O teatro e os bebês trajetórias possiveis
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“
ESPAÇOS DA ESCOLA EDITORA UNIJUÍ ANO 21 Nº 69 JAN./JUN. 2011 P. 29 - 38
Maria Carmen Silveira BarbosaPaulo Sergio Fochi
Esta pesquisa narra experiências vindas do norte da Itália, indicando pistas
em termos de conceitos sobre cultura, escola e educação para crianças
pequenas. Pela Pedagogia da Escuta e das Cem Linguagens, é traçada uma
relação entre a constituição e a historicidade da Pedagogia de Malaguzzi, com
o projeto de Bolonha “A creche e o teatro”. Esta pesquisa sublinha aspectos
dos bebês e a linguagem teatral na cidade de Bolonha que, desde 1985, por
meio das produções de teatro para bebês e dos ateliês de teatro com bebês,
investiga possibilidades de as crianças pequenas experimentarem formas
diversificadas de estar no mundo.
O TEATRO E OS BEBÊS: Trajetórias Possíveis Para uma Pedagogia com Crianças Pequenas
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PRIMEIROS DIÁLOGOS: A Pedagogia Italiana
A experiência que aqui se apresenta é parte
integrante de um projeto em Bologna – Emilia Ro-
magna, Itália – o qual, a mais de 20 anos, envolve o
serviço educativo para a primeira infância e grupos de
teatros que estejam interessados em refletir a experi-
ência de atuar para e com bebês e crianças pequenas.
Um percurso de pesquisa nascido para aproximar as
crianças das creches com as formas comunicativas da
linguagem teatral e que traz, no cerne da sua pesquisa,
a investigação das possíveis relações dessas crianças
com a linguagem teatral como parte de seu processo
de comunicação e relação com o mundo.
Assim, cabe um breve retorno à historicidade e
constituição do projeto, uma vez que este está ligado
à abordagem italiana para a Educação Infantil firmada
na região de Emilia Romagna e, por isso, torna-se
fundamental contextualizar a educação para crianças
pequenas no norte da Itália e, em especial, versar sobre
a trajetória de Loris Malaguzzi e seus inúmeros com-
panheiros de interlocução de distintas cidades da Itália
em sua abordagem educacional.
Nesse sentido, conta-se que, próxima a Réggio
Emilia, numa aldeia chamada Villa Cella, em uma
primavera de 1945, logo após o término da Segunda
Guerra Mundial, moradores se uniram com o objetivo
de criar uma escola para seus filhos. Uma escola cuja
construção fora feita dos vestígios da guerra, tais como
a venda dos cavalos abandonados pelos alemães e dos
tanques de guerra deixados. Sendo assim, a proposta
de Reggio Emilia, no norte da Itália, é o resultado de
um movimento de pais que desejavam, sobretudo, “uma
declaração contra a traição do potencial das crianças,
e um alerta de que elas, antes de tudo, precisavam ser
levadas a sério” (Malaguzzi, 1999, p. 67).
Nesse mesmo ano, ao saber da notícia, o jovem
pedagogo Loris Malaguzzi foi, com sua bicicleta,
conhecer o que estava acontecendo naquele vilarejo.
Malaguzzi após várias experiências, tornou-se o idea-
lizador do projeto educativo e de uma pedagogia pró-
pria, que resultou na Pedagogia da Escuta e na Teoria
das Cem Linguagens das Crianças, imbricadas numa
concepção de criança competente, capaz e portadora
de direitos:
em nossa abordagem, portanto, afim de progre-dirmos, fazemos planos e reflexões ligadas aos campos cognitivos, afetivo e simbólico; refinamos as habilidades de comunicação; somos muito ativos na exploração e na criação em grupo, permanecendo abertos a mudanças. Desta forma, enquanto todos os objetivos são compartilhados, o aspecto mais precioso ainda é a satisfação interpessoal (Malaguzzi, 1999, p. 75).
Esse período de envolvimento com a educação
das crianças culmina no que, atualmente, é a Rede
de Escolas da Infância e Creches Municipais para
crianças da cidade de Réggio Emilia. A concepção de
Loris traz os elementos necessários para que possamos
compreender a dimensão da pedagogia italiana, a qual
se difundiu pelo norte da Itália, produzindo desdobra-
mentos diferenciados em cada contexto, dando atenção
a uma ou outra forma de expressão e comunicação das
crianças, e, acima de tudo, convidando a pensar sobre
a forma com a qual nos relacionamos com a criança,
uma vez que isso “influencia o que as motiva e o que
aprendem” (Malaguzzi, 1999, p. 77).
O sistema de relacionamento em nossas escolas é real e simbólico simultaneamente. Nesse siste-ma, cada pessoa tem um relacionamento formal – em seu papel – com as outras. Os papéis de adultos e crianças são complementares: fazem perguntas uns aos outros, ouvem e respondem (Malaguzzi, 1999, p. 79).
Nessa perspectiva, refletir sobre um relaciona-
mento que considere a criança competente, capaz de
elaborar teorias provisórias e de estabelecer relações
com o tempo e o espaço, é acreditar numa criança
cidadã, rica pelos seus saberes, que produz e consome
cultura, diferentemente da criança sugerida por algumas
teorias do desenvolvimento que a consideram apenas
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como um “vir a ser”. Aliás, é justamente por essas
considerações que se pode afirmar que a pedagogia
proposta por Malaguzzi substitui as convencionais salas
de aulas por ateliês, considerando que o local escolhido
e organizado para a realização das atividades é parte do
projeto educativo. Os ateliês, desse modo, configuram-
se num espaço para o uso e a combinação das diferentes
linguagens, um lugar que provoca complexas relações
e que oferece um amplo repertório de ferramentas para
o pensamento.
O ateliê protegeu-nos não apenas de longas pales-tras e teorias didáticas de nosso tempo (quase que a única preparação recebida por jovens professores), mas também das crenças comportamentalistas (behavioristas) da cultura que nos cerca, reduzindo a mente humana a uma espécie de “recipiente” a ser enchido (Malaguzzi, 1999, p. 84).
Na verdade, é um local onde as diferentes lin-
guagens das crianças podem ser exploradas por elas;
um espaço no qual diferentes técnicas, modalidades e
materiais são escolhidos pelas crianças ou sugeridos
pelos professores para a construção e a documentação
da atmosfera das experiências infantis; uma “trans-
gressão física [...], um diálogo que interrompe a, assim
chamada, normalidade educativa” (Hoyuelos, 1998, p.
7 apud Farias; Richter 2009, p. 108).
A pedagogia de Malaguzzi, portanto, está pau-
tada na imaginação ao invés da inteligência; “a ima-
ginação é extremamente importante, porque leva a ter
imagens múltiplas, o que significa que um objeto pode
adquirir uma pluralidade de significados” (Malaguzzi,
1999, p. 63) e, ainda, acrescenta que
a imaginação absorve tudo, o cognitivo, o expressivo, o sentimento, a lembrança, as es-colhas que nos pertencem... Temos que destruir a imagem simplificada de um objeto, temos que complicar o mundo... a imaginação é arte e ciência, pois multiplica os significados de um objeto, de um acontecimento, de uma palavra (Malaguzzi, 1999, p. 63).
A partir de uma forma simples de pensar é que
Malaguzzi (1999, p. 61) talvez traduza o cerne dessa
proposta pedagógica; “que as coisas relativas às crian-
ças e para as crianças somente são aprendidas através
das próprias crianças”. Essa lógica indica a dimensão
social e o princípio fundamental da proposta; a criança
como construtora de conhecimento, como aquela que
tem múltiplas linguagens, as “cem”.
A criança é feita de cem.
A criança tem cem mãos,
cem pensamentos,
cem modos de pensar,
de jogar e de falar.
Cem, sempre cem modos de escutar as maravi-lhas de amar.
Cem alegrias para cantar e compreender.
Cem mundos para descobrir.
Cem mundos para inventar.
Cem mundos para sonhar.
A criança tem cem linguagens (e depois, cem, cem, cem), mas roubaram-lhe noventa e nove.
A escola e a cultura separam-lhe a cabeça do corpo.
Dizem-lhe: de pensar sem as mãos,
de fazer sem a cabeça,
de escutar e de não falar,
de compreender sem alegrias,
de amar e maravilhar-se só na Páscoa e no Natal.
Dizem-lhe: de descobrir o mundo que já existe e de cem, roubaram-lhe noventa e nove. Dizem-lhe: que o jogo e o trabalho, a realidade e a fantasia, a ciência e a imaginação, o céu e a terra, a razão e o sonho, são coisas que não estão juntas.
Dizem-lhe: que as cem não existem.
A criança diz: ao contrário, as cem existem
(Malaguzzi, 1999).
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O autor – que tinha um grande contato com o
teatro, pois consta que em 1953 organizou espetácu-
los de teatro para as crianças – refere-se à linguagem
como expressão, como comunicação ou recurso de
experimentação; para ele, a espécie humana tem o
privilegio de se manifestar em uma pluralidade de
linguagens (Malaguzzi apud Hoyuelos, 2006). Nessa
direção, o autor exemplifica a relação dessas diferentes
linguagens.
Assim que nasce, a criança desenha, mesmo que não pareça ser capaz de fazer garatujas, de de-senhar. Não tem um lápis entre suas mãos, mas os gestos que suas mãos, suas pernas e seu corpo traçam, já é o princípio do grafismo (Malaguzzi, 1986 apud Hoyuelos, 2006, p. 111).
Nesse sentido, as proposições de Malaguzzi afir-
mam uma imagem da criança plena de potencialidades
de criação e de invenção. Uma criança que experiencia o
mundo por inetrmédio das relações que estabelece com
seu próprio corpo, com objetos e com o outro.
A primeira questão é que a criança, biologica-mente, não suporta estar só, nem mesmo quando está dentro do ventre de sua mãe: chuta, se movimenta em busca de uma relação, e quando nasce, é uma criança que imediatamente pro-cura sua sobrevivência: uma relação com as coisas e com o mundo (Malaguzzi, 1986 apud Hoyuelos, 2006, p. 113).
Desse modo foram traçados os primeiros de-
lineamentos entre a pedagogia de Malaguzzi com a
experiência da linguagem teatral para e com as crianças
pequenas.
Antes, todavia, de se dar continuidade, é impor-
tante destacar o conceito de arte trazido pelos italianos,
o qual propõe “arte como possibilidade de mais lin-
guagens e, portanto, como possibilidade, pelas várias
linguagens, das diversas formas de ver o mundo”. Tal
definição é, sem dúvida, uma tentativa de permitir à
criança a difícil tarefa de ver o mundo por diversos
ângulos, de vislumbrar diferentes horizontes, de auto-
rizar e incentivar a escolha, de “dizer também aquilo
que você não vê [...] queremos que as nossas crianças
narrem de formas diferentes” (Rabitti, 1999, p. 64).
Se, na cidade de Réggio Emilia os ateliês assu-
mem uma dimensão de problematização, especialmente
das artes visuais, em Bolonha percebemos outra dimen-
são do ateliê, um espaço também para as artes, para as
linguagens, para a problematização e potencialização
das diversas formas de se expressar e de se relacionar,
um ateliê de teatro, conforme os próximos capítulos
apresentarão.
O SURGIMENTO DO PROJETO “A CRECHE E O TEATRO”
No ano de 1985, após a visita de crianças muito
pequenas da creche ao teatro, os atores do grupo La Ba-
racca, Roberto Frabetti e Valéria Frabetti,1 perceberam
a possibilidade de iniciar um novo projeto para um pú-
blico até então não pensado: crianças de 0 a 3 anos.
encontramos um público de crianças muito pe-quenas, e algo aconteceu. O que aconteceu foi que começamos a compreender a importância “dos olhos e da pele”. E embarcamos em uma aventura para descobrir novos caminhos, de encontros com as crianças, educadores, artistas, pais, estudantes, entusiastas da infância, pesso-as de diferentes países (Frabetti, V., 2010).
Nessa ocasião de encontro entre os pequenos
com o teatro, Roberto e Valéria puderam conhecer
Marina Manferrari, educadora da creche.
Eu vi as crianças da creche pela primeira vez no teatro numa manhã de 1985. No nosso teatro se apresentava Pigiami, do Teatro dell’Angolo. Caminhava pela sala, me preparando pra assistir o espetáculo e observava as duzentas crianças da Escola Infantil prontas pra fazer o
1 Valéria Frabetti é irmã de Roberto Frabetti, médica e atriz. Valéria atua junto à companhia e no projeto com as creches.
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seu papel, ser o público. Eu gostava de observá-los acomodando-se nas poltronas. Mas não esperava que pudessem ser tão pequenos assim. Tão pequenos que o melhor era sentar duas crianças em cada poltrona dobrável pra evitar que virassem sanduíches (Frabetti; Manferrari, 2006, p. 91).
Do primeiro encontro entre Roberto, Valéria e
Marina, nasceu um desejo, cheio de perguntas com
pouquíssimas respostas, de começar um projeto de
produção de espetáculos culturais para bebês e, mais
tarde, de laboratórios teatrais. O retrato desse importan-
te encontro entre pedagogos e artistas para a pesquisa
e a investigação da linguagem dos bebês para e com o
teatro é a marca do projeto até hoje.
Houve o apoio dos educadores e pedagogos que estavam realmente em contato com as crianças e então apoiaram nosso projeto e nos ajudaram conhecer um pouco sobre elas, mas isso não foi suficiente para “dar o start”. O que efetiva-mente possibilitou o start foi nosso trabalho de campo e o contato constante com esse público imprevisível é que nos deu a força e a vontade de continuar a aprender e sonhar. A força e os sonhos são os alicerces deste projeto de mais de 20 anos de pesquisa (Frabetti, V., 2010).
Ao se encontrar com Roberto Frabetti, Marina
iniciou sua jornada dentro desse projeto. Ela representa
um dos lados do projeto, a esfera dos serviços educati-
vos de Bolonha que, desde o começo, contribuiu com o
trabalho, trazendo para a cena as especificidades sobre
o universo dos bebês.
Manferrari (2009), por sua vez, comenta que
muitas das experiências dos serviços educativos de
Bolonha emergiram em virtude do contexto com as
crianças, embora outros tenham surgido da necessidade
de se ampliar o conhecimento sobre as formas comuni-
cativas destas crianças. Atualmente, Marina é pedagoga
e coordenadora do projeto “A creche e o teatro” da rede
municipal de Educação Infantil de Bologna.
Do outro lado está a companhia de teatro La
Baracca, situada no teatro Testoni Ragazzi de Bolo-
nha, fundada em 1976 pelo ator, diretor e dramaturgo
Roberto Frabetti. Desde a fundação, Roberto participa
da concepção e coordenação do projeto e hoje ele é o
curador artístico do Visioni di futuro, visioni di teatro,
festival internacional de arte e cultura para a primeira
infância de Bolonha.
Roberto atua também nos laboratórios e ateliê
de teatro para professores e crianças nas creches e nos
Centros para pais e crianças e ainda escreveu diversos
livros, sendo muitos deles em parceria com Marina.
Mediante essa experiência, o que se configu-
rou foi um jogo de “dar e receber”, o qual exigia dos
atores que abrissem mão de suas certezas para criar
novos horizontes. Assim, na medida em que o tempo
foi passando, percebeu-se que os bebês se comunicam
com os atores de outra forma, ou seja, com os olhos
e o corpo; então, para tê-los por perto, descobriram a
necessidade de aprender a fazer as narrativas com os
olhos, pois
eles falam com seu corpo e você precisa ser capaz de decifrar a linguagem do corpo, ouvir sua respiração, interpretar o movimento de uma mão, um começo de uma risada, que você não planeja dentro do ritmo de seu tempo teatral. As crianças, por vezes, podem perturbar o con-ceito de tempo do teatro, ou, melhor dizendo, o conceito de tempo e do fim do tempo (Frabetti, V., 2010).
Por isso que o grupo, a cada espetáculo, cria uma
espécie de “estudo de caso”, a fim de decifrar códigos
que até então pareciam indecifráveis: tempo, ritmo,
quantidade de narrativas, som, cores, luz, formato do
teatro, enfim, a atmosfera teatral para os pequenos.
É importante sublinhar que a dimensão deste
projeto foi alcançada graças ao contexto já apresen-
tado neste artigo. O que de antemão fica evidente é a
percepção de uma criança não abreviada, uma prática
que observa, na própria criança, a sua especificidade,
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reforçando a crença de que, desde muito pequenas, as
crianças são moldadas pela experiência, mas também
dão forma a ela.
AS DIMENSÕES DO PROJETO
Assim, o projeto A creche e o teatro, de Bologna,
destaca-se por considerar que a linguagem teatral pode
atravessar o espaço das creches, envolvendo educado-
ras, crianças, pais e artistas. Considera a criança, mesmo
o bebê, como um sujeito capaz, imprimindo-lhe, assim,
um caráter fundamental no que diz respeito à produção
cultural e à prática pedagógica para crianças pequenas,
compreendendo o teatro como processualidade.
Assim, é necessário fazer duas distinções: a
primeira diz respeito à produção de teatro para2 bebês,
considerando suas especificidades e a possibilidade
de os bebês se fazerem público. A segunda refere-se
ao teatro com bebês, dos laboratórios teatrais para
educadoras, pois se envolvem com esta linguagem
e, no caso das crianças, produzem o que chamam de
garatujas teatrais.
TEATRO PARA BEBÊS
Roberto Frabetti conta sobre a primeira situação
que o provocou a investigar a produção de espetáculos
teatrais para as crianças da creche:
é difícil contar a pesquisa artística feita no decorrer daqueles anos. Iniciamos com muito cuidado, seguindo todas as instruções que nos eram fornecidas. Porque no fundo, nenhum de nós sabia como se devia fazer. Ou o que poderia fazer sentido. Até aquele momento, não tínhamos visto espetáculos dedicados para as crianças da creche. Dúvidas e preocupações eram muito presentes (Frabetti; Manferrari, 2006, p. 91).
2 Durante o texto, os termos para e com bebês foram grifados, a fim de destacar a distinção entre cada um dos desdobramentos do projeto.
Este relato aponta as primeiras reflexões de Ro-
berto Frabetti sobre o que seria fazer teatro para crianças
pequenas: menos ênfase na linguagem oral, sublinhar
ações do campo sensorial, tal como a visão, utilizar o
som não linguístico e, também, possibilitar o toque.
A ida das crianças ao teatro também chama
a atenção, porque a função desse expectador bebê é
substituída por uma função de “participante” em relação
aos artistas e à peça e, nesse exercício de participação
da criança, os pais acabam se tornando outro tipo de
expectador, aquele que assiste, mas que também inclui,
na obra, as “atuações” dos seus filhos.
O papel dos pais, portanto, é fundamental para
o engajamento da criança no contexto artístico. “O que
é interessante é que o teatro não é feito apenas para
crianças, mas para crianças com adultos” (Young, 2009,
p. 43). A função realizada pelo adulto tem, a princípio,
duas razões iniciais: primeiro, porque a forma com
que os pais possibilitam (ou não) seus filhos, durante
a peça, permite às crianças experiências diferentes (por
exemplo, as narrativas antecipadas dos acontecimentos
da peça impedem que as crianças experimentem, da sua
forma, as diversas sensações causadas pelo teatro). A
segunda razão é a relação que os pais estabelecem com
o espetáculo e que acaba contribuindo com os atores,
seja nas vocalizações ou no foco que darão a partir de
seus olhos.
Ao contrário do que Roberto Frabetti imaginou
para um espetáculo a crianças pequenas, o tempo de
duração não precisa ser tão curto, tampouco é necessá-
rio contar com poucas falas e apenas lidar com cores e
músicas suaves, conforme feito com a primeira experi-
ência do grupo – “Acqua3” –, na qual eles apresentaram
para apenas 5 creches, com pequenos grupos de 20
crianças. Após tal experiência, foi possível sublinhar
3 Água (1987) – O espetáculo teve duração de cerca de 20 minutos, com uma intensidade narrativa muito baixa/ curta, investindo, mui-to mais, em trilha sonora/música, com cenário e adereços bastante delicados e com predominância de elementos do cotidiano, num ambiente suave, apresentado num espaço circular. O espetáculo contava a história de uma gota que escapou de uma torneira para viajar pelo mundo pelo sistema hidráulico.
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que as crianças das creches não eram tão frágeis como
se imaginava. Isso os conduziu a experimentar uma
abordagem diferente em seu segundo espetáculo –
“Sogno d’aria4” –, mais longo, com narrativa maior e,
principalmente, como o próprio Frabetti (2006) conta,
firmando definitivamente o percurso de trabalho do
grupo para a produção de espetáculos infantis, especial-
mente porque as crianças sensibilizaram, emocionaram
e exigiram do ator um trabalho diferente, ou seja, em
constante reelaboração.
Os espetáculos seguintes caminharam por pos-
sibilidades como: dança, teatro de sombra, narrações
surreais, histórias com poucas ou muitas falas, diverti-
das ou românticas, com cenários e adereços abstratos
ou brinquedos, somando mais de 22 espetáculos para
bebês.
Desse modo, para Frabetti (Frabetti; Manferrari,
2006, p. 95), existem basicamente dois tipos de espe-
táculos direcionados aos bebês: o primeiro, parecido
com o espetáculo “Sogno d’aria”: intenso e divertido,
feito por um ator, rico em falas e com contos surreais.
“Histórias diferentes, mas que basicamente afirmam
um conceito: o grande prazer do adulto em estar lá,
contando histórias para crianças, naquele momento”.
O segundo, mais recente e que iniciou com “I colori
dell’acqua” são espetáculos em que a imagem, a músi-
ca e os movimentos ficam em primeiro plano e a palavra
em segundo (Frabetti; Manferrari, 2006).
Na verdade, fazer teatro para crianças abrange
uma intensa qualidade de envolvimento humano e é,
certamente, uma tentativa de superar as barreiras da
idade e de estabelecer um contato consciente com “um
público que, talvez, tenha menos convenções do que
os outros, porque dificilmente aplaude ou ri, quando
deve, mas que é capaz de surpreender com seu silêncio
inesperado e improvisar tantos beijos que nos são pre-
senteados” (Frabetti; Manferrari, 2006, p. 94).
4 Sonhas de ar (1988) – Frontal, barulhento, para um público bem maior, com duração de mais de 40 minutos, com uma narrativa mais longa. Uma história simples de um sonho em que tudo poderia acontecer.
TEATRO COM BEBÊS
A razão pela qual Bologna optou por realizar
o projeto em conjunto com escolas, justifica-se pelas
concepções de criança competente e da crença de que
para as crianças pequenas essa instituição tem um pa-
pel importante a desempenhar, realizando abordagens
artísticas e potencializando processos criativos que
deverão atuar como mediadores culturais. Um contexto
que, cabe ressaltar, possibilitou a pedagogos e artistas
trocarem conhecimentos e permitir que o projeto se
desenvolvesse.
acompanhando as crianças nessa fruição dos es-petáculos, participando das ocasiões colocadas à disposição de maneira permanente, acolhendo artistas na própria creche, e especialmente, via-bilizando esta preciosa troca de saberes é que permitiu essa experiência acontecer de forma tão positiva (Manferrari, 2009, p. 3).
Praticamente desde o surgimento do espetáculo
para os bebês, um espaço de formação para as educa-
doras surge com a finalidade de oferecer a descoberta
da teatralidade de cada uma, “dessa forma, esse es-
paço cresceu como um lugar de idealização, de troca
e de confiança entre diversos profissionais” (Frabetti;
Manferrari, 2006, p. 146).
Assim, o trabalho com as educadoras nasce da
percepção de que as crianças constroem suas formas de
comunicação e relação com o mundo também dentro
da creche, sendo imprescindível disponibilizarem e
agirem interlocutivamente – não somente de forma oral,
mas também corporal – nesse jogo de comunicação e
relação, justificando a necessidade da experiência de
formação no teatro.
O papel do artista, então, nesse trabalho labo-
ratorial, é sofisticar no professor de crianças pequenas
a atenção para as outras formas de expressão. Não é
uma atuação de consultores artísticos, mas um trabalho
em conjunto, disponibilizando aos professores suas
habilidades e seus conhecimentos para a construção
de novas experiências.
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Nesse sentido, o ser professor de bebê diferen-
cia-se das demais modalidades de educação na medida
em que se está diante de um exercício pedagógico que
deve ser pautado nos encontros e nas relações,
os adultos são responsáveis pela educação dos bebês, mas para compreendê-los é preciso estar com eles, observar, “escutar suas vozes”, acompanhar os seus corpos. O professor acolhe, sustenta e desafia as crianças para que elas par-ticipem de um percurso de vida compartilhado (Barbosa, 2010, p. 6).
Essa especificidade da ação docente para o traba-
lho com os bebês torna o laboratório teatral fundamen-
tal, por acreditar que a escola se configura como uma
instituição de ensino num ambiente de socialização.
Pautado nessa experiência, o professor participante
amplia os horizontes da comunicação não verbal e
a disponibilidade da relação com o outro é também
potencializada, bem como a trajetória que se instaura
é de proximidade e qualidade educacional.
Na verdade, esse espaço tornou-se um local pri-
vilegiado entre as crianças e o educador nos campos da
arte e da pedagogia, especialmente porque emergem as
garatujas de gestos, de sons, enfim, de expressividade
da criança pequena. Reflexões que não minimizam,
desrespeitam ou simplificam as crianças, revelando um
reconhecimento da linguagem que perpassa o universo
de símbolos e representações do nosso universo real
e imaginário ou, ainda, como diria Frabetti (Frabetti;
Manferrari, 2006), permeando nossas relações com
“artisticidade”, esta, segundo ele, é uma maneira de
ampliar e aprofundar uma pedagogia para a infância.
Cabe destacar, ainda, que da evolução dos labo-
ratórios com professores, iniciou-se uma nova aborda-
gem do projeto, configurando um ateliê5 de teatro para
as crianças, lugar para experimentar a linguagem teatral,
onde o adulto oferece uma narrativa e, por intermédio
5 Frabetti chama ateliê, e não laboratório, o trabalho feito com a criança para distinguir do trabalho feito com o professor e, pela tradição da palavra, conforme já mencionada neste artigo.
dela, propõe-se à descoberta do uso de gestos teatrais,
movimentos, olhares, palavras, sons e o contato com
diversos materiais.
As crianças entram nos jogos teatrais para ex-plorar e tocar, reelaborando imediatamente, se desejarem, o que receberam. Um lugar de fazer e fazer juntos, um momento de relação inter-pessoal e de colaboração construtiva. O adulto se coloca à frente das crianças disponível a se comunicar com elas, as encoraja e as mantém sem precisar forçar e sem dirigir muito, mas com a intenção de manter o clima e atmosfera da comunicação teatral (Frabetti; Manferrari, 2006, p. 6).
Os ateliês, portanto, tornam-se um bom caminho
para ajudar as crianças a expressar aquilo que são as
suas emoções e suas formas de comunicação. “Não se
trata de ensinar teatro, mas de promover uma memória
profunda no corpo sensível”,6 pois este corpo é o ponto
de partida para o trabalho expressivo, é um processo de
“metamorfose” do corpo do homem que deixa de ser
simplesmente um organismo biológico para se meta-
morfosear em “corpo humano”, cheio de significações e
intencionalidades: este é o lugar da existência humana,
da singularização.
Tem-se, sem dúvida, um projeto bastante com-
plexo, posto que envolve não somente as intervenções
realizadas, mas as expectativas que se tem sobre o bebê
e a criança pequena. Um momento que exige muita
capacidade de observação e atenção em propor e deixar
livre o espaço para o jogo teatral é uma intervenção
que, como diz Frabetti (Frabetti; Manferrari, 2006),
requer delicadeza com as crianças e entrosamento com
os adultos.
O ateliê teatral parte, assim, da crença de uma
forma plural da criança se comunicar com o mundo,
de dizer algo de si num ambiente que lhe convide, sem
obrigá-la. Ao permitirmos experiências para expressar
6 Fala de Roberto Frabetti no Festival Visioni di teatro, visioni di futuro – 2011, em Bologna.
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seus sentimentos e suas sensações, por meio do próprio
corpo, estamos proporcionando o instrumento ideal
para que a criança se comunique com o mundo exterior,
o qual vai, aos poucos, tornando-se significativo para
ela. Trata-se de uma reflexão acerca das outras lingua-
gens, e não somente sobre a linguagem oral, comumente
valorizada e que marginaliza os bebês, uma vez que eles
ainda não a dominam.
As primeiras atividades nos ateliês são baseadas
principalmente em estimulações sensoriais, em que o
papel da criança apoia-se muito mais no campo da frui-
ção para, em seguida, ser encaminhado a uma fase mais
indutiva, na qual o adulto provoca, com determinadas
propostas, a estimulação da interação entre pares, entre
crianças e adultos e entre crianças e objetos.
Aos poucos, das possibilidades mais livres, ba-
seadas mais em desafios abertos com objetos e pessoas,
os ateliês são conduzidos a um trabalho mais direto,
utilizando narrativas produzidas em parceria com as
crianças e com pesquisa de gestualidade possível,
criando, assim, pequenas garatujas teatrais: precursoras
de sinais que incentivam e apoiam a intencionalidade
comunicativa,
se inicia com pequenos gestos, simples, como observar a própria mão que executa uma ação, para conseguir mostrar aos outros seus próprios movimentos. A história narrada é simples, fei-ta de sugestões que se adaptam às propostas das crianças, fornecendo ideias reproduzíveis para interação com o adulto e com as outras crianças.
Alguns são atraídos pelo movimento e repro-duzem empenhados durante a condução da história, olhares mais atentos, não se movem, os pequenos precisam de espaço e tempo e que este espaço e tempo não seja forçado. As garatujas em seguida são um sinal gráfico, com suas eta-pas e suas transformações: a sala vazia é como uma folha branca e os movimentos do corpo são a escrita (Frabetti, V., 2010).
Esta experiência revela a disponibilidade das
crianças em se permitir experimentar uma linguagem
que – diferente do que muitos possam pensar – está
muito próxima de si, de suas emoções, pois sua recep-
tividade, seu desejo de se colocar à prova, de imitar o
adulto ou seus pares, de SE observar, de refletir sobre
si, de pesquisar sons e gestos, de criar novos repertó-
rios gestuais, estão carregados de uma expressividade
que vem não somente de uma educação pelo ver, mas
também pelo ouvir e pelo fazer, criando uma garatuja
que explora o espaço e que, nesse espaço, deixa uma
marca de si.
DIÁLOGOS FINAIS: Concluindo e Recomeçando
O trabalho desta pesquisa exploratória nos
campos da produção do teatro para e com bebês em
Bolonha, indica novas investigações importantes para
o meio educacional e cultural.
Junto a isso, esta pesquisa demonstra a qualidade
da relação que se estabelece entre crianças e adultos,
exigindo um refinamento nas formas de ver e ouvir a
criança. Aponta-se, ainda, para as formas de relação
entre as próprias crianças, indicando caminhos impor-
tantes do papel do outro na elaboração das narrativas
de mundo.
Desse modo, conclui-se, recomeçando, ou seja,
finaliza-se este trabalho, a partir da crença de que o
presente estudo abrirá portas para um campo de pes-
quisa que configura o trabalho educativo com crianças
pequenas, percebendo novos movimentos para a infân-
cia, sinalizando possibilidades mais ricas e, por meio
dessas percepções, revelando concepções e modelos
de infâncias. Espera-se, por fim, estar compartilhando
com educadores, com pedagogos, com pesquisadores,
com artistas e com pais, caminhos que são considerados
instigantes e que provocam, diariamente, a reflexão so-
bre o papel do professor de Educação Infantil, reflexão
essa que suscita um estranhamento interno e conduz
à desnaturalização do cotidiano que, comumente, é
oferecido aos bebês.
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E S P A Ç O S D A E S C O L A • E D I T O R A U N I J U Í • A N O 2 1 • Nº 6 9 • J A N. / J U N. 2 0 1 1
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