O TEMPO E O ESPAÇO DA ALIMENTAÇÃO NO CENTRO DA ... · ... O SABOR DO CENTRO ... FOTO 5 -...

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UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Geociências e Ciências Exatas Câmpus de Rio Claro Silvia Aparecida Guarnieri Ortigoza O TEMPO E O ESPAÇO DA ALIMENTAÇÃO NO CENTRO DA METRÓPOLE PAULISTA Orientadora : Prof a Dr a Silvana Maria Pintaudi Tese elaborada junto ao Curso de Pós- Graduação em Geografia - Área de Concentração em Organização do Espaço, para obtenção do Título de Doutor em Geografia Rio Claro (SP) – 2001

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  • UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

    Instituto de Geocincias e Cincias Exatas Cmpus de Rio Claro

    Silvia Aparecida Guarnieri Ortigoza

    O TEMPO E O ESPAO DA ALIMENTAO NO CENTRO DA METRPOLE PAULISTA

    Orientadora: Profa Dra Silvana Maria Pintaudi

    Tese elaborada junto ao Curso de Ps-Graduao em Geografia - rea deConcentrao em Organizao do Espao,para obteno do Ttulo de Doutor emGeografia

    Rio Claro (SP) 2001

  • BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________

    _____________________________________

    _____________________________________

    _____________________________________

    _____________________________________

    _____________________________________ - aluno(a)

    Rio Claro,_____ de _________________ de 2.001.

    Resultado:_______________________________________________________

  • Dedico com amor:

    - a meu esposo Luiz Carlos - as minhas filhas Nayara e Letcia

    e sempre... com carinho e saudade

    meu pai e minha me (em memria)

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo, em primeiro lugar, minha famlia, pelo apoio incondicional ao meu

    trabalho.

    Pelo estmulo e amizade, competncia e responsabilidade, obrigada sempre -

    Profa Dra Silvana Maria Pintaudi.

    Existem pessoas que tm um brilho especial e com sua amizade ajudam a

    iluminar nossas vidas. Uma dessas pessoas Maria Lusa B. Beig, cujos conselhos

    foram muito valiosos durante esta fase de minha vida.

    Aos chefes do Departamento de Geografia, Prof. Dr. Jos Carlos Godoy

    Camargo e Prof. Dr. Fadel Antonio David Filho, com quem eu tive o prazer de

    conviver durante esse perodo de preparao da tese, agradeo pela compreenso,

    confiana e apoio em todos os momentos.

    Aos amigos, Sandra, Mirna, Ana Tereza e Auro, pelo incentivo nos momentos

    de dvidas e incertezas. Meus sinceros agradecimentos aos professores e

    funcionrios do Departamento de Geografia. Ao Gilberto (desenhista) um

    agradecimento especial, pela sua pacincia e magnfico trabalho nas ilustraes de

    abertura dos captulos dessa tese.

    O meu carinho especial queles que tambm estiveram sempre ao meu lado:

    Susi, Cristhiane, Fabiani e Henrique.

    Aos meus amigos: Katia Cristina Ribeiro Costa (Universidade Federal de

    Cajazeiras) Sidney Gonalves Vieira (Universidade Federal Pelotas) e Dalton Jorge

    Teixeira (PUC- Belo Horizonte), que mesmo estando longe trouxeram-me valiosas

    contribuies, obrigada.

    Profa Marisa Merli Antonio, agradeo a competncia na reviso do texto.

    Pela ateno e presteza, um agradecimento muito especial s meninas da

    biblioteca, como carinhosamente as chamo.

    Agradeo ao CNPq pelo apoio financeiro, no primeiro ano da pesquisa, e

    ainda a todas as pessoas entrevistadas e s instituies que disponibilizaram os

    dados e informaes para a concluso da pesquisa.

    Existiu algum muito especial que Deus levou para junto dele, mas que

    deixou um vazio muito grande em minha vida, e a quem agradeo por ter me dado o

    prazer da sua convivncia - minha querida amiga Kerli. Saudades...

  • O que sabemos uma gota. O que ignoramos um oceano.

    Isaac Newton

    (1643-1727)

  • SUMRIO

    Pginas

    NDICE ....................................................................................................................II LISTA DE GRFICOS ...........................................................................................III LISTA DE QUADROS E TABELAS ..................................................................... IV LISTA DE FIGURAS.............................................................................................. V LISTA DE FOTOS................................................................................................. VI RESUMO.............................................................................................................. VII ABSTRACT......................................................................................................... VIII INTRODUO....................................................................................................... 1 CAPTULO I O SABOR DO CENTRO: Descrevendo a problemtica ........... 17 CAPTULO II O PROCESSO DE MUNDIALIZAO DO CONSUMO

    DE ALIMENTAO: Uma anlise regressiva....................................... 90 CAPTULO III A SOCIEDADE PRODUTIVISTA............................................. 153 REFLEXES FINAIS......................................................................................... 170 BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................187 ANEXOS .............................................................................................................196

  • II

    NDICE

    Pginas INTRODUO....................................................................................................... 1 Fundamentao Terica .................................................................................... 6 CAPTULO I O SABOR DO CENTRO: Descrevendo a problemtica ............17 As formas do comrcio de alimentao no centro da metrpole...................... 26 O comrcio informal e suas formas de articulao ao processo global ........... 48 O Consumidor do centro: resultados da observao e entrevistas .................. 62 O uso do espao e sua reproduo ..................................................................66 CAPTULO II - O PROCESSO DE MUNDIALIZAO DO CONSUMO

    DE ALIMENTAO: Uma anlise regressiva 90 Mudanas e persistncias nos hbitos alimentares no Brasil .......................... 91 Mulher: um agente transformador .................................................................. 100 Alimentao: Ritmos e Opes.......................................................................111 Do caf creme ao fast food .............................................................................136 CAPTULO III A SOCIEDADE PRODUTIVISTA...............................................153 A sociedade produtivista e as relaes espao-tempo no cotidiano

    da metrpole ...................................................................................................155 Os espaos de consumo normatizados ......................................................... 161 REFLEXES FINAIS..............................................................................................70 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................. 187

  • III

    LISTA DE GRFICOS

    Pginas

    GRFICO1 Empregos por setor na indstria do turismo .................................. 27 GRFICO 2 Brasil participao feminina no mercado de trabalho ................. 104 GRFICO 3 Brasil: Receita anual do food service por subgrupos .................. 125 GRFICO 4 Brasil: Alimentao coletiva por segmentos ............................... 126 GRFICO 5 Local do consumo de alimentos.................................................. 127 GRFICO 6 Gastos mundiais com comida rpida .......................................... 130 GRFICO 7 O food service no Brasil .............................................................. 131 GRFICO 8 Restaurantes no Brasil................................................................ 132 GRFICO 9 Alimentaop fora do domiclio ................................................... 135 GRFICO 10 Fast food em % PIB .................................................................. 144 GRFICO 11 N de Estabelecimentos de fast food no 1 mundo ................... 146 GRFICO 12 Crescimento do mercado de food service................................. 148

  • IV

    LISTA DE QUADROS E TABELAS

    Pginas

    QUADRO 1 - Nmero de Hotis no Centro de So Paulo ................................... 30 TABELA 1 - Setor de Alimentao no Centro da Metrpole Paulista- 1996 ........ 32 QUADRO 2 - Caracterizao do setor de alimentao no centro de So Paulo.. 33 TABELA 2 - Populao Flutuante no Centro de So Paulo..................................47 QUADRO 3 - Comida: Invenes e novas tecnologias ........................................ 97 QUADRO 4- Comida: Invenes e novas tecnologias - Ps Segunda Guerra

    Mundial.............................................................................................99 QUADRO 5 - Distribuio percentual da populao economicamente ativa por setor de atividade e por sexo ........................................................ 101 QUADRO 6 - Indicadores Mercado de Trabalho 1997-1998.............................. 103 QUADRO 7 - Dados da empresa brasileira pioneira no sistema de restaurante

    por quilo ....................................................................................... 122 QUADRO 8 - Mutaes de despesas em alimentao nos EUA e Brasil

    face correlao mulheres na PEA e tempo de preparao de refeies................................................................................... 123

    QUADRO 9 - A dana dos preos...................................................................... 129 QUADRO 10 Brasil - Participao regional no mercado de pratos prontos .... 133 QUADRO 11 - Elas tm poder e deciso de compra ........................................ 134 QUADRO 12 - As vinte maiores redes de fast food no Brasil em 1997 .............143

  • V

    LISTA DE FIGURAS

    Pginas

    FIGURA 1 - So Paulo e sua Regio Metropolitana ........................................... 22 FIGURA 2 - Centro da Metrpole Paulista ........................................................... 29 FIGURA 3 - rea dos Calades no Centro da Metrpole Paulista ..................... 75 FIGURA 4 O tempo escasso........................................................................... 141 FIGURA 5 O impacto do delivery ....................................................................151 FIGURA 6 As mudanas nos hbitos alimentares invadem os lares .............. 169

    ANEXOS

    ANEXO A Limite da rea PROCENTRO......................................................... 196

  • VI

    LISTA DE FOTOS

    Pginas

    FOTO 1 - Restaurantes por Quilo ........................................................................ 35 FOTO 2 - Os restaurantes self service e a busca de diferencial (...).....................36 FOTO 3 - O fast food tem uma presena forte no centro ......................................37 FOTO 4 - O sistema delivery um servio adicional ............................................38 FOTO 5 - Encontramos no centro diversos restaurantes de alta qualidade

    e para diversos gostos ...........................................................................39

    FOTO 6 - Os Churrascos Gregos esto por toda a parte (...) ...............................41 FOTO 7 - No horrio do almoo as barracas que vendem Churrasco Grego

    ficam lotadas chegando a formar grandes filas ....................................42

    FOTO 8 - A estratgia utilizada pelos Churrascos Gregos a do menor preo....43 FOTO 9 - Observa-se que a busca por diferenciais uma caracterstica

    marcante do comrcio informal no centro, (...) .......................................44

    FOTO 10 - O nmero de consumidores potenciais enorme no centro (...).........52 FOTO 11 - Comrcio de alimentao conjugado (...)............................................53 FOTO 12 - O viaduto Santa Efignia um local onde conseguiram

    limpar a presena dos camels..........................................................56

    FOTO 13 - Encontramos no centro todo tipo de comida (...) ................................60 FOTO 14 - Fast food Baiano (...) .......................................................................61 FOTO 15 - Centro o lugar mais democrtico da metrpole (...) ...........................68 FOTO 16 - Na Rua Vinte e Cinco de Maro (...)....................................................69 FOTO 17 - O rudo no centro so muitos (...)........................................................70 FOTO 18 - O comrcio nos calades no centro da metrpole s

    10 horas da manh de uma tera-feira .............................................72

    FOTO 19 - Os ambulantes parram a ocupar as caladas de frentes ao Shopping Ligth ...................................................................................84

    FOTO 20 - Fachada do Shopping Light na semana de sua inaugurao .............85

  • VII

    RESUMO

    Este trabalho discute o comportamento do comrcio de alimentao no

    centro da metrpole, refletindo sobre as novas relaes espao-tempo. Analisa as

    novas formas de consumo de alimentao na vida cotidiana, geradas a partir do

    ingresso macio da mulher no mercado de trabalho e de suas novas necessidades.

    Desenvolve uma anlise da sociedade produtivista, onde o consumo de alimentao

    muda radicalmente, pois o tempo escasso e altamente quantitativo faz surgir novos

    hbitos. O fast food avaliado como instrumento de apoio ao desenvolvimento desta

    sociedade, onde o comrcio vai encontrando condies de desenvolvimento atravs

    da criao de diferentes estratgias de reproduo. O comrcio informal faz surgir

    reas complexas e conflituosas, mas que possibilitam o atendimento das

    necessidades de parte da populao que vive, transita ou trabalha no centro.

    Palavras Chave: alimentao, comrcio, consumo, cotidiano, tempo, espao.

  • VIII

    ABSTRACT

    This work aims at discussing the behavior of the feeding trade in the center

    of the metropolis, thinking over the new space-time relations. It analyzes the new

    forms of feeding consumption in the daily life, brought about by the women's

    massive entrance in the labor market and of their new needs. It develops an

    analysis of the productive society , where the feeding consumption changes radically

    , because the scarce and highly quantitative time generates new habits. The fast

    food is rated as being a supporting instrument to the development of this society,

    where the trade finds conditions for the development through the creation of

    different strategies for reproduction. The informal trade leads to the creation of

    complex and conflicting areas, but which facilitate the assistance to the part of the

    population that lives, visits or works in the downtown area.

    Key Words: feeding, trade, consumption, daily, time, space.

  • INTRODUO

    O presente estudo pauta-se na anlise do desenvolvimento do comrcio de

    refeies prontas, principalmente aquelas realizadas fora do lar, e seus impactos no

    espao urbano. Discute a articulao contraditria das diversas estratgias

    comerciais presentes no centro da metrpole, aquelas que so criadas pelas

    necessidades da escassez de tempo e aquelas que so criadoras de novos hbitos

    de consumo. um trabalho da rea de geografia urbana que tem apresentado, nos

    ltimos anos, um quadro de enfoque bastante diversificado tanto no plano terico

    como metodolgico, e cujo objetivo a compreenso da complexa realidade urbana

    brasileira e mundial.

    Nos ltimos anos, a geografia urbana brasileira tem se projetado de maneira

    mais efetiva no plano nacional e mundial. Muito h para se investigar,

    principalmente nas pesquisas ligadas ao comrcio e consumo do e no espao, na

    vertente por ns escolhida: a da geografia crtica. Nesses estudos deve-se partir da

    articulao dialtica entre as relaes sociais de produo e a reproduo do

    espao para se chegar anlise crtica do urbano. O urbano deve ser visto como um

    processo dinmico, procurando-se entender o seu contedo em seu movimento

    contraditrio e, nesta perspectiva de anlise, muito ainda tem que ser feito.

    Um dos caminhos tericos para entender o urbano hoje passa pela

    contribuio de Henri Lefbvre. Este autor, quando busca na vida cotidiana a

    explicao para a sociedade urbana, nos remete a uma reflexo bastante profunda,

    levando-nos ao entendimento do espao como produto e condio das relaes

    sociais de produo.

    Com o avano do processo de globalizao, os estudos urbanos foram

    ganhando complexidade, cabendo aos gegrafos que se dedicam a esses estudos

    dar conta de investigar assuntos especficos e concretos na busca do entendimento

    da realidade atual. Nas cidades, novas funes e especializaes surgem, e, nesse

    sentido, os setores do comrcio e servios so os que mais crescem; no caso das

    metrpoles, essa dinmica ganha ainda mais complexidade.

    1

  • A metrpole de So Paulo apresenta uma multiplicidade de padres

    culturais, diferentes formas de sociabilidade e com isso diversos usos e apropriaes

    do espao; esses processos no se apresentam em sua totalidade nos lugares e,

    principalmente, no so visveis de forma imediata pelo pesquisador. preciso

    ento estabelecer recortes empricos para a anlise atravs, por exemplo, da

    identificao de aspectos significativos que marcam as especificidades.

    O estudo que estamos apresentando d continuidade pesquisa que

    desenvolvemos no mestrado sobre o tema As franquias e as novas estratgias do

    comrcio urbano no Brasil, desenvolvido sob a tica de uma geografia do comrcio,

    e muitas das idias aqui colocadas so resultados dos questionamentos que este

    primeiro trabalho provocou. A maior angstia, e talvez o melhor mrito da pesquisa,

    buscar o conhecimento sempre, mesmo sabendo que ele contnuo e ilimitado.

    Neste trabalho, estaremos analisando de forma mais especfica o setor de

    alimentao no centro de So Paulo, procurando identificar as diversas relaes

    sociais que caracterizam as atitudes de consumo no centro da metrpole, e que

    acabam permitindo o desenvolvimento de algumas formas comerciais. Portanto, o

    valor do espao ser entendido pela prpria espacialidade contida e articulada no

    processo capitalista de produo, onde o prprio espao torna-se objeto de troca. O

    espao, nesse caso, passa a ser o veculo que define a troca, e o seu valor passa a

    ser atribudo segundo a lgica da circulao. A apropriao do espao ganha

    importncia nesse processo, pois uma condio prvia e necessria valorizao.

    por isso que podemos dizer que a valorizao do espao se d de diversas formas

    no decorrer da histria, dependendo sobretudo dos avanos das foras produtivas e

    das novas relaes sociais que delas emergem.

    A mundializao e a globalizao constituem o momento mais avanado do

    processo de valorizao do espao. nesse sentido que podemos dizer tambm

    que a valorizao do espao pode ser avaliada pelo seu contedo subjetivo, ou seja,

    no caso do comrcio de alimentao o que vemos com freqncia que o que se

    mercantiliza a imagem. O fast food, por exemplo, tem uma imagem globalizada

    que tambm se torna uma mercadoria colocada no mercado de consumo. Estes

    sero contedos que deveremos tratar durante o trabalho.

    A presente pesquisa tem ento, como universo espacial emprico, o centro

    da metrpole de So Paulo. Este espao apresenta uma densa e complexa rede de

    atividades com diversas contradies e com isso os problemas sociais e econmicos

    2

  • tornam-se ainda mais contraditrios e ao mesmo tempo mais difceis de serem

    compreendidos. Ali as relaes econmicas, sociais e polticas foram se

    materializando gradualmente moldando o territrio, que , portanto, um produto

    histrico. E nesse processo o papel do Estado bastante importante, pois como

    gestor da poltica territorial, permite a expanso do mercado, a concentrao do

    comrcio e a fluidez dos fluxos, fatores estes importantes e necessrios para a atual

    forma de desenvolvimento do capitalismo.

    O ritmo do urbano, dado pelo processo de produo, invade a vida social e

    acaba impondo aos cidados metropolitanos alguns comportamentos de consumo,

    dados pela escassez do tempo. E esta uma das questes chave de nossa tese.

    Sob essa tica, acreditamos que o setor de alimentao, no centro, nos propiciar

    entender as relaes de consumo normatizadas (sob a presso de um tempo

    quantitativo) que se do no espao contribuindo para a sua reproduo.

    O comrcio, como continuidade e parte integrante do processo de produo,

    reproduz novas formas, cada qual dando margem para que outras ainda mais

    padronizadas se estabeleam. Nesse sentido, o espao passa a ser, cada vez mais,

    controlado e normatizado, criando uma paisagem mundializada que contm um uso

    pr-determinado; tudo isso acaba estabelecendo a programao do prprio

    cotidiano.

    O pequeno1 comrcio e o moderno2 se sobrepem nas diversas reas

    comerciais num movimento de complementaridade, associando-se ou no.

    O comrcio que estamos chamando de pequeno , muita vezes,

    considerado uma resistncia mudana, modernizao, mas no bem assim:

    Em boa verdade, no mundo moderno, o que parece mudar permanece imutvel, e

    o que parece estagnar-se modifica-se.3 As formas antigas vo aos poucos sendo

    incorporadas, pois afinal a racionalidade capitalista est presente e conduz o

    comrcio e os servios, assim como a indstria. preciso, no entanto, compreender

    a materializao das formas comerciais no espao dentro do processo de

    reproduo como um todo, pois ao se reproduzirem os novos processos guardam

    muito do velho, e o velho muitas vezes modifica-se sem muita visibilidade. Em outras

    1 O pequeno comrcio aqui entendido como aqueles tipos de comrcios populares, que se mantm sem modernizar-se, que possuem baixo nvel tecnolgico, pequeno capital de giro, com uma mo-de-obra com caractersticas familiares. 2 O comrcio que denominamos de moderno so aqueles que possuem grande capital de giro, com estratgias de expanso territorial altamente planejada, organizada, disciplinada. 3 Lefbvre, H. A reproduo das relaes de produo, pg. 67.

    3

  • palavras, s atravs da anlise da essncia dos processos que notamos que a

    reproduo no o novo totalmente, ela o contm mantendo algo do velho. No caso

    das formas comerciais, pode-se dizer que sua essncia dada pelo uso que a

    mediao entre tempo e espao. Nesse caso, no so as novas formas comerciais

    que transformam a vida; o uso que, dado pela vida cotidiana, d o novo sentido

    forma, muitas vezes transformando-a.

    Esta densa e rica considerao, da qual voltaremos a tratar, nos faz resgatar

    a idia de que o global s se realiza no lugar (e no cotidiano), porque as relaes

    sociais (mundializadas, novas) tm materialidade no espao do cotidiano, que

    local. Isso nos permite ver o cotidiano como categoria de anlise capaz de nos levar

    ao entendimento da produo do espao urbano, pois temos um tempo que

    mundial e um espao que local, e ambos se realizam no cotidiano. Essas

    reprodues do tempo e do espao que nos levam a discutir, dentro da geografia,

    o conceito de lugar.

    Atualmente, tanto o espao quanto o cotidiano tm merecido a ateno de

    diversos pesquisadores nas mais diferentes reas do conhecimento, porque quanto

    mais se globaliza o econmico e se virtualizam os fluxos, mais o espao ganha

    importncia, pois ele o meio pelo qual o processo de produo consegue se

    realizar. O cotidiano, por sua vez, onde as relaes sociais de produo se

    estruturam na vida urbana em todos os sentidos, e portanto atravs dele que as

    mudanas no tempo e no espao conseguem se materializar.

    Sob este enfoque, do espao como produto e condio das relaes sociais

    de produo4, tentaremos desvendar a essncia das formas comerciais de

    alimentao, e atravs do cotidiano dos metropolitanos procurar entender o que leva

    as pessoas a comerem fora de casa - Opo? Necessidade? Manipulao?

    O processo de escolha pelos servios ( la carte, por quilo, fast food)

    tambm muito importante de ser investigado, pois pode, muitas vezes, estar

    relacionado ao preo, qualidade, e ao tempo de preparo.

    De maneira geral, o grande desafio que essa pesquisa apresenta o de

    refletir sobre as novas relaes espao-tempo na metrpole, procurando colaborar

    para um melhor entendimento do espao urbano na atualidade, analisando

    sobretudo o desenvolvimento de algumas formas comerciais ligadas ao setor de

    4 Este conceito do espao geogrfico defendido por alguns gegrafos e bastante utilizado nas pesquisas e publicaes de Pintaudi, S. M. e Carlos, A. F. A.

    4

  • alimentao. Atravs da discusso do uso dessas formas, buscaremos encontrar em

    alguns momentos da vida cotidiana as resistncias ao moderno e ao global, e o que

    elas nos apresentam como possibilidade.

    A metrpole paulista um espao que sempre foi alvo de diversos estudos

    nas mais diferentes reas. Vrias associaes pblicas e privadas, ncleos de

    pesquisas, universidades, instituies e rgos municipais, estaduais e federais

    sempre estiveram preocupados em entender e resgatar a importncia e a

    centralidade desse espao.

    Atualmente So Paulo considerada uma cidade global5, o que encerra um

    novo significado, e por esta razo vem ganhando ainda mais importncia nas

    pesquisas. A Administrao Municipal, atravs de polticas pblicas, procura manter

    esse novo papel que So Paulo vem exercendo nas redes mundiais, buscando

    acelerar os mecanismos de mudana em funo de facilitar os fluxos econmicos.

    Para isso passa a levar em conta a nova racionalidade espacial que segue padres

    globais de desenvolvimento.

    Nessa nova dinmica das cidades mundiais, o centro da metrpole de So

    Paulo vem desempenhando um papel de destaque, o que deixa claro que o

    entendimento da reproduo do espao , do ponto de vista poltico, estratgico. Isto

    porque a partir da compreenso da dinmica espacial que o planejamento, a

    requalificao do espao e sua normatizao podem se dar de maneira mais efetiva.

    Ao trabalharmos com o centro da metrpole de So Paulo, vrias questes

    merecem ser revistas, pois este um espao, como j destacamos, que por

    excelncia vem sendo valorizado nessa nova dinmica das redes globais. No

    contexto da requalificao do centro o setor de alimentao tambm revalorizado,

    tanto pelo poder pblico como privado, pois engloba atividades que envolvem e

    complementam as novas atividades e as atraes culturais que esto sendo criadas

    nesse espao. Tudo isso faz parte de um projeto maior que tem como pano de fundo

    o novo papel que o centro da metrpole dever desempenhar no futuro.

    5 Numa escala que vai de 1 a 12, So Paulo, por exemplo, marcou 8 pontos, o que a coloca no nvel 2 (7 a 9 pontos) enquanto Nova York marcou 12 pontos e ficou no nvel 1 (10 a 12 pontos) Fonte: GaWC Inventory of World Cities e ONU apud Folha de So Paulo, 2 mai. 1999.

    5

  • Embora nessa pesquisa no estejamos nos dedicando ao entendimento do

    processo de requalificao do centro em si, teremos que nos reportar a ele para

    podermos discutir algumas mudanas na dinmica comercial, as quais podem estar

    relacionadas a esses projetos.

    Os gegrafos, nos ltimos anos, vem sendo constantemente desafiados a

    responder diversas questes referentes s problemticas do espao urbano, e

    mesmo no oferecendo uma viso completa da metrpole, nossa contribuio

    atravs desse trabalho ser descobrir percursos e pontos de contato com outros

    estudos, pois o sentido da anlise e o embasamento terico-metodolgico que

    poder se tornar o elo de unio entre os diversos estudos referentes metrpole.

    Acreditamos que a busca pelo entendimento do urbano enquanto processo social

    deve ser a meta fundamental do nosso trabalho. Nesse sentido, nossa prxima

    etapa ser colocar os caminhos que percorremos nessa pesquisa, que se baseia na

    procura do entendimento das relaes sociais de produo que se desenvolvem no

    setor de alimentao no espao central da metrpole.

    Fundamentao Terica e Metodolgica

    Nesse estudo, a anlise do comrcio e consumo de refeies fora do lar nos

    leva crtica da vida cotidiana dos metropolitanos6. Isto se faz atravs da discusso

    das mltiplas relaes que reproduzem o espao do centro da metrpole e que tm

    em seu bojo um tempo quantitativo, de uma sociedade produtivista, com um

    cotidiano altamente programado. Esse espao ser entendido, portanto, como

    produto e condio das relaes sociais de produo. Para a realizao de tal

    anlise utilizaremos o mtodo lefebvriano7, que prev trs momentos de

    investigao: o descritivo, o analtico-regressivo e o histrico-gentico. Embora as

    concepes da vida, das mudanas e da Histria sejam apoiadas em extenses de

    tempo, no significa que sero identificadas a partir da idia de sucesses de

    6 Quero, nesse momento, registrar a rica contribuio da disciplina Elementos para uma abordagem geogrfica do cotidiano, oferecida pela ps-graduao em geografia da USP, 1998, sob responsabilidade das Professoras Doutoras Odete de Lima Seabra, Amlia Luiza Damiani e Ana Fani Alessandri Carlos. Os colquios realizados durante o curso foram de grande valia para que obtivssemos a coragem de desafiar os difceis caminhos que este tema nos apresenta. 7 Este mtodo foi proposto por Henry Lefbvre como uma alternativa aos estudos de sociologia rural, mas pela sua riqueza, mostrou-se adaptvel para diversas reas das cincias sociais, e est formulado em seu livro De lo rural a lo urbano, 1978.

    6

  • etapas histricas, ou seja, recuperam-se, atravs deste mtodo de investigao, as

    temporalidades desencontradas e coexistentes.

    O primeiro momento - o descritivo - se d atravs da observao do objeto de estudo, no nosso caso o setor de alimentao no centro da metrpole, com o

    apoio de tcnicas de observao sistemtica, entrevistas no dirigidas e dados

    estatsticos que possam nos ajudar na descrio. A complexidade horizontal da vida

    social pode e deve ser reconhecida na descrio do visvel. Cabe ao pesquisador

    reconstituir, a partir de um olhar teoricamente informado, a diversidade das relaes

    sociais, identificando e descrevendo o que v.8

    No se trata, portanto, da descrio pura e simples dos fatos, pois isto

    fatalmente nos levaria a uma anlise parcial do fenmeno. Essa descrio, que a

    primeira fase do mtodo, se apoiar sobretudo em uma teoria crtica da vida

    cotidiana, e neste trabalho encontra-se desenvolvida no primeiro captulo. Ali

    traamos a problemtica num nvel terico e a seguir discutimos a materializao

    das formas do comrcio de alimentao. Nesta fase do trabalho: ...o tempo de cada

    relao social ainda no est identificado. O pesquisador procede mais como um

    etngrafo.9

    O segundo momento o analtico-regressivo, que prev a anlise da realidade descrita, sem fech-la totalmente, isto , devero ser consideradas as

    contradies e as possibilidades. Nesta fase nos propusemos a fazer uma anlise

    comparativa das diferenas encontradas no setor de alimentao, no urbano e no

    cotidiano, tanto nas novas e modernas formas e relaes, como nas possibilidades

    do rompimento do homogneo , do normatizado. Introduzimos essa discusso no

    captulo II, onde procuramos apontar as mudanas e persistncias nos hbitos

    alimentares. Nesta fase do mtodo, nos diz Martins (1996):

    ...a realidade analisada, decomposta. quando o pesquisador deve fazer um esforo para dat-la exatamente. Cada relao social tem sua idade e sua data, cada elemento da cultura material e espiritual tambm tem a sua data. O que no primeiro momento parecia simultneo e contemporneo descoberto agora como remanescente de poca especfica. De modo que no vivido se faz de fato a combinao prtica de coisas, relaes e concepes que de fato no so contemporneas.10

    8 Martins, J. S. (org.) Henri Lefbvre e o ..., p. 21. 9 Ibid., p. 21. 10 Ibid., p. 21.

    7

  • Apresentamos nesse momento a hiptese de que o fast food pode ser

    apontado como o retrato do individualismo e que atravs dele se d a perda do

    prprio sentido (da sociabilidade) do ato de comer. As refeies a partir do fast food

    passam a ter signos, espaos e tempos bastante complexos.

    O terceiro momento previsto pelo mtodo o histrico-gentico, fase tambm conhecida como regressiva-progressiva, onde reencontramos o presente j

    descrito, retomando as modificaes que a estrutura do comrcio de alimentao11

    nos apresenta e suas relaes com o espao e o tempo da metrpole. Trata-se do

    momento em que buscaremos a gnese das formaes dessas estruturas,

    apontando um marco geral de transformao sem perder o processo de conjunto.

    Segundo Lefbvre (1978), ser imprescindvel neste mtodo considerar a interao

    das estruturas, a influncia das estruturas recentes sobre as estruturas antigas

    subordinadas ou integradas s primeiras.

    Martins, ao trabalhar com este mtodo, esclarece-nos que:

    Nesse momento regressivo-progressivo possvel descobrir que as contradies sociais so histricas e no se reduzem a confrontos de interesses entre diferentes categorias sociais. Ao contrrio na concepo lefebvriana de contradio, os desencontros so tambm desencontros de tempos e, portanto, de possibilidades. Na descoberta da gnese contraditria de relaes e concepes que persistem est a descoberta de contradies no resolvidas, de alternativas no consumadas, necessidades insuficientemente atendidas, virtualidade no realizadas. Na gnese dessas contradies est de fato a gestao de virtualidades e possibilidades que ainda no se cumpriram.12

    No captulo II a produo de uma sociedade produtivista e as novas relaes

    espao-tempo tambm sero analisadas, pois as transformaes ocorrem no

    cotidiano da metrpole e atravs dele os espaos de consumo tornam-se cada vez

    mais articulados, normatizados e padronizados para atender s novas necessidades

    da produo.

    11 Para denominar o setor de comrcio que estamos estudando estaremos utilizando no decorrer do trabalho o termo alimentao e no alimentos, pois nos referimos aos produtos que j foram elaborados, processados, preparados, enfim prontos para serem consumidos 12 Martins, J. S. (org.) Henri Lefbvre e o ..., op cit., p. 22.

    8

  • Esta fase final do mtodo est apresentada em uma anlise geral das

    modificaes apontadas em todo o trabalho, sob a luz da teoria da reproduo das

    relaes de produo. onde retomamos o marco de mudana j identificado

    reencontrando o presente, procurando ainda apontar as contradies emergentes,

    traando as nossas reflexes finais.

    sobretudo no cotidiano que vamos procurar as efetivas mudanas, as

    quais propiciaram o aparecimento das novas formas de comrcio de alimentao,

    transformando o comer fora de casa em um hbito bastante freqente na vida das

    pessoas.

    Entretanto, as estruturas antigas do setor de alimentao vo sendo

    reproduzidas e ganhando novo sentido. Esse o esforo de reflexo que o mtodo

    dialtico de investigao nos possibilita, ou melhor, este mtodo nos faz enxergar

    que por trs de toda a coerncia que o modo de produo capitalista tenta passar h

    um processo rico em contradio se desenvolvendo. dessa tenso que nasce a

    possibilidade da prxis revolucionria. Prxis que se funda no resgate e na

    unificao poltica dos resduos - concepes e relaes residuais que no foram

    capturadas pelo poder, que permaneceram nos subterrneos da vida social,

    virtualidades bloqueadas.13

    Trata-se de reconhecer onde esto o antigo, o novo, o diferente, pois a

    relao dialtica desses trs movimentos que mantm a reprodutibilidade do

    sistema. O novo aparece, muitas vezes, como tendncia, uma novidade que contm

    diferentes tempos histricos, mas que ao ser investigado pode nos oferecer os

    elementos para um anlise que contribua para desvendar a essncia da

    transformao da realidade, descrita no incio do trabalho.

    Em nossa reflexes finais, aquilo que se esconde por detrs das imagens

    visveis do mundo das mercadorias dever ser discutido. A idia central avanar

    nas reflexes sobre o tema investigado sem a pretenso de esgot-lo.

    uma tentativa de elucidar o percebido pelo concebido teoricamente e

    definir as condies e possibilidades do vivido.14 O objetivo principal recuperar os

    ns contidos em todas as nossas reflexes ao longo do trabalho, tentando contribuir

    para o entendimento do comrcio de alimentao no centro de So Paulo.

    13 Ibid., p. 23. 14 Ibid., p. 22.

    9

  • Tanto na procura como na anlise do marco de mudana devemos estar

    atentos, pois a partir do momento histrico em que a reproduo das relaes

    sociais de produo ganha um outro sentido que a mundialidade do espao

    consegue se manifestar.

    Lefbvre acredita que o presente no esclarece o real, por isso ele faz a

    regresso, procurando encontrar o marco da mudana.

    A nossa pesquisa contou com uma metodologia de trabalho qualitativa e que

    teve o apoio dos seguintes instrumentos de pesquisa: reviso bibliogrfica,

    entrevista, coleta de dados estatsticos e de informaes colhidas junto aos rgos

    competentes15, utilizao de mapas, tabelas e grficos, notas e artigos de jornais e

    revistas.

    No incio desta pesquisa, pretendamos trabalhar com outras informaes

    que deveriam avanar no sentido de construir um mapa datado, qualificando o

    comrcio de alimentao no centro, e para isso o nmero de estabelecimentos,

    gnero, endereo e data de abertura eram dados fundamentais. Entretanto, aps

    exaustivas visitas e solicitaes de nossa parte junto Prefeitura Municipal de So

    Paulo, nas mais diversas secretarias e rgos pblicos, no tivemos disponibilizado

    o acesso s informaes. A resposta final foi que no tinham os dados, nem como

    colet-los, remetendo-nos ao setor privado. E nos perguntamos, entre outras coisas:

    como atua a vigilncia sanitria neste municpio? Afinal, o setor de alimentao

    precisa ser constantemente vistoriado, pois envolve a sade pblica. Infelizmente

    essa falta de controle interfere nos direcionamentos das pesquisas acadmicas,

    muitas vezes limitando-as.

    As pesquisas de campo traduziram-se em estudos exploratrios-descritivos

    combinados16, tendo por objetivo demonstrar completamente o fenmeno de estudo

    atravs da realizao de anlises empricas e tericas. Por isso encontramos tanto

    descries quantitativas e qualitativas, quanto acumulao de informaes

    detalhadas como as obtidas por intermdio da observao participante;

    consequentemente, os procedimentos de amostragem so flexveis. As

    observaes, tanto a sistemtica, assistemtica, como as participantes e no

    15 Utilizamos dados e informaes do: SEADE - Sistema Estadual de Anlise de Dados; FIBGE - Fundao do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica; ABRAS - Associao Brasileira de Supermercados; ABIA - Associao Brasileira de Indstria Alimentcia, Associao Viva o Centro; entre outros. 16 Lakatos, E. M. e Marconi, M. A. Fundamentos de metodologia cientfica. p. 183, 184.

    10

  • participantes, foram importantes no decorrer desta pesquisa, servindo como ponto

    de partida da investigao social.

    Notadamente a alimentao, prtica que repetimos todos os dias, vem

    sofrendo alteraes profundas em sua forma, principalmente com o avano do

    processo de mundializao. Por isso, investigar essas mudanas que envolvem o

    tempo e o espao e que se realizam no cotidiano levou-nos a buscar caminhos que

    possibilitassem ter o cotidiano como categoria de anlise geogrfica. Os elementos

    para esta abordagem estavam contidos nas relaes de consumo de refeies fora

    de casa, o que vem se tornando um hbito muito significativo no cotidiano.

    O cotidiano, nos trs volumes da Critique de la vie quotidienne17, foi uma

    categoria de anlise amplamente trabalhada por Lefbvre como elo de ligao e

    explicao de diversos aspectos da realidade. , portanto, nesta obra e neste Autor,

    que buscamos o sentido para nossa interpretao do cotidiano neste trabalho.

    Ter o cotidiano como categoria de anlise18 significa se deter tambm no

    mido, no elementar, considerando na vida banal o momento do extraordinrio, do

    possvel. Para Lefbvre, as respostas de mudana esto nesses momentos, que so

    a grande essncia de seu mtodo. A partir do cotidiano no generalizamos o

    domnio do mundial no lugar, pois necessariamente estaremos considerando o viver

    (que est no plano social) e o vivido (que est no plano pessoal) e encontrando

    nessas relaes mtuas a identificao dos indivduos com sua histria, que local.

    Por tudo isso, o cotidiano no pode ser um modelo universal, ele depende do lugar e

    de suas especificidades. No Brasil, por exemplo, ele tem suas prprias contradies:

    h muitos brasileiros que vivem mais nos limites da sobrevivncia do que na vida

    cotidiana. Em outras palavras, podemos dizer que existem muitos brasileiros que

    lutam para ter acesso a uma vida cotidiana. Se a vida de todo dia se tornou o

    refgio dos cticos, tornou-se igualmente o ponto de referncia das novas

    esperanas da sociedade. O novo heri da vida o homem comum imerso no

    cotidiano.19

    17 Lefbvre, H. Critique de la vie quotidienne I, 1958; Critique de la vie quotidienne II, 1961; Critique de la vie quotidienne III, 1981. 18 O cotidiano foi tambm amplamente abordado nas obras de Agnes Heller, Michael de Certeau , Jos de Souza Martins, Ana Fani Alessandri Carlos, entre outros. 19 Martins, J. S. A sociabilidade..., p. 57.

    11

  • A citao de Carlos (2000), ainda mais esclarecedora neste aspecto:

    A noo de cotidiano se eleva no plano da explicao da realidade (no sem dificuldades) permeando/definindo, as relaes sociais na metrpole, em constituio de modo contraditrio, fragmentrio em funo das possibilidades que o processo de produo assume no Brasil. assim que se pode dizer, com certeza que o cotidiano no se instaura em todos os nveis da sociedade brasileira, como condio da reproduo, mas tambm no se pode afirmar que ele no est em germe se estabelecendo, com suas particularidades especficas, na sociedade brasileira. Assim o cotidiano em constituio vai revelando seu processo num fragmento do espao metropolitano, - no se revela enquanto totalidade mas aponta um momento do processo desigual e contraditrio ilumina uma tendncia universal, enquanto um processo histrico; produto determinado de uma poca.20

    A metrpole de So Paulo e mesmo seu centro tambm tm suas

    especificidades, e nesse sentido o conceito de lugar deve estar atrelado ao conceito

    de cotidiano, pois ambos nos ajudaro a entender a realidade. que no pequeno

    mundo de todos os dias est tambm o tempo e o lugar da eficcia das vontades

    individuais, daquilo que faz a fora da sociedade civil, dos movimentos sociais.21

    Tendo o cotidiano como categoria de anlise, teremos que necessariamente

    considerar o uso social do espao e por isso o sentido mais amplo de sua

    reproduo. A supervalorizao do poder da globalizao econmica notvel em

    muitos estudos, o que acaba gerando interpretaes que desconsideram o social na

    construo do espao. Podemos at admitir que com toda a dinmica produtivista,

    dada pelo processo de produo, instaura-se nos lugares uma nova ordem espacial,

    que resultado da globalizao econmica, mas no s dela. E a abordagem do

    cotidiano nos mostra isso.

    20 Carlos, A. F. A. Espao-tempo da vida cotidiana...p. 33, 34. 21 Martins, J. S. A sociabilidade.., op cit., p. 57.

    12

  • Segundo Lefbvre o cotidiano , de um lado, modalidade de organizao

    emprica da vida humana e, de outro, um conjunto de representaes que mascaram

    essa organizao, sua contingncia e seus riscos. Sua abordagem no uma tarefa

    fcil, pois muitas vezes a realidade que a vida cotidiana nos passa de muitos

    duplos: inconsistncia e solidez; fragilidade e coeso; seriedade e futilidade; drama

    profundo e mscara de comdia sobre a vida.22

    Como estamos estudando o consumo de alimentao na metrpole,

    estaremos trabalhando com um dos momentos de seu cotidiano, aquele do tempo

    gasto com as refeies das pessoas que por ali passam esporadicamente, ou que ali

    trabalham e/ou que ali moram.

    necessrio que nos esforcemos para entender como o cotidiano se

    estrutura, pois somente olhando para dentro deste processo que podemos ver

    como que esse tempo e esse espao (que tem como ponto de partida a

    quantidade e no o sentido dele) vo mudando seu contedo e propiciando novas

    relaes de consumo. Afinal, essa perda do sentido do tempo, de seus

    fundamentos, sua unidade e finalidade, imposta por um processo de produo que

    s pode se reproduzir reproduzindo a vida na sociedade como um todo, isto ,

    produzindo o cotidiano.

    Sobre este novo contedo e contradies do tempo mundial, diversos

    autores emitiram opinies, entre eles: Paul Virilio, David Harvey, Milton Santos, Ana

    Fani Alessandri Carlos. O autor Zaki Ladi (1997) entende que o marco deste novo

    tempo o fim da guerra fria, e define o tempo mundial como a acelerao do

    processo de mundializao econmica, social e cultural. Trata-se de uma nova era,

    qual a sociedade tem que se adaptar. Este tempo mundial produz, segundo o

    autor, uma articulao mundial sem fronteira e sem ponto de referncia.

    O tempo mundial age no imaginrio como uma representao que une um

    sistema de signos que se atualiza sempre, e repousa principalmente sobre a

    multiplicidade de fluxos e sua velocidade. Atravs da tcnica ele passa a conter um

    elemento novo e fundamental: a simultaneidade. Entretanto, ele reconcilia diferentes

    temporalidades, onde decide-se entre um global que busca se impor e um local que

    se esconde23.

    22 Lefbvre procura nos mostrar os caminhos para a crtica da vida cotidiana, a qual ele classifica como uma metafilosofia do cotidiano, e que determinam as regras fundamentais de seu pensamento. In Le Sens de la Marche - Critique de la vie quotidienne III, 1981. 23 Ladi, Z, (dir) Le temps mondial, 1997.

    13

  • Nesse caso especfico do uso desse novo tempo, as formas de comer

    rapidamente (fast food, self service, etc.) permitem uma leitura da vida cotidiana,

    pois estabelecem uma norma para empregar o tempo, o que impe um uso

    especfico do espao.

    Com o objetivo de entender a reproduo do espao comercial e das formas

    de consumo no cotidiano do centro da metrpole, fomos levados a rediscutir alguns

    conceitos geogrficos, dentre eles o conceito de lugar.

    Entre os gegrafos que se dedicam aos estudos urbanos, alguns tm se

    dedicado ao entendimento do conceito de lugar. Entre esses trabalhos destacamos

    o de Santos e Carlos, que em suas respectivas obras tm avanado na interpretao

    do sentido de lugar. Essas contribuies tericas demonstram a importncia de

    resgatarmos esse conceito em nossos trabalhos. Se no lugar que as relaes

    sociais (as locais e globais) se materializam, temos ento que nos voltar sempre

    para a interpretao do lugar para buscar o entendimento da realidade de nossa

    problemtica espacial.

    No nosso caso, nesse momento, estaremos buscando no lugar as

    materializaes das alteraes e tendncias das formas do comrcio e consumo de

    alimentao, e o caminho de discusso que seguimos em nossos estudos se

    enquadra mais diretamente ao pensamento que segue:

    ...o lugar se apresentaria como o ponto de articulao entre a mundialidade em constituio e o local enquanto especificidade concreta, enquanto momento. no lugar que se manifestam os desequilbrios, as situaes de conflito e as tendncias da sociedade que se volta para o mundial. Mas se a ordem prxima no se anula com a enunciao do mundial, recoloca o problema numa outra dimenso; neste caso o lugar, enquanto construo social, abre a perspectiva para se pensar o viver e o habitar, o uso e o consumo, os processos de apropriao do espao. 24

    Cada vez mais acreditamos que somente pela observao emprica do

    lugar que se percebe o mundial. atravs dessa viso do lugar como sntese do

    local e do global que desenvolveremos o estudo do lugar - o centro da metrpole.

    Lanando essas idias para o entendimento do espao metropolitano

    podemos dizer que, pela sua dimenso a metrpole vivida parcialmente, isto , seu

    24 Carlos, A. F. A.,O lugar no/do mundo, p. 29.

    14

  • uso se d de maneira fragmentada. Se entendemos que a produo do lugar se d

    no plano do vivido, podemos dizer que a metrpole contm muitos lugares. No

    espao vivido as diversas tramas sociais se entrelaam, se articulam, se apropriam

    reproduzindo o urbano sob novas formas. A identidade da metrpole se refere

    articulao desses diversos lugares. Dentro desta perspectiva de anlise

    entendemos que o centro da metrpole um lugar global complexo, idia esta

    embasada em Santos (1996), conforme a citao que segue:

    Com a modernizao contempornea, todos os lugares se mundializam. Mas h lugares globais simples e lugares globais complexos. Nos primeiros apenas alguns vetores da modernidade atual se instalam. Nos lugares complexos, que geralmente coincidem com as metrpoles, h profuso de vetores: desde os que diretamente representam as lgicas hegemnicas, at os que a elas se opem. So vetores de todas as ordens, buscando finalidades diversas, s vezes externas, mas entrelaadas pelo espao comum. Por isso a cidade grande um enorme espao banal, o mais significativo dos lugares. Todos os capitais, todos os trabalhos, todas as tcnicas e formas de organizao podem a se instalar, conviver, prosperar. Nos tempos de hoje, a cidade grande o espao onde os fracos podem subsistir.25

    Com essa colocao Santos nos ajuda a compreender a diversidade scio-

    espacial que ocorre na metrpole paulista. O centro da metrpole um exemplo

    claro dessa diversidade, e pode ser considerado um lugar onde os fracos podem

    subsistir.

    Atravs da observao sistemtica do comrcio de alimentao no centro da

    metrpole identificamos diversidades no uso e consumo do e no espao. Essas

    observaes foram prtica freqente em nossa pesquisa, tentando entender a

    realidade e a estrutura do cotidiano local. O uso do espao se mostrou como o elo

    de ligao entre tempo e espao. Isso para a cincia geogrfica muito importante,

    pois o espao se revelou no real-emprico, como produto e condio das relaes

    sociais de produo, comprovando essa tese da geografia crtica.

    Como j colocamos, muito importante desvendar o consumo alimentar,

    pois uma prtica bastante freqente na vida das pessoas, remetendo-nos

    necessariamente a uma abordagem do cotidiano. Nesse momento, para ns

    25 Santos,M. A Natureza do Espao..., p. 258.

    15

  • imprescindvel ter o cotidiano como categoria de anlise, j que atravs dele que o

    consumo se realiza e que o espao urbano se reproduz.

    Aps ter demonstrado como iremos trabalhar o mtodo proposto por Henry

    Lefbvre, atravs das suas diversas fases, e apresentado o caminho de nossa

    pesquisa, faz-se mister, nesse momento, colocar a nossa tese: a de que a escassez

    do tempo na vida cotidiana, principalmente na metrpole, tem propiciado o

    desenvolvimento de novas prticas espaciais e diferentes formas de comrcio e

    consumo de alimentao. E o espao como materialidade dessas relaes sociais

    acaba demonstrando algumas tendncias nesse setor comercial no centro da

    metrpole.

    As relaes de consumo passam a ser, cada vez mais, mundializadas. A

    alimentao fora do lar encontra mais condies de desenvolvimento no espao

    metropolitano, pois neste espao o tempo outro, isto , mais escasso e

    quantitativo. Fica-nos evidente, aps a colocao de nossa tese, que as relaes

    espao-tempo so determinantes. o entendimento dessa relao espao-tempo no

    cotidiano que nos oferece as condies de entrar na discusso das formas de

    consumo de alimentao rpida. Por isso o ttulo de nossa tese: O tempo e o espao da alimentao no centro da metrpole, que agora passamos a desenvolver.

    16

  • Captulo I

    O SABOR DO CENTRO

    17

  • I- O SABOR DO CENTRO: Descrevendo a problemtica

    Este captulo contempla, numa primeira parte, a problemtica geral,

    procurando identificar a diversidade de relaes sociais que envolvem e esto

    envolvidas em nosso objeto de estudo. Ao descrever o comrcio e consumo de

    refeies fora do lar damos nfase ao centro da metrpole. Essa descrio se dar

    atravs de uma observao fundamentada na experincia e em uma teoria geral.

    A segunda parte coloca em discusso o comrcio informal e suas formas de

    articulao ao processo global de desenvolvimento econmico, remetendo-nos, pelo

    seu expressivo crescimento, a considerar uma possvel popularizao do consumo

    no centro da metrpole.

    Na terceira parte deste captulo os resultados das entrevistas realizadas

    durante a pesquisa nos serviram de apoio para demonstrar quais so os fatores

    determinantes na escolha do local para alimentao rpida no centro da metrpole.

    Na quarta e ltima parte deste captulo, estaremos tratando da complexidade

    horizontal, ou seja, a vida social estar sendo reconhecida na descrio do visvel.

    Descreveremos, ento, o uso do centro e sua reproduo atravs de fatos

    resgatados do cotidiano do centro da metrpole, o que se tornou possvel atravs da

    observao sistemtica de campo.

    Procuramos expor, no decorrer desta fase introdutria do captulo, algumas

    das questes tericas que nossa problemtica de pesquisa nos apresenta e

    percebe-se que os desafios so muitos. Entre essas grandes questes com que

    deveremos nos preocupar, destacamos, de maneira sinttica:

    a generalizao da mercadoria, seus signos e sinais;

    o modo de vida urbano-produtivista transformado em idia, em valor;

    a perda do sentido da sociabilidade no horrio das refeies;

    o fast food

    o setor de alimentao como a possibilidade do global se realizar no local

    e no cotidiano;

    a padronizao e a normatizao do cotidiano e do espao;

    18

  • as relaes espao-tempo na metrpole;

    a reproduo da relaes sociais de produo;

    O processo de produo, ao sair da fbrica e tomar o urbano, provocou a

    generalizao da mercadoria. Nesse movimento o consumo, como uma das esferas

    da produo, foi capturado e passou a subjugar a vida em todos os seus momentos.

    Nesse complexo e contraditrio processo o prprio espao tambm tornado

    mercadoria. Bermam (1986), quando analisa a metamorfose dos valores, nos ajuda

    tambm a refletir sobre como essa sociedade vai se estruturando:

    O primeiro ponto aqui o imenso poder do mercado na vida interior do homem moderno: este examina a lista de preos procura de respostas a questes no apenas econmicas mas metafsicas - questes sobre o que mais valioso, o que mais honorvel e at o que real. Quando afirma que todos os demais valores foram transmudados em valor de troca, MARX aponta para o fato de que a sociedade burguesa no eliminou as velhas estruturas de valor, mas absorveu-as, mudadas. As velhas formas de honra e dignidade no morrem; so, antes, incorporadas ao mercado, ganham etiquetas de preo, ganham nova vida, enfim, como mercadorias. Com isso, qualquer espcie de conduta humana se torna permissvel no instante em que se mostre economicamente vivel, tornando-se valiosa; tudo o que pagar bem ter livre curso.26

    Portanto, a reproduo das relaes de produo que nos d a base de

    nossa problemtica. Isto porque os lugares da alimentao, alm de serem um

    espao do consumo, passam a provocar o consumo do espao. Ao discutir o

    consumo do espao do lazer, Carlos (2000) tambm colabora para o entendimento

    dessas novas relaes:

    Trata-se, portanto de um momento em que o espao torna-se amplamente mercadoria; os espaos antes fora do universo do mercado e da mercadoria, destinado exclusivamente ao uso, se transformam em mercadoria entrando na esfera da comercializao. Nesse contexto, o valor de troca impresso no espao mercadoria se impe ao uso do espao, na medida em que os modos de apropriao passam a ser determinados pelo mercado. O consumo do espao se analisa, assim, no movimento da transformao do uso pela imposio do valor de troca; acentuando o papel e a fora da propriedade do solo. Tal fato traz profundas mudanas nos modos de uso. No plano local a conseqncia direta deste fato o aprofundamento da separao, na vida do habitante, entre

    26 Bermam, M. Tudo que slido desmancha no ar:.., p. 108.

    19

  • espao pblico / espao privado. No plano mundial e regional, a mercantilizao dos espaos voltados s atividades de turismo e lazer.27

    No comrcio de alimentao do centro isto tambm observvel, o mundo

    da mercadoria se generaliza e a reproduo do espao voltada para uma

    transformao das formas comerciais com um forte apelo a imagem do global, do

    moderno, do veloz; fazendo com que os espaos tambm sejam consumidos como

    mercadorias. A publicidade faz uso de imagens com novos significados capazes de

    transformar o lugar da refeio em signo, capaz de estimular o consumo.

    As motivaes das novas formas de consumo de alimentao foram sendo

    dadas tambm, pela estruturao de um cotidiano capturado pelo processo de

    produo. O tempo dedicado s refeies e a forma como elas se realizam

    diariamente fazem parte desse cotidiano.

    Martins, baseado em Lefbvre, nos diz que: A histria real se desenrola,

    pois, no claro-escuro do percebido e do concebido, por meio do vivido.28 E nos

    esclarece esta colocao quando coloca:

    Isto , o cotidiano no o meramente residual, como pensavam os filsofos, mas sim a mediao que edifica as grandes construes histricas, que levam adiante a humanizao do homem. A histria vivida e, em primeira instncia, decifrada no cotidiano. Nesse sentido, de modo algum o cotidiano pode ser confundido com as rotinas e banalidades de todos os dias, como fazem muitos pesquisadores, historiadores e socilogos, que se demoram nos detalhes e formalidades insignificantes da vida, imaginando com isso resgatar o sentido profundo da subjetividade do homem comum.29

    Na descrio de nossa problemtica aparece o fast food, como um

    elemento capaz de introduzir no cotidiano, principalmente dos metropolitanos, novas

    formas de consumo. Percebe-se que o fast food vai ao encontro das necessidades

    dessa sociedade e desse cotidiano, capturadas pelo processo de produo. Por esta

    razo ele ser um dos elementos utilizados para fazermos a crtica e decifrarmos as

    contradies desse cotidiano altamente padronizado e normatizado. Ao determinar

    comportamentos e atitudes no cotidiano, o fast food estabelece tambm prticas

    27 Carlos, A. F. A. Espao-tempo da vida cotidiana..., op cit., p. 192. 28 Martins, J. S. A sociabilidade..., op cit., p. 142. 29 Ibid., p. 142.

    20

  • sociais que produzem espao. O espao aparece nesse primeiro momento como

    produto das relaes sociais de produo.

    Nessas formas de comrcio de alimentao existe um componente

    essencial, o fast (ou o rpido) nos servios, o qual surge como o elemento que

    faz a diferena, pois atende s necessidades do tempo da metrpole. Com esses

    contedos (agilidade, rapidez) diversas formas de comrcio se desenvolvem (fast

    food, lanchonetes, self service etc.) no espao metropolitano e se generalizam pelo

    mundo. No centro da metrpole, por exemplo, ele tem uma presena marcante.

    Nesta dinmica, temos que considerar os novos contedos e as novas

    contradies do tempo j que sua acelerao redefine a vida urbana. Para

    tentarmos responder melhor a estas questes, vamos desenvolver no terceiro

    captulo um tpico especfico sobre a sociedade produtivista e as relaes espao-

    tempo no cotidiano da metrpole.

    A primeira observao que fazemos que esta acelerao do tempo se d

    de maneira mais intensa na metrpole, o que acaba nos auxiliando na justificativa de

    nosso especial interesse por este espao. A metrpole, por ser a forma mais

    acabada da sociedade de consumo atual, o lugar onde se articulam as principais

    mudanas no processo produtivo e, consequentemente, no consumo e na

    reproduo do espao. A transformao no contedo do tempo passa a estar

    intimamente ligada s mudanas mais gerais do processo de produo.

    Nesse processo, notrio que o papel da metrpole foi mudando, e o fato

    de So Paulo (figura 1) ser hoje uma metrpole mundial30 d novos sentidos ao seu

    processo de controle e poder em nvel nacional. Gradualmente So Paulo foi

    deixando de ser uma metrpole fabril para tornar-se uma das cidades globais que

    vo comandar as redes de fluxos mundiais, entrando assim em uma nova hierarquia

    urbana mundial. Para manter esse status ela deve continuar concentrando percia e

    conhecimento em servios ligados globalizao. Com esses atributos ela prpria

    torna-se centro. Toda essa centralidade de So Paulo s est sendo possvel pelo

    avano da tecnologia da informao que propicia a simultaneidade entre os lugares.

    30 A grande So Paulo um dos trs maiores aglomerados urbanos do mundo (ao lado de Tquio e Cidade do Mxico) formada por 39 municpios, conta com uma populao de 17.833.511 em 2000 Censo Demogrfico IBGE.

    21

  • 22

    Juquitiba

    So Lourenoda Serra

    Embu

    Embu-Guau

    Itapecerica da Serra

    Cotia

    Tabooda Serra

    Vargem G.Paulista

    CarapicubaItapevi

    OsascoBarueri

    Jandira

    Santanado Parnaba

    Pirapora doBom Jesus

    Cajamar

    Caieiras

    Franco daRocha

    FranciscoMorato Mairipor

    Santa Isabel

    Guarulhos

    Guararema

    Aruj

    Itaquaquecetuba

    Suzano

    Po

    Ferraz deVasconcelos

    Mogi das Cruzes

    Biritiba-MirimSalespolis

    Santo Andr

    S.Bernardodo Campo

    Diadema

    S. Caetanodo Sul

    Mau

    RibeiroPires

    Rio Grandeda Serra

    So Paulo

    Diviso Regional do Municpio de So Paulo

    Figura 01: So Paulo e sua Regio Metropolitana

    Fonte: Base Cartogrfica IBGECarta do Brasil - 1: 250.000 de 1976ORG.: SILVA, C.H.C.

    Km49,533 16,5 0

    Fonte: Base Cartogrfica IBGECarta do Brasil - 1: 250.000 de 1976ORG.: SILVA, C.H.C.

    Km2114 7 0

  • A anlise do lugar, como materialidade do local e do global, nos propicia a

    discusso da existncia de mltiplas relaes sociais no espao, as quais, muitas

    vezes contraditrias, reproduzem o lugar de maneira contnua; e, por isso, contnua

    tambm deve ser a nossa busca pelo seu entendimento. Para discutirmos esse processo mais geral da produo, que envolve

    tambm a materializao das mudanas comerciais no espao urbano, preciso

    salientar que nenhum outro setor do mercado reage to rapidamente s mudanas,

    no meio ambiente urbano, como o varejo. A criatividade tem sido, nesse sentido,

    uma caracterstica essencial do varejo e que justifica a importncia de estudos

    contnuos nessa rea para se conseguir entender sua dinmica.

    As relaes entre produo, comrcio e consumo foram ganhando no

    decorrer da histria maior racionalidade31, a atual organizao do processo produtivo

    tem cada vez mais o componente tercirio, j que no h mais uma diferena rgida

    e profunda entre indstria e tercirio. O tercirio passa a estar, cada vez mais,

    imbricado na produo.

    Segundo a Fundao SEADE a expanso que se verifica no setor tercirio

    deve ser: ...de um lado, a expanso e diversificao do tercirio que decorreu do considervel crescimento e diversificao da base industrial, cujo aprofundamento requer tambm a criao e especializao de uma considervel gama de servios auxiliares produo. Por outro lado, essa expanso incorpora tambm uma grande massa de trabalhadores, dentre os quais grande parte ligada a ocupaes mais qualificadas, demandantes, portanto, de importantes servios pessoais. Em terceiro lugar, e no menos importante, o fato dessa aglomerao urbana converter-se na primeira metrpole nacional faz com que a mesma desenvolva e centralize uma gama de servios mais especializados e com alto grau de sofisticao. Alm disso, essa metrpole assume o papel de maior centro cultural e artstico do pas, impondo maior desenvolvimento sobre sua indstria cultural.32

    Analisar o comrcio e o consumo, no contexto desta imbricao produtiva,

    bastante difcil, pois esta relao est envolta em contradies e conflitos contidos

    no espao, melhor dizendo, o espao acaba demonstrando o sentido da reproduo

    dessas relaes contraditrias.

    31 A produo , pois imediatamente consumo; o consumo imediatamente, produo. Cada qual imediatamente seu contrrio. Mas, ao mesmo tempo, opera-se um movimento mediador entre ambos. So elementos de uma totalidade. Marx, K. Introduo crtica da economia poltica, p. 115. 32 SEADE, Cenrios da Urbanizao Paulista, v.3, p. 165.

    23

  • O ritmo do movimento urbano, por ser veloz, acaba favorecendo a

    compreenso apenas dos aspectos mais visveis da paisagem; as imagens que

    falam so aquelas das mercadorias e fica cada vez mais difcil ver a cidade.

    Ao refletir sobre a sociedade de consumo atual, Debord passa a denomin-

    la de sociedade do espetculo e nos remete a essa discusso quando nos diz: O

    espetculo no um conjunto de imagens, mas uma relao social entre pessoas,

    mediatizada pelas imagens. 33

    A espetacularizao do mundo da mercadoria ocorre de forma ntida no

    comrcio de alimentos, pois embora muitas empresas comerciais no delimitem

    rigorosamente seu pblico-alvo, os consumidores se dividem em grupos que tm

    preferncias comuns. Isto ocorre porque a imagem e o signo mediatizam as relaes

    de consumo criando um elo de ligao forte, uma espcie de identidade entre os

    indivduos, direcionando, muitas vezes, as preferncias. Isto acaba criando, nos

    lugares, ambientes diferenciados e identificados por grupos, seja pela idade, sexo,

    classe social ou preferncias materiais, morais e sociais. Essas relaes so

    extremamente contraditrias, pois esto em jogo o uso, a necessidade e o desejo, o

    que d complexidade a essas prticas espaciais.

    Com todas essas relaes mediatizadas pelas imagens das mercadorias, o

    cidado reduzido a consumidor, e o sujeito perde a sua identidade.

    No Brasil as atitudes de consumo so ainda mais complexas devido falta

    de condies financeiras de grande parte da populao. O consumo envolvido em

    muitas contradies, pois a sociedade no igualitria e sim desigual. Nesse

    sentido, a ocupao e o uso diversificado do espao, bem como as diferentes formas

    de comrcio e consumo, podem estar tambm relacionadas s diferentes

    estratificaes sociais.

    Essas colocaes nos evidenciam a importncia do estudo do comrcio e do

    consumo no entendimento da dinmica do processo de reconstruo das cidades, j

    que as prprias formas comerciais so mercadorias que acabam impondo o

    consumo no e do espao, e que ao mesmo tempo atendem s novas necessidades

    provocadas pela escassez do tempo.

    O acto de comprar cada vez mais uma atividade ldica. O simples facto de implicar escolha, comparao entre diversos

    33 Debord, G. La socit du spetacle, p. 16.

    24

  • artigos, relao com o vendedor, contribui para fazer desta actividade um acto social; atraco exercida pelas montras, a informao que oferecem e que a escolha pressupe propiciam o passeio, mas a reunio de vendedores e atraco de clientes reforam a concentrao de gente e fazem do comrcio uma funo com uma forte dimenso social, onde o encontro possvel. Quem vai as compras ou simplesmente ver montras cruza-se com muita gente que anda a fazer o mesmo, por isso os lugares de concentrao de comrcio foram tambm, desde sempre, lugares de concentrao de actividades ldicas (a feira tinha diverses), que potenciam o encontro social.34

    O comrcio no centro da metrpole se utiliza da concentrao de pessoas e

    para se desenvolver, faz uso de vrios instrumentos de atrao, tendo como objetivo

    despertar o consumo, criando a iluso da necessidade. Atravs da mdia os sinais

    so combinados por signos e imagens, direcionando o consumo, por isso as

    estratgias de marketing das empresas ganham importncia no atual modelo de

    reproduo, tendo papel de agente dinmico na introduo de novos produtos no

    mercado consumidor, passando a manipular as necessidades.

    Como j colocamos, com o desenvolvimento do capitalismo, passa a

    ocorrer uma forte interdependncia entre a indstria e o comrcio. O comrcio deixa

    de ser uma etapa meramente distributiva dos produtos, pois o processo de produo

    captura o consumo e passa a determin-lo, e o comrcio passa a atender a novas e

    consecutivas demandas. A satisfao das necessidades, que era a principal

    caracterstica da produo, muda de sentido, ou seja, vai ocorrendo a expanso do

    valor de troca, que se sobressai ao valor de uso. A obsolescncia foi estudada e transformada em tcnica. Lefbvre nos ajuda a entender esse processo:

    Aqueles que manipulam os objetos para torn-los efmeros manipulam tambm as motivaes, e talvez a elas, expresso social do desejo, que eles atacam dissolvendo-as (...) preciso tambm que as necessidades envelheam, que jovens necessidades as substituam. a estratgia do desejo! 35

    34 Salgueiro, T. B. Do comrcio distribuio..., p.175. 35 Lefbvre, H. A vida cotidiana no mundo moderno, p.91.

    25

  • Nesse sentido, at mesmo a alimentao como necessidade torna-se

    obscura. A necessidade e o desejo tm um movimento dialtico e contm

    particularidades pouco decifrveis.

    As formas do comrcio de alimentao no centro da metrpole

    Na especificidade de nosso trabalho, o comrcio, presente no centro da

    metrpole de So Paulo (que passa por um processo de requalificao), parece

    tambm se reestruturar, pois so criadas novas formas buscando caminhos de

    articulao entre o mundial e o local. Na busca pela modernizao do setor

    comercial percebe-se a tendncia em combin-lo com o tempo da metrpole. Neste

    sentido, acreditamos que a alimentao, por ser o consumo mais freqente na vida

    das pessoas, uma pea chave para buscarmos o entendimento da reproduo das

    relaes sociais neste espao da metrpole.

    H um grande esforo das instituies envolvidas no processo de

    requalificao do centro, no sentido de incentivar o turismo de negcios, numa

    cidade que no oferece ao visitante belezas naturais. Os hotis localizados prximos

    ao centro vm se preparando para isto; vrias salas de espetculos e teatros vm

    sendo remodelados, para receber este novo pblico. E quando falamos em

    incentivos das atividades tursticas notadamente temos que considerar o setor de

    alimentao, pois este serve de sustentculo para o sucesso do turismo. Nesta

    dinmica um novo quadro pode estar sendo traado para o centro da metrpole. Se

    observamos o grfico 1 notamos, atravs dos empregos gerados pela indstria do

    turismo, a importncia do setor de alimentao.

    26

  • GRFICO 1 - EMPREGOS POR SETOR NA INDSTRIADO TURISMO ( 1996 ) ( 1000 )

    Fonte: ABIA

    A escolha do centro da metrpole de So Paulo como rea de principal

    interesse para nossa pesquisa se justifica tambm por ser um lugar que concentra

    44% dos escritrios (advogados, consultorias etc.) e emprega, de maneira

    significativa, a mo-de-obra dos setores de servios e comrcio, os quais

    representavam, em 1996, 11,4% do total da cidade de So Paulo (3.794.622), com

    uma oferta global de 432.287 empregos.36

    27

    36 Dados: Associao Viva o Centro. So Paulo Centro XXI, p. 66.

  • Estes dados demonstram a demanda por comrcio e servios ligados

    alimentao fora do lar, pois a grande maioria das pessoas que trabalham ou se

    utilizam dos servios oferecidos no local acabam fazendo suas refeies no prprio

    centro. Isto porque a locomoo na metrpole muito lenta, o espao a ser

    percorrido da casa ao trabalho normalmente muito grande, o que demanda muito

    tempo. Portanto, o centro um lugar estratgico para observar e estudar o setor de

    alimentao, e mais ainda, as relaes espao-tempo no cotidiano da metrpole.

    Neste trabalho optamos por considerar como centro da cidade a rea que

    abrange os distritos S e Repblica e que tem como limites as seguintes referncias:

    Av. Duque de Caxias, Rua Mau, Av. do Estado, Av. Mercrio, Viaduto do Glicrio,

    Viaduto Jaceguai, Viaduto Mesquita Filho, Rua Amaral Gurgel. (figura 2). O centro

    compreende ento uma rea de 4,4 km2 (0,5 % da rea urbana do municpio), sendo

    que o seu ncleo tem 0,9 km2. Esta uma delimitao que faz parte tambm de um

    critrio37 adotado pela Associao Viva o Centro38.

    Em anexo apresentamos um material que faz parte do Programa de

    Valorizao do Centro e que traz o Limite da rea Central PROCENTRO,

    divulgando as referncias arquitetnicas e culturais do local. (Anexo A)

    Os dados abaixo nos oferecem uma viso geral das principais atividades

    que se desenvolvem no centro:

    ...o centro se volta predominantemente aos servios (35,4% da mo-de-obra empregada na regio) e ao comrcio (29,9%). Em seguida destaca-se o servio pblico ocupando 16% do pessoal. Os autnomos so 9,3%. A indstria ainda consegue empregar 6%, a construo 1,7% e os transportes 1,2%, ficando os restantes 0,6% com outras ocupaes. No centro a rea construda com fins residenciais soma 2.744.000 m2, bem menos que aquela com fins no residenciais, que de 6.857.000 m2, dos quais 91% ocupados por comrcio e servios.39

    37 Este critrio no geogrfico, ele respeita mais os interesses e necessidade da requalificao. Existem diversas outras delimitaes do centro, e cada qual, respeita critrios especficos. Esto faltando estudos atuais que construa uma delimitao coerente com os parmetros geogrficos, para que seja realmente aceita por todos. 38 Associao Viva o Centro. So Paulo..., op cit., p. 66. 39 Ibid., p. 66.

    28

  • Figura 02 - Centro da Metrpole PaulistaFonte: GEOMAPAS - 1998 Escala 1:20 000

    29

  • Esse retrato do centro nos mostra a importncia do comrcio e servio neste

    espao e, por isso, cada uma dessas atividades merece ser identificada, localizada,

    analisada, enfim, melhor compreendida e explicada pois, como dissemos

    anteriormente, a geografia urbana sempre ter que colaborar no sentido de dar

    conta de pesquisar problemas especficos e concretos existentes nas cidades, e

    entre eles esto os referentes aos setores de servios e de comrcio varejista.

    O comrcio tem papel fundamental no centro; muito importante, portanto,

    que consigamos entender sua dinmica scio-espacial. Uma das importantes

    estratgias do varejo no centro da metrpole foi a construo das galeria comerciais,

    e as 11 principais somam 1.490 lojas em 31.570 m2.40

    Outra caracterstica do centro a presena das sedes dos principais Bancos

    - total de 31. importante salientar que significativo tambm o nmero de hotis -

    total de 90, classificados no quadro 1, os quais, na sua grande maioria, possuem

    restaurantes que atendem no s os hospedes, como tambm consumidores em

    geral.

    Quadro 1 - Nmero de Hotis no Centro de So Paulo

    Categoria Quantidade

    5 estrelas 04

    4 estrelas 10

    3 estrelas 29

    2 estrelas 40

    1 estrela 07

    Fonte: Viva o Centro. So Paulo Centro XXI- 1996

    A partir da caracterizao das formas de crescimento do comrcio e servios

    na rea central, podemos rever as expresses claras da manuteno de sua

    centralidade, que muitos consideravam perdida. A conjugao desses dados nos

    revela uma qualidade fundamental do centro, ou seja, um espao que caracteriza-

    se por uma grande diversidade scio-econmica (que revela conflitos e

    contradies), mantendo-se como um centro diversificado. Com este rico e amplo

    espectro de funes e usos, talvez haja condies do centro realmente se tornar um

    lugar de excelncia no processo pelo qual passa a metrpole de So Paulo, ou seja,

    40 Ibid., p. 66.

    30

  • sua insero na rede de cidades globais. Cabe indagar a que custo social este

    processo vem se realizando, pois nos projetos de requalificao de seu centro, por

    exemplo, notamos que o objetivo central reduzir a parte malfica da diversidade,

    o que significa afastar a populao pobre do centro. No discurso sobre a

    revalorizao do centro percebe-se que, com o afastamento da populao pobre,

    pretende-se diminuir os conflitos e contradies do espao.

    preciso agora considerar que, no processo de transformao pelo qual

    So Paulo vem passando41, o centro tem um papel de destaque e vem sofrendo nos

    ltimos anos uma interveno macia, pois necessita estar apto para atender s

    novas demandas da metrpole. Notadamente nesse processo o comrcio passa a

    ser valorizado, mas sob uma nova tica, ou seja, ele dever ser tambm

    transformado, elitizado. O comrcio dever ter condies de atender a uma clientela

    mais exigente e com maior poder de compra, pois a pretenso de que o centro

    passe a concentrar uma mo-de-obra mais qualificada ligada ao emergente setor

    informacional e financeiro do pas.

    No caso do comrcio de alimentao, o centro oferece restaurantes para

    todos os gostos e com preos tambm diversos. Mas, o que se valoriza nos projetos

    de requalificao do centro so os restaurantes requintados com cozinha

    internacional, capazes de atender aos mais exigentes consumidores. Percebe-se

    claramente esta idia nos textos que so publicados pelos rgos envolvidos nesse

    processo de requalificao do centro, como o que segue:

    A permanncia no Centro dos bons restaurantes e bares est condicionada vinda da clientela mais ampla, e esta s retornar, como nos bons tempos (sic), se o Centro voltar a ser uma regio segura, limpa e agradvel. Apesar dos pesares, isso j comea a acontecer. Muitas casas que se foram na onda da badalao vo querer voltar - se haver lugar para elas j outra histria. Mesmo os que partiram sinceramente compungidos, como o herico Baica, teriam que empreender um recomeo histrico para resgatar a aura perdida, tarefa talvez impossvel. Uma lstima que tenhamos chegado a tanto.42

    41 Existem diversas pesquisas que contemplam estudos sobre o processo de transformao da metrpole de So Paulo, desde sua gnese at sua situao atual, entre eles podemos citar: Azevedo (1958), Langenbuch (1971), Cordeiro(1980), Santos (1993), Lencione (1998), Villaa (1998) entre outros. 42 Associao Viva o Centro. So Paulo..., op. cit., p. 62.

    31

  • So Paulo mantm o status de Santurio dos Gourmets e freqentemente

    reconhecido como um dos melhores e mais completos centros gastronmicos do

    mundo. Seu centro revela essa qualidade, pois temos um nmero de restaurantes e

    similares bastante expressivo.

    Numa recente pesquisa de Toledo & Associados43, foi observada a seguinte

    situao referente ao setor de alimentao no centro (tabela 1):

    Tabela 1 Setor de Alimentao no centro da metrpole paulista -

    1996

    ATIVIDADE QUANTIDADE REA (m2)

    Restaurante c/servios 137 17777

    Restaurante self-service 170 18344

    Fast food e Lanchonetes 388 22821

    Caf 78 1728

    Sorvete 24 373

    TOTAL 797 61043

    Fonte: Toledo e Associados, 1996 - Org. Ortigoza, S. A. G.

    A anlise dos dados referentes ao desenvolvimento do setor de alimentao

    permite-nos entender quais as formas comerciais que resistem e as que mais

    combinam com o ritmo da metrpole. A pesquisa Toledo & Associados resume os

    dados contidos nessa primeira tabela agrupando os diversos tipos de restaurantes, num total de 307; e agrupa fast food, lanchonete, caf e sorveteria, denominando-os de lanchonetes, num total de 490. Esses nmeros apontam para uma maior participao das formas que mantm como caracterstica principal a agilidade nos

    servios (fast food, lanchonete, caf e sorveteria), poupando o tempo dos

    consumidores.

    Esses estabelecimentos comerciais (tabela 1) atendem s mais diversas

    camadas da populao e com elas as mais diferentes necessidades, gostos e

    desejos. O setor informal (que no foi considerado nessa pesquisa do Toledo &

    43 Toledo & Associados. Pesquisa de reavaliao de potencial mercadolgico para implantao de Shopping Center Downtown.1996.

    32

  • Associados) tambm oferece diversas opes de servios de alimentao e

    geralmente atende quelas pessoas com menor poder de compra.

    Atravs da pesquisa de campo construmos o quadro 2, onde procuramos

    caracterizar e indicar a natureza da diversidade funcional das formas do comrcio de

    alimentao no centro da metrpole. Quadro 2 Caracterizao do setor de alimentao no centro de So Paulo

    FORMAS PRODUTOS TIPOS DE SERVIOS Fast food Diversos formatado

    (padronizado), atendimento rpido,

    ausncia de garom, cardpio

    conjugado e exposto ao pblico

    Lanchonetes Lanches, salgados,

    refrigerantes, sucos, entre outros

    atendimento no balco,

    escolha limitada, cardpio

    conjugado e exposto ao pblico

    Self service ou por quilo

    Refeies completas

    com grande diversidade, bebidas e

    sobremesas

    auto servio, escolha

    pessoal limitada aos pratos do dia,

    ausncia de garom

    Restaurante la carte Refeies com cardpio

    diversificado, bebidas,

    sobremesas

    cardpio diversificado

    exposto em menu, servido na

    mesa, presena de garom.

    Prato Feito (PF) Refeies em pratos j

    elaborados

    atendimento no balco,

    pratos limitados e servidos prontos

    Churrasco Grego Lanches (recheio -

    mistura de carnes assadas em

    mquina especial), refrigerantes

    somente um tipo de

    lanche, vendido e elaborado pela

    mesma pessoa, no oferece

    acomodao para o consumo

    Delivery Diversos atendimento por

    telefone, pratos limitados, entrega

    a domiclio

    Comrcio na rua lanches (hambrguer,

    hot dog etc.) diversos tipos de

    salgados e doces, frutas

    descascadas, refrigerantes etc.

    ambulantes, geralmente

    do setor informal, consumo na rua

    Fonte: Ortigoza, SAG. - Resultado de observao sistemtica em trabalho de campo

    O setor de alimentao ainda pode ser especializado em alguns produtos, tais como: bebidas, chocolates, carnes, aves, peixes, batatas, cachorro quente, caf,

    crepes, hambrguer, po de queijo, congelados, comidas tpicas, dietticos, doces,

    33

  • salgados, massas, pastis, pizza, sorvetes; e assim surgem outras formas como:

    pizzaria, padarias, bares, pastelarias, docerias, churrascarias, etc. Nestes casos, a

    nomenclatura da loja geralmente transmite a especialidade em relao aos produtos

    comercializados.

    Comentaremos a seguir cada uma das formas de alimentao contidas no

    quadro 2.

    Uma das formas de comrcio de alimentos que est bastante disseminada

    o self-service ou restaurantes por quilo44 (fotos 1 e 2), onde o cliente serve-se imediatamente conforme sua preferncia. Esse tipo de servio aboliu o tempo de

    espera no restaurante, eliminou a figura do garom e com isso o couvert e gorjetas.

    Na cozinha do restaurante o desperdcio (sobras) diminuiu bastante e simplificou-se

    o servio, pois prepara-se sempre o mesmo nmero de pratos. O servio self service

    (assim como o fast food) est elaborando todo um ritual altamente padronizante,

    poupador de tempo, e por isso atende s atuais necessidades produtivistas da

    metrpole e dos lucros da empresa, que acaba economizando, atravs da

    racionalizao e simplificao dos produtos e servios.

    O PF (prato feito) tambm bastante utilizado como estratgia comercial do segmento de alimentao, no centro da metrpole. Esta uma estratgia que

    limita ainda mais a liberdade de escolha, pois as combinaes dos pratos j so

    estipuladas de antemo.

    O fast food (foto 3) uma outra forma do comrcio de alimentos que tem muitos pontos de venda espalhados pela rea central. As empresas comerciais do

    setor de alimentao divulgam sua mensagem elaborando signos distintos e

    despertando novas formas de consumo. No fast food, por exemplo, os produtos

    oferecidos tm um cdigo mundial, decifrvel e identificvel por grupos. Embora haja

    liberdade de escolha, esse tipo de comrcio seleciona seu pblico pela sua prpria

    imagem.45

    44 No captulo II relataremos a entrevista que realizamos com a empresa pioneira no sistema de restaurantes por quilo. 45 Ortigoza, S. A. G. As franquias e as novas..., 1996.

    34

  • Foto - Ortigoza, SAG

    Foto 1 - Restaurantes por Quilo - uma modalidade que tem crescido bastante no centro

    35

  • Foto - Ortigoza, SAG

    Foto 2 - Os Restaurantes self service e a busca de diferencial para conquistar consumidores neste caso o diferencial o rodzio de frango

    36

  • Foto - Ortigoza, SAG

    Foto 3 - O fast food tem uma presena forte no centro as grandes marcas mundiais de franquias proliferam-se no espao.

    No centro da metrpole o delivery (foto 4) tambm est fortemente presente. Percebe-se ali um movimento incessante de jovens entregadores de

    pizzas, comidas chinesas, japonesas, hambrgueres, etc., j que muitas pessoas

    simplesmente no saem de seus escritrios para se alimentarem ( o extrem