosomentedireiisso–respondeuela–:oqueseidele(pelomenos desconfio disso) é que existem poucos homensmenos feitos paraamardoqueeleenãomeinterrogueismais,poissintoquequantoaesseassuntonadamaistenhoparavosresponder.

– Ah! Eu vos entendo – replicou ele. – Contudo, não reconheçoMazulhimpeloretratoquedelemefazeis.

–Mas–retomouela–parece-mequenãoestouvosdizendonadadele.– Ah! Perdoai-me – recomeçou ele –, sente-se facilmente o que se

reprovanumhomemquandosedizqueeleestácomocoraçãoesgotado;éuma expressão modesta e comedida, mas se entende. Entretanto, estousurpresopelofatodeterdesalgoavosqueixardele.

– Não estou me queixando, Nasses – respondeu ela –, mas já quequereis saber o que penso disso, eu vos direi que é verdade que fiqueisurpresacomele.

–Ah!Ah!Ah!–disseele.–Oquê!Vósoachastes?–Issoésurpreendente–retomouela–,pelomenospeloquepenso.–Oh!Eumereferireibemavós.

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– Sem dúvida! – respondeu ela ironicamente. – Quanto a isso aexperiênciamedeugrandesluzes!...

– Experiência ou não – replicou ele –, sabe-se o que deve ser umamante quando se tem o prazer de não lhe deixar mais nada a desejar;quanto a isso existe uma tradição estabelecida. Mas, ainda uma vez,confessoquemesurpreendeis,poisMazulhim...

– Pois bem! Nasses – interrompeu ela –, é a um ponto que não sepoderiaimaginar!

–Eunãopoderiamerecobrardaminhasurpresa–respondeuele–;seicoisasincríveissobreele,prodígios!

–Aparentemente,seráelequevosterácontadoisso?–disseela.–Mesmo se fosse somente por amor-próprio – recomeçou ele –, eu

teriadesconfiadodeumrelatosemelhante.Não,elenãofaloudenada,direimais:quantoaisso,eletemumaverdadeiramodéstia.

– Quanto a sermodesto – respondeu ela –, ele não o é, mas talvezalgumasvezeselesetornejusto.

–Madame,Madame–disseele–,umareputaçãotãobrilhantequantoadeMazulhimdeve terum fundamentoe jamaisme fareis acreditarquealguémdoqual todasasmulheresdeAgrapensambem, sejaumhomemtãopoucoestimável.

– Eh! Pensais – respondeu ela – que umamulher descontente comMazulhim (se contudo é verdade que se possa encontrar algumas quesejam sensíveis ao que falamos) diga a quem quer que seja a razão pelaqualestátãodescontentecomele?

–Precisamentesim–retomouele–,elanãoodiráatodomundo,masodiráaalguém,eaprovadissoéqueoestaisdizendoamim.Nãoignoroque somente devo essa confidência à maneira pela qual estamos juntos.Mas Mazulhim agradou a outras pessoas que não vós. Depois dele elasamarampessoasaquem,semdúvida,elasconfiavamassuasaventuras.EmAgraexistemtalvezmaisdemilmulheresquenãoresistiramaMazulhim,consequentementehaveráquarentamilhomensouaproximadamentequesaberiam, na mais exata verdade, o que ocorre e quereríeis que, entremulheres ofendidas e homens humilhados, um segredo dessa naturezativessesidosepultado?Nãoéprovável!Não,Madame,aindaumavez,não,umhomem,exatamentecomoMazulhimvospareceu,não teriaenganadopor tanto tempo. Eu vos diriamais? Conheceis Telmisse? Certamente elanão émais nem jovemnembonita!Não fazemdezdias, nomáximo, queMazulhim lheprovou todaa suaestimaequemereceue adquiriu todaadela. É portanto um fato. Telmisse o diz a quem quer ouvir; não é uma

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pessoa que, gratuitamente, fala bem de alguém e não conhecemosabsolutamentemulherdequemosufrágiodêmaishonraesejamaisdifícildeobterdoqueoseu.Depoisdisso,podeispensarmaldeMazulhim?

– Não – respondeu ela secamente – acredito que ele sejaincomparável.Semdúvida,éculpaminha–acrescentouelacomumsorrisodesdenhoso–senãooacheiassim.

–Nãosou feitoparapensar isso–retomouele–maséverdadequeexistenissoalgoinconcebível.Alémdomais,talveznãoacreditareisnumacoisa? Se eu fosse mulher, as pessoas da espécie da qual Mazulhim vospareceumeagradariaminfinitamentemaisdoqueosoutros.

–Acredito–respondeuela–quenãoseriaumarazãodenãoquerê-losoudedeixá-los,masvosconfessareiquenãovejoapropósitodoqueseriaprecisolhesdarpreferência.

–Elespreferem–disseele.–Somenteelesconhecemosgalanteioseabenevolência; quantomais eles sentem que lhes concedemos a graça deamá-los,maisseempenhamemmereceristo;necessariamentesubmissos,sãomenosamantesdoqueescravos.Sensuaisedelicados,eles imaginamininterruptamentemilrecompensaseoamorlhesdeve,talvez,oqueexistede prazeres mais engenhosos. Acontece-lhes de se arrebatarem? Não éabsolutamente a um impulso cego e consequentemente lisonjeador paraumamulher,queeladeveoardordoqualaalmadelesseenche;ésomenteela,sãoosseusencantosquesubjugamanatureza.Jamaispodehaverparaelatriunfomaisdoceemaisverdadeiro!

–Nãomesurpreendeisabsolutamente–disse-lheZulica–,gostaisdasopiniõessingulares.

– Pensais bem demais – respondeu ele – para que esta vos pareçasingulareseiquemaisdeumamulher...

–Deixemos isso– interrompeuela–, jamaisdiscutisobrecoisasquenãomeinteressam.Deresto,peloquemeparece,cabemenosavósdoqueaMazulhimtentarfazeressaopiniãoseradmitida.

–Elatemrazão–disseoSultão.–Quandoelavaiembora?–Comosoisimpaciente!–respondeuaSultana.– Não que eume aborreça – retomou o Sultão. – É quase isso,mas

emboraeumedivirtamuito,parece-mequegostaria igualmentedeouviralgumacoisadiferente.Souassim,eu!

–Oquequereisdizer?–perguntou-lheaSultana.–Seráquenãoestãoentendendoisso?–respondeuele.–Eumeacho

muito claro. Quando digo que sou assim é que penso que um prazer, àsvezes,nãoimpedequesedesejeumoutro.Voumefazerentendermelhor

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ainda.– Existem mil coisas que perdem algo ao serem explicadas –

interrompeuaSultana.–Estamosvosentendendo,quereisalgumacoisaamais?

–Sim–disseoSultão–,queroqueAmanzeiacabeasuahistória!–Paraissoéprecisoqueeleacontinue!–respondeuaSultana.– Pelo contrário – retomou Schah-Baham–, parece-meque, se ele a

deixasse ali, ele a acabaria muito mais cedo. Mas como sou a própriabenevolência,permito-lheprosseguir,àcondição,entretanto,queissonãotenhaefeitosgravesedesastrosos.

– Ademais – prosseguiu Zulica –, seríeis muito gentil comigo sequiserdesnãofalarmaisdeMazulhim.

–Demuitobomgrado–respondeuele.–Éessecoraçãoesgotadodoqualfalastesque,defato,nosfezcairnumadissertaçãoinútilequeeumecensuraria,poiselavosaborreceu, senãome lembrasseaminha ternuraporvóseodesejodesaberporqueacreditáveisqueeuvosamavamelhordo que Mazulhim, somente essas coisas a ocasionaram. Quanto mais ossentimentos que me demonstrais me são caros, menos deveríeis mereprovarporumacuriosidadequetenhosomenteporquevosamo.

– Não – respondeu ela com ar triste –, parece-me que faz algunsmomentosquedeixastesdemeamarquantomeamáveis.Nãoseiporqueacreditonisso,mas,enfim,acreditoeessaideiameaflige.

–Estouencantadoporveremvós–replicouNasses–essestiposdeinquietações que, por não terem objeto, não deixam de atormentarvivamente,somentepodemsersentidasporumcoraçãoigualmenteternoe delicado. Sois injusta comigo, mas essa própria injustiça me prova oquantomeamaise,porisso,vósmesoismuitomaiscara.Tranquilizai-vos– prosseguiu ele –, amável Zulica. Céus! Quantos prazeres encontro embanir os vossos temores! Zulica! encantadora Zulica! Ah! para a vossafelicidadeeaminha,queelespossamrenascersemparar!

Dizendo essas palavras, ele tomava Zulica em seus braços e acumulavacomasmaisternascarícias.

–Comomedeixaisarrebatada!–exclamouela.–Sintotodososvossosarroubos passarem para o meu coração, eles o enchem, o perturbam,penetram nele! Ah! Nasses! que prazer para mim dever a vós tão docesprazeresequeconheciatãopouco!Somentevós!...Sim,somentevós!...MasNasses!Ah,cruel!...

Embora Zulica não parasse absolutamente de falar, nãome foimaispossívelouviroqueeladizia.

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–Équeaparentementeelafalavabaixodemais?–disseoSultão.–Istoéprovável–respondeuAmanzei.– E depois – continuou o Sultão –, o fato é que é verdade que não

perdestesmuito em não ouvi-lamais, pois ou estoumuito enganado, ounãohaviaosensocomumnoqueeladizia.Pelomenoseunãocompreendinada.

–Soudevossaopinião,Sire–retomouAmanzei–,nadaestavamenosclaro. Contudo, ouNasses a ouvia, ounessemomento ele não tinhamaisespíritodoqueela,poisdiziamaisoumenosasmesmascoisas.

–Nãovosdisse?–recomeçouoSultão.–Aquelaspessoasnãotêmosensocomum.

– Quando Nasses e Zulica se tornaram mais racionais – continuouAmanzei–,Zulica,olhando-oternamente:

–Soisencantador,Nasses–disseela.–Ah!porquenãovosameimaiscedo?

–Deveisvosqueixarmenosdoqueeu– respondeuele– eu,digo, aquemcadainstantefazsentirquesomentecomeceiaviverdesdequemeamastes.Quandopenso a quebelezasMazulhim fechouos olhos, comoolastimo!Oquê!Zulica,nesseslocaisondeestamos,nessesmesmoslugaresquevossasgentilezasparamimme tornam tão carosquantoasqueaquitivestespara comele inicialmenteme fizeramachá-losodiosos,o ingratopôde não enrubescer por ter amado outras e por não renunciar parasempre à sua inconstância! Que gênio, queDeusmesmo velava pormimquando, depois de torná-lo insensível a tantos encantos, inspirou-lhe odesejodemeescolherparavoscomunicarasuaperfídia?Ah,Zulica!qualnãoteriasidoaminhadesgraça,seelevosfossefiel,ousequalqueroutroquenãoeu...

–Parai!–interrompeumajestosamenteZulica.–Seelemetivessesidofiel, jamais teria amado senão ele,mas para bani-lo domeu coração nãoprecisavamenosdoqueNasses.

–Acredito,poismeescolhestes–respondeuele–,quedefatoeueraoúnicoquepoderiavosagradar,masquandopensooestadoemqueestáveisaqui, aoquepodiaexigirdevósumestouvadoqueMazulhimvos tivesseenviado,talvezquepreçoeleteriapedidoparaoseusilêncio,nãopossomeimpedirdetremer.

– Não vejo muito bem por quê – respondeu ela. – Não querendoconcedernada,ter-me-iasidobastanteindiferentequeseexigissealgumacoisa.

–Nãopodeisrespondersobreisso–disseele–,paraasmulhereshá

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situações terríveis, e aquela em que vos vi talvez fosse uma das maishorrorosas...

–Enquanto issovosagradar– interrompeuela.–Masvospeçoparaacreditarque é bemmenos cruel paraumamulherque tem sentimentosserabandonadaporumhomemqueaamadoqueseentregaraalguémqueelanãoama.

–Nãohádúvida–replicouele–,maséumacoisaterrívelsertomadanuma pequena casa. Não sei, se fosse uma mulher e que isso meacontecesse,oquefaria,masmeparecebemcômodoqueohomemquealimetivessesurpreendidoadmitissenãodizerumapalavrasobreisso.

–Paravósseriacômodo!–retomouela.–Aparentementeissoébemsimples; e paramim também teria sidomuito cômodo, fosse quem fosseque me tivesse surpreendido aqui, que ele não tivesse dito nada. Belopropósito!Éprecisoquepercaisoespíritoparatê-lossemelhantes.Pensaisqueumhomemdebemtenhanecessidade,parasecalar,queoobriguemasilenciarpelascoisasqueimaginaise,aliás,acreditaisquesefaçamcertaspropostasamulheresdeumcertotipo?

–Certamentesim–respondeuele.–Todamulhersurpreendidanumapequena casa prova que ela tem o coração sensível; sobre isso tiramterríveis consequências e comumente, quanto mais a mulher é amável,menosohomemégeneroso.

– Oh! É um conto – retomou Zulica. – Somente o gosto,mas digo ogosto mais vivo, pode desculpar uma mulher por se ter entregue e nãoacredito, apesar do que se possa dizer, que houvesse uma que desejassecomprar tão caro quanto acreditais a discrição da qual necessitaria; e ahonra...

– Bem! – interrompeu ele. – Acreditais que uma mulher algum diatemasacrificarasuahonraàsuareputação?

– Enfim – respondeu ela –, eu não o faria e não conheço nenhumasituação, por mais terrível que fosse, que pudesse me determinar aconcederaumhomemoquemeucoraçãosempregostariadelherecusar.

– É preciso ser muito delicado – retomou ele – para fazer essadistinção e nela se deter; esperando que se possa ganhar o coração,procura-seengajarumamulher,de formaque,paraela,omelhora fazerseja vos dá-lo e com bastante frequência, ela fica muito feliz em poderterminarporaí.

–Começoavosentender,senhor–disseela–;quereismefazersentirquenãoacreditaismedeversenãoàsituaçãoemquemeencontrastesaquiepreferisimaginarquenãotínheiscomoquemeagradar,apensarmalde

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mim.Eis, portanto – acrescentou ela chorando –, a felicidadeda qualmelisonjear?Ah,Nasses! era de vós que eu devia esperar umprocedimentotãocruel?

–Mas,Zulica–respondeuele–,acreditaisqueeuesqueciaresistênciaquemefizesteseoquemecustouparaobterdevósaminhafelicidade?

– Oh, pensais – retomou ela, soluçando – que eu não sinto quemecensuraispornãotermedefendidoportantotempo?Infelizmente!Levadapelogostoquetinhaporvós,maisaindadoqueaquelequememostráveis,cedi sem temer que um dia transformaríeis em crime o fato de não terresistidopormuitotempo.

–Masqueideiaéentãoavossa,Zulica?–respondeueleaproximando-se dela. – Eu! Censurar-vos por ter feito a minha felicidade? Podeisacreditar nisso? Eu que vos adoro – acrescentou ele, não esquecendoabsolutamente nada do que pudesse lhe provar que estava dizendo averdade.

– Deixai-me! – disse ela, empurrando-o levemente. – Deixai-me, sepossível,esqueceroquantoeuvosamei!

A resistência de Zulica era tão doce que, se os desvelos de Nassestivessemsidomenosardorosos,elesaindateriamtriunfado.

– Vós! Cessar de me amar! – dizia-lhe ele com um ar terno,acrescentandoaessediscursotudooquepodiatorná-lomaispersuasivo.–Vósquedeveisfazereternamenteaminhafelicidade!Não,ovossocoraçãonãoéfeito,deformaalguma,parameodiar,quandoomeusomenteguardaporvósosseusmaisternossentimentos!

– Não – respondeu Zulica, com um tom que começava a não poderassinalarmaisdoqueacólera–,não,traidorquesois!Nãomeenganareismais! Céus! – acrescentou ela ainda mais docemente. – Não sois o maisinjustoeomaiscrueldoshomens?Ah!deixai-me...Não,nãomepersuadismais...Nãodevovosperdoar...Comovosodeio!

ApesardetodosessesprotestosdeódioqueZulicafaziaaNasses,pormomentoalgumelequisacreditarquepudesseserodiadoe,defato,Zulicaparecianão sepreocuparmais como fatodequeeleacreditassenão sermaisamado.

–Nãoseiseestoumegabando–disseeleenfim–,masquasejurariaquemeodiaismenosdoquedizeis.

–Belotriunfo!–respondeuelasacudindoosombros.–Acreditaisquevos detesto menos? Será culpa minha se... Mas é verdade, eu vos odeiomuito.Nãoride–acrescentouela–,nadaémaiscertodoqueoqueestouvosdizendo.

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–Euvosestimodemaisparapensarisso–respondeuele–,eissoatéoponto de vos ver inconstante e emnada querer acreditar. Estou e queroestarpersuadidodequemeamaistantoquantopodeisamaralgumacoisa.

–Nessecaso–retomouela–,euvosamoentãotantoquantopossível.Meucoraçãonãoéfeito,absolutamente,parasentimentosmoderados.

–Acreditonisso– replicouele–, e tambéméoqueeuqueriadizer.Quanto mais delicadeza se tem, mais se tem as paixões vivas, e quandopenso nisso, uma mulher é muito infeliz quando pensa como vós. Deverdade! Ouso dizê-lo, hoje a depravação é tal que, quanto mais umamulheréestimável,maisaachamridícula.Nãodigoquesejamsomenteasmulheresquelhefaçamessainjustiça,issoseriamuitosimples,masoquenão se concebe é que são os homens! Eles que, incessantemente, lhespedemsentimentos!

–Issoémuitoverdade–disseela.– Vejo isso nomundo – continuou ele. – O que procuramos nele?O

amor?Não,semdúvida.Queremossatisfazeranossavaidade,fazerfalardenós sem parar, passar de mulher a mulher, para não perder nenhuma,aspirar às conquistas, mesmo as mais desprezíveis, mais vaidosos porteremtidoumcertonúmerodelasdoquesomentepossuirumadignadeagradar;procurá-lassempararejamaisamá-las.

–Ah,comotendesrazão!–exclamouela.–Mastambéméculpadasmulheres. Vós as desprezaríeis menos se todas pensassem de um certomodo,tivessemsentimentosquepudessemtorná-lasrespeitáveis.

– Confesso-o com pesar – respondeu ele –, mas é certo que não sepoderianegarqueossentimentossaíramumpoucodemoda.

–Umpouco!–disseela comespanto.–Ah!dizeimuito.Certamenteainda existem mulheres racionais, mas não é a maioria. Não faloabsolutamente das que amam, pois acredito que vós mesmos as achaismaislamentáveis,masparaumaquesomenteoamorconduz,quantasnãoexistem que, longe de poderem tomá-lo como desculpa, fazem todo opossívelparaquesequersepossasuspeitarqueelasoconheçam.

– Existem – recomeçou ele – muito poucas mulheres bastanteequânimesparafalarcomovós.

– Para que serve querer dissimular coisas tão conhecidas? –respondeuela.–Quantoamim,vosdireiquetantoquantogostariaqueseconsiderasseasmulheresracionais,gostariaquesepunissecomdesprezoaquelas cuja condutaédaúltima ruína.Qualquer fraquezaédesculpável:masnaverdade,nãosepodecondenardemaisovício.

–Eleécondenado–replicouele–masétolerado;ovícionãopareceo

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que é senão naquelas que absolutamente não são feitas para inspirardesejose,hoje,talvezamaiorsatisfaçãodasmulhereséessearindecentequeanunciaquefacilmentesepodetriunfarsobreelas.

–Não ignoro–respondeuela–quesãoaquelasquemaisprocurais;jamaiséocoraçãoquepedis.Comonãoamais,nãovospreocupaisemseramadose,contantoquetriunfeissobreapessoa,aconquistadorestovosparecesempreinútil.

–Ummomento,Amanzei–disseoSultão.–Quandoéentãoqueeleadespreza?

–Perguntaadmirável!–exclamouaSultana.– O que estou dizendo – respondeu o Sultão – não tem nada de

maldade. Uma pergunta, uma vez, é uma pergunta e não estou errado,parece-me, em fazer aquela. Aborrecem-me e ainda não querem que eufale, issoéengraçado,sim!Fazempassarporumcontoumacoletâneadeconversasesomentesetemapalavrapararirquandonelenãosefalaesoueu que estou errado! Numa palavra como em mil, Amanzei, se amanhãNassesnãotiverdesprezadoZulica...somentevosdigo isto:écomigoquevosvereis!

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CAPÍTULOXVII

Queensinaráàsmulheresnovatas,seelasexistirem,aseesquivaremdeperguntasembaraçosas

–VossaMajestade–disseAmanzeinodia seguinte– semdúvida selembra...

–Sim– interrompeubruscamenteoSultão–, lembro-mequeontemestavamorrendodetédio;éissoquemeperguntais?

–Seocontovosentedia–disseaSultana–,ésóacabá-lo.–Não,porfavor!–respondeuoSultão.–Queroqueocontinuemeque

não me aborreçam, se possível, pois não peço de forma alguma coisasimpossíveis.

Amanzeiretomouassimapalavra:– Vós, por exemplo – continuou Zulica –, temo que tenhais muito

poucadelicadeza.– Estais errada comigo – respondeu ele comum ar tranquilo –, sou

naturalmente muito suscetível ao amor. Entretanto, confessarei que tivemaismulheresdoqueasamei.

–Masaquiestáumacoisainfame!–replicouela.–Nãoconcebocomosepodesegabardisso!

– Também não me gabo – recomeçou ele –, estou dizendosimplesmenteoqueacontece.

–Acredito–disseela–queenganastesmuitasmulheres.– Abandonei algumas e não as enganei absolutamente – respondeu

ele.–Elasnãomepediramparaserconstante,consequentementenãolhesprometi sê-lo e concebeis bem o fato de que, quando nos tomamos semcondições,nãohácomosequeixardealgumacondiçãoviolada.

–Sereicuriosa,namedidadopossível–disseZulica–,parasabertudoquefizestes.

– Necessitais – recomeçou Nasses – de uma história deminha vidabemdetalhada?Issoseria longoeeutemeriavosaborrecermuito.Posso,contudo,vosobedecersemrisco,suprimindoosdetalhes.Fazdezanosqueestounasociedade,tenhovinteecincoesoisatrigésimaterceirabeldadequeconquisteicomocasoestabelecido.

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–Trintaetrês!–exclamouela.–Entretantoéverdadequesomentetiveessas–respondeuele–,mas

nãovosespanteis;eu,nuncaestivenamoda.–Ah,Nasses–disseela–,comosoulamentávelporvosamarecomo

dificilmentepoderiacontarcomavossaconstância!–Nãoestouvendoporque– respondeuele–acreditaisquepor ter

tidotrintaetrêsmulheresdevavosamarmenos?–Sim–retomouela–,quantomenostivésseisamado,maiseupoderia

acreditar que vos restariam recursos para amar ainda e que, enfim, nãoestaríeisabsolutamentegastopelosentimento.

–Creio–replicouele–tervosprovadoquenãoestoucomocoraçãoesgotado; aliás, falando-vos francamente, existemmuitopoucos casos emque nos servimos do sentimento. A ocasião, a convivência, a inação dãoorigem a quase todos os casos. Sem sentir, nos dizemos que parecemosamáveis; ligamo-nos, semacreditarmosemnós;vemosqueéemvãoqueesperamos o amor; e nos deixamos demedo de nos aborrecer. Às vezestambémacontecequenosenganamoscomoquesentíamos:acreditava-seque era paixão, não passava de gosto, impulso, consequentemente poucodurável e que se gasta nos prazeres, enquanto o amor neles parecerenascer.Tudoisso,comovedes, fazcomque,depoisdetermuitoscasos,àsvezesaindanãoestamosemnossaprimeirapaixão.

–Portanto,jamaisamastes?–perguntouela.– Perdoai-me – replicou ele –, amei apaixonadamente duas vezes e

sinto,pelamaneiraqueestoucomeçandoconvosco,quesedesdeentãoomeucoraçãonão ficouemocionadonãoera,comoacreditava,porquenãodevessemaisficá-lo,masporqueaindanãotinhaencontradooobjetoquedevia fazê-lo reencontrarmais sentimento do que ele temia ter perdido.Mas vós, que me interrogais, ser-me-ia permitido, por minha vez, vosperguntarquantasvezesvosapaixonastes?

– Sim – recomeçou ela –, e eu o permitiria ainda com omaior bomgrado se já não o tivesse dito; não ignorais queMazulhim e vós sois osúnicosquepuderammeagradar.

–Quandonosconhecíamosmenos–retomouele–,eranaturalquemefalásseisnessalinguagem.Nãoacheimesmooquedizerporque,pormaisimpossível que fosse me esconder Mazulhim, quisestes contudo fazê-lo;mas agora que a confiança deve estar estabelecida e que eumesmo nãotenhonadaa vos esconder,parecer-me-ia singular, confesso, quenãomefizésseisdepositáriodevossossegredos.

–Certamenteoseríeis–respondeuela–,setivessereservadoalguns

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paramim,maseuvosjuroquenãotenhonadaamecensurarquantoaissoque me parece mesmo espantoso que, pelo pouco tempo que vos amo,tenhaemvósumaconfiança tãograndeequeenfimacreditedeverestartãocertaquantooestoudemimmesma.

–Estouencantadocomisso,Madame–respondeuelecomarofendido–,ousodizercontudoque, segundoamaneirapelaqualeumeentreguei,tinhaodireitodeesperaralgodemelhordevossaparte.

Comessaspalavras,elequisseafastar,masela,detendo-o:– Que fantasia é essa, Nasses? – perguntou ela ternamente. – Como

podeocorrerquehápoucotivésseisfeitoumcrimedofatodeduvidardoqueeuvosdiziaequeagoraparecequevoscensuraríeisporacreditaremmim?

– Se é preciso dizê-lo, Madame – respondeu ele –, há pouco nãoacreditava em vós, mas, ocupado então com um interesse mais urgenteparamim,acrediteiquevaliamaisapenatrabalharparavospersuadirdoque entrar em detalhes que, nesse instante, somente podiam vosdesagradarequeeunãotinhamesmoodireitodeexigirdevós.

–Mas,Nasses,juroquetenhoadizersomenteoquevosdisse!–Nãoépossível,Madame!–interrompeuelebruscamente.–Fazmais

dequinzeanosqueestaisna sociedade,nãoé crívelque frequentementenãofostesassediadaeque,absolutamente,nãovosentregastespelomenosalgumas vezes. Seríeis a primeira que, num espaço de tempo tãoconsiderável, teria tido somente dois amantes e forçosamente tereis queconvirqueogostopelagalanteriavosteriatomadobemtarde.

–Issonãoseriabastantenovo,senhor,paraqueseacheinacreditável– respondeu ela –, e estou muito enganada se não aconteceu a outrasmulheresalémdemimofatodeficaremindiferentespormuitotempo,pornão terem encontrado cedo o objeto que estava destinado a torná-lassensíveis. Certamente nada tenho a vos dizer, mas se fosse verdade quetivesse sobre esse assunto alguma coisa a vos confiar, o temor de vosperdersempremeimpediriadefazê-lo.Quasesempreviodesprezoseguiressestiposdeconfidências;e,emboraporteramadooutrora,nãosejamosabsolutamente culpadas em relação ao objeto que nos ocupa, é contudomuitoraroqueasuavaidadenosperdoepornãotersidooprimeiroquenostornousensíveis.

–Masque ideia!–disseele.–Quem?Eu,euvosdesprezariaporquemedaríeis,confessando-metudooquefizestes,umanovaprovadevossaternura e talvez a mais convincente de todas, pela dificuldade quenormalmente se tem em obtê-la? Pois bem! Amastes Mazulhim: issome

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surpreendeu? Eu vos estimo menos? Por que quereríeis que algunsamantes a mais me causassem uma impressão desagradável? Tenhoalgumacoisaaesclarecercomaquelesquemeprecederam?Éculpavossase o destino nãome ofereceu aos vossos olhos em primeiro lugar? Não,Zulica,nãosoumesmodaopiniãodaquelesqueacreditamqueumamulherque amoumuitonão émais capazde amar ainda. Estou longedepensarque o coração se gasta amando, pelo contrário, estou persuadido de quequantomaisseamamaisseéarrebatadonosentimento,maisdelicadezasetem.

–Seguindoesseprincípio– respondeuela –, não ficaríeis lisonjeadoemseroprimeiroamantedeumamulher?

– Ouso dizer que não – replicou ele –, e aqui está o fato no qualfundamentoumamaneiradepensarquetalvezvospareçaridícula.Nessaidade tenra em que umamulher ainda não amou nada, se ela deseja servencida,émenosaindaporqueestáatormentadapelosentimentodoquepelo fato de desejar conhecê-lo; enfim, ela quer menos amar do queagradar.Mais a fascinamdoque a tocam.Comoacreditarquandoeladizqueama?Paraseassegurardanaturezaedaforçadoseusentimentoatual,temela comoque compará-lo?Numcoraçãoonde, por suanovidade, osmais fracos impulsos sãomotivos consideráveis, amenor emoçãopareceperturbação e o simples desejo, êxtase; e finalmente não é quando seconhecetãopoucooamorquesepodesegabardesenti-loequesedevepersuadi-lo.

–Talvez, de fato, se exageraos seus impulsos – respondeuZulica –,maspelomenossedizsomenteoqueseacreditasentir,eseessadesordempartedo coraçãoou se somenteexistena imaginação, o amanteémenosfeliz com isso? Não, Nasses, com alguma desvantagem que descreveis osprimeiros sentimentos, euvosamaria, sepossível,mil vezesmaisdoquevosamo,sefosseaprimeiraaquemhomenageásseis.

–Perderíeisnissomaisdoquepensais– replicouele. –Agoraestoumilvezesmaisemcondiçõesdesentiroquevaleisdoqueteriaestadonotempoemquequeríeisqueeuvostivesseamado,tudoentãomeescapava:espírito, delicadeza, sentimento. Sempre tentado, jamais amado, o meucoraçãonãosecomovianada,mesmonaquelesmomentosemque,levadopelosmeusarroubos,eunãomepertenciamais.Contudoacreditavam-meapaixonado,eutambémpensava isso.Aspessoasseaplaudiamporpodermetornartãosensível;eumesmomefelicitavaporsercapazdesentirumavolúpia tão delicada: parecia-me que na natureza somente existia eu,suficientemente feliz para sentir de forma tão viva os encantos do amor.

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Incessantemente aos pés daquela que eu amava, às vezes enlanguescido,jamaisextinto,encontravanaalmamilrecursosdosquaismeespantavadepoderfazertãopoucouso.Umúnicoolhartraziaaperturbaçãoeofogonosmeus sentidos; a minha imaginação sempre muito além dos meusprazeres...

–Ah,Nasses!Nasses!–exclamouvivamenteZulica.–Comodevíeisseramável!Não,nãomaisdamesmaformacomoamáveisentão.

–Mil vezesmais – replicouele. –No tempodoqual vos falo eunãoamava nada. Exaltado pelo fogo da minha idade, era a ele, não ao meucoração,queeudeviatodosessesimpulsosqueacreditavaseremdoamorequedesdeentãosentimuito...

–Ah!–interrompeuela.–Éimpossívelquenadatenhaisperdidoemserdesiludido.Ociúme,adesconfiança,milmonstrosqueentãoteríeistidoescrúpulo em imaginar, agora envenenam os vossos prazeres. Maisinstruído, amastes menos, portanto fostes menos feliz. O vosso espíritosomentepôdeseesclareceràscustasdovossocoração;raciocinaismelhorsobreosentimento,masnãocontinuastesaamartãobem.

– Esse raciocínio – respondeu ele – seria tanto contra vós quantocontramim e devo acreditar, supondo sempre queMazulhim foi o vossoprimeiroamante,quenãopodeismeamartantoquantooamastes,aele.

– Não ficaria de forma alguma surpresa que tivésseis essa ideia –replicou ela –, somente seguis comprazer aquelas emquepossoperder;masdeixemosisso!

–Absolutamente–disseele–nãodeixemosisso.– De resto – continuou ela asperamente –, pela maneira pela qual

vivestes,nãoémuitosurpreendentequepenseismaldasmulheres.– E se fosse – interrompeu ele – a maneira pela qual as mulheres

vivemacausadequeeunãopensebemdelas?Direisqueéimpossívelquesejaassim.

–Não,euvos juro!– retomouelacomumardesdenhoso.–Nãomedareiaessetrabalho!

–Ah, entendo– recomeçouele –: temeríeisqueele fosse inútil.Nãoquereisportantomedizerabsolutamentequemamastes?

– O quê! – exclamou ela. – Ainda pensais nisso? Se me amásseis,poderíeisduvidardoquevosdigo?

–Sinceramente,Zulica–disse-lheele–,acreditar-me-eissequiserdes,masissoestásetornandodeumridículoextremo.

– Zulica, que, como Vossa Majestade pôde ver – disse Amanzei –procuravahámuitotempodesviaraconversa...

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–Elafaziabem–interrompeuoSultão–,masteríeis,vós,feitomuitomelhor se a tivésseis comparado e se me tivésseis poupado todas essasdissertações que ali colocastes a torto e a direito. Concordais que nãopassaisdeumtagarelaeésomenteparafalarmaisdisso!Comoquereisquenosatenhamosàquelasperfídias?Numapalavra,comoemmil,terminaiavossahistória!

–Zulica–continuouAmanzei–pormuitotempoaindaapôsderrotasruinsaosdesvelosdeNasses.Finalmenteelapareceuseentregaredepoisdetê-lofeitodarasuapalavradequeporissonãoaestimariamenos:

– Quanto mais eu me defendi em satisfazer a vossa curiosidade –disse-lheela–,menosagoraeudeveriacederaela.Talvezmesereismenosreconhecido pela confissão que finalmente me arrancais do que mequerereis mal por tê-la recusado por tanto tempo. Estareis errado. Nãodeveis ignorarque émais fácil inspirarumnovo gosto aumamulherdoquefazê-laconcordarcomaquelesqueelateve.Nãoseiseéporfalsidadeque alguns pensam assim, mas para mim posso vos jurar que o meusilêncio não se baseava nummotivo tão indigno. Creio que é impossívellembrar comprazeruma fraquezaque, longede se retraçarparaavossaimaginação com os encantos que para vós outrora ela tinha, jamais seapresentaaelaanãoseracompanhadadosremorsosqueelavosacusaoudalembrançadolorosadosmausprocedimentosdeumamante.

–Issoéexatamenteverdade–disseNasses–,umamulherdelicadaébemlamentável!

–Muitobem!–disseoSultão. –Mas,peloprazerque tenhoemvosouvir,desejoqueadieisparaamanhãacontinuação(poisaindanãoousodizerofim)dessaconversainaudita.

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CAPÍTULOXVIII

Cheiodealusõesmuitodifíceisdeseremencontradas

–Sabereis, portanto– continuouZulica –, que, quandoentreipara asociedade,nãodeixava(semser,entretanto,maisbeladoqueumaoutra)deencontrarmaisamantesdoquedesejava,completamentetolacomoeueraentãosobreoquesechamaopoderdabeleza.Quandodigoamantes,entendoessamultidãodepessoasociosasquedizemqueamam,maisporhábito do que por sentimento, que escutamos porque é preciso e quechegammais facilmenteadizerque somosamáveisdoquea seacharemelesmesmos.Pormuitotempoelesdivertiramaminhavaidadeecomissonãometornarammaissensível.Nascidadelicada,eutemiaoamor.Sentiaquedificilmenteencontrariaumcoraçãotãoterno,tãoverdadeiroquantoomeu;equeamaiordesgraçaquepodeaconteceraumamulherracionaléadeterumapaixão,pormaisfelizmesmoqueelapossaser.Enquantotiveque ser indiferente, essas consideraçõesme fizerammal:mas finalmentesoubequeelassomentedetiveramomeucoraçãoporqueaindanãotinhamsabido tocá-lo e essa calma pela qual nos aplaudimos emnós émenos aobradarazãodoqueoefeitodoacaso.Ummomento,umúnicomomentobastaparaperturbaromeu coração!Ver, amar, adorarmesmo: sentir aomesmotempoecomumaextremaviolênciaoqueoamortemdemaisdoceedeimpulsosmaiscruéis;ficarentregueàesperançamaislisonjeira,recairdali nas incertezasmais cruéis: tudo isso foi obra de um olhar e de umminuto. Espantada, confusa mesmo com estado tão novo para a minhaalma, devorada por desejos que até então me eram desconhecidos,sentindo a necessidade de desvendar a sua causa, temendo conhecê-la;absorvidanessadoceemoção,essedivino langorquesurpreendera todosos meus sentimentos, não ousava me ajudar com a minha razão paradestruir impulsos, que, por mais confusos, por mais inexplicáveis quefossem para mim, já me faziam gozar dessa felicidade que não se podedefinir, seja quando o sentimos ou quando não o sentimos mais. Vifinalmentequeestavaamando.Qualquerpoderqueesseimpulsojátomarasobre mim, eu tentava combatê-lo. As lições do dever, o temor de meperdernomundo,suspiros, lágrimas,remorsos, tudofoi inútilou,melhor

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dizendo, tudo aumentava ainda esse sentimento cruel pelo qual estavatiranizada. Ah, Nasses! qual não foi o meu prazer quando nos cortejosrespeitosos, embora solícitos daquele que eu adorava, soube que eraamada!Queperturbação!Quearroubos!Comquejeito,queconsideraçõesele me comunicava a sua paixão! Que dor de ser obrigada a reprimir aminha!Comosoisfeliz,Nasses,empoder,aoprimeiroimpulsopeloqualavossa alma se agita, comunicá-lo ao ente amado que o causa, em nãoconhecer essa dissimulação tão necessária para conservarmos a vossaestima,mas tãopenosaparaumcoração terno!Quantasvezes,ouvindo-osuspirar juntoamim,eususpiravadedorpornãoousar fazê-loparaele!Quando os seus olhos se ligavam ternamente aos meus, como eu aliencontravaessaexpressãodoceelânguida,comofinalmentealiencontravaoamormesmo;ah!comonessesinstantesquemecolocavamtãolongedemim, tinha eu a força de me esquivar a essa volúpia que me arrastava!Finalmente, ele falou. Nasses! ignorais o prazer que dá essa terna, essaencantadoraconfissão!Nãodizemquevosamamsenãodepoisdevosterfeitodesejarissoealgumasvezesportempodemais;senãodepoisdevosfazer dizermil vezes que amais;mas ver um amante tímido, um amanteadorado, mas que não conhece a sua felicidade, compenetrado desentimento,detemor,viraosvossospés,vosdeclarartudooquesenteporvós;faltar-lhemesmoexpressões,querendovoscomunicarisso;tremendotantopelaemoçãoqueoamor lhedáquantopelo temorqueelenãosejaconcedido; voar na frente de suas palavras, repeti-las para si bem baixo,gravá-las no coração; respondendo-lhe que não se acredita nele, fazerinternamenteumcrimedasuamentira;exagerarmesmoparasioqueelevosdiz;acrescentaratodooamorqueelevosmostra,oquesentisporele,Nasses! acreditai emmim,de todosos espetáculos, de todososprazeres,estesdosquaisvosfalosãocertamenteosmaisdoces.

–Seavaidadebastaparavos tornaragradáveloespetáculoquemedescreveis tão vivamente – respondeu Nasses –, concebo que, quando oamor ali mistura o interesse do coração, não existe para vós espetáculomaissatisfatório.Masenfimelefalou,esseamantetãoternamenteamado.Vósrespondestes?

–Descreveisomeuembaraço–replicouela–;combatidapeloamorepela virtude, se a última não venceu, pelo menos ela me serviu paradissimular a outra, mas não foi absolutamente tanto quanto desejava.Entreguepormuitotempoaosseusdiscursos,aminhaemoçãodescobriuosegredodomeucoraçãoe,nãoacreditandoresponder-lhesenãofriamente,aminhabocaeosmeusolhoslhedisserammilvezesqueaminhaternura

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seigualavaàsua.– É uma infelicidade que aconteceu a outros – respondeu friamente

Nasses.–Poisbem!Quemeraessehomemtãoperigosoque,vê-loeamá-lo,apesardovossoorgulhonatural,nãopassaramdeumamesmacoisa?

–Oquevosimportaoseunome?–perguntouela.–Eunãovosdisseoquequeríeissaber?

–Aindanão–replicouele–,evósmesmasentisqueaconfidêncianãoestácompleta.

–Poisbem–respondeuela–,eraorajáAmagi.–Amagi!–exclamouele.–Quetempoentãotomastesparatê-lo?Eleé

meu amigo, nada me esconde e sei que, desde que está na sociedade,somenteamouverdadeiramenteCanzade.Amagi!–repetiuele.–Masnãoestaríeisenganada?

– Certamente – exclamou ela por sua vez – aqui está uma perguntasingular;elaéúnica.

–De formaalguma– retomouele –, vereis que ela émuito simples.Amagimedisseque,apesardasuaextrematernuraporCanzadeeopoucodesejoquetinhaemfalharcomela,algumasvezeselesedivertiraemoutrolugar, porque existem mulheres que se insinuam de forma tão poucorespeitosa e que somos tão pretensiosos, que o desprezo que elas nosinspiram não nos impede de lhes sermos agradecidos, pelo menos nomomento,peloqueelas fazempornós.Falando-medas infidelidadesquefizera aCanzade, confessou-mequeele se censuravapor elas, tantomaisque, entre asmulheres que algumas vezes o haviam tirado dela, ele nãoencontrara uma quemerecesse estima e apego e que não fosse para ele,somente por transtorno da cabeça, o que ele fora bastante ridículo para,algumas vezes, atribuir a um sentimento tão vivo que ele lhes fizeraesquecer todas as composturas. Não sois daquelas mulheres, vós?Consequentemente,devoacreditarqueelenãovosamou.

–Estaisvendoqueelenãovosdiztudo–respondeuela–,poiselemeamoumaisdetrêsanos,comtodooardorpossível.

– Se ele nãome disse, não é porque quisesseme fazer ummistériodisso,masque,aparentemente,elenãoselembroudemedizer.Fostesvósquecometestesumainfidelidadecomele?

– Fareis pormuito tempo esse tipo de indagações? – perguntou-lheela.

–Peço-vosdesculpas– retomouele–,mas sois tãopouco feitaparaser abandonada, que ela não deve vos surpreender. Ele vos deixou,portanto?Depoisdele,quemvosconquistou?

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–Ninguém – respondeu ela comum ar simples. – Pormuito tempoentregue à dor de tê-lo perdido, eu me gabava de não mais poder sersensível,masMazulhimapareceuenãomantiveaminhapalavra.

– PorDeus! – exclamou ele. – Asmulheres são bem infelizes e bemcruelmenteexpostasàcalúnia!

– Isso é muito verdade – disse ela –, mas a propósito do que voslembraisdissoagora?

–Avossopropósito–recomeçouele–;aquem,poiséprecisodizê-lo,faz-se a injustiça de dar um pouco mais de aventuras do que vejo quetivestes.

–Oh! – respondeuela. – Issonãomeaborrecenemme surpreende.Pormenosqueumamulherdêmedo,não se imaginaabsolutamentequeela sejamais sensíveldoque serianecessário; e emgeral sãooshomensque elamenos quis escutar quemais o público lhe dá;mas, de qualquerforma,issonãomeimporta.Nãoseriaportantopossívelvosobrigarafalardeoutrascoisas?

– Não é verdade, portanto, que tivestes todos os amantes que vosatribuíram?–perguntou-lheaindaele.

Zulicanãorespondeuaessanovaimpertinênciaanãosersacudindoosombros.

–Nãovos zangueis comoquevosdigo– continuouele–, se fôsseismenos amável, eu acreditariamais facilmente que não diminuis nada devossahistória.

–Perdoai-me–respondeuelaasperamente–,tiveaterrainteira.–Enfim–retomouele–,eisoquemedisseram.Asvossasorigenssão

duvidosas; sabe-se entretanto que no melhor de vossa juventude,apaixonadapelostalentosepersuadidadequeomelhormeioparaadquiri-los e aperfeiçoá-los é o de interessar vivamente por nós aqueles que opossuem,nãodesdenhastesosvossosmestresequeéoquevosfazcantarcomtantogostoedançarcomtantagraça.

–Ah!SantoDeus!Quehorror!–exclamouZulica.–Tendesrazãodeprotestarquantoa isso,Madame–respondeuele

friamente –, pois, de fato, isso é horrível. Por mim, não vos condeno epoderiamesmo vos estimar o bastante pelo fato de que, numa idade emqueasmulheresqueumdiadevemseromenosreservadas,têmtodosospreconceitosimagináveis,tivestesbastanteforçadeespíritoparasacrificaros que a vossa origem e educação deviamvos ter dado.Nomomento devossaentradanasociedade,convencidadequealinãosepoderiasermuitofalsa, escondestes sobumar recatadoe frioa tendênciaquevos levaaos

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prazeres.Tendonascidopoucoternamasexcessivamentecuriosa,todososhomens que vistes então aguçaram a vossa curiosidade e, tanto quantopudestes, vós os conhecestes a fundo. Quando se tem tanto espírito eperspicácia quanto vós, o estudo de um homem não é uma coisa muitodifícileouvidizerqueoquevosligastesmaisemobservarnãovosocupoupor oitodias. Essasdiversões filosóficas explodiram.Atribuíramummauaspecto às vossas intenções; sem renunciar à vossa curiosidade, vós amoderastes, contudo não foi por muito tempo. Não estando as vossasocupações particulares em conformidade com aqueles que eramtestemunhas delas, pensastes dever vos desviar dos seus olhos;renunciastes à solidão e fostes transportarparaomundo essa inclinaçãonatural que vos levava a conhecer tudo. A princesa Sahenb tinha entãoIskander como amante; quisestes julgar por vós mesma se era possívelconfiarnoseugostoeotomastesdela.Ela jamaisvosperdooueaindasequeixamesmodissotodososdias.

– Ah, justiça divina! – exclamou Zulica, enfurecida. – Existem nomundocalúniasmaisabomináveis?

– Asseguraram-me – continuou ele com o mesmo sangue-frio quecomeçara–quelogodeixastesIskanderparatomarAkébar-Mirzaaquem(porque,pormaispríncipequefosse,elevosaborrecia)associastesovizirAtamulkeoemirNoureddin;queopríncipe, jamaisvosentretendoanãoser com o estado de sua saúde (que conhecíeis, por ser ainda maisdeplorável do que ele dizia), o vizir estando ocupado demais com osnegócios do Estado para estar com os vossos encantos tanto quantodeveria, e jamais vos divertindo salvo com os detalhes de sua profundapolítica,eoemircomasgrandesnaçõescomqueguerreara,enjoastesdostrês personagens mais importantes do que amáveis. Ousam acrescentarque,sabendooquantoéperigosofazerinimigosnaCorte,vósosdeixastesignorarasvossasdisposiçõesquantoaeleseque,forçadaatratá-losbem,comtodoomistériodomundovosjogastesnosbraçosdojovemVelidque,menos importante, menos profundo, menos guerreiro porém maisagradável do que os seus rivais, sozinho, durante algum tempo, voscompensariadotédioqueelesvoscausavam.Diz-seaindaque,vendoVelidmenos apaixonado e necessitando, para despertar o seu ardor, deixá-loinquieto, tomastes Jemla; que Velid, aborrecido em ver um rival e vosespiandocuidadosamente,finalmentedescobriraostrêsoutrosequetodoesse caso, até ali judiciosamente conduzido, para vós acabara com oescândalomais injurioso e vos dera asmortificaçõesmais cruéis emaispúblicas.

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–Ah!Issoédemais!–interrompeuZulicalevantando-se.–Evou...–Aindaummomento,porfavor,Madame!–disseNasses,detendo-a.–

Levaramaimpudênciaatémedizeremque,vendoqueoscasosacertadosnão corriam bem para vós, odiando o amor, mas ainda se atendo aosprazeres, somente vos permitistes diversões passageiras, bastanteagradáveis para preencher os vossos momentos, mas jamaissuficientementefortesparainteressarovossocoração.Espéciedefilosofiaque, para dizê-lo de passagem, não deixou de fazer algum progresso nonossoséculoedaqualseriafácildemonstrarasabedoriaeautilidade,sefosseaquiaocasiãodefazê-lo.

No fimdesse relato, Zulica sepôs a chorarde ira eNasses, fingindonãoperceber,continuouassim:

– Compreendeis bem que sou muito justo convosco, que agora vosconheçodemaisparaacreditarabsolutamenteemtudooquemedisseram.

–Soisextremamentebenevolente!–respondeuela.– Não – retomou ele modestamente –, o que faço por vós é muito

simples e para saber a opinião que devo ter disso tenho somente queconsultaramaneirapelaqualvosentregastesaosmeusdesejos;mas,nãoacreditandoemtudo,tambémsentisbemqueépossívelqueeunãocreiaemnada.

–Porque,então?–perguntou-lheela.–Tudooquevosdisseramétãoprovávelquenãopossoconceberquetenhaispormimumaconsideraçãotãodescabida.

–Acredito,portanto,somente...–retomouele.–Ah!Acreditaiemtudo,Senhor–interrompeuela–,acreditaiemtudo

ejamaisvoltemosanosver!–Seomerecêsseis–respondeuele–,éumesforçodoqualnãoseria

capaz!Julgaise,acreditandoquesoisinocente,eupoderiaprejudicar-meosuficiente, ser suficientemente bárbaro para fazer o que pareceis meaconselhar.

– Não, não, Senhor! – replicou ela. – Acreditais em tudo o que vosdisseram,acreditaisnissoeparamimnãovaleapenavosdesiludir.

– Assim, portanto – retomou ele –, nos indisporemos! Uma mesmanoite terá visto nascer e terminar o vosso ardor, pois não falo domeu –acrescentouelesuspirando–,somentesintodemaisqueeleseráeterno!

–Sim,senhor–respondeuZulica–,sim,nósnosindisporemoseparasempre!

–Parasempre!–exclamouele.–Istoquerdizerquemeabandonaisedeformatãorepentinaquantometomastes?Palavradehonra,éumacoisa

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que eunão achavapossível.Mas como essa constância tão prodigiosa daqual tendes a presunção, essa alma tão delicada quanto ao sentimentopodemseacomodarcomumprocedimentodesses?Queviolênciacruelnãovosfareisparamanteravossapalavracomigo?Comovos lamento.Afinaldecontas,nadaémaisditosoparamim,umavezquedevíeismudar,doquevos ver mudar tão prontamente. Uma longa intimidade convosco teriatornadoa vossa inconstânciamuitodolorosaparamim.Entretantoaindamegabopelo fatodeque fareisasvossas reflexõeseque, se forverdadeque o vosso gosto por mim se extinguiu completamente, pelo menostemereis que eu possa dizer que, cumulado pelas vossas bondadesmaisparticulares, vós, tendo todas as razões do mundo para me louvar, nãopudestes obter a vossa constância somente por 24 horas. Depois daspequenas liberdades que me permitistes, acharão ruim o vossoprocedimento,estouvosavisando.Não–continuouele,avançandoemsuadireção e apertando-a ternamente em seus braços – não, não fareis essainjustiçaaoamantemaisapaixonadodomundo!

– Quem? Eu! – exclamou ela, debatendo-se violentamente em seusbraços.–Eu!Aindasereivossa?

AessepropósitoelaacrescentoutudooquepodiamarcarvivamenteparaNassesasua indignaçãocontraele.Foiemvãoqueelequis triunfarsobreosseusesforços;oseudespeitoservindo-amelhordoquehaviafeitoessaseveravirtudepelaqualelacombatiadeformatãodesproposital,elefoi obrigado a disputar com ela até favores tão pouco importantes queainda ele não acreditava ter que lhe pedir. Ela continuava a se defenderdele,quandoumacarruagem,queelesouviramparar,suspendeuoataqueearesistência.

– Aí está, sem dúvida, o meu pessoal, senhor – disse ela –, e estoupartindo.Nãovosapressoarefletirsobreoquesepassouentrenós, issovosseráinútil;quantomaisseécapazdeterummauprocedimento,menosseéfeitoparasenti-lo!

Com essas palavras, ela se levantou e ia sair quando o que direiamanhãaVossaMajestadeaforçouapermanecerali.

–Porqueamanhã?–disseoSultão.–Pensaisquenãomediríeisissohoje,seeutivesseessafantasia?Felizmenteparavós,sobretudoissonãotenhonenhumacuriosidadee,ouamanhãounumoutrodia,tudoissomeéindiferente.

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CAPÍTULOXIX

Ah!Tantomelhor!

Depois do que se passou entre Zulica e Mazulhim, ela pouco deviaesperar revê-lo, contudo era ele que estava entrando. Ela recuou desurpresaaovê-loe,osprantossucedendooseuespanto,elasedeixoucairsobremim.Elefingiunãonotaroestadoemqueasuapresençaadeixavaeavançandoemsuadireçãocomoarlivre:

– Estou vindo, Rainha – disse ele –, vos pedir perdão. Umencadeamento de negócios enfadonhos, horrorosos, desesperantes meimpediu de me curvar às vossas ordens... O quê! Estais chorando? Ah,Nasses! isso não está bem, abusastes de minha facilidade, de minhaamizade, de minha confiança!... Mas, mas, na verdade, não estouentendendo nada, eu. Estais zangada? É que estou furioso com isso,desolado, jamais me consolarei. Isto constitui uma aventura única,surpreendente, raríssima!...Enfim,nãosepodesaberoquesignifica tudoisso?Oravamos,falem!Nãodizeisnada.Ah,estouentendendooqueé,souacausainocentedisso.Acreditaisquesouinfiel,sim,acreditaisnisso.Comoconheceispoucoomeucoração!Estouvoltandoparavós,milvezes,estoudizendo:mil vezes,mais terno,mais apaixonado,mais encantado do quenunca!

Quanto mais Mazulhim fingia ternura, mais Zulica, desconcertada,abatida, se obstinava no silêncio. Nasses que,maliciosamente, gozava desuaconfusão,temiaque,serespondesseaMazulhim,elaaproveitasseessetempo para se recuperar, e esperava impacientemente que ela própriarespondesse. Foi em vão. Por algum tempo, todos os três permaneceramemsilêncio.

– Por favor, esclarecei-me esse mistério! – disse enfim Mazulhim aNasses.–ÉdemimoudevósqueMadametemqueixas?Seráqueelanãomeamamais?Elavosama?

–Deformaalguma!–recomeçouNasses.–Soueu,jáqueéprecisovosdizer, que a infiel julga conveniente não amarmais. Estamos indispostosumcomooutro.

– Ah! Pérfida! – disse Mazulhim. – Depois dos juramentos que me

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fizestesdesempreserfielamim...Quehorror!–Somentecomumadificuldadeextremaconsegui consolarMadame

da vossaperda – respondeuNasses. –Éuma justiçaque lhedevo eparafazer omeu dever até o fim, pormais que istome custe, vou vos deixarexperimentar,sepodereis,commaisfacilidade,consolá-ladaminhaperda.Adeus, Madame! – prosseguiu ele, dirigindo-se a Zulica. – A minhafelicidade não durou muito tempo, mas conheço demais a bondade devossocoraçãoparanãoesperarqueumdiamedevolvereisoqueavossaprevenção hojeme faz perder. Caso lhe agrade lembrar-se demim, estaicertadequesempreestareiàsvossasordens!

QuandoNasses partiu, Zulica se levantou bruscamente e, sem olharparaMazulhim,quissairtambém.

–Não,Madame–disseelecomarrespeitoso–,nãopossodecidirvosdeixarsemmeter justificado.Talveztivésseistambémalgumaspequenasdesculpas a me pedir e, seja como for, parece-me indecente que nosseparemos sem nos darmos uma explicação. Continuareis a manter osilêncio? Não vos lembrais mais que me prometestes uma constânciaeterna?

–Ah, senhor – respondeu ela chorando–, não acrescentai às vossasoutrasindignidadesademefalaraindadeumamorquejamaissentistes!

–Poisbem!– replicouele. –Eisasmulheres!Mesmonãoquerendo,elas nos fazem falta, gememos por elas, secamos, definhamos de dor equandosomentemerecemosserlamentados,quandovoltamos,cheiosdosmais ternos arroubos, para nos lançarmos aos pés de quem amamos,encontramo-nosabominados.Finalmente,seríeismenosinjustassefôsseismenos delicadas. Com as almas sensíveis jamais cometemos pequenoserros. Entretanto, eu vos agradeço por vossa cólera; sem ela talvez eutivesse ignorado a vida inteira o quantome amais e eumesmo teria vosamadomenos.Masdizei-me,portanto– acrescentouele, aproximando-sefamiliarmentedela–:estaisrealmentemuitozangada?

Zulicanãorespondeuaessaperguntasenãoolhandoparaelecomomáximodesprezo.

–Équeno fundo–continuouele–ser-me-ia fácilme justificar.Masclaro–acrescentouele,vendo-asacudirosombros–,muitofácil,nãoestoudizendo nada de exagerado! Pois, vejamos, quais são os meus errosconvosco?

–Deverdade!–exclamouela.–Admiroavossaimpudência.Fazer-mevir até aqui, não comparecer, por pois, impertinente, desprezívelmesmoquesejaesseprocedimento,soisfeitoparatê-lo,elenãomeespantounada;

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masacrescentaraeleaúltimaperfídia!Enviar-meaquiumdesconhecidoaquem explicais a minha fraqueza, quando devíeis escondê-la da terratoda!...

– Sim! Escondê-la! – interrompeu ele. – Como seria este um belomistério e de resto,muito útil! Pensais que um caso entre pessoas comonóspossaserignorado?Massuponhoque,contrariamenteàvossaprópriaexperiência, estivésseis bastante cega para acreditar que não diriam ovosso nome, em que (permiti-me perguntar isso) eu vos expus? O nossosegredonãoestámelhornasmãosdeumhomemdeumcertoníveldoquenas de um escravo? Tinha eumesmo então, para vos enviar, aquele quetem,emcomparaçãoamim,opormenordessestiposdecoisasenãoestavaeleaquinosesperando?Otempourgia.Escolhiparavosexplicaroquemeaconteciaaqueleamigoqueseiquetemmaiscostumes,Nasses,enfimque,alémdoscostumestemespírito,éohomemdasociedadeque,certamente,éoquemaismereceservistocomprazereaquem,ousodizê-lo,sedeveamaiorestimaeconsideração.Derestotomareialiberdadedevosdizerquenão estou vendo bem por que, depois dos agradecimentos que,generosamente,ocolocastesemsituaçãodevosfazer,vosqueixaisdaqueleque vos enviei. Entre nós, essa questão poderiamerecer esclarecimento;entretantonãoodareisanãoserquevosagradefazê-lo,pois,quesejaditosemvosaborrecer,nãosounemtãocuriosonemtãoincômodoquantovós.

–Quantaimpertinênciaefatuidade!–exclamouZulica.–Devagar,porfavor,Madame,comasexclamaçõesdessetipo!–disse

vivamente Mazulhim. – Exatamente como me vedes, existem mil coisascontraasquaiseutambémpoderiaprotestarevospeçoagentilezadenãome obrigar a fazer a minha desforra. Se quiserdes me dar a honra deacreditar em mim, falaremos amigavelmente. Talvez ganhareis tantoquanto eu nisso. Vejamos. A presença de Nasses primeiramente vosaborreceu,nãoduvidodisso,eoquetambémpoucoduvidoéque,paravoscolocar à vontade com ele, vós o cumulastes com todos os favores quetínheisabondadedemedestinar.

–Quandoissoaconteceria?–respondeuorgulhosamenteZulica.–Entendo–interrompeuele–,issoestáacontecendo!–Poisbem–retomouelacorajosamente–,sim,euoamei.–Nãoabusemosaquidaspalavras–replicouele–,vósnãooamastes

absolutamente,masissodánomesmo.Concordai,jáqueagoraoconheceisumpouco,queéumhomemdeumraromérito.

– O que sei dele – recomeçou ela friamente – é que se ele épretensioso, insolente e desrespeitoso, pelo menos tem do que se fazer

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perdoarequeaquelequeousaassumirosmesmostonsafetadosteriamaisdeumarazãoparasermodesto!

–Pormaisdesproposital que seja esse epigrama– recomeçouele –,sinto maravilhosamente que ele se dirige a mim e, sem que isso tenhaimportância,admitovosdaropequenoconsolodemeouvirconfessarisso.Levarei mesmo as considerações muito mais longe e não me permitireiumajustificaçãocujapolideztalvezfosseferida.

–Comodizeispropósitosmiseráveis!–exclamouela,olhando-ocomumardepiedade.–Ecomootomzombeteiroelevianoconvémmalaumaespéciecomovós!

– Por mais que vos esforçeis, Madame – respondeu ele –, não meafastareinemdorespeitoquevosdevo,nemdoplanosobreoqualdecidivosmanter.Nãoficareiaborrecidoemvosoferecer,naminhapessoa,ummodelo de moderação; talvez, vendo-me não me desmentir em nada,ficareistentadaameimitar.

– Vós a exercereis, portanto, inteiramente sozinho, essa moderaçãotãovangloriada–recomeçouelalevantando-se–,poisvou...

–Não,porfavor,Madame–disseele,detendo-a–,nãomedeixareisdeforma alguma!Não é assim que pessoas como nós devem terminar. Pelavossa honra, pela minha, devemos mutuamente nos prestar a umesclarecimento e evitar um escândalo que seriamuitomais temível paravósdoqueparamim.Numapalavra,Zulica,vósmeescutareis!

SejaporqueZulicasentiuodanoqueessaaventurapodialhecausarseelaseespalhasseeque,refletindobem,acreditounãodeveresquecernadapara engajarMazulhim a silenciar; seja porque, desprezível demais paraficar pormuito tempo zangada pelo fato de a desprezarem, a sua cóleracomeçouaseacalmar,elasejogounosofá,massemolharparaMazulhimque, pouco tocado por essa marca de despeito, retomou assim o seudiscurso:

–ConcordaiscomofatodequetomastesNasses.Umoutrovosdiriaqueumamulhernãoseengajanumcasonovoanãoserquandooquetinhaestivesseinteiramenterompidoe,sobreisso,elevossobrecarregariacomtodo o desprezo que, aparentemente, essa conduta parecemerecer; paramim, que tenho bastante prática da sociedade para saber como isso foifeito,longedeficardescontenteconvosco,euvosamoaindamais.

–Contudo,nãoeraoefeitoqueeuqueriaproduzirnovossocoração!–respondeuela.

–Nãopodeissabernadadisso–replicouele–,naperturbaçãoemqueestáveis, seriapossívelquedeslindásseisosmotivosquevos faziamagir?

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Acreditáveis que eu era inconstante, apressavam-na em vos vingar; setivésseismeamadomenos,nãooteríeisfeitoeNassesteriatentadoemvãovoslevartãolongequantoofez.Acreditai-me,cabesomenteàpaixãomaisforteinspiraressesimpulsosquenãodeixamparaasreflexõesotempooua liberdadedeagir.Nãopoderiamesurpreenderosuficientepelofatodeque Nasses tenha sido bem pouco delicado para querer aproveitar domomento em que vos encontráveis ou bastante cego para não ver que,mesmo entre os seus braços, pertencíeis inteiramente a um outro e que,semovossoamorpormim,jamaisoteríeistornadofeliz.

–Oh,não!–respondeuela.–Elemeagradouecertamentecometiumainfidelidadeconvoscodentrodetodasasregras.

–Puravaidadedevossaparte–replicouele.–Nãoacreditareisnisso;nadaémenosverdadeiro.

– Como, ora – disse ela –, nada émenos verdadeiro? Acho bastantesingularquequeiraissabermelhordoqueeuoqueaconteceu.

–Entretantoeuoseitãobemquepoderiadizê-lo,palavraporpalavra,comoelesearranjouparavosseduzir–respondeuele.–Nassesvosachoubela, ele preferiu vos instruir sobre os desejos que lhe dáveis a mejustificar,eapostariamesmoque,longedevosfalarameufavor,ele...

–Nãohádúvidaquantoaisso–interrompeuela.–Nãovosdisse?–continuouele.–Quemiseráveltriunfoeleobteveali

ecomoeleépoucolisonjeiro!Finalmente,existempessoasaquemsedeveperdoar esses pequenos estratagemas: elas têm necessidade disso paraagradar.

–Oquê! – disse ela comespanto. –Ousaríeisme sustentar quenãosoisabsolutamenteinfiel?

– Certamente – retomou ele – não o era e é isso que torna a vossaaventuratãodivertida.

–Nãoéreisculpado?–repetiuela.–Oqueaconteceuentãoconvosco?–Somentesaí–replicouele–dacasadoImperadornahoraemque

mevisteschegaraquieZadismesmo,comquem,entreparênteses,se fezmilbrincadeirassobreofatodequeontemesteveperdidoodiatodo,nãomedeixouabsolutamente;elepodevosdizerisso.

Ao nome de Zadis, Zulica tremeu e, enrubescendo, olhou paraMazulhimque,semparecernotarnenhumdosseusmovimentos,continuouassim:

–Emboracontinueaterporvósumgostomuitovivo,imaginaisbemquenãoviveremosmaisjuntosnessaintimidadequemeprometestes.Nãoqueeunãovosperdoetudo;masumarelaçãoíntimanãomaisnosconvém;

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de resto, nos ligamos mais por fantasia do que por amor; não eraabsolutamente o sentimento que nos unia; o que está acontecendo nãodevenemvosmortificar,nemmedesagradar,nemnosimpedirdecederaocapricho se, sem querer recomeçarmos, às vezes nos acharmos sensíveisumaooutro.

–Eumevanglorio– respondeueladesdenhosamente–pelo fatodeque, fazendo esse arranjo, sintais todo o seu ridículo e que não espereisfazer-meconsentirnisso.

–Perdoai-me– retomouele –, soismuito racionalparanão sentiroquedevemosderespeitoedeconsideraçãoaosseusantigosamigos;aliás,não ignorais que atualmente é um costume estabelecido formar tantoscasosquantopossíveleconcedertudoaosseusnovosconhecimentos,semcom isso suprimir nada dos antigos. Achareis bom que as coisas searranjemcomotenhoahonradevosdizereencaroestepontocomomuitoacertadoentrenós.

Aessatransaçãovergonhosa,Zulica,muitodignaparaqueseafizessecom ela, ofendeu-se entretanto pelo fato de Mazulhim ousar acreditá-lacapazdaquiloqueelafaziatodososdiasequistomá-lacomelenumtomdedignidadeque,tornando-asomentemaisdesprezível,somenteoencorajoumaisanãoterconsideraçãoporela.

–Senão fosse tão tarde–disseele–, euvosprovariaque, longedeterdesqueixasdemim,tendesmilagradecimentosamefazer.NãoignoroqueZadispassouontememvossacasaesozinhoconvosco,tantoodiatodocomoumagrandepartedanoite.Maiscuriosodoqueciumento,ecertodequefaltaríeiscomapalavraquemetínheisdadodejamaisrevê-lo,mandeiobservarvocêsdois...

– Não havia necessidade – irrompeu ela – de que tivésseis essetrabalho.Absolutamente,nãopretendimeescondereomotivoquemefezreceberZadis,ontememcasa,jamaispodesenãomehonrar.

–Ah!Ah!–disseele,comumarsurpreso.–Issoémuitoparticular!–O vosso ar debochado emnada impedirá que eudiga a verdade –

replicou ela –, ainda não rompera absolutamente com ele e era para lheanunciarqueeunãooveriajamais...

–Quepassastes–interrompeuele–odiatodoeanoitetodacomele.Não vos contradigo quanto aomotivo, pormais extraordinário que seja;poisenfimconfessareisqueéraroumamulhersetrancar24horascomumhomem, quando ela somente quer se indispor com ele. Mas como umacoisa, por ser inédita, pode não deixar de ser sensata, concebo, eu quebuscounicamentevosjustificar,queZadis,recebendodevósaconfirmação

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da sua desgraça, pensou por issomorrer de desespero aos vossos pés eque,tocadapeloabatimentoemqueavossainconstânciaolançava,vósoconsolastescomtodaahumanidadedequesoiscapaz,semqueosvossoscuidados comelenada tirassemda fidelidadequemehavíeis jurado.Umhomemdesesperadoépoucoracional,tem-sedificuldadeemtrazê-loparauma atitude sensata; é preciso dizer, voltar a dizer, revirar mil vezes amesma coisa; suportar lágrimas, arrependimentos, censuras, fúria: nadatomamais tempo. De resto, eu vos direi que não deveis lamentar o queempregastes para tentar acalmar Zadis: hoje ele estava com uma alegriaencantadora. Zadis alegre! Isso vos parece concebível? Se, como evitareibem duvidar disso,me dizeis a verdade, ou os vossos conselhos tiverammuitopodersobreeleou,parasentirtãopoucoavossafaltacomoofaz,eraprecisoquevosamassedeformabemfraca.Seumhonraovossoespírito,ooutroofazmuitopoucoaosvossosencantos;maseunãovosaflijo,sabeisaoquevosaterquantoaisso.Emtodocaso,devíeislherecomendarmuitoparaparecer triste, aomenospelo tempoquepodíeis ternecessidadedemeenganar.

Com essas palavras, Zulica quis tentar se justificar, mas Mazulhim,interrompendo-a:

–Tudooquepoderíeismedizer,Madame–disse ele –, seria inútil.Poupai-vosumajustificaçãoquenãoestouvospedindo,nemqueroreceberequevoscustaria,semmesatisfazer.Adeus–acrescentou, levantando-se–,étardeejádevíamosternosseparado.Ah,apropósito,oquefareiscomNasses?

Comessapergunta,Zulicapareceusurpresa.–Oqueestouvosperguntando–prosseguiuele–parece-mesensato.

Vocês se separarammal eme parece que, quanto a isto, faltastes com aprudência.Se fizerdesbem,voltareisavê-lo:acreditaiemmim,evitaiumescândalo.Nãovosdevesermaisdifícilficarcomele,odiando-o,doqueofoitomá-losemamor.Sevosobstinardesanãovoltaravê-lo,talvezelefaleeembora,certamente,nadasejatãosimplesquantooquefizestes,haveriapessoasbastante funestas,bastante injustasparavosconsiderarerradaepara fazer de uma coisa inteiramente comum a história mais singular emaisridícula.Nofundo,nãoéoquesedirádissoquedevevos inquietar;quandosetrazumcertonome,quesepertenceaumacertacategoria,umcasoamaisoumenosnãoéumacoisaaserolhadademuitoperto;maséquesedeveevitarfazerinimigos.Amanhãeuvosapresentareiaele.

–Eu?–exclamouela.–Voltareiavê-lo?–Masclaro!–respondeuele,apresentando-lheamãoparadescer.–

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Precisareis assumir isso. Se por acaso Zadis for bastante extraordinárioparaacharissoruim,contaicomigo;oubemseráforçadoavosdeixarou,nofim,seacostumaráanosvervoscortejarassiduamente.

Comessaspalavras,eleaindalheofereceuamãoe,vendoqueelaseobstinavaemrecusá-la:

– Quemiséria! – disse ele, tomando-lhe amãomesmo contra a suavontade.–Bancaisacriançaaumpontoinsuportável!

Entãoelessaíram.– Eles saíram! – exclamou o Sultão. – Ah! o termo bombástico! Na

minhaopinião,éomelhordevossahistória!Eelesnãovoltaram?–NãovolteimaisaverZulica–respondeuAmanzei–masaindapor

muitotempoviMazulhim.–Esempre–disseoSultão–,comosabeis...PorDeus!Eraummoço

raro!QuemulhereletevedepoisdeZulica?–Muitas que não valiammuitomais do que ela e algumas que não

mereciamtê-loecujodestinomedavapiedade.–Mas,apropósito–perguntouSchah-BahamàSultana–,nãoachastes

queMazulhimtratamuitomalessaZulica?– Eu a acho tão desprezível – replicou a Sultana – que gostaria, se

fossepossível,queeleativessepunidoaindamais!–Amimmepareceu–disseoSultão–queelaeramuitodocecomele;

issonãoestánanatureza.–Eeupensoocontrário–disseaSultana.–UmamulhercomoZulica

não tem nenhum recurso contra o desprezo e como a ignomínia da suacondutaaentregaaosinstultosmaiscruéis,abaixezadoseucarátereessavergonha interna pela qual, mesmo contra a sua vontade, ela se senteoprimida,nãolhedeixamaforçaderepeli-los.Aliás,sefosseverdadequeAmanzei exagerou a humilhação de Zulica, longe de censurá-lo, eu ofelicitaria. De qualquer modo, seria dar preceitos de vício descrevê-loditosoetriunfante.

– Oh, sim! – retomou o Sultão. – Isso é muito necessário! Masdeixemos isso. A discussãome torna irritado e não duvido nada quemeaborrecesse se falássemos por muito mais tempo. Quando deixastesMazulhim,ondefostes,Amanzei?

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CAPÍTULOXX

Divertimentosdaalma

PormaisprazeresqueencontrassenapequenacasadeMazulhim,ointeressedaminhaalmaforçou-meameretirare,persuadidodequenãoseria ali que encontraria a minha libertação, fui procurar qualquer casaondefosse,sepossível,maisfelizdoqueemtodasquejáhabitara.Depoisdeváriasandanças,quesomenteofereceramaosmeusolhoscoisasquejávira ou fatos pouco dignos de serem contados a VossaMajestade, entreinumvastopalácioquepertenciaaumdosmaiores senhoresdeAgra.Alivaguei por algum tempo; finalmente fixei meu domicílio num gabineteornado com uma pompa extrema e commuito gosto, apesar de que umparecesempreexcluirooutro.Tudoalirespiravaavolúpia:osornamentos,os móveis, os cheiros dos incensos, requintados, que ali se queimavaincessantemente, tudo a retraçava aos olhos, tudo a levava à alma. Essegabinete,enfim,poderiapassarpelotemplodalanguidez,pelaverdadeiramoradadosprazeres.

Uminstantedepoisquealimeinstalei,vientraradivindadeàqualeuiapertencer.Eraafilhadoomrahnacasadequemeuestava.Ajuventude,asgraças,abeleza,essenãoseiquê,queporsisóasvalorizaeque,maispoderoso, mais marcado do que elas mesmas, contudo jamais pode serdefinido, tudo o que existe de encantos e de adornos compunha a suafigura. A minha alma não pôde vê-la sem emoção, pelo seu aspecto elaprovoumil sensaçõesdeliciosasque eunão acreditava seremhábito seu.Destinado,àsvezes,atransportarumapessoatãobela,nãosomentedeixeide me preocupar com a minha sorte, mas comecei mesmo a temer serobrigadoacomeçarumanovavida.

–Ah,Brama–eumedizia–,qualéportantoafelicidadequepreparasparaaquelesqueteservirambem,umavezquepermitesqueasalmasquea tua justa ira reprovou gozem da visão de tantos atrativos? Vem –continuei com arrebatamento –, vem! imagem encantadora da divindade,vem acalmar uma alma inquieta, que já estaria confundida com a tua, seordenstãocruéisnãoadetivessemnasuaprisão!

Parece que nesse instante Brama acolheu favoravelmente os meus

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votos.Osolestavaentãonoseupontomaisalto,faziaumcalorexcessivo;Zeinis logo se apresentoupara gozardasdelíciasdo sono e, puxando elamesma as cortinas, deixou no gabinete somente essa penumbra tãofavorávelaosonoeaosprazeres,quenadaroubaaosolhareseacrescentaàs suas volúpias, que enfim torna o pudor menos tímido e lhe deixaconcedermaisaoamor.

Uma simples túnica de gaze e quase inteiramente aberta, logo foi aúnicavestimentadeZeinis;elasejogousobremimdeformaindolente.Oh,deuses! comque arroubos eu a recebi! Brama, fixando aminha alma emsofás,lhederaaliberdadedesecolocarondeelaquisesse;comqueprazernesseinstantefizusodessaliberdade!

EscolhicomcuidadoolugarondemelhorpodiaobservarosencantosdeZeinisemepusacontemplá-loscomoardordoamantemaisternoeaadmiração que o homemmais indiferente não poderia ter lhes recusado.Céus! quantas belezas se ofereceram aosmeu olhos! O sono, enfim, veiofecharessesolhosquemeinspiravamtantoamor.

Estava ocupado então em detalhar todos os encantos que aindamerestavamparaexaminareemvoltaraosquejápercorrera.EmboraZeinisdormissebastantetranquila,elaseviroualgumasvezesecadamovimentoque fazia, desarrumando a sua túnica, oferecia aos meus ávidos olharesbelezas novas. Tantos atrativos terminaram de perturbar a minha alma.Oprimidasobaquantidadeeaviolênciadosseusdesejos,porumtempotodas as suas faculdades ficaram suspensas. Eu queria formar uma ideia,eraemvão;sentiasomentequeestavaamandoe,sempreveroutemerasconsequênciasdeumapaixãotãofunesta,aelameabandoneiinteiramente.

–Objetodelicioso–exclameienfim–,não,nãopodesserumamortal.Tantosencantosnãosãodoseuquinhão.Acimamesmodosseresaéreos,nãoexistenenhumquenãoapagues.Ah!Digne-sereceberashomenagensdeumaalmaqueteadora!Evitapreferirumvilmortalaela!Zeinis!DivinaZeinis!Não,nãoexistenenhumquetemereça;não,Zeinis!poisnãoexisteabsolutamentenenhumquepossaseassemelharati!

Enquanto eu me ocupava de Zeinis com tanto ardor, ela fez ummovimentoesevirou.Aposiçãoemqueelaacabaradesecolocarmeerafavorável e, apesar daminha perturbação, pensei em aproveitá-la. Zeinisestavadeitadadelado,suacabeçaseinclinavasobreumaalmofadadosofáeasuabocaquaseatocava.ApesardorigordeBrama,eupodiaconcederalgumacoisaàviolênciadosmeudesejos;aminhaalmafoisecolocarsobreaalmofadae,tãopertodabocadeZeinis,quechegoufinalmenteasecolarinteirinhanela.

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Sem dúvida, existem para a alma delícias que o termo prazer nãoexprime,paraquemmesmoodevolúpiaaindanãoésuficientementeforte.Essaembriaguezdocee impetuosaemqueaminhaalmamergulhou,queocupoude forma tãodeliciosa todas as suas faculdades, essa embriagueznãopoderiaserdescrita.

Sem dúvida, a nossa alma obstruída pelos seu órgãos, obrigada amensurarosseusarrebatamentospelafraquezadeles,quandoseencontraaprisionadanumcorpo,nãopodeseentregaraelescomtantaforçaquantose estivesse despojada dele. Às vezes a sentimos mesmo num vivomovimento de prazer que, querendo forçar as barreiras que o corpo lheimpõe,espalha-seemtodaasuaprisão, levapara láadesordemeo fogoqueadevora,procuraemvãoumasaídae,abatidapelosesforçosquefez,cai num langorquedurante algum tempoparece tê-la aniquilado. Esta é,pelomenospeloqueacredito,acausadoesgotamentoemquenoslançaoexcessodavolúpia.

Esta é anossa sina, que anossa alma, sempre inquietanomeiodosmaioresprazeres,fiquereduzidaadesejaraindamaisprazerdoqueosqueencontra.Aminha,coladanabocadeZeinis,precipitadanasuafelicidade,procurou se proporcionar uma ainda maior. Ela tentou, mas em vão,deslizarinteiramenteemZeinis;detidaemsuaprisãopelasordenscruéisde Brama, todos os seus esforços não puderam livrá-la disso. Os seusímpetosredobrados,o seuardor,a fúriadosseusdesejosaparentementeaqueceram a alma de Zeinis. Assim que a minha alma se apercebeu daimpressãoquecausavanasua,redobrouosseusesforços.ElavagavacommaisvivacidadenoslábiosdeZeinis,lançava-secommaisrapidez,aelesseligavacommaisfogo.AdesordemquecomeçavaaseapoderardaalmadeZeinisaumentouaperturbaçãoeosprazeresdaminha.Zeinissuspirou,eususpirei; a sua boca formou algumas palavrasmal articuladas, um ruboragradável veio colorir o seu rosto. O devaneio mais lisonjeiro veiofinalmente alucinar os seus sentidos. Doces movimentos sucederam acalmanaqualelaestavamergulhada.

–Sim!Tumeamas!–exclamouelaternamente.Algumas palavras, interrompidas pelos mais ternos suspiros,

seguiram-seàquelas.–Duvidas–continuouela–quesejasamado?Menos livre ainda do que Zeinis, eu a ouvia arrebatado e não tinha

mais a forçade responder-lhe. Logoa suaalma, tão confundidaquantoaminha, abandonou-se inteiramente ao fogo que a devorava, um doceestremecimento...Céus!ComoZeinissetornoubela!

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Osmeus prazeres e os seus se dissiparam com o seu despertar. Dadoce ilusão que ocupara os seus sentidos nada mais restara do que umternolangoraoqualelaseentregoucomavolúpiaqueatornavabemdignadosprazeresqueacabaradegozar.Osseusolhares,ondeopróprioamorreinava, ainda estavam carregados do fogo que corria em suas veias.Quando ela pôde abrir os olhos, eles já haviam perdido a impressãovoluptuosaqueomeuamoreadesordemdosseussentidosneleshaviamposto,mas comoelesaindaeram tocantes!Qualomortal,devendoa si afelicidadedevê-losassim,nãoteriaexpiradopeloexcessodesuaternuraealegria?

– Zeinis! – exclamava eu, arrebatado. – Amável Zeinis! Sou eu queacabodetefazerfeliz:éàuniãodetuaalmaedaminhaquedevesosteusprazeres.Ah!quepossassempredevê-losaelae jamaisrespondersenãoaomeu ardor!Não, Zeinis, jamais pode existir alguémmais terno emaisfiel!Ah!sepudessesubtrairaminhaalmaaopoderdeBramaouqueelepudesse esquecê-la, eternamente ligada à tua, seria somentepor ti que asua imortalidade poderia se tornar uma felicidade para ela e que elaacreditariaperpetuaroseuser.Sealgumdiaeuteperder,almaqueadoro!Como,na imensidadedanaturezaouoprimidoporesses laçoscruéisdosquaisBramamecarregará,talvez,poderiaeutereencontrar?Ah!Brama!seoteupodersupremomearrancardeZeinis,pelomenosfaçacomque,pormaisdolorosaquemesejaasualembrança,eujamaisaperca!

Enquanto a minha alma falava tão ternamente a Zeinis, essa moçaencantadorapareciaseabandonaraomaisdocedevaneioeeucomeçavaamealarmarcomatranquilidadecomaqualelatomaraessesonhodoqualalgunsmomentosanteseuencontravatantacoisaparamefelicitar.

Zeinis–dizia-meeu–semdúvidaestáacostumadacomosprazeresque acaba de provar. Por pouco que tenham sido prejudiciais aos seussentidos, eles não surpreenderam absolutamente a sua imaginação: elasonha,masnãopareceseperguntaracausadosimpulsosqueaagitaram.Familiarizada com o que o amor tem de mais doce e de arroubos maisternos,somentelheretraceiestaideia.UmmortalmaisfelizjádesenvolveunocoraçãodeZeinisessegermedeternuraqueanaturezaalicolocou.Éasuaimagem,nãoomeuardor,queaexcitou;elaconheceoamor,faloudele;no meio da sua perturbação, ela parecia ocupada com o cuidado detranquilizarumamantequetalvez jáestivesseacostumadoacarregaremseusbraçososseus temoreseasua inquietação.Ah,Zeinis!Seéverdadequeestaisamando,como,noestadoemqueacóleradeBramamecolocou,aminhasinavaisetornarhorrível!

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A minha alma vagava em todas essas ideias, quando ouvi bateremsuavementenaporta.O rubordeZeinisouvindoessebarulho imprevistoaumentouosmeus temores.Elaajeitouprontamenteadesordememqueasdivagaçõesdosonoahaviamdeixadoe,maisemcondiçõesdeaparecer,ordenouqueentrassem.

Ah!–eumedissecomumadorextrema.–Talvezsejaumrivalquevaise oferecer aomeu olhar; se estiver feliz, que suplício! Se ficar feliz, queZeinissejacomoeuasuponhoalgumasvezesequesejaaelaquedevaaminha libertação, que golpe horroroso para mim se for forçado a meseparardeladepoisdossentimentosqueelameinspirou!

Embora, pelo conhecimento que tinha dos costumes de Agra, eudevesse estar tranqulizado contra o temor de deixar Zeinis e que fossebastanteverossímilquecomaidadedeaproximadamentequinzeanos,queelapareciater,elanãotivessetudooqueBramapedisseparamedevolveraumaoutravida,podiasertambémqueeutivessetudoatemerdelaporesse lado e, por mais cruel que fosse para mim ser testemunha dasbondadesqueela teriaparacomomeurival,preferiaessesuplícioaodeperdê-la.

A uma ordem de Zeinis, um jovem hindu, com a mais brilhanteaparência, entrara no gabinete. Quanto mais ele me pareceu digno deagradar,maisexcitouomeuódio;esteredobroupeloarcomqueZeinisorecebeu.Aperturbação,oamoreo temorseexprimiramalternadamenteno seu rosto; ela olhou para ele algum tempo, antes de lhe falar. Elemepareceu tão agitado quanto ela; mas, pelo seu jeito tímido e respeitoso,pensei que, se ele fosse amado, ainda não o agraciavam com favores.Apesar da suaperturbação e da sua extrema juventude (pois ele nãomeparecianadamaisvelhoqueZeinis),davaaimpressãodenãoestarnasuaprimeira paixão e eu começava a esperar que, dessa aventura, somentetivesseodesgostoquemelhoreupodiasuportar.

–Ah,Feleas!–disseZeiniscomemoção.–Oquevindesprocuraraqui?–Vós, queeuesperavaaqui encontrar – respondeuele, lançando-se

aos seupés –, vós, semquemnãoposso viver e queontemquisestesmeprometerquemeveríeissemtestemunhas.

–Ah!Nãoesperai–retomouelavivamente–queeucumpraapalavra!Saiamos,nãoqueromaisficarpormuitotemponestegabinete.

–Zeinis–replicouele–,vósmedesejaisafelicidadedeficarsozinhoum momento convosco e será que vos arrependeis tão depressa doprimeirofavorquemeconcedeis?

–Mas–respondeuelacomumjeitoembaraçado–nãopossoeuvos

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falaremoutrolugardiferentedesteesemeamásseis,vosobstinaríeisamepedirumacoisapelaqualtenhotantarepugnância?

Feleas,semresponder,segurou-lheamãoeabeijoucomtodooardordo qual eu teria sido capaz. Zeinis olhava languidamente para ele,suspirava, ainda comovida com esse sonho que lhe descrevera o seuamantetãoinsistenteenoqualelaforatãofraca:dispostaaindamaisparaoamorpelasimpressõesquedosonholherestaram,cadavezqueosseusolhos se voltavam para Feleas, eles se tornavam mais ternos einsensivelmenterepresentavamumpoucodessavolúpiaqueomeuamornelespuseraalgunsmomentosantes.

ApesardapoucaexperiênciadeFeleas,asua ternura,queo tornavaatento a todos osmovimentos de Zeinis, permitia-lhe notá-los bem paraquenãopudesseduvidardequeelaoviacomprazer.Zeinis,aliás,simplesesemarte,somenteporpudorescondendodeFeleasoestadoemqueasuapresença a colocava, acreditando ocultar-lhe muito da perturbação pelaqual estava agitada,mostrava-a por inteiro. Feleas não sabia o suficientesobreissoparatriunfarsobreumamulherprovocante,cujafalsavirtudeeosaresdecentesoteriamassustado,maseleerasomenteperigosodemaisparaZeinisque,premidapeloseuamor,ignorava,mesmotemendoceder,amaneirapelaqualpoderiatersedefendido.

PormaisprazerquetivesseaoverFeleasajoelhadodiantedesi,elalhe pediu para se levantar. Longe de obedecê-la, ele apertava os seusjoelhoscomumaexpressãotãoternaecomarroubostãovivosqueZeinissuspiroucomisso.

–Ah!Feleas!–disseelacomemoção.–Saiamosdaqui,euvossuplico!–Continuais ame temer? –perguntou ele ternamente. –Ah! Zeinis!

Comoomeuamorvostocapouco!Oquepodeistemerdeumamantequevosadora,quequaseaonascerficousubmetidoaosvossosencantoseque,desde então, unicamente tocadopor eles, nãoquis viver senãopara vós?Zeinis!–acrescentouelederramandolágrimas.–Vedeoestadoaoqualmereduzis!

Comessaspalavras,levantouparaelaosseusolhoscheiosdeprantos;elaofixouporalgumtempocomoolharenternecidoe,cedendofinalmenteaosarroubosqueoamoreadordeFeleaslhecausavam:

–Ah!cruel!–disseelacomumavozabafadapelosprantosquetentavaconter.–Seráquemereciascensurasquemefazeisequeprovaspossoeuvos dar daminha ternura, se depois de todas as que recebestes, quereisaindaduvidardelas?

– Se me amásseis – respondeu ele –, não vos esqueceríeis comigo

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nessasolidãoe,longedequerersairdela,teríesalgumoutrotemorsenãoodenosviremperturbar?

–Aidemim!–retomouelaingenuamente.–Quemvosdissequetenhooutrostemores?

Com essas palavras, Feleas, deixando bruscamente os seus joelhos,correuatéaportaeafechou.Aovoltar,encontrouZeinisque,adivinhandooqueele ia fazer, levantara-separa impedi-lo.Elea tomouentreos seusbraçose,apesardaresistênciaqueelalheopunha,voltouacolocá-lasobremimealisesentoujuntodela.

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ÚLTIMOCAPÍTULO

NãoseiseZeinisimaginouquequandoumaportaéfechadaéinútilsedefender ou se, temendomenos ser surpreendida, ela mesma teve maistemor de simesma;mas,mal Feleas ficou junto dela que, enrubescendomenospeloqueele faziadoquepeloqueela apreendiaqueelequisessefazer,antesmesmoquelhepedissealgumacoisa,comumavoztrêmulaecom um jeito confuso, ela lhe suplicou para ser gentil em não lhe pedirnada.O tomdeZeinis eramais ternodoque imponenteenãoaborreceunemconteveFeleas.Deitadojuntodela,eleaapertavaemseusbraçoscomtanta fúria que Zeinis, começando a saber o quanto devia temê-lo, sempodercontrolarisso,compartilhoudosseusarroubos.

Pormaisemocionadaqueestivesse,elatentouselivrardosbraçosdeFeleas, mas com tanta vontade de ali permanecer que ele não precisavausardeesforçosmuitograndesparatornarosdelainúteis.Elesseolharamporalgumtempo,semnadadizer,masZeinis,sentindoasuaperturbaçãoaumentar e temendo enfim não poder triunfar sobre ela, rogou, masdocemente,paraqueFeleastivesseagentilezadedeixá-la.

–Jamaistereisavontade,portanto,demefazerfeliz?–perguntouele.–Ah!–respondeuelacomumdesatinoqueaindanãolheperdoei.–

Soismaisdoquefelizeantesdevirdesoéreismuitomais!Quanto mais essas palavras pareceram obscuras a Feleas, mais lhe

pareceunecessáriosaberdeZeinisoqueelasqueriamdizer.Elea instoupormuito tempoparaque as explicasse e, pormais repugnânciaque elativesse em falarmais sobre isso, ele a apertava tão ternamente, olhava-acomtantapaixãoque,finalmente,eleterminouporperturbá-la.

–Mas,seeuvosdisser–disseelacomvoztrêmula–,abusareisdisso!Ele lhe jurou que não, com arroubos que, longe de tranquilizá-la

quanto aos seus temores, não deviam deixar-lhe dúvidas de que ele lhefaltassecomapalavra.Emocionadademaisparapoderformularessaideiaouinexperientedemaisparaconhecertodaaforçadaconfidênciaqueelaialhe fazer, depois de se ter ainda defendido fracamente contra os seusdesvelos,elalheconfessouque,ummomentoantesqueeleentrasse,tendoadormecido,elaovira,mascomarrouboscujaideiaelajamaistivera.

–Euestavanosvossosbraços?–perguntouele,apertando-anosseus.

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–Sim–respondeuela,dirigindo-lheolhosperturbados.–Ah! – continuou ele comuma emoção extrema. – Vósme amáveis

entãomaisdoquemeamaisagora!–Nãopodiavosamarmais–replicouela–maséverdadequetinha

menostemoremvosdizerisso.–Depois?–perguntouele.– Ah! Feleas! – exclamou ela, enrubescendo. – O que estais me

pedindo?Estáveismais felizdoquequeroqueoestejasalgumdia,enemporissoéreismenosinjusto.

DiantedessaspalavrasFeleas,nãopodendomaisconteroseuardoretornando-se mais audacioso pela confidência que Zeinis lhe fizera,levantando-se um pouco e inclinando-se sobre ela, fez o que pôde paraaproximar a sua boca dela. Por mais ousado que fosse esseempreendimento, Zeinis talvez não tivesse ficado ofendida, mas Feleas,ocupadounicamenteem ficar feliz, levoua suaaudácia tão longequeelanãoacreditouterqueperdoá-lopeloqueestavafazendo.

–Ah,Feleas!–exclamouela.–Sãoestasaspromessasquemefizestesetemeistãopoucoqueeumeaborreça?

Por mais violentos que fossem os arroubos de Feleas, Zeinis sedefendeutãoseriamenteeeleviutantacóleranosseusolhosqueacreditounãomais dever teimar numa vitória que não podia obter sem ofender aquem ele amava e que, pela resistência de Zeinis, tornava-se mesmoextremamente duvidosa para ele. Seja por respeito, seja por timidez,finalmenteeleparoue,nãomaisousandoolharparaZeinis:

– Não – disse ele tristemente –, por mais cruel que sois, não meexporeimaisavosdesagradar.Seeuvos fossemaisquerido, semdúvidatemeríeis menos fazer a minha felicidade mas, embora não deva maisesperarvostornarsensível,nemporissovosamareimenosternamente!

Comessaspalavras,eleselevantoudepertodelaesaiu.Mortalmenteaborrecida pelo fato de que Feleas a deixasse e entretanto não ousandochamá-lo de volta, a cabeça apoiada nas mãos, Zeinis chorava epermanecera sobre o sofá. Entretanto, inquieta com a partida do seuamante,elaselevantavaparaveroqueaconteceracomelequando,trazidodevoltapelasuaternura,eleentrounogabinete.Elaenrubesceuaovê-loese deixou cair novamente sobre mim, dando um profundo suspiro. Elecorreu para lançar-se aos seus pés, tomou-lhe ternamente a mão e, nãoousandobeijá-la,banhou-acomassuaslágrimas.

–Ah!Levantai-vos–disseZeinis,semolharparaele.– Não, Zeinis – disse ele –, é aos vossos pés que espero a minha

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sentença!Umaúnicapalavra!...Masestaischorando!Ah!Zeinis!Soueuquefaçocorreremasvossaslágrimas?

AbárbaraZeinis,nessemomento,apertouasuamãoe,voltandoparaeleolhosqueoprantoquederramavamembelezavaaindamais,suspirousemlheresponder.

AperturbaçãoquereinavaemseusolhosnãofoimaisindefinidaparaFeleasdoqueparamimmesmo.

–Céus–exclamouele,beijando-a furiosamente–, seriapossívelqueZeinismeperdoasse?

Zeinis ainda guardou silêncio. Infelizmente! Feleas nada perdeu doqueeleparecialhedizeresem,maisinterrogarZeinis,foibuscaraténasuabocaaconfissãoqueelapareciaaindalherecusar.

Nesse instante, somente ouvi o ruído de alguns suspiros abafados.Feleas se apoderara dessa boca encantadora em que a minha alma, uminstante antes dele...Mas por que eume lembrei de algo ainda tão cruelpara mim? Zeinis se precipitara nos braços do seu amante: o amor, umrestodepudor,quesomenteatornavamaisbela,animavamoseurostoeosseusolhos.Essaprimeiraperturbaçãoduroupormuitotempo.FeleaseZeinis, ambos imóveis, respirando mutuamente as suas almas, pareciamoprimidospelosseusprazeres.

–Tudoisso–disseentãooSultão–nãovosdavamuitoprazer,nãoéverdade? Assim, do que tivestes a ideia de se apaixonar, enquanto nãotínheiscorpo?Issoeradeumaloucurainconcebívelpois,deboa-fé,aoqueessa fantasia podia vos levar? Vedes bem que, às vezes, é preciso saberraciocinar.

– Sire – respondeu Amanzei –, somente depois que aminha paixãoficou bem estabelecida é que senti o quanto ela deviame atormentar, e,segundooquenormalmenteacontece,asreflexõesvierammuitotarde.

– Estou verdadeiramente aborrecido com o vosso acidente, pois eugostavabastantedevósnabocadessamoçacujonomedissestes–retomouoSultão–;érealmenteumapenaquevostenhamatrapalhado.

–EnquantoZeinisresistiraaFeleas–disseAmanzei–,eumegabarade que nada poderia vencê-la, e quando a vi mais sensível pensei que,detidapelospreconceitosdesua idade,elanão levariaasua fraquezaatéondepudessefazeraminhainfelicidade.Contudo,confessareique,quandoaouvicontaressesonho,queacreditaraqueeladeviasomenteamim,quesoubeporelamesmaqueaimagemdeFeleasfoiaúnicaqueseapresentoua ela e que era ao poder que ele tinha sobre os seus sentidos e não aosmeus arroubos que ela devera os seus prazeres, restaram-me poucas

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esperançasdeescaparàsortequeeutantotemia.Menosdelicado,contudo,doquedeveria tersido,eumeconsolavacoma felicidadedeFeleas,pelacertezadepartilhá-lacomele.QualquercoisaqueeletivesseditoaZeinissobreasuapaixãoesobrea fidelidadequeelesempre lheguardara,nãomepareciapossívelqueeletivessechegadoàidadedequinzeoudezesseisanos, sem pelo menos ter tido alguma curiosidade que o impediria delibertaraminhaalmadessecativeiroquepormuitotempomepareceratãocruel e que, nesse instante, eu preferia ao posto mais glorioso que umaalma pudesse preencher. Por mais desesperado que eu estivesse com afraquezadeZeinis,espereiassuasconsequênciascommenosdor,logoqueme persuadi que, o que quer que acontecesse, eu não seria obrigado adeixá-la.

Pormaishorrorosaque fosseparamima terna letargiaemqueelesestavammergulhadosequecadasuspiroqueelesdavampareciaaumentarainda,elaretardavaosaudaciososempreendimentosdeFelease,emboraela me provasse até que ponto eles sentiam a sua felicidade, supliqueiardentemente a Brama para não permitir que ela se dissipasse. Votosinúteis!Eueracriminosodemaisparaqueduasalmas inocentesedignasdesuafelicidademefossemsacrificadas.

Feleas, depoisde ter enlanguescidoalguns instantes sobreo seiodeZeinis, pressionado por novos desejos que a fraqueza de sua amantetornara mais ardente, olhou-a com olhos que exprimiam a deliciosaembriaguez do seu coração. Zeinis, embaraçada pelos olhares de Feleas,desviouosseussuspirando.

–Oquê!Estáfugindodosmeusolhares?–disseele.–Ah!antesviranaminhadireçãoosteusbelosolhos!Vemlernosmeustodooardorquemeinspiras!

Entãoelearetomounosbraços.Zeinisainda tentouseesquivardosseus arroubos, mas seja porque não quis resistir por muito tempo, sejaporque, iludindo-se a si mesma, cedendo, ela acreditasse resistir, Feleaslogofoiolhadodeformatãoternaquantogostariadeser.

EmboraasúltimasbondadesdeZeinisotivessemlançadonumternolangor, pouco diferente daquele em que os meus arroubos a tinhammergulhado,equeelaolhasseFeleascomtodaavolúpiaquedesejaraporpartedela,elapareceusearrependerpor terseentregadodemaisaoseuardoreprocurouseretirardosbraçosdeFeleas.

–Ah!Zeinis!–disseele.–Nessesonhodequemefalastes,nãotemíeismefazerfeliz!

–Ai demim! – respondeuela. –Qualquerque seja omeuamorpor

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vós,semele,semaperturbaçãoqueelepôsemmeussentidos,nãoteríeisobtidotanto!

Imaginai, Sire, qual não foi a minha tristeza quando soube que erasomenteamimqueomeurivaldeviaasuafelicidade.

– Deveis estar contente pela vossa vitória – continuou ela – e nãopodeis,semmeofender,quererimpeli-laparamaislonge.Fizmaisdoquedeviaparavosprovaraminhaternura,mas...

– Ah! Zeinis! – interrompeu o impetuoso Feleas. – Se fosse verdadequemeamáveis, temeriasmenosmedizer issoou,pelomenos,mediriasmelhor. Longe de somente te entregar a um amor com timidez, tu teabandonariasatodososmeusarroubos,queaindapensariasnãoterfeitotudo por mim. Vem – continuou ele, lançando-se junto dela com umavivacidade que me teria feito morrer, se uma alma fosse mortal – vem,acabademefazerfeliz!

–Ah!Feleas!–exclamoucomvoztrêmulaatímidaZeinis.–Imaginasque estás me perdendo? Infelizmente! Tinhas me jurado tanto respeito!Feleas!Éassimqueserespeitaaquemseama?

OsprantosdeZeinis,assuaspreces,assuasordens,assuasameaças,nadadeteveFeleas.Aindaqueatúnicadegazequeestavaentreelaeelejáo deixasse gozar de encantos em demasia e que os seus arroubos arecolocaram da maneira como estava durante o sono de Zeinis, menossatisfeitocomasbelezasqueelaofereciaparaverdoquearrebatadopelodesejo de ver aquelas que ele ainda lhe ocultava, finalmente ele afastouessevéuqueopudordeZeinisaindadefendiafracamentee,precipitando-sesobreosencantosqueasuatemeridadeofereciaaosseusolhares,eleacumuloudecaríciastãofortesetãoinsistentes,quenãolherestoumaisdoqueaforçadesuspirar.

Opudoreoamor,contudo,aindacombatiamnocoraçãoenosolhosdeZeinis.Umrecusavatudoaoamante,ooutronãolhedeixavaquasemaisnadaadesejar.ElanãoousavadirigiroseuolharparaFeleasedevolvia-lhecom uma ternura extrema todos os arroubos que ela lhe inspirava. Eladefendia uma coisa para permitir uma mais essencial; ela queria e nãoqueriamais;escondiaumadesuasbelezasparadescobrirumaoutra;elarepelia com horror e se aproximava com prazer. Às vezes o preconceitotriunfavasobreoamore,uminstantedepoislheerasacrificado,mascomreservaseprecauçõesque,pormaisvencidoqueparecera,ofaziamaindatriunfar. Zeinis, alternadamente, tinha vergonha de sua facilidade e dassuasrepugnâncias.OtemordedesagradaraFeleas,aemoçãoqueosseusarroubos lhecausavameoesgotamentoemqueumcombate tão longoa

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lançarafinalmenteforçaram-naaseentregar.Elaprópriaentregueatodosos desejos que inspirava, suportando somente com impaciência prazeresqueairritavamsemsatisfazê-la,procurouavolúpiaqueeleslheindicavameabsolutamentenãolhedavam.

Nessemomento, excitado pelo espetáculo que se oferecia aosmeusolhosecomeçandoatemer,porcertasideiasdeFeleasquemeprovavamasuapoucaexperiência,queeleexpulsasseaminhaalmadeumlugaronde,apesar de toda a tristeza que lhe davam, ela gostavade permanecer, poralguns instantes eu quis sair do sofá de Zeinis e sofismar sobre todas assentenças de Brama. Foi em vão; esse mesmo poder que ali me exilara,opôs-seaosmeusesforçosemeobrigouaesperar,nodesespero,adecisãodomeudestino.

Feleas...Oh, lembrançasatrozes!Momentocruel,cuja ideia jamaisseapagarádaminhaalma!Feleasenebriadodeamore senhor,pelas ternascomplacênciasdeZeinis,detodososencantosqueeuadorava,preparou-separa terminar a sua felicidade. Zeinis prestou-se voluptuosamente aosarroubosdeFeleaseseosnovosobstáculosqueaindaseopunhamàsuafelicidade a retardaram, eles não a diminuíram. Os belos olhos de Zeinisderramaram lágrimas, sua boca quis formular algumas queixas e nesseinstantesomenteasuaternuranãoafezsuspirar.Feleas,autordetantosmales, não era contudomais odiado por isso. Zeinis, de quem Feleas sequeixava, por isso foi somente amada commais ternura. Enfim, umgritomaispenetrantequeeladeu,umaalegriamaisvivaquevibrilharnosolhosde Feleas, anunciaram-me a minha desgraça e a minha libertação; e aminhaalma,cheiadoseuamoredasuador,murmurando, foireceberasordensdeBramaenovascadeias.

–Oquê!Ésomenteisso?–perguntouoSultão.–Oufostessofámuitopoucotempoouvistesbempoucacoisaenquantooéreis!

–SeriaquereraborrecerVossaMajestadecontar-lhetudodoquefuitestemunha durante a minha estadia nos sofás – respondeu Amanzei –,pretendimenosvosreproduzirtodasascoisasquevidoqueasquepodiamdiverti-lo.

–Seascoisasquecontastes–disseaSultana–fossemmaisbrilhantesdoqueasquesuprimistes,eacreditonisso(poisé impossível fazerasuacomparação),sempreseteriaquevoscensurarpornãotertrazidoàcenasenãoalgunscaracteresenquantotodosestavamemvossasmãoseporter,voluntariamente,reduzidoumassuntoque,porsimesmo,étãoextenso.

–Semdúvida,estouerrado,Madame–respondeuAmanzei–setodososcaracteressãoagradáveisoudefinidosnomesmoponto;sepudetratara

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todos,semexporaosvossosolhostraçoscomunserestritos,esepudemealongarmuitoquantoaumamatériaque,pormaisvariedadeque tivessepostonoscaracteres,deviasetornaraborrecidapelarepetiçãocontínuaeinevitáveldofundo.

–Defato–disseoSultão–creioque,sequiséssemospesartudoisso,elepoderiabem ter razão.Masprefiroqueeleestejaerradoamedaraotrabalho de examinar o que ocorre. Ah! minha avó! – continuou elesuspirando.–Nãoeraassimquecontáveisascoisas!

FIM