O sonho de Eca

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Capítulo um •  i Anna abriu os olhos; as imagens de seu sonho rodopiavam pelo quarto. Levantou‑se, pisando as roupas largadas no chão. Cruzou a porta, atraves‑ sou o corredor, movia‑se com passos entorpecidos. Dedos cegos chutaram as taças esquecidas no tapete. Cacos e champanhe espalharam‑se pela sala, ferindo os pés insensíveis. Precisava se atirar do vigésimo andar. Mer‑ gulhar no asfalto, apagar todas aquelas luzes. Saiu para o terraço. A pele arrepiou‑se ao contato do vento frio que zunia no topo do edifício. Subiu ao parapeito e se apoiou no calcanhar, o sangue pingando dos cortes, desaparecendo no vazio. Estendeu os braços, imitando o balé mortífero da equilibrista na corda bamba, agarrando‑se no ar, sorrindo para sua última noite. Lá embaixo, os bares da Rua Augusta fechavam as portas. Apenas um mantinha as caixas de som no volume máximo. A música chegava até Anna, embalando‑a, fazendo seu corpo oscilar entre a vida e a morte, para trás e para frente, até atingir a inclinação fatal e cair. Cair respondendo ao sonho, e ao chamado de Eva.

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LiVRO pela Novo Conceito,O sonho de Eva

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Capítulo um

•  i  •

Anna abriu os olhos; as imagens de seu sonho rodopiavam pelo quarto. Levantou ‑se, pisando as roupas largadas no chão. Cruzou a porta, atraves‑sou o corredor, movia ‑se com passos entorpecidos. Dedos cegos chutaram as taças esquecidas no tapete. Cacos e champanhe espalharam ‑se pela sala, ferindo os pés insensíveis. Precisava se atirar do vigésimo andar. Mer‑gulhar no asfalto, apagar todas aquelas luzes.

Saiu para o terraço. A pele arrepiou ‑se ao contato do vento frio que zunia no topo do edifício. Subiu ao parapeito e se apoiou no calcanhar, o sangue pingando dos cortes, desaparecendo no vazio. Estendeu os braços, imitando o balé mortífero da equilibrista na corda bamba, agarrando ‑se no ar, sorrindo para sua última noite.

Lá embaixo, os bares da Rua Augusta fechavam as portas. Apenas um mantinha as caixas de som no volume máximo.

A música chegava até Anna, embalando ‑a, fazendo seu corpo oscilar entre a vida e a morte, para trás e para frente, até atingir a inclinação fatal e cair. Cair respondendo ao sonho, e ao chamado de Eva.

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— Ei, cara! Dá para abaixar essa droga de música! — gritou o homem no balcão. Coçava a cicatriz mal curada que subia da narina esquerda à sobrancelha. — Já não basta esse vento gelado entrando sabe‑se lá Deus por onde!

— Se quiser conforto, vá para casa! — respondeu o garçom, sem dar muita atenção.

O chinês ao lado do homem interveio:— Deixe o som para lá! Não me arrume confusão — disse, segurando

o braço do companheiro, que ameaçava se levantar para brigar com o garçom. — Deixe o som para lá! — repetiu, e ajeitou o barrete negro sobre os cabelos brancos enlaçados numa trança. — Quanto mais barulho me‑lhor, assim não nos escutam.

— Se aquele filho da mãe falar comigo desse jeito mais uma vez, vou apresentar o imbecil aos próprios testículos. Porcaria de música! O que você estava falando mesmo, velho?

— Sonhos. Sobre sonhos. — Hum ‑hum. — O homem pareceu lembrar ‑se. Tirou o maço de

cigarros presos na manga da camiseta e acendeu um Lucky Strike. Igno‑rou a placa de “Proibido Fumar” na parede à frente. — Luckies america‑nos! — falou alto. — Isto valia fortuna quando eu servia no Iêmen! São os melhores! Simplesmente os melhores! — disse, após longa tragada.

Aumentou ainda mais o tom de voz. — Mas conte, velho, qual a im‑portância desses pesadelos?

— Sonhos, meu caro. Sonhos. E não precisa gritar.— Para mim é a mesma coisa; tudo pesadelo.O chinês abriu a garrafa de Jack Daniels, encheu o copo do ex ‑militar.— A mesma coisa? Prazer e terror podem ser a mesma coisa? Não

importa. Você, que ganha a vida como mercenário, é bom saber: sonhos vão ser as armas das guerras deste século!

O homem soprou uma baforada no garçom que passava.

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— Vamos, imbecil! — desafiou. — Reclame do cigarro com o velho Ivan aqui e se prepare para conhecer cada um dos seus bagos — disse, esperando pela reação. O garçom fingiu que não ouviu. Ivan tragou mais uma vez e continuou: — Ao menos o panaca mudou a música. Suspicious minds é um clássico! Elvis não morreu! — disse, a fumaça agora saindo da boca com as palavras. — Desde quando sonhos são armas?

O chinês fez sinal para que falasse mais baixo.— Existem armas bem diferentes dessa aí que deve ter no seu coldre

do tornozelo. Me diga: e se eu fosse capaz de me apoderar dos sonhos das pessoas? O que acha que eu faria? Escolher as imagens com as quais so‑nhará hoje à noite, entrar no seu sonho e mudá ‑lo como bem entendesse. E se eu pudesse fazer isso, hein? O que você diria?

— Diria que você faz perguntas demais e nem me lembro da primei‑ra. Se fosse para responder só à última, diria que você é doido, velho.

— Ah! Mas e se por acaso eu não fosse doido coisíssima nenhuma? E se todos os sonhos do mundo fossem meus, hein? O que eu poderia fazer?

— Sei lá! — disse. — Poderia ter uma dor de cabeça dos infernos! — gargalhou. Pegou o copo e tomou de um só gole todo o Jack Daniels.

O chinês sorriu, tornou a abrir a garrafa e servir Ivan. — Beba, beba. Está me ouvindo? Beba. Enquanto bebe, vou lhe contar.

Poderia fazê ‑lo sonhar todas as noites. Isto o espanta? Ouça bem o que vou lhe dizer agora: Imagine ‑se no alto de um edifício, muitos andares, uns vinte, ou trinta, e você empoleirado no parapeito. Sentiria o frio da noite, não é verdade? Olharia as luzes das estrelas, da cidade, dos faróis dos carros passando. Vinte ou trinta andares abaixo. Iria balançar na borda do prédio. Talvez o vento o empurrasse, talvez o pavor, o corpo se desequilibraria, só que você iria se achar capaz de flutuar, voar sobre aquelas luzes. Neste momento, eu o ordenaria a se soltar, levar ‑se pela queda! Você cairia, cairia, até rachar no asfalto essa cara linda. E então? Diz para mim: se eu pudesse fazer isso, hein? Não apenas uma só vez. Todas as noites, sempre o mesmo sonho. Mas todas as noites...

— Maluquice, velho! — resmungou. A fumaça do cigarro subia em círculos.

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— Será? Será que não trazemos para nossas vidas os ecos de nossos sonhos?— Não estou entendendo droga nenhuma do que está falando. —

Ivan coçou a cicatriz, riscada como se alguém lhe tivesse enfiado a ponta de uma tesoura aberta no buraco da narina, enterrado até que o aço vazas‑se na sobrancelha e cortado num único golpe. Tomou outro gole do uís‑que e bateu o copo sobre o balcão. — Janis Joplin! — gritou. — Agora esta espelunca fez algo para os meus ouvidos!

O chinês pegou o drinque de Ivan, girou ‑o em movimentos lentos e levou o nariz até a borda do copo.

— O cheiro é bom. Se tivesse bebido a mesma quantidade que você, também não entenderia nada do que foi dito. — Devolveu o copo ao bal‑cão. — Vou tentar ser mais claro: se você sonhasse sempre a mesma coisa, não acabaria por confundir ilusão com realidade? Pular do edifício, sonho após sonho, inúmeras vezes. Uma bela noite não sairia da cama e saltaria para a morte? Não? Continuaria me chamando de louco? Mas é o que acontece todo o dia!

Ivan balançou a cabeça e riu. O velho continuou:— Pode ter certeza: agora mesmo, deve ter alguém numa parte do

mundo fazendo exatamente isso... Saltando para a morte! Não acredita? Diga ‑me, por que você acha que está bebendo uísque e não chá?

Ivan resmungou outra vez a respeito de tantas perguntas, só que desta vez, não zombou:

— Porque eu quero, ora bolas!— Ah! Porque quer... É mesmo? Tem certeza? Mas, vamos, beba.

Beba logo. Não viemos aqui para conversar sobre sonhos. O dinheiro já foi depositado. Está mais rico agora.

Ivan distendeu o canto da boca. — A grana é boa, é verdade, porém faço o meu trabalho por vício, en‑

tende? Vício, tipo heroína. Ou profissionalismo, se quiser chamar assim. E faço também para não ficar tendo ideias malucas de pular de edifícios.

O chinês trincou os dentes, as sobrancelhas brancas se fecharam, cain‑do sobre os olhos.

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— Não me interessam as suas motivações. O mais importante: onde escondeu o menino?

— Você é estranho mesmo, velho. Fique tranquilo, o pirralho está... Ivan parou a frase na metade. Saltou como se uma granada tivesse

explodido debaixo da cadeira.— Caramba! O que aconteceu lá fora?— Que diabos de barulho foi esse? — o garçom gritou do fundo do bar. O apito estridente do alarme de algum veículo havia disparado. As

pessoas se acotovelavam na porta a fim de ver o que tinha acontecido. Apenas o chinês e Ivan continuaram no balcão, trocando olhares, até que uma mulher entrou gritando:

— Ah, meu Deus! Ela caiu do prédio! Bem na minha frente! Tem sangue em mim! — Raspava a mão pelo vestido e andava às cegas, esbar‑rando nas mesas, derrubando cadeiras. — Tem sangue na rua toda!

Ivan levantou ‑se e chamou:— Ande, velho. Quero ver isso. Parece impossível, mas acho que sei

quem está lá fora, com as tripas espalhadas pelo asfalto.Tornou a olhar para o chinês, que permaneceu sentado e manteve o

sorriso enquanto anunciava:— Não disse? Acontece todo dia...

•  iii  •

Anna, em pé sobre o parapeito do terraço, oscilara para a frente e para trás, embalada pelo som distante que sussurrava: and we can’t build our dreams, on suspicious minds (e não podemos construir nossos sonhos com mentes desconfiadas). Olhara o brilho das estrelas incontáveis, a claridade das centenas de janelas insones, os faróis dos carros abaixo, as pupilas radian‑tes de Eva. Olhara a imensidão de luzes noturnas e, inclinando ‑se em di‑reção à voz abissal de Joplin, abrindo ainda mais os braços, tentara, num único salto, abraçar todas elas.

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