o Soneto Filosófico

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O SONETO FILOSÓFICO Se é certo que a finalidade última da filosofia coincide com a das religiões, ou seja, atingir a Verdade, o Bem e a Felicidade, é fundamental um ponto de divergência: ao contrário da religião, a filosofia se perde no meio do caminho, ou seja, na dúvida. De tanto indagar, acaba-se por chegar a respostas contraditórias e antagônicas. Foi pensando nesses dualismos e antíteses que selecionei esta página, deixando para outra, intitulada O SONETO SAGRADO, as manifestações mais místicas e devotas. Também reservei outras duas páginas para o soneto otimista e para o pessimista, quando o teor filosófico ou religioso se coloca a serviço duma perspectiva decididamente positiva ou negativa. Aqui o que interessa é basicamente a dúvida em si, mais que respostas numa ou noutra direção. [GM] SONETO DAS PERGUNTAS [Abgar Renault] Por que uma vária vela vento em fora me arrasta para além daquela curva, e esta âncora, revendo atrás e aurora, prende meu lenho sob uma água turva? Quando eu não for, como será o mundo? Houvera o mesmo chão, se eu não houvesse? A reta mão não toca o céu profundo;

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O SONETO FILOSÓFICO

Se é certo que a finalidade última da filosofia coincide com a das religiões, ou seja, atingir a Verdade, o Bem e a Felicidade, é fundamental um ponto de divergência: ao contrário da religião, a filosofia se perde no meio do caminho, ou seja, na dúvida. De tanto indagar, acaba-se por chegar a respostas contraditórias e antagônicas. Foi pensando nesses dualismos e antíteses que selecionei esta página, deixando para outra, intitulada O SONETO SAGRADO, as manifestações mais místicas e devotas. Também reservei outras duas páginas para o soneto otimista e para o pessimista, quando o teor filosófico ou religioso se coloca a serviço duma perspectiva decididamente positiva ou negativa. Aqui o que interessa é basicamente a dúvida em si, mais que respostas numa ou noutra direção. [GM]

SONETO DAS PERGUNTAS [Abgar Renault]

Por que uma vária vela vento em forame arrasta para além daquela curva,e esta âncora, revendo atrás e aurora,prende meu lenho sob uma água turva?

Quando eu não for, como será o mundo?Houvera o mesmo chão, se eu não houvesse?A reta mão não toca o céu profundo;como o tocara a voz de oblíqua prece?

Por que sou mais mortal e mais ausentena distância fechada à minha frente?Quem me esvaziou de mim, de hoje e de aqui?

Entre que relva, em que porão nefandoou absurda cisterna está vagandoaquele que já foi — e que perdi?

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A BELEZA [Afonso Schmidt]

Neste crisol do coração, BelezaQue iluminas a nossa noite escura,És a Bondade — que se fez GrandezaE a Dor sofrida — que se fez Doçura.

És a muda expressão da Natureza;Beijo no amor, sorriso na candura,Prece na morte, pranto na tristezaE, para os poetas, mística tortura.

Ninféia azul no pântano estagnado,Flores brotando na aridez das lousas,Ou mistério no páramo estrelado,

Em tudo o que nos cerca, tu repousas,Porque a Beleza é Deus manifestado,A nos sorrir pela expressão das cousas.

PRANTO E RISO [Alfredo de Assis]

No pranto da criança não divisoMágoa nenhuma, é tudo luz e encanto;Tem, nuns restos de céu e paraíso,Toda a alegria matinal de um canto.

Mas, de um velho, num rápido sorriso,Mágoas profundas eu percebo entanto!No pranto da criança há quase riso,No sorriso do velho há quase pranto!...

Ri-se o velho, é um pôr de sol que chora;Chora a criança, é como se uma auroraNum chuveiro de pérolas se abrisse;

E tem muito mais luz, mais esperança,

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A lágrima nos olhos da criançaQue o sorriso nos lábios da velhice!...

CONTRASTES [Augusto dos Anjos]

A antítese do novo e do obsoleto,O Amor e a Paz, o Ódio e a Carnificina,O que o homem ama e o que o homem abomina,Tudo convém para o homem ser completo!

O ângulo obtuso, pois, e o ângulo reto,Uma feição humana e outra divinaSão como a eximenina e a endimeninaQue servem ambas para o mesmo feto!

Eu sei tudo isto mais do que o Eclesiastes!Por justaposição destes contrastes,Junta-se um hemisfério a outro hemisfério,

Às alegrias juntam-se as tristezas,E o carpinteiro que fabrica as mesasFaz também os caixões do cemitério!...

CRER [Bastos Tigre]

Entre o crer e o não crer o homem vacila;E vacila e duvida porque pensa.Não pode a mente repousar, tranqüila,Nem mesmo na certeza da descrença.

Ora, na Fé, o espírito se asila;Crê. Da Razão as deduções dispensa...Ora, analisa, decompõe, destilaE, da ciência ao crisol, exclui a crença.

Mas a crença subsiste, onipresente;Argumentos aos mil o sábio empregaE, afirmando o "não crer", é, em suma, um crente.

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Deus, como a luz do sol, deslumbra e cega;E, por querer fitá-lo frente a frente,O ateu se ofusca, fecha os olhos — nega.

ETERNA INCÓGNITA [Bastos Tigre]

Não sei quem sou nem sei por que motivoVim ao mundo e o que nele vim fazer.Sei que penso e, portanto, sei que vivo,Neste anseio instintivo de viver.

Porque procedo do homem primitivo,Há rugidos de fera no meu ser.Bom e mau, triste e alegre, humilde e altivo,Não me posso, a mim mesmo, compreender.

Pois se, de mim, não sei causa e destino,Que dos outros, do mundo, saberei?Que definir, se a mim não me defino?

E sigo, ao léu da vida, a ignota lei,Descrendo das verdades que imaginoE acreditando em tudo o que não sei.

LOUCA FANTASIA [Cláudio Manuel da Costa]

Sonha em torrentes d'água, o que abrasadoNa sede ardente está; sonha em riquezaAquele, que no horror de uma pobrezaAnda sempre infeliz, sempre vexado:

Assim na agitação de meu cuidadoDe um contínuo delírio esta alma presa,Quando é tudo rigor, tudo aspereza,Me finjo no prazer de um doce estado.

Ao despertar a louca fantasia

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Do enfermo, do mendigo, se descobreDo torpe engano seu a imagem fria:

Que importa pois, que a idéia alívios cobre,Se apesar desta ingrata aleivosia,Quanto mais rico estou, estou mais pobre.

IRONIA DE LÁGRIMAS [Cruz e Souza]

Junto da Morte é que floresce a Vida!Andamos rindo junto à sepultura.À boca aberta, escancarada, escurada cova é como flor apodrecida.

A Morte lembra a estranha Margaridado nosso corpo, Fausto sem ventura...ela anda em torno a toda a criaturanuma dança macabra indefinida.

Vem revestida em suas negras sedase as marteladas lúgubres e tredasdas ilusões o eterno esquife prega.

E adeus caminhos vãos, mundos risonhos!Lá vem a loba que devora os sonhos,faminta, absconsa, imponderada, cega!

A DÚVIDA [Emílio de Meneses]

É nova a aparição, mas, sendo nova, é a mesmaQue, há muito, me procura e se me foge há muito!Se a palpo, ei-la a esgueirar-se em coleios de lesma,Se a sigo, só lhe encontro um rastilho fortuito.

Para bem defini-la, embalde, resma a resma,Todo o papel estrago. Em vão traço o circuitoEm que a devo prender. Se agora é atra avantesma,Logo é o jogral que ri um ridículo intuito.

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Ora é o duro pedrouço, ora é um frouxel de paina;Ora o olhar amortece, ora lhe aviva o lume;Ora agita as paixões, ora as paixões amaina.

O gesto do perdão e o gesto ultriz resume.E eis-te mal esboçada em tua eterna faina,Sócia eterna do Amor, fonte do eterno Ciúme.

REFLEXÕES (VI) [Gilka Machado]

Ó meu santo pecado, ó pecadoravirtude minha! ó minha hesitação!bem diferente esta existência fora,ermo de ti tão frágil coração!...

Se ora és sensualidade cantadora,instinto vivo, alegre volição,logo és consciência calma, pensadora,silenciosa tortura da razão.

Contudo, eu te bendigo, eu te bendigo,ó dúbio sentimento, que comigovives, minha agonia e meu prazer!

Quanto lourel minha existência junca,por ti, pecado, que não foste nunca,por ti, virtude, que ainda sabes ser!

SONETO 173 ONTOLÓGICO [Glauco Mattoso]

Não sei se o ser é somos ou estamos;se somos ser somente estando em vida,ou se já está de fato resolvidaa máxima questão: "Para onde vamos?".

Se depender do sábio Nostradamus,a vida sobre a Terra é destruída.

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Mas, para algum profeta, algum druída,é bom que as esperanças não percamos.

Questão não é "to be or not to be";Questão é termos crença de não serinútil que estejamos por aqui.

Não é coisa difícil de entender:O pensamento é válido por si.Pensamos que existimos. Resta crer.

PRAZER E PESAR [Gregório de Matos]

Um prazer, e um pesar quase irmanados,Um pesar, e um prazer, mas divididosEntraram nesse peito tão unidos,Que Amor os acredita vinculados.

No prazer acha Amor os esperadosFrutos de seus extremos conseguidos,No pesar acha a dor amortecidosOs vínculos do sangue separados.

Mas ai fado cruel! que são azaresToda a sorte, que dás dos teus haveres,Pois val o mesmo dares, que não dares.

Emenda-te, fortuna, e quando deres,Não seja esse prazer em dois pesares,Nem prazer enterrado nos Prazeres.

DOR OCULTA [Guilherme de Almeida]

Quando uma nuvem nômade destilagotas, roçando a crista azul da serra,umas brincam na relva; outras, tranqüila,serenamente entranham-se na terra.

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E a gente fala da gotinha que errade folha em folha e, trêmula, cintila,mas nem se lembra da que o solo encerra,da que ficou no coração da argila!

Quanta gente, que zomba do desgostomudo, da angústia que não molha o rostoe que não tomba, em gotas, pelo chão,

havia de chorar, se adivinhasseque há lágrimas que correm pela facee outras que rolam pelo coração!

A VIDA [Henrique Lagden]

Só o Passado é real; o futuro, fantasmaCom que a mente dá forma à coisa inexistente.E o minuto, que voa, e chamamos PresenteJá ficou para trás tão depressa entusiasma.

Toda a vaga ilusão que a humana ambição plasmaE supõe realizar hoje mesmo, fremente,Lembra a sorte cruel da gota intercadenteQue mal tomba e já abriga o infusório e o miasma.

Toda vida é um Passado. O Presente subsisteComo ideal concepção de um desejo, que insisteNesta glória de abrir ao sonho novas portas.

Mas a vida, em si mesma, a existência, afinal,No Presente, fugaz, falaciosa, irreal,Essa existe, direi, mas são as coisas mortas.

SENSAÇÕES [Hermes Fontes]

Sensações de tristeza ou de alegria,dá-no-las a Alma, como ideal produtodas impressões vitais de cada dia

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engalanado em luz, sombreado em luto.

Pode o Espírito estar tranqüilo e enxuto:mas, se os olhos se inquietam, à porfia,a lágrima, que esponta, é já o frutodas sensações... É o coração que expia...

E, ao transcorrer desse diamante bruto,a Vida, toda, se consubstancia,tal, um século, às vezes, num minuto!

Ilumina-se, assim, a Alma sombria: — o que sinto, olho, gosto, palpo, escuto... — sensações de tristeza ou de alegria...

MORAL [Hermes Fontes]

Bocas que contra mim e contra a minhasuposta ingratidão, Ódio, desatas,são para mim — qual delas mais mesquinha —são para mim, por sua vez — ingratas.

Guardam-se nesse afã nomes e datas:bem de ontem, posto à face, hoje espezinha. — Mão que nos afagaste e nos maltratas,só para o afago queres louvaminha...

E tem razão quem faz o bem, é exato.E tem razão o favorito, em suma: — são ingratos os dois, nenhum é ingrato...

Dessa verdade efêmera ressumaque a moral é de todos, ou, de fato,nunca a moral é de pessoa alguma.

SONETO ANCESTRAL [Homero Prates]

Homem e estrela, pedra e flor, nuvem e inseto,

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Fonte e pássaro e planta e verme e águia dos cimos,Exilados irmãos da mesma Pátria, vimosDo oculto sol comum de um só mistério inquieto.

Bendizendo o esplendor da Vida em que sorrimos,Unidos sob o Azul natal do mesmo teto,Como os vagos clarões de um astro ermo e secreto,Vamos todos voltando à Luz de onde provimos...

Em nossa voz milhões de vidas anterioresCantam saudosamente, e choram se sofremos,Num clamor ancestral de alegrias e dores...

Assim, à ignota paz da mesma Noite, vamosEntre a esperança e o amor do céu para onde iremosE a saudade imortal do céu que ainda choramos!

CERTEZA [Iveta Ribeiro]

Vim do nada... sou nada... e para o nadaUm dia voltarei quando morrer...Fui névoa da manhã... fui madrugada,Meio-dia já fui... entardecer...

Acordei vendo a vida, deslumbrada...Depois fui despertando sem querer...Cantei... sorri... amei e fui amada...Tive todos os sonhos de mulher!...

Agora vou descendo da montanha...Caminho para o fim que deve estarBem perto... E a caminhada é já tamanha!...

Mas quando a minha vida se findar,O meu olhar terá a luz estranha,De um sol que morre à tarde... e há de voltar!

FILOSOFIA [J. G. de Araújo Jorge]

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Dentro do meu olhar altivo de descrençanão tenho uma atitude humilde e irrefletida, — olho os homens de cima, e trago de nascençaum íntimo desdém superior pela vida...

Não me irrito e não choro. À pedra desferidacontra mim — que em minha alma abre uma chaga imensa —sorriso... E o meu sorriso é a dor, quase esquecida,que nos lábios transformo em fria indiferença...

A vida toda é vã. Resumo a vida nessamistura com que fiz minha filosofia: — um verso de Leoni e um mau sorriso de Eça...

Um olhar de desdém numa alma de fumaça,e a superioridade fina da ironiade quem sabe que tudo é uma ilusão que passa!

SER E NÃO SER [José Bonifácio]

Se te procuro, fujo de avistar-te,E se te quero, evito mais querer-te,Desejo quase... quase aborrecer-te,E se te fujo, estás em toda parte.

Distante, corro logo a procurar-te,E perco a voz e fico mudo ao ver-te,Se me lembro de ti, tento esquecer-te,E se te esqueço, cuido mais amar-te.

O pensamento assim partido ao meio,E o coração assim também partido,Chamo-te e fujo, quero-te e receio!

Morto por ti, eu vivo dividido,Entre o meu e o teu ser sinto-me alheio,E sem saber de mim, vivo perdido!

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ÚLTIMA PÁGINA [José Oiticica]

A alma do poeta errou pelo universo afora,Concentrou-se em si mesma, auscultou seu mistério,E fez dos sons do mundo uma tuba sonora,E dos salmos da vida a voz do seu saltério.

Viu, nos sem-fins do caos como o ser se incorpora,Que o "fiat" sideral provém do vácuo etéreo;Ouviu a dor do peito humano quando choraMas não lhe pôde dar, na rima, um refrigério!

Volta, assim, da excursão cheia de luz, mais triste...Sente que tudo é um logro; ama a glória e, no entanto,Sofre, por não saber a causa do que existe!

E abrindo o olhar sem fé para o antro ou para a serra,Vê que o pranto de agora é o mesmo e amargo prantoQue há seis mil anos cai sobre as mágoas da terra!

CRER E NÃO CRER [Luís Delfino]

Contradizer-nos sempre dia a dia,Hora a hora, talvez instante a instante!Tem tantas faces o cristal iriante,Que em cada volta a cor da luz varia.

O universo visões estranhas cria:É, não é; minha Helena, é ir adiante:São os séculos degraus da escadaria,Que vai calcando espírito gigante:

E ele aí fica em dúvida perene!E nos vaivéns terríveis, que o consomem,Só tem de certo a dor... a dor infrene.

Somem-se os céus com os deuses que se somem:

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Nenhum ditame, que alma enfim serene:Crer e não crer!... Que verme hediondo é o homem!...

CRENÇA E DÚVIDA [Luís Delfino]

Mas isto é uma hipótese sublime:No fim de tudo a dúvida nos resta!Há de durar continuamente a festa,Que nos embala? A crença? Esta sorri-me.

Mas dobra o homem, como a brisa ao vime:A alma vacila, sempre à idéia infesta:Quando saímos finalmente destaExistência — a outra vida enfim que exprime?

Somos um elo desta natureza,Nos fundimos em Deus... Mas há certeza?Razão, és bola, e como bola és oca!...

À terra, por que então mandados fomos?Seremos verme? ou somos Deus? — Que somos?Abismo, fala: para que tens boca?...

A LÁGRIMA [Luís Edmundo]

Há uma lágrima sempre atenta em nossos olhos;Branca, redonda, clara, adamantina, pura,E assim como no mar os traiçoeiros escolhos,Ela, escondida, a flor das pálpebras procura,

E, aí fica parada. Os íntimos refolhosDe nossa alma reflete, e quando uma venturaEm riso nos entreabre os lábios com doçura,Ela, a lágrima, fica a nos tremer nos olhos.

Tu que és moça e que ris, e não sabes da mágoaDa vida, tem cuidado! Olha essa gota d'água;Se não queres, da vida, achar-te entre os abrolhos

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Ri, mas ri devagar, que a lágrima traiçoeira,Talvez por te ver rir assim dessa maneira,Trema e caia, afinal, um dia dos teus olhos!

EU [Maria Antônia Sampaio]

Cabeça e coração — o meu ser, como um elo,Para sempre os uniu. Inextinguível chamaQue a vida me consome; introvertido dueloVibrando sempre em mim... Motivo do meu drama.

Sentimento e razão — aquele como é beloE este como é sublime... O destino conclamaDe ambos o antagonismo e a um e a outro apelo,Pois um ordena: pensa e outro, segreda: — ama!

Que imenso turbilhão na minha alma se agita!Para os dois agregar, equilibrando-os, poisNão sendo por nenhum quero ser pelos dois

Na luta exasperada, indômita, infinita...Entre o anseio e a renúncia, o querer e a repulsaDe um cérebro que pensa e um coração que pulsa!

CRÍTICA DA RAZÃO PURA [Martins Fontes]

Interrogando os astros, induzindo,Vendo que a forma contrafaz o fundo,Analisamos, no mistério infindo,O mecanismo ilógico do mundo.

Estudando, entendendo, concluindo,Dói no cérebro o cálculo profundo:Para o espírito, os anos-luz medindo,Equivalem a menos de um segundo.

E vendo quanto a ciência é fátua e frustra,

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Para a ilusão ficando de alcatéia,Ávido, o olhar toda a amplidão perlustra.

E, sobre a Torre de Marfim da idéia,Mudos, rugimos como Zaratustra,No silêncio das noites da Iduméia.

SER FELIZ! [Menotti del Picchia]

Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora...Este sonho que ergui, o poderia pôrOnde quisesse, longe até da minha dor,Em um lugar qualquer onde a ventura mora;

Onde, quando o buscasse, o encontrasse a toda hora,Tivesse-o em minhas mãos... Mas, louco sonhador,Eu coloquei muito alto o meu sonho de amor...Guardei-o em vosso olhar e me arrependo agora.

O homem foi sempre assim... Em sua ingenuidadeTeme levar consigo o próprio sonho, a esmo,E oculta-o sem saber se depois o achará...

E, quando vai buscar sua felicidade,Ele, que poderia encontrá-la em si mesmo,Escondeu-a tão bem que não sabe onde está!

DUALISMO [Olavo Bilac]

Não és bom, nem és mau: és triste e humano...Vives ansiando, em maldições e preces,Como se, a arder, no coração tivessesO tumulto e o clamor de um largo oceano.

Pobre, no bem como no mal, padeces;E, rolando num vórtice vesano,Oscilas entre a crença e o desengano,Entre esperanças e desinteresses.

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Capaz de horrores e de ações sublimes,Não ficas das virtudes satisfeito,Nem te arrependes, infeliz, dos crimes:

E, no perpétuo ideal que te devora,Residem juntamente no teu peitoUm demônio que ruge e um deus que chora.

MICROCOSMO [Olavo Bilac]

Pensando e amando, em turbilhões fecundosÉs tudo: oceanos, rios e florestas;Vidas brotando em solidões funestas;Primaveras de invernos moribundos;

A Terra; e terras de ouro em céus profundos,Cheias de raças e cidades, estasEm luto, aquelas em raiar de festas;Outras almas vibrando em outros mundos;

E outras formas de línguas e de povos;E as nebulosas, gêneses imensas,Fervendo em sementeiras de astros novos;

E todo o cosmos em perpétuas flamas... — Homem! és o universo, porque pensas,E, pequenino e fraco, és Deus, porque amas!

CONTRASTE [Padre Antônio Tomás]

Quando partimos, no vigor dos anos,Da vida pela estrada florescente,As esperanças vão conosco à frente,E vão ficando atrás os desenganos.

Rindo e cantando, céleres e ufanos,Vamos marchando, descuidosamente...

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Eis que chega a velhice de repente,Desfazendo ilusões, matando enganos!

E é só então que vemos claramenteQuanto a existência é rápida e fugaz!E vemos que sucede exatamente

O contrário dos tempos de rapaz: — Os desenganos vão conosco à frente,E as esperanças vão ficando atrás!

DILEMA [Pretextato da Silveira]

"Quero morrer primeiro, um dia tu disseste,Pois não suportarei a tua ausência!" E, ansiosos,Ergueste para a azúlea abóbada celesteTeus olhos a exorar por mim, meigos, piedosos!

Então, já comovido e de olhos lacrimosos,Eu implorei ao Céu: "Senhor, tu que me desteA vida e o seu carinho e os dias venturosos,Consente que antes dela à sombra do cipreste

Eu vá dormir!" E assim ficamos abraçadosPensando com terror que um dia a mão dos fadosO laço romperá deste amor verdadeiro!

E os nossos corações interrogando a sorte,Sofriam! Qual de nós irá primeiro à morte,A qual dos dois virá o martírio primeiro?

SEI DE TUDO [Raul de Leoni]

Sei de tudo o que existe pelo mundo.A forma, o modo, o espírito e os destinos.Sei da vida das almas e aprofundoO mistério dos seres pequeninos.

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Sei da ciência do Espaço, sei o fundoDa terra e os grandes mundos submarinos,Sei o Sol, sei o Som e o elo profundoQue há entre os passos humanos e os divinos.

Sei de todas as cousas, a teoriaDo Universo e as longínquas perspectivasQue emergem da expressão das cousas vivas.

Sei de tudo e — oh! tristíssima ironia! —Pelo caminho eterno por que vou,Eu, que sei tudo, só não sei quem sou...

SONETO DA RAZÃO TRANSCENDENTAL [Silva Dultra]

Eu vivo a cada instante a minha vida,assim como quem vive a própria morte,e levo esta existência divididaentre o ser e não ser que me conforte.

Sou onde não estou; e a minha sorteem coisas que não tenho está medida,até que a mesma vida me transporteà morte desde o início já sentida.

Vão-se-me os dias de desejos plenosem horas que se somam sempre a menos,por onde o tempo passa e a vida flui.

O meu destino escorre num sentidoe sobre o pó do que terei eu sidorepousa a sombra do que sempre fui.

ESPERANÇA [Vicente de Carvalho]

Só a leve esperança, em toda a vida,Disfarça a pena de viver, mais nada;

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Nem é mais a existência, resumida,Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,Sonho que a traz ansiosa e embevecida,É uma hora feliz, sempre adiadaE que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,Árvore milagrosa que sonhamosToda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamosPorque está sempre apenas onde a pomosE nunca a pomos onde nós estamos.

O VERBO NO INFINITO [Vinicius de Moraes]

Ser criado, gerar-se, transformarO amor em carne e a carne em amor; nascerRespirar, e chorar, e adormecerE se nutrir para poder chorar

Para poder nutrir-se; e despertarUm dia à luz e ver, ao mundo e ouvirE começar a amar e então sorrirE então sorrir para poder chorar.

E crescer, e saber, e ser, e haverE perder, e sofrer, e ter horrorDe ser e amar, e se sentir maldito

E esquecer tudo ao vir um novo amorE viver esse amor até morrerE ir conjugar o verbo no infinito...

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