O TERROR, A LEMBRANÇA E A ESCRITA: A · PDF fileO TERROR, A LEMBRANÇA E A...

download O TERROR, A LEMBRANÇA E A ESCRITA: A · PDF fileO TERROR, A LEMBRANÇA E A ESCRITA: ... São diários, romances, ensaios, contos, relatos e entrevistas que remontam um trauma humanitário

If you can't read please download the document

Transcript of O TERROR, A LEMBRANÇA E A ESCRITA: A · PDF fileO TERROR, A LEMBRANÇA E A...

  • 241

    I ENCONTRO DE DILOGOS LITERRIOS:

    Um olhar para alm das fronteiras ISSN - 000-000

    241

    O TERROR, A LEMBRANA E A ESCRITA: A REVISITAO DE DIRIOS DO HOLOCAUSTO NA PRIMEIRA DCADA DO SCULO XXI Ricardo Augusto de Lima (UEL)

    No comeo deste ano de 2013, uma publicao chama ateno pela

    fotografia de uma criana na contracapa e o ttulo que nos acende a memria literria. O dirio de Helga (2013), lanado pela Editora Intrnseca, percorre os anos de 1938 a 1945, momento no qual Helga Weiss, hoje artista plstica, foi libertada pela Cruz Vermelha. Durante os anos de campo, Helga escondeu um mao de papel em um buraco na parede, para recuper-lo assim que tudo aquilo passasse.

    S agora o dirio publicado. A ltima dcada testemunho um fato literrio no mnimo curioso: uma

    enxurrada de textos publicados ou traduzidos s agora, nesse comeo de

    RESUMO: A partir de Anne Frank (1929-1945), diversos dirios redigidos durante o Holocausto vieram tona, sendo que a maioria no alcanou o mesmo xito editorial que o primeiro. A maioria deles de meninas que, deportadas para campos de concentrao ou de trabalhos forados, escreveram, em silncio, pginas fsicas ou mentais que descreviam aqueles dias de terror e trauma. Poucas dessas crianas tiveram a chance de superao, no sendo o caso de Anne Frank. Vez ou outra, novos dirios foram publicados, cujos autores, j idosos, afirmaram s agora ter coragem para relatar o ocorrido. Este artigo no pretende abordar tais casos, e sim algumas obras que, escritas por autores contemporneos, rememoram um trauma que no foi vivido, e sim transmitido pelo lao familiar. Desta forma, analisaremos o fenmeno Holocausto na literatura da primeira dcada do sculo XXI, a fim de investigar as razes pelas quais os autores brasileiros tendem ao Holocausto como ponto de partida de suas obras e escrita como fator determinante de superao do trauma. PALAVRAS-CHAVE: escritas de si; dirios; holocausto.

  • 242

    I ENCONTRO DE DILOGOS LITERRIOS:

    Um olhar para alm das fronteiras ISSN - 000-000

    242

    sculo, mas que foram escritos, ou ao menos supostamente escritos, nas dcadas de 1930 e 1940. So dirios, romances, ensaios, contos, relatos e entrevistas que remontam um trauma humanitrio que, julgavam, nunca seria capaz de ser transposto artisticamente. Um ato como o Holocausto no poderia ser nunca objeto de fruio para uma obra de arte, principalmente a literria, visto ser uma organizao racional e lgica de ideias. O fato, irracional e ilgico desde sua concepo, seria ento irrepresentvel.

    Entretanto, poucos meses depois das primeiras afirmaes a respeito, surgem dois textos que entraram para a histria literria e documental. So eles O dirio de Anne Frank e isto um homem?, de Primo Levi, ambos de 1947. Enquanto o primeiro o relato de uma adolescente se escondendo na tentativa de escapar dos campos de concentrao, extermnio e trabalho, o segundo a rememorao dos dias vividos nesses campos por um homem que ali se fez escritor. Anne Frank no sobreviveu para nos contar como foram seus dias em Auschwitz. Seu dirio foi abandonado no esconderijo, e s depois do fim da guerra entregue por Miep Gies a Otto Frank, nico sobrevivente da famlia.

    Primo Levi sobreviveu. E logo que saiu do campo ele inicia a escritura do livro isto um homem?, que se tornaria um dos testemunhos mais pungentes sobre o Holocausto. Misto de ensaio e narrativa, o autor tenta desvendar os porqus de tudo aquilo, sem a narrativa confessional declarada.

    A questo que cerca esses relatos : qual o motivo da necessidade da escrita?

    Helga nos d uma possvel resposta: "Escrever meu dirio foi a maneira que encontrei de me sentir humana. Em certo sentido, foi tambm o que me salvou" (WEISS, 2013, p. 86).

    No caso de Helga, por que s agora, quando ela se aproxima dos noventa anos, aceita publicar o dirio? A escrita se torna, assim, uma busca, uma sada, uma tentativa de superao. "Eu posso ter sobrevivido ao campo de extermnio, mas seus cheiros, sons e horrores nunca vo me deixar".

    Posto isso, analisaremos a ocorrncia dessa temtica na literatura brasileira contempornea, enfatizando uma delas: O que os cegos esto sonhando? (2012), de Noemi Jaffe, obra que se divide em trs partes: a primeira, o dirio da me de Noemi, Lili Jaffe; uma segunda, misto de fico e testemunho que se enquadra no gnero cunhado por Serge Doubrovsky, autofico; e uma terceira escrita pela neta de Lily e suas impresses sobre sua visita recente ao campo de concentrao. O sonho dos cegos Em abril de 1945, cerca de um ano aps ser presa pelos nazistas e enviada para Auschwitz, Lili Stern, ento com dezenove anos, foi salva pela Cruz Vermelha. Na Sucia, ela comea a escrever um dirio urgente no qual descreve os principais acontecimentos daquele ltimo ano: a batida na porta no dia que ela sabia que os alemes viriam busc-la com sua famlia, as viagens

  • 243

    I ENCONTRO DE DILOGOS LITERRIOS:

    Um olhar para alm das fronteiras ISSN - 000-000

    243

    de trem, o dia a dia no campo, os trabalhos, as formas de sobreviver, as humilhaes, a libertao, a recepo pelas autoridades estrangeiras, o sentimento de vitria meio abobalhado, pois ser sobrevivente indica a morte de outros. Ao final do dirio, Lili trata da saudade da famlia que no sobreviveu e da redescoberta de uma feminilidade perdida em Auschwitz. Tal perda fez com que ela se casasse com o homem que lhe desse segurana, e no amor. Em O que os cegos esto sonhando?, filha e neta de Lili, agora Jaffe, utilizam-se de seu dirio, pela primeira vez traduzido, para criar uma narrativa na qual desvendada as fices das descries que, a priori, seriam referenciais na escrita da sobrevivente. A questo, porm, : podemos julgar quem atravessou pelo trauma e voltou de l para descrever sua situao? A primeira parte do livro o dirio propriamente dito, com algumas lacunas em momentos em que a traduo e/ou leitura se tornaram impossveis. A segunda, escrita por Noemi Jaffe, um hbrido de fico e realidade: Noemi discorre sobre alguns pontos do dirio, desvenda a histria de alguns personagens cujas histrias no conhecemos (e ningum conhece), justifica os erros histricos da me. Por fim, na terceira parte, a filha de Noemi, Leda Cartum, descreve suas impresses como terceira gerao de sobreviventes do Holocausto na ocasio de uma visita s runas de Auschwitz. Todas as trs narrativas so uma tentativa de entender o real, de super-lo. Em todas, a escrita vista como um antdoto, uma forma de sentir mais humana. O dirio de Lili Jaffe segue os padres do gnero. Porm, descobrimos, na prpria narrativa, que sua escrita foi forjada para iludir o leitor de ser um dirio autntico. Explico: a escrita do dirio no aconteceu de forma diria, simultnea aos acontecimentos. Embora traga datas, que so talvez autnticas ou no, sua escrita foi posterior, sendo mesmo assim evocado o tempo verbal do presente do indicativo. Logo, a escrita foi baseada na lembrana dos acontecimentos e nos sentimentos que existiam devido a eles um ano aps terem acontecidos. Obviamente que isso no afeta a natureza dos fatos, mas pode alterar, como vai mostrar Noemi na segunda parte da obra, uma srie de fatos. Todos minha volta, assim como eu, estamos tristes. Sabemos o que est acontecendo e tambm o que acontecer (JAFFE, 2012, p. 13). Para Philippe Lejeune (2008, p. 259, grifos do autor), chamamos de dirio uma srie de vestgios datados. Caracterizados por um conjunto de pequenas anotaes indicadas por datas que so escritos no necessariamente todos os dias e no necessariamente para ser lido por um outro alm do seu autor, o dirio vai atravessas os tempos como a forma de escrita de si mais sincera e aquela que despertar mais curiosidade devido ao seu carter secreto. Porm, essa mesma sinceridade que d ao dirio um exemplo de autobiografia fiel, para Maurice Blanchot (2005), fornece a ele tambm a superficialidade que o caracteriza, sua insignificncia. Assim, escrever um dirio seria fugir do silncio do cotidiano, sendo criticado pelo autor no ponto no qual o gnero mais explorado: as banalidades do dia a dia.

  • 244

    I ENCONTRO DE DILOGOS LITERRIOS:

    Um olhar para alm das fronteiras ISSN - 000-000

    244

    Logo, Blanchot afirma que o dirio s ultrapassa essa superficialidade quando incorpora em sua escrita o imaginrio, a irrealidade de fico. O literrio. Roland Barthes (1988, p. 372), na mesma esteira de Blanchot, afirma que o dirio exprime o inessencial do mundo; gnero egosta, inautntico, desnecessrio, sem uma misso. Seriam quatro os motivos que justificam a existncia da escrita do dirio: o potico (estilo do autor), histrico (registro de uma poca), utpico (escrito sendo objeto de desejo do seu leitor) e amoroso (ateli de frases). Tanto para Barthes como para Blanchot, o dirio de Kafka o nico que foge dessas regras, visto que incorpora em sua escrita trechos de narrativas, procedimentos literrios, esboos, mtodos. Entenderei a escrita do dirio aqui como um procedimento de escrita de si que deseja compreender o registro de uma poca, o testemunho de uma catstrofe. Alm disso, em tom mais potico, o desejo imensurvel de sobreviver por meio da escrita, usando-a como escape, fuga da realidade. A escrita, assim como a leitura, ser concebida nesses textos como uma ltima tentativa de sobrevivncia. No vejo, entretanto, diferena de poder salvador entre os dois atos. Se a leitura salva o homem da realidade inspita, a escrita ter a mesma potencialidade.

    [Auschwitz], 30 de setembro de 1944 Chegaram os dias frios. O clima muito mais frio aqui do que em nossa terra. Tnhamos uma boa roupa. Um pulver quente, bons sapatos. Porque comprvamos aquilo com comida. Ainda sofro com a perna. Tenho de usar meias e elas grudam na ferida. Tenho dificuldades de descrever o que aconteceu h cinco dias, mas, j que comecei, escreverei a respe