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1 O TEATRO COMO INSTRUMENTO EDUCACIONAL NO PERÍODO CLÁSSICO: UM ESTUDO DA ORÉSTIA DE ÉSQUILO OLIVEIRA, Flávio Rodrigues de 1 Introdução Na quadra atual não é difícil estigmatizar um conceito sobre o teatro como sendo um espetáculo cênico de caráter recreativo para as programações dos finais de semana. Há também quem vê o teatro a partir do aparecimento do cinema e da televisão, subvertendo os valores que normalmente deveriam ser dados ao roteiro dramático e cenografia que possuem uma estreita interdependência, ao invés de levar todo o mérito as personagens. Ainda partindo das premissas do senso comum, quem nunca se pegou vendo a listagem dos atores que fazem parte de uma peça teatral, filme ou seriado antes mesmo de ler a sinopse? Aliás, tornou-se comum dizer que tal peça tem tais personagens com participações especiais de tantas outras levando o espectador muitas vezes a esquecer-se do roteiro e do sentindo que o escritor pretendeu passar por meio da obra criada. Nesse sentido, pretendemos mostrar que o theátron grego se diferencia dessa concepção moderno-contemporânea de que assistir uma peça possui simplesmente uma finalidade recreativa. Claro, que não sejamos ingênuos a ponto de acreditar que os gregos iam únicos e exclusivamente prestigiar uma peça grega tanto de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes ou até mesmo a de Aristófanes que já detinha certo apreço pelo gênero cômico, porque tais peças detinham uma função pedagógica civilizatória. Por isso o que traremos a tona, o porquê e como, o Estado utilizava-se da teatrada para instruir moral, civil e religiosamente os helenos do século V a.C. Por isso, propomos que para compreender a proposta pedagógica do teatro clássico por meio da análise da trilogia Oréstia, identificando a sistematização do saber clássico na formação dos homens, devemos ter em mente que a instrumentalização educacional não se pauta simplesmente no âmbito de instituições, escolas, universidades e etc., mas dentro de uma concepção mais ampla, da qual engloba todos os processos sociais 1 Formado em Filosofia pela Universidade Estadual de Maringá – UEM. [email protected]

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O TEATRO COMO INSTRUMENTO EDUCACIONAL NO PERÍODO

CLÁSSICO: UM ESTUDO DA ORÉSTIA DE ÉSQUILO

OLIVEIRA, Flávio Rodrigues de1

Introdução

Na quadra atual não é difícil estigmatizar um conceito sobre o teatro como sendo um

espetáculo cênico de caráter recreativo para as programações dos finais de semana. Há

também quem vê o teatro a partir do aparecimento do cinema e da televisão, subvertendo os

valores que normalmente deveriam ser dados ao roteiro dramático e cenografia que possuem

uma estreita interdependência, ao invés de levar todo o mérito as personagens. Ainda partindo

das premissas do senso comum, quem nunca se pegou vendo a listagem dos atores que fazem

parte de uma peça teatral, filme ou seriado antes mesmo de ler a sinopse? Aliás, tornou-se

comum dizer que tal peça tem tais personagens com participações especiais de tantas outras

levando o espectador muitas vezes a esquecer-se do roteiro e do sentindo que o escritor

pretendeu passar por meio da obra criada.

Nesse sentido, pretendemos mostrar que o theátron grego se diferencia dessa

concepção moderno-contemporânea de que assistir uma peça possui simplesmente uma

finalidade recreativa. Claro, que não sejamos ingênuos a ponto de acreditar que os gregos iam

únicos e exclusivamente prestigiar uma peça grega tanto de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes ou

até mesmo a de Aristófanes que já detinha certo apreço pelo gênero cômico, porque tais peças

detinham uma função pedagógica civilizatória. Por isso o que traremos a tona, o porquê e

como, o Estado utilizava-se da teatrada para instruir moral, civil e religiosamente os helenos

do século V a.C. Por isso, propomos que para compreender a proposta pedagógica do teatro

clássico por meio da análise da trilogia Oréstia, identificando a sistematização do saber

clássico na formação dos homens, devemos ter em mente que a instrumentalização

educacional não se pauta simplesmente no âmbito de instituições, escolas, universidades e

etc., mas dentro de uma concepção mais ampla, da qual engloba todos os processos sociais 1 Formado em Filosofia pela Universidade Estadual de Maringá – UEM. [email protected]

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que levantam indagações sobre a essência humana, tendo este como o investigador,

questionador de suas próprias ações, relações, conceitos, regras e/ou dogmas a fim de explicá-

los e se possível solucioná-los.

Discutiremos aqui por meio do método histórico social a importância do trágico na

educação clássica, preocupando-se com a sistematização do conhecimento e a sua utilização

para a formação da pólis, em um período em que a sociedade grega agregava novos

segmentos, a partir das profundas transformações sociais, políticas e consequentemente

culturais que ocorreram durante o século V a. C. Ainda, partiremos da premissa de que a

tragédia enquanto uma modalidade de arte-educação traduz o homem e a realidade por ele

criada, levando à concretização de um aprendizado e uma análise reflexiva condizente com o

processo de desenvolvimento da essência humana instrumentalizando-o para o exercício da

sua liberdade enquanto indivíduo.

O teatro e a educação clássica

Investigar o estreito vínculo entre o teatro e a educação no período clássico,

protagonizando o esforço que os tragediógrafos possuíam de educar o cidadão sobre as

questões político-sociais da pólis requerirá que salientemos o período de seu surgimento.

Dentre os acontecimentos que marcaram o período em que o teatro se emancipa dos rituais

religiosos em honra ao deus Dioníso e afirmar-se como arte é necessário destacar o sistema

político em que o teatro se instaura, uma vez que iremos ver ao decorrer o artigo a essência

política que o drama possuía além do aspecto religioso. Essa necessidade é imposta uma vez

que entendemos que foi a partir das transformações políticas helênicas que o teatro surge

como instrumento pedagógico.

Os gregos dos séculos VI e V a.C., respectivamente, assinalam o fim do período

arcaico e o início do período clássico. No primeiro, os homens tinham como perfil de cidadão

o homem heróico, fundamentado na tradição religiosa, já o segundo período já possuía um

perfil de serem comandados pela sociedade sendo provenientes de uma aristocracia que

acreditava governar por virtudes modelares. Já em meados do século V a.C., as

transformações foram ainda maiores, pois agora o regime aristocrático começa a perder o

poder surgindo o que se chamaria de democracia com Clístenes. Trata-se aqui da transição do

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regime de governo de Sólon, aristocrata que assumiu como legislador da cidade de Atenas no

ano de 594 a.C.

Dentre as suas reformas, Sólon pretendia afastar o poder aristocrático do cargo público

para que houvesse uma maior representação popular como a Eclésia, a Boulé (instituições

onde os homens reuniam-se para tomar decisões), o Areópago (responsável por formular leis

e manter a autoridade jurídica da cidade, além de fiscalizar as decisões tomadas nas

assembléias). Alguns estudiosos dizem que por esse fato, Sólon não foi nem um completo

tirânico e nem um completo democrático, pois, suas decisões desagradavam tanto aos pobres

como aos ricos.

Com a queda do regime tirânico, houve uma abertura para que houvesse uma disputa

pelo controle da grande Atenas, partindo de dois grupos da Cidade-Estado, os aristocratas,

comandados por Iságoras (governante espartano que viveu entre 517-507, mas tarde sucessor

de Clístenes), e de outro o a massa de cidadãos liderada por Clístenes. Todavia o verdadeiro

apogeu da democracia, só foi alcançado com o regime de Péricles (495-429 a.C.), também

conhecido e rotulado por uma gama de historiadores da Idade Antiga como a Idade de Ouro.

Segundo MARROU (1975), só depois desses processos políticos que os tetes,

cidadãos menos favorecidos financeiramente obtiveram acesso a alguns dos privilégios que

até então estava detido apenas aos aristocratas.

Atenas [...] tornou-se uma verdadeira democracia: seu povo conquistou, por sua extensão gradual, não só os privilégios, diretos e poderes políticos, mas ainda o acesso a este tipo de vida de cultura, a este ideal humano do qual somente a aristocracia havia, de início usufruído (MARROU, 1975, p.70-71).

Com esse modelo de pensar o homem, a palavra passou a ser usada como um

instrumento de persuasão e comunicação; o homem que até então se orientava e justificava

suas ações pelo mito, acreditavam que o poder político era reservado aos descendentes de uma

suposta linhagem heróica. Contudo, devido a essas alterações ocorridas na mentalidade dos

helenos, fez com que o ideal de guerreiro e herói encontrado outrora na Ilíada e Odisséia de

Homero, fosse cedendo lugar ao novo modelo de homem o homem político.

Esse novo homem, não acreditava simplesmente que os deuses orientavam o seu

destino, intervindo na hora que bem entendessem, mas também que algumas leis e atitudes

poderiam sim ser tomadas pelos homens, o que deu lugar a novas regras, as quais se

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centravam na política estabelecida pela pólis. Buscava-se cada vez mais garantir a

participação política dos indivíduos e é por meio deste novo regime democrático que

aparecem os primeiros fatores que ordenam de forma fixadora o caráter educativo do teatro.

De acordo com Courtney (2001), a educação ateniense do período clássico,

fundamentava-se na arte, cujo tripé era a literatura, a música e o esporte. Para os cidadãos

com maiores condições financeiras, as crianças eram instruídas deste a sua tenra idade por

meio de preceptores (normalmente escravos de guerra), que ensinavam a ler, escrever, e

principalmente, a recitar, com todos os recursos dramáticos de expressões vocais e corporais.

A música também era ensinada na infância, sobretudo a tocar lira e flauta. Alguns, porém, os

que possuíam maiores afinidades com a proporção e harmonia, eram ensinadas as artes

esportivas, via por meio da qual o corpo adquiriria saúde, força, leveza e graça. Contudo, nem

todos tinham acesso a este tipo de aprendizado, então Courtney diz que:

O próprio teatro foi um importante instrumento educacional na medida em que disseminava o conhecimento e representava, para o povo, o único prazer literário disponível. Os dramaturgos eram considerados pelos professores tão relevantes quanto Homero, e eram recitados de maneira semelhante. O teatro, em todos os seus aspectos, foi a maior força unificadora educacional no mundo ático (COURTNEY, 2001, p.05).

O teatro desse ponto de vista estabelece a função de pedagogo, uma vez que leva ao

seu público, condições de ampliar a visão que tinha da realidade cotidiana, ou mais

detidamente, o teatro instruía o homem sobre os valores que contribuíam para a sua

completude, enquanto um ser ativo no mundo grego, responsável pela organização do

pensamento e da vida comunitária das cidades gregas.

O século V a.C. foi um século de transição tanto em suas estruturas político-

econômicas, quanto em suas estruturas sócio-culturais. Segundo Vernant (1993), “[...] não se

trata apenas de uma transformação da vida política e social, da religião, da cultura; o homem

não permaneceu idêntico ao que era tanto na sua maneira de ser, como nas suas relações com

os outros e com o mundo (VERNANT, 1993, p.22)”.

O autor e sua obra

Sobre Ésquilo (525-456 a.C.), nascido em Elêusis, cumpre-se destacar que o

dramaturgo iniciou sua vida literária após ter regressado da guerra em Salamina na qual

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participou como soldado, sofrendo e transcrevendo as influências bélicas do seu período

histórico. O teatro esquilino dedicou-se a transmitir o conhecimento que o próprio autor

alcançou em sua trajetória de vida, bem como o entendimento que tinha sobre os sistemas

políticos e os credos religiosos. Ésquilo problematizou questões políticas, da qual se sentia

cada vez mais entusiasmado em participar; indagou sobre questões religiosas, que em seu

período passavam por profundas transformações por meio dos modelos heróicos guerreiros.

Todavia, Ésquilo defendeu sua posição religiosa em relação às novas conceptiones morales

religiosae e, principalmente sua visão política, embora essa última condizia também com o

novo sistema.

Ésquilo escreveu 79 tragédias, entretanto, apenas 07 (sete), permaneceram até os

nossos dias, todavia, ao analisarmos esses números, podemos perceber a relevância dos

dramas esquilinos, tanto no que se refere à quantidade, quanto no que se refere à temática

ampla de que transcenderam o período histórico em que o autor estava inserido. Tornou-se

para os estudiosos e interessados pelo período, uma importante literatura capaz de elucidar,

com riqueza de detalhes o seu momento histórico.

Suas peças sempre contavam com um enredo ilustre provenientes de uma linhagem

real e ascendência divina. A esse respeito Aristóteles diz que é comum esse recurso em peças

gregas, uma vez que, “[...] o possível é mais fácil de acreditar. Pois aquilo que não sucedeu

não cremos tanto que seja possível, ao passo que o que é sucedido é evidente que é possível,

porquanto não sucedera, se fora impossível (ARISTÓTELES, Poética, § 1451b)”. Desta

maneira os roteiros das peças contavam sempre com uma desgraça que ocorria na vida de reis,

príncipes, heróis, guerreiros, semideuses, e/ou deuses da sociedade helênica, relatando a luta

desesperada entre as trevas e a luz, a paz e a guerra, o Hades e o Olímpio.

O homem esquilino encontra-se quase em todos os casos num impasse, sente-se

angustiado de ter de tomar uma decisão que, de qualquer maneira, trará desgraças. O

comportamento da personagem de Ésquilo, muitas vezes é mostrada como sendo susceptível

de transformações. Contudo, o homem encontra-se determinado pelas condições sociais,

políticas, religiosas e econômicas, condições das quais ele próprio como indivíduo torna-se

capaz de modificá-las, mas não as faz com medo da ira divina. Assim, o homem esquilino

encontra-se no terrível imperativo de agir, pois, mesmo sabendo que as suas ações não são

nobres, as executa, uma vez que, é designado a fazer por força da vontade divina:

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Duro é meu destino, se não obedecer, e duro também, se sacrifico a minha filha, ornamento da minha casa, e se vou poluir as minhas mãos de pai nas golfadas de sangue de uma virgem degolada ao pé do altar. Como escapar a estes males? Como hei-de abandonar a armada, faltando às minhas alianças? Se o sacrifício e o sangue virginal fazem cessar a fúria violenta, é lícito desejá-lo. Que seja pelo melhor (AGAMÉMNON, apud. PEREIRA, 1998, 192-227).

Vemos que a decisão de culpa não cabe ao homem grego, uma vez que seus atos são

denominados pelos deuses, pois ao homem que erra por vontade própria ou por desobediência

aos deuses a própria “Oréstia” nos mostra o seu destino: “[...] a ruína é o fim de todos os

culpados (ÉSQUILO, 2000, P.32)”. Segundo Mondolfo (1968), é comum encontrarmos essas

características nas peças esquilinas, porém que tem grande ênfase nos contos homéricos.

Segundo o autor, o homem culpado atribui a poder divino ou demoníaco sua própria ação

censurável; e por outro lado o deus, que rechaça a imputação humana, se atribui, por sua vez,

o mérito de haver aconselhado prudência e respeito à lei.

Costa e Remédios (1988) acreditam que o universo trágico pode ser concebido como

uma crise cujo ponto central é a ambigüidade, uma vez que a tragédia esquilina é resultado de

um mundo que apresenta um choque entre forças opostas: o mítico e o racional. Em virtude

desse mundo mítico vemos que a questão religiosa está intimamente relacionada à história da

Grécia, pois a mitologia tem a sua ascendência direta com a religião grega.

Com essas informações obtidas sobre Ésquilo e o seu contexto histórico, buscamos em

sua trilogia intitulada Oréstia conhecer, em que consiste a proposta pedagógica trágica

sistematizada nessa obra, para que possamos ter uma melhor compreensão da complexidade

do mundo grego e de suas marcas deixadas na história de todo o universo literário, filosófico

histórico e educacional no decorrer dos séculos.

O caráter democrático da educação por meio do Teatro Grego

Como sabemos por meio de fontes históricas (FINLEY, 1988) o povo grego ao fundar

o seu sistema de governo político democrático, tratava-se apenas do indivíduo público, que

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eram aqueles que por direito, podiam votar em Assembléias, participar das reuniões na Ágora,

irem para guerra, dentre outras características. O termo democracia do século de Péricles é

diferente do que empregamos hoje para denominarmos o sistema democrático atual. O

significado do termo democracia que empregamos em nosso cotidiano, define-a como sendo

uma forma de governo na qual o poder emana do povo e em nome dele é constituído;

soberania popular; igualdade. Já segundo FINLEY (1988), o termo democracia era utilizado

apenas para o homem público, ou seja, o ser livre, que tinha condições para participar das

atividades públicas como, por exemplo, votar nas Assembléias. Segundo o autor, dentre os

cidadãos desse período estavam excluídos todos os indivíduos vindos de outras regiões,

escravos, mulheres e crianças.

Devido o teatro do século V a.C. não fazer distinções entre os seus espectadores, sendo

todos indivíduos da pólis grega, pode denominá-lo como totalizante.

Para entender esta concepção educativa, devemos considerar que o Estado não estava

simplesmente interessado que a população fosse ao teatro para que se entretecem. O Estado ao

perceber que as tragédias poderiam transmitir os conceitos de uma educação voltada para o

âmbito social, como por exemplo, podemos destacar nas passagens do primeiro livro da

“Oréstia”, de que “O dom supremo é ter comedimento (ÉSQUILO, 2000, p.25)”, ou que “por

obra da justiça os sofredores se tornam dóceis e o porvir há de se mostrar no tempo prefixado

(ÉSQUILO, 2000, p.25)”. O Estado ao financiar as peças trágicas para toda a população grega

como finalidade a formação do homem para o convívio social. É por meio da tragédia que

todos adquiriam uma possibilidade de pensar os relacionamentos humanos, fornecendo

estímulos pedagógicos que os levam a adequar-se ao seu próprio mundo histórico nas

diferentes funções sociais destes na sociedade.

Assim, depois que os governantes descobrem que o teatro pode ser utilizado para

ensinar conceitos, este, torna-se itinerário entre o conhecimento político/religioso que a pólis

deveria transmitir aos espectadores por meio de seus dramas, o que acabara por garantir ainda

mais a totalidade que o teatro abrangia, passando então a ser custeado pelo Estado, o que

garante que todos iriam ter acesso as peças trágicas.

A representação era uma cerimônia religiosa oficial, presidida pelo sacerdote de Dioniso, que se assentava na primeira fileira; dela participava a cidade inteira. As despesas eram cobertas por uma LITURGIA (chorégia), imposta aos ricos. O Estado criou um fundo especial, o theorikón para pagar uma indenização aos pobres, a fim de que estes também pudessem assistir à festa.

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(JARDÉ, 1977, pg. 150).

A partir deste momento, podemos dizer que o Estado assume o papel de pai da

população menos favorecida, ou seja, os que não eram considerados cidadãos, oferecendo

ingressos àqueles que não tinham condições financeiras para irem ao teatro. Segundo Jaeger

(1986), é o Estado do século V a.C. o assímo ponto de partida histórico do grande movimento

educativo que imprimiu a idéia ocidental de cultura desde então.

Ésquilo é o primeiro dentre os trágicos que retratou de maneira mais abrangente o

sistema político democrático de sua época, e o primeiro a fazer uso do coro em suas criações,

que dava ainda mais um caráter de coletividade em suas peças. E é por meio do coro que

vemos ainda mais a totalidade de pessoas de diferentes classes sociais sendo enfatizada dentro

das tragédias gregas.

O fato é que a tragédia passou a ter um lugar na vida da cidade, ela contava com a presença de todo o povo; sua representação era programada e organizada sob os cuidados da cidade. Dirigindo-se ao povo reunido, os poetas se exprimiam como cidadãos e falavam a cidadãos (ROMILLY, 1984, p. 74).

A tragédia passa a fornecer a todos os seus espectadores uma possibilidade de pensar

os seus relacionamentos humanos, pensado sob a perspectiva individual e social. Fornece

estímulos pedagógicos que os levam a adequar-se ao seu próprio mundo histórico, na medida

em que faz com que o homem reflita por meio do teatro em suas ações cotidianas e analise se

os seus atos estão de acordo com o bem da pólis nas diferentes funções sociais dentro dessa

sociedade, e o mais importante de tudo seja o homem senhores ou escravos, governantes ou

mulheres, velhos ou crianças, natos da cidade ou estrangeiros. Neste contexto, Ésquilo

constituiu pontos culminantes para esse desenvolvimento, uma vez que, feita a análise da

“Oréstia”, pudemos perceber o quão politicamente e culturalmente engajado, o autor

encontra-se com a sua época.

Importância do Teatro Clássico na Educação Contemporânea

Entendendo como os homens viveram e interagiram com o seu período histórico, é

possível aprendermos a enfrentarmos nossos problemas, pois aprendemos a refletir com a

história, desta maneira, far-se-á pertinente e necessário estudarmos o passado. Segundo

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Saviani “clássico na escola é a transmissão-assimilação do saber sistematizado” (SAVIANI,

1997, p. 23). Assim, nossa escolha foi feita, na medida em que percebermos a amplitude e a

força tanto por um cunho de entretenimento quanto um caráter moralizador com que a

tragédia do período clássico trata a condição humana traduzindo em ações fictícias, fatos

sobre a realidade que estava sendo vivenciada. Ao nos atermos na tragédia temos a

compreensão de que resgatar o passado, não é apenas aceitá-lo, procurando repensar aquele

contexto histórico, dando a ele um sentido anacrônico, mostrando-se novas possibilidades de

pensarmos e analisarmos a tragédia não só pelo conhecimento que transmitiam aos helenos,

mais ainda, entender o contexto histórico em que aquele povo se encontrava.

Segundo Nagel (2006), ao fazer-se uma investigação sobre os conteúdos educativos da

Grécia do período clássico é impossível não nos atermos às tragédias. Ela diz que as tragédias

apresentam-se como uma literatura insubstituível no exame da consciência do povo grego.

Nagel enfatiza que a dramaturgia dá possibilidades ao homem de fazer reflexões sobre as

forças universais, ou seja, levá-lo a refletir sobre as suas ações, relações, conceitos, regras e

dogmas políticos e religiosos como ser ativo dentro da sociedade helênica. CORO O que depois se passou, nem o vi, nem o digo. Mas não são vãs as artes de Calcas. Aos que sofreram concede a Justiça que fiquem a saber. O futuro o ouvirás, quando surgir. Antes disso, esqueçamo-lo, que o mesmo vale que começar logo a gemer. Virá claramente com a luz que o vir nascer. Seja bem sucedida, depois disto, a acção, como deseja essa fortaleza, reduto último e mais próximo da terra de Ápis! (AGAMÉMNON apud Pereira, M.H., 1998, 248-257).

Ainda segundo Nagel (2006), é inquestionável que o conhecimento educacional e/ ou

cultural do século V a.C. passava pela tragédia. Segundo ela, o poder de formação dos

homens por esta arte só pode ser dimensionado pela importância dada ao teatro, pela sua larga

projeção social entre os atenienses.

O teatro estabelece a função de pedagogo, uma vez que ele constrói um modelo de

homem para sociedade grega, por meio das condições que o ser tinha de pensar as relações

sociais, culturais e políticas de seu período histórico.

Ao analisarmos ainda dentro do próprio teatro o seu caráter educativo, vemos que os

próprios contemporâneos de Ésquilo percebiam o teatro dentro desta função. Por meio de

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alguns fragmentos de Aristófanes em As Nuvens, percebemos que desde o surgimento da

dramaturgia o teatro esteve ligado à concepção de formador da consciência humana.

Eurípedes [...] Além disso ensinei os atenienses a falar [...] Mostrei o uso das regras mais sutis, das palavras de duplo sentido, a arte de refletir, de ver de compreender, de ser esperto, de intrigar de armar, de admitir a maldade, de controverter os fatos [...] [...] Pus em cena os hábitos de uma vida cotidiana, coisas banais, familiares, sobre as quais cada expectador estava nas condições de julgar. [...] [...] Foi assim que consegui formar o pensamento deles, introduzindo em minhas tragédias o raciocínio e a reflexão, de tal maneira que atualmente eles podem compreender tudo, aprofundar-se em tudo e governar melhor os seus lares, [...] [...] [O que torna um poeta trágico digno de admiração são, pois,] as sábias lições que tornam os homens melhores (ARISTÓFANES apud NAGEL, 2006, p. 81).

Assim, o teatro estimula o aluno para o processo da sua omnilateralidade humana, uma

vez que incide sobre o processo construtivo da consciência do aluno. Neste sentido, dizemos

que o teatro o conduz para o exercício da sua omnilateralidade. Pode-se, por meio do teatro,

apreender a totalidade das manifestações e idéias humanas. Assim, o teatro, além de arte, é

educação, já que segundo Saviani, a educação se constitui num “[...] ato de produzir, direta e

intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e

coletivamente pelo conjunto dos homens” (SAVIANI, 1997, p. 17)

Nagel afirma que:

O convite ao exercício de raciocínio, no entanto não se impõe como um forçoso rompimento com a tradição de respeitar e honrar as divindades por meio de cultos. Em tais costumes, acopla-se, agora, apenas um saber desembaraçado, atuante, que se propõe não só a retirar dos sujeitos o temor da divindade passiva ou indolente. A proposta pedagógica nova, nesse sentido, é incitar o povo a reflexões mais aprofundadas sobre os processos da vida em comunidade. É, pois, reeditar didaticamente, aquele espanto típico do grego que, nesse momento, busca e cria significados diante de paradoxos entranhados nas forças das vidas da materialidade. Limitação do poder, intransigência, inconstância, consequências de ações destrutivas, vão subindo ao palco com o homem que já pensa o aparente e o oculto (NAGEL, 2006, p.87).

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Por isso tornou-se relevante para a compreensão do pensamento clássico, bem como

da educação e da sociedade nesse período da análise da trilogia Oréstia, pois as formulações

contidas nessa obra influenciaram diretamente o homem sobre as transformações de todos

modelos de educação do povo grego estava passando.

A história do teatro mostra que o teatro grego tinha uma função didática muito importante no sentido de organizar o pensamento e a vida comunitária das cidades gregas. Os festivais organizados por ocasião da primavera movimentavam a vida da pólis e multidões formavam o público que acorria aos teatros ao ar livre para apreciar encenações que versavam sobre os temas profundamente humanos: suas paixões e desatinos, os valores éticos que permeavam ou não suas ações e conseqüências advindas do uso ou da falta da liberdade nas decisões e no posicionamento perante a realidade. O teatro grego era o teatro cívico por excelência, pois dialogava com o povo incitando-o a conhecer sua história e a se reconhecer na história, num caráter francamente pedagógico, o que não interferiu na qualidade artística a qual lhe conferiu seu valor universal (CEBULSKI, 2007, p.28).

Desse modo, pudemos entender a relevância da proposta pedagógica clássica

sistematizada em Oréstia. Vimos que na obra de Ésquilo evidencia-se o ideal de formação do

homem organizado em sociedade, como por exemplo, deixar em evidência ao povo grego que

a justiça é soberana formada agora dentro de uma assembléia constituída por cidadãos e

deuses:

ATENA Nem anarquia, nem despotismo eu quero que meus cidadãos cultivem com devoção. E que não se lance o temor fora da cidade. Sem nada recear, qual dos mortais seria justo? (ESQUILO, apud, Pereira, 1998, 215).

O que Ésquilo está dizendo por meio da tragédia neste sentido é que continue a

estabelecer ordem e tranquilidade, pois com este novo sistema de julgamento, os culpados

serão punidos, não havendo simplesmente o que temer mais a partir de agora.

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REFERÊNCIAS

1 - FONTES PRIMÁRIAS

ARISTÓTELES, Poética. Lisboa: Fundação Calouste Guilbenhian, 2004.

ÉSQUILO. Oréstia: Agamêmnon, Coéforas, Eumênides. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

PEREIRA, M. H. da ROCHA, Helade, Antologia da Cultura Grega. Imprensa de Coimbra

LTDA, 7.a edição. Coimbra, 1998.

2 - FONTES SECUNDÁRIAS

BONNARD, A. Civilização grega: de Antígona a Socrátes. Lisboa: Estudios, 1968, v. II.

BRANDÃO, J. S. Teatro Grego: tragédia e comédia. Petrópolis: Vozes, 1985.

COURTNEY, R. Jogo, teatro & pensamento. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001.

COSTA, L. M. e REMÉDIOS, M. L. R. A tragédia: estrutura & História. São Paulo: Ática,

1988.

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