O sujeito adolescente no cenário atual da hepatite C ... · Sabemos que o aspecto científi co no...

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Adolescência & Saúde 64 Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 8, n. 4, p. 64-67, out/dez 2011 RESUMO Este trabalho pretende, de modo sucinto, destacar, no atual panorama de hepatites virais, a relevância de um atendimento aprofundado aos sujeitos adolescentes, tendo em vista um enfoque biopsicossocial, cujo objetivo é tornar este grupo de pacientes agentes capazes de promover a interrupção do ciclo epidêmico desta doença. PALAVRAS-CHAVE Hepatites virais, adolescência, terapêuticas, contemporaneidade. ABSTRACT Within the current panorama of viral hepatitis, this paper underscores the importance of in-depth care for adolescent subjects, through a biopsychosocial approach whose goal is to transform this group of patients into agents empowered to help halt the spread of the epidemic cycle of this disease. KEY WORDS Viral hepatitis, adolescence, therapeutics, contemporaneousness. O sujeito adolescente no cenário atual da hepatite C Algumas considerações The adolescent subject in the current hepatitis C - Context some remarks Marília Vilhena 1 , Pedro Henrique Cerveira Reis 2 1 Psicanalista, Mestra em Psicologia Clínica ( PUC-RJ), Graduada e Licenciada em Filosofia (IFCS-UFRJ/EDU-UFRJ), Doutora em Comunicação ( ECO-UFRJ), Psicóloga do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA- HUPE-UERJ) 2 Graduando em Psicologia (IBMR-RJ), Profissional de Marketing,; Publicitário, Design e Empresário na área de Comunicação, transplantado em 2005 pela equipe do Hospital das Clínicas da Universidade de Minas Gerais Marília Vilhena ([email protected]) - Boulevard 28 de Setembro 109/fundos Pavilhão Floriano Stoffel • Vila Isabel • CEP 20551-030 Recebido em 15/09/2011 - Aprovado em 18/10/2011 > > > > COMUNICAÇÃO BREVE Terapêutica – Parte da medicina que estuda e põe em prática os meios adequados para aliviar ou curar os doentes. Grego: Therapéuõ – “Eu curo”. 1 Descoberta a hepatite C, através da iden- tificação do vírus VHC em 1989, logo ganhou especial relevância entre as causas de doença hepática crônica no mundo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que cer- ca de 3% da população, ou seja, mais de 170 milhões de indivíduos estão infectados pelo vírus da hepatite C. Entre as hepatites virais, a do tipo C é a que requer maior atenção, pois os casos não diagnosticados precocemente au- mentam o agravamento da saúde dos pacien- tes, que passariam a ter um quadro crônico da doença. Dados mais recentes atribuem ao vírus HCV 30% dos casos de transplantes hepáticos realizados em países desenvolvidos.

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Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 8, n. 4, p. 64-67, out/dez 2011

RESUMOEste trabalho pretende, de modo sucinto, destacar, no atual panorama de hepatites virais, a relevância de um atendimento aprofundado aos sujeitos adolescentes, tendo em vista um enfoque biopsicossocial, cujo objetivo é tornar este grupo de pacientes agentes capazes de promover a interrupção do ciclo epidêmico desta doença.

PALAVRAS-CHAVEHepatites virais, adolescência, terapêuticas, contemporaneidade.

ABSTRACTWithin the current panorama of viral hepatitis, this paper underscores the importance of in-depth care for adolescent subjects, through a biopsychosocial approach whose goal is to transform this group of patients into agents empowered to help halt the spread of the epidemic cycle of this disease.

KEY WORDSViral hepatitis, adolescence, therapeutics, contemporaneousness.

O sujeito adolescente nocenário atual da hepatite CAlgumas consideraçõesThe adolescent subject in the current hepatitis C - Context some remarks

Marília Vilhena1,

Pedro Henrique Cerveira Reis2

1Psicanalista, Mestra em Psicologia Clínica ( PUC-RJ), Graduada e Licenciada em Filosofi a (IFCS-UFRJ/EDU-UFRJ), Doutora em Comunicação ( ECO-UFRJ), Psicóloga do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA- HUPE-UERJ)2Graduando em Psicologia (IBMR-RJ), Profi ssional de Marketing,; Publicitário, Design e Empresário na área de Comunicação, transplantado em 2005 pela equipe do Hospital das Clínicas da Universidade de Minas Gerais

Marília Vilhena ([email protected]) - Boulevard 28 de Setembro 109/fundos Pavilhão Floriano Stoffel • Vila Isabel • CEP 20551-030Recebido em 15/09/2011 - Aprovado em 18/10/2011

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COMUNICAÇÃO BREVE

Terapêutica – Parte da medicina que estuda e põe

em prática os meios adequados para aliviar ou

curar os doentes. Grego: Therapéuõ – “Eu curo”.1

Descoberta a hepatite C, através da iden-tifi cação do vírus VHC em 1989, logo ganhou especial relevância entre as causas de doença hepática crônica no mundo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que cer-ca de 3% da população, ou seja, mais de 170

milhões de indivíduos estão infectados pelo vírus da hepatite C. Entre as hepatites virais, a do tipo C é a que requer maior atenção, pois os casos não diagnosticados precocemente au-mentam o agravamento da saúde dos pacien-tes, que passariam a ter um quadro crônico da doença. Dados mais recentes atribuem ao vírus HCV 30% dos casos de transplantes hepáticos realizados em países desenvolvidos.

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do comparado às faixas etárias de 0 a 12 anos e de 20 a 70 anos. Adultos contaminados geram fi lhos soro positivos que, por sua vez, chegarão à adolescência como portadores do vírus. Como se trata de um quadro longo e doloroso, obser-vamos frequentemente a não adicção pelos pa-cientes, aí se incluindo os da faixa etária adulta, descontinuando o tratamento. Este processo de renúncia é ainda mais forte nos indivíduos ado-lescentes, por suas singularidades.

No prefácio ao livro “Adolescente Sexo e Morte”4, a psicanalista Maria Nestrovsky Fol-berg considera os diferentes ângulos aos quais é submetido o adolescente ao tornar-se objeto do olhar dos outros, que não são mais reconhe-cidos como adolescentes. Desejar, em primeira instância, saber o que é, por que os outros o en-xergam como objeto e não como sujeito, o que os outros lhe dizem imputam, ao adolescente, um lugar, uma forma social de viver. Ora, sair da fala dos outros, ouvir sua própria fala, exige uma mudança de ângulo de visão, uma abordagem de si como sujeito de um discurso.

No caso de um transplante hepático, ob-servamos, especifi camente, no processo de cura, questões subjetivas: “Meu corpo não é mais meu corpo” ou ainda, “Meu corpo será sempre meu corpo?” Do ponto de vista do corpo médico/hospitalar, no capítulo “O corpo diante da medicina” - História do corpo - Anne Marie Moulin destaca:

“A história do corpo no século XX é a de uma expro-

priação e de uma reapropriação que talvez chegue

um dia a fazer de cada um o médico de si mesmo,

tomando a iniciativa e as decisões com pleno conhe-

cimento de causa. Sonho encorajado pela ideia de

uma transparência do corpo, um corpo totalmente

exposto, explorado em suas profundezas e afi nal,

totalmente acessível ao próprio sujeito.”5

O psicanalista Charles Melman, no escrito “Que espera o adolescente da sexualidade e da morte?”6 pensa que um dos maiores problemas

Muitas pessoas desconhecem que estão infectadas pelo vírus da hepatite C, doença que pode permanecer assintomática por até 20 anos. A descoberta tardia da hepatite C – quan-do os pacientes apresentam lesões importantes no fígado, incluindo câncer e cirrose hepática – é a principal causa de indicação de transplante de fígado no Brasil.

Os pacientes infectados pelo VHC neces-sitam de acompanhamento mais aprofundado, no sentido de avaliar a existência de doença hepática crônica e a necessidade de tratamento antiviral ou de outras terapêuticas especializa-das, como o transplante hepático.

Sabemos que o aspecto científi co no pro-cesso de transplante hepático na medicina oci-dental tem se desenvolvido de forma extraor-dinária nas últimas décadas; os benefícios para os seres humanos são incontestáveis. Durante os anos 80, a procura por órgãos aumentou, alcan-çando sempre mais pessoas entusiasmadas com as indicações estendidas a doenças incuráveis. A idade não constitui mais limitação. Passou-se do rim ao fígado, pulmão, pâncreas, intestino ou até ao “bloco” coração/pulmão, por exemplo.

Em destaque no volume nº 8 da Revista Adolescência & Saúde (abril/junho 2011)2, o ar-tigo “A Adolescência de pacientes submetidos a transplante hepático” assinala o aumento do nú-mero de transplantes e a melhora da sobrevida; muitas crianças transplantadas atingem, nos dias atuais, a fase turbulenta da adolescência. Exis-tem, no entanto, poucos serviços de transplante com um programa de transição que assegure ao paciente adolescente um seguimento de saúde adequado após sua transferência para uma clí-nica de adultos. Infelizmente, estas últimas, em geral, estão sobrecarregadas e não priorizam as questões de desenvolvimento da adolescência.

Segundo dados do Ministério da Saúde3, o índice de adolescentes contaminados com o vírus da hepatite C é bastante reduzido quan-

Vilhena e Reis O SUJEITO ADOLESCENTE NO CENÁRIO ATUAL DA HEPATITE C – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

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para o adolescente - o fazer-se reconhecer - im-plica, hoje, em participar, de modo engajado e notável, de nossa cultura hedonista. É preci-so considerar disto os estigmas eventualmente somáticos, físicos, inscrições sobre o corpo, ar-tifícios que testemunham o envolvimento deste corpo numa cultura hedonista.

“Qual será o futuro psíquico de crianças e adoles-

centes submetidos a esta estimulação maciça e pre-

coce? Quais os benefícios e prejuízos para as mentes

em desenvolvimento quando uma sociedade satura

a cultura, através de meios globalizantes de comu-

nicação de massa e movidos por forças que trans-

formam a arte, a religião, o corpo, os sentimentos, a

vida e a morte em material de consumo?“7

Em “A Adolescência de pacientes subme-tidos a transplante hepático”2, os autores nos revelam a alta incidência de problemas emo-cionais entre os adolescentes transplantados de órgão sólido, dentre os quais: autoestima dimi-nuída, perda do sentimento de pertencer, ansie-dade de ser rejeitado, incerteza sobre sua expec-tativa de vida, ideias suicidas. O aparecimento de transtornos alimentares (anorexia, bulimia nervosa, etc.) é mais comum na adolescência com comorbidade com outros transtornos psi-quiátricos e, por serem difíceis de tratar, têm alta morbidade e mortalidade.

No artigo supracitado há a proposição fun-damental de um ambulatório de transição na abordagem de questões essenciais à saúde in-tegral do adolescente transplantado, tais como: autonomia, identidade, autoestima, qualidade de vida, sexualidade, alterações corporais, proje-tos de vida e desenvolvimento da escolaridade/profi ssionalização. Alguns autores confi rmam que atenção no período de transição possibilita uma revisão educacional para tais adolescentes e a oportunidade de otimização de seu bem-estar na vida adulta.

“Os principais objetivos dos centros de transplante

hepático são: reduzir a mortalidade dos pacientes

em lista de espera, efetivar a doação intervivos,

melhorar a sobrevida geral e melhorar a adesão

ao tratamento e o manejo dos adolescentes, além

de aprimorar a transferência dos adolescentes aos

serviços dos adultos”2.

Destacada a importância de um ambula-tório de transição para pacientes adolescentes num centro de transplante hepático, podemos pensar a relevância, aí, de fato, de um atendi-mento integral. Ora, se os dados do Ministério da Saúde3 apontam-nos o reduzido índice de infecção da hepatite C em adolescentes, enten-demos que este quadro se revela, efetivamente, como a oportunidade de um enfoque biopsicos-social, cujo objetivo é tornar este grupo capaz de interromper o ciclo epidêmico desta doença. En-tendemos que os serviços ambulatoriais voltados para o atendimento de adolescentes devem se reorganizar para atender as demandas psíquicas, de orientação e acolhimento, para evitar que es-tes indivíduos entrem na fi la do transplante.

No caso de um atendimento deste ado-lescente em nível de prevenção primária, esta tem como alvo a diminuição da incidência da infecção pelo VHC. Nas atividades de prevenção secundária e terciária, por exemplo, necessita-se de atendimento multidisciplinar que lide com aspectos médicos, psicológicos, sociais e legais.

Vivemos, hoje, uma verdadeira dissemina-ção de práticas alternativas na solução de pro-blemas de padecimento humano, para os quais a medicina não tem resposta, não se preocupa ou aborda inadequadamente, por se fazer cega às questões do sujeito. Encontramos, cada vez mais, difi culdades para ensinar aos jovens mé-dicos ou estudantes de medicina aspectos psi-cossociais e psicossomáticos das doenças, fun-damentais na criação de um raciocínio clínico abrangente, humanista e compreensivo. Não podemos deixar de pensar as doenças e os dis-funcionamentos nelas existentes sem inseri-las no campo da subjetividade e do sujeito.

O SUJEITO ADOLESCENTE NO CENÁRIO ATUAL DA HEPATITE C – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Vilhena e Reis

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67Vilhena e Reis O SUJEITO ADOLESCENTE NO CENÁRIO ATUAL DA HEPATITE C – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

É indispensável que haja a colaboração dos gestores de saúde, estaduais e municipais, profi ssionais de saúde, representantes da so-ciedade civil e aqueles que detêm o poder de comunicação.

A efetiva integração das pesquisas clínicas de cunho acadêmico (nacionais e internacionais) com os serviços de saúde está se tornando rea-lidade. Estas, por sua vez, apresentam todo um rigor científi co sobre as doenças transmissíveis existentes no nosso país e estão, também, sendo

apresentadas em Programas de Pós-graduação (Mestrados e Doutorados), permitindo aprofun-dar o conhecimento de um dos maiores proble-mas de saúde do Brasil: as hepatites virais.

Ressaltamos, por fi m, que a reunião dos estudos epidemiológicos e os dados dos sis-temas de informação devem ser utilizados na compreensão do cenário de ocorrência da he-patite C no país, subsidiando a elaboração de intervenções individuais e coletivas, cuja fi nali-dade é reduzir a infecção na população.

REFERÊNCIAS

1. Cunha AG. “Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1986.2. Bermudez BEBV, Weber LND, Parolin MB, Coelho JCU, Celli A. A adolescência de pacientes submetidos a

transplante hepático. Adolesc. Saude. 2011;8(2):18-31.3. Ministério da Saúde(Brasil). “Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Hepatite Viral C e Coinfecções.”

Brasília: Série A. Normas e Manuais Técnicos; 2011. 4. Folberg MN. Prefácio. In: Fleig CFB (org). Adolescente, Sexo e Morte. Porto Alegre: CMC; 2009. p.7-10.5. Moulin AM. O Corpo diante da Medicina. In: Corbin A, Courtine J-J, Vigarello G. História do Corpo 3. As

Mutações do Olhar. O Século XX. Vozes: Rio de Janeiro; 2009. p.15-82.6. Melman C. Que espera o adolescente da sexualidade e da morte? In: C.F.B.(org). Adolescente, Sexo e

Morte. Porto Alegre: CMC; 2009. p.129-142.7. Levisky DL. Adolescência e Violência: A Psicanálise na Prática Social. In: Levisky DL (org). Adolescência Pelos

Caminhos da Violência. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2002. p.21-42.

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