O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

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O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO Márcia Regina de Faria da Silva Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Letras Clássicas. Orientador: Profa. Doutora Alice da Silva Cunha Rio de Janeiro Julho de 2008 This watermark does not appear in the registered version - http://www.clicktoconvert.com

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O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

Márcia Regina de Faria da Silva

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor e m Letras Clássicas. Orientador: Profa. Doutora Alice da Silva Cunha

Rio de Janeiro

Julho de 2008

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FICHA CATALOGRÁFICA

Silva, Márcia Regina de Faria da. O trágico nas Heroides de Ovídio. UFRJ, Rio de Janeiro, 2008. 123 f. Tese (Doutorado em Letras Clássicas) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2008. Orientadora: Profa. Dra. Alice da Silva Cunha.

1. Trágico. 2. Ovídio. 3. Literatura Latina. I. Título II. Série

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O trágico nas Heroides de Ovídio Márcia Regina de Faria da Silva

Orientadora: Professora Doutora Alice da Silva Cunha

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requesitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas. Examinada por __________________________________________________________________ Presidente, Profa. Doutora Alice da Silva Cunha __________________________________________________________________ Profa. Doutora Vanda Santos Falseth – UFRJ __________________________________________________________________ Profa. Doutora Mára Rodrigues Vieira – UFRJ __________________________________________________________________ Prof. Doutor Amós Coêlho da Silva – UERJ __________________________________________________________________ Profa. Doutora Ana Lúcia Silveira Cerqueira – UFF __________________________________________________________________ Prof. Doutor Edison Lourenço Molinari – UFRJ, Suplente __________________________________________________________________ Prof. Doutor Airto Coelin Montagner – UERJ, Suplente

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Aos meus filhos, Thaís e Thiago, fonte

de inenarráveis alegrias e esperanças de um

futuro radiante.

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- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de

algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo

tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna

contradição humana.

(Machado de Assis, in A igreja do diabo)

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AGRADECIMENTOS

A Deus que me deu forças para seguir sempre em

frente, mesmo em meio às dificuldades.

Aos meus pais, Erli e Francisco, que sempre

apoiaram minhas decisões.

Aos meus professores dos cursos que realizei

durante o doutorado por terem me enriquecido

academicamente e, em especial, à orientadora desta

tese, Professora Doutora Alice da Silva Cunha, que

soube respeitar minhas opiniões e colaborar com

muitas idéias e aprofundamentos teóricos.

Finalmente, um agradecimento especial ao

Professor Carlos Tannus (in memoriam) que

apresentou tantas observações valiosas para a

finalização de minha tese, no Exame de

Qualificação.

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SILVA, Márcia Regina de Faria da. O trágico nas Heroides de Ovídio. Rio de Janeiro,

2008. Tese (Doutorado em Letras Clássicas) – Faculdade de Letras, Universidade

Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

RESUMO

As Heroides de Ovídio foram compostas em dísticos elegíacos. A elegia, em

Roma se desenvolveu como gênero de poesia autônomo, com características

próprias e bem definidas. O amor era o principal tema abordado pelos poetas

elegíacos, especialmente na época de Augusto, período em que a poesia mais se

desenvolveu. Houve poetas que escreveram livros inteiros de elegias como Tibulo,

Propércio e Ovídio. Mas, apesar da elegia encontrar-se inserida entre os poemas

líricos, observamos que as Heroides, em especial, abordam o amor de uma forma

trágica. Nas cartas analisadas, notamos que as heroínas se caracterizam

tragicamente, a partir dos conceitos aristotélicos de hamartia e de hybris de acordo

com a poética da tragédia, bem como, na filosofia do trágico, enquadram-se na

dialética trágica de salvação e aniquilamento, elaborada pelos filósofos idealistas

alemães. Essas teorias encontram-se sintetizadas pelo conceito de trágico dos

teóricos da Literatura posteriores, que nos apresentam como destruição da vida das

personagens, como observamos nas cartas escolhidas.

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SILVA, Márcia Regina de Faria da. O trágico nas Heroides de Ovídio. Rio de Janeiro,

2008. Tese (Doutorado em Letras Clássicas) – Faculdade de Letras, Universidade

Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

ABSTRACT

The Heroides were composed by Ovid in elegiac distics. The elegy developed

in Rome as an autonomous poetic genre, with its own specific and well-defined

characteristics. Love was the main theme presented by the elegiac poets, mainly in

August era, which was the period when poetry had its best development. There were

poets who wrote complete books of elegy, such as Tibullus, Propertius and Ovid.

However, although elegy is considered a lyric poem, we can observe that the

Heroides in particular treat love in a tragic way. In the letters analyzed, we notice

that the heroines are tragically characterized based on Aristotle’s concepts of

harmatia a n d hybris, according to the tragedy poetic, as well as, in the tragic

philosophy, they are found in the tragic dialectic of salvation and aniquilation,

developed by the German idealist philosophers. These theories are synthesized by

theorical of posterior Literature concept of tragic, which present as life’s destruction of

the characters like we observe in the chosen letters.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 9

2. AS HEROIDES E OS GÊNEROS LITERÁRIOS 14

2.1. Mistura de gêneros 16

2.2. A elegia: entre o lírico e o épico 18

2.3. A elegia latina 21

2.4. O dístico elegíaco em Ovídio 24

2.5. As Heroides 29

2.6. Uma nova visão elegíaca: o gênero epistolar 32

3. AS HEROIDES E AS LENDAS 36

3.1. As lendas trágicas e as Heroides 37

3.2. Heroides: um poema narrativo 41

3.3. As Heroides e as lendas: convergências e divergências 49

3.4. A ausência do desfecho 59

4. HEROIDES: UM HINO TRÁGICO ÀS PERDAS AMOROSAS 67

4.1. A poética da tragédia 68

4.2. A hamartia e a hybris 69

4.3. A filosofia do trágico 88

4.4. A dialética do trágico 93

4.5. A síntese do trágico entre a poética e a filosofia 105

5. CONCLUSÕES 117

6. BIBLIOGRAFIA 119

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1. INTRODUÇÃO

Há algum tempo, a leitura das Heroides de Ovídio instiga-nos a buscar

respostas para uma série de questionamentos a respeito de sua composição e

adequação aos gêneros literários e à própria temática da elegia latina, na qual estão

enquadradas.

Já no mestrado, quando buscamos comparar a Dido de Virgílio, no canto IV

da Eneida, com a de Ovídio, na carta VII das Heroides, em seus aspectos trágicos,

a obra causava-nos certa inquietação. Por um lado, ela é classificada como lírica,

pois faz parte do rol de elegias latinas, poemas que alcançaram, em Roma, traços

nítidos e delineados que os tornaram verdadeiro gênero literário no período de

Augusto (séculos I a.C. e I d.C.), com autores como Tibulo, Propércio e Ovídio,

especialmente, com as elegias amorosas e eróticas. Por outro, percebemos que há

muito de épico em seus personagens e, ainda mais, de trágico, devido aos próprios

mitos utilizados.

Sabemos que as Heroides são compostas de cartas de heroínas, em sua

maioria, do mito ou da história a seus amados ausentes. O afastamento imposto a

elas, por abandono do amado ou por um acontecimento externo que impede os

amantes de se unirem, mostra-nos um sofrimento que, muitas vezes, conduz ao

trágico.

Foi nessa linha de raciocínio que nos guiamos para buscar respostas aos

nossos questionamentos e procuramos abordar o trágico nas Heroides.

Praticamente todas as vinte e uma cartas apresentam aspectos trágicos marcantes,

ligados à paixão do protagonista. Contudo, quisemos delimitar um corpus mais

conciso e com características semelhantes, para tanto buscamos na lenda a

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unicidade dos conteúdos trágicos. As cartas escolhidas mostram a paixão tratada

nas lendas em consonância com a poética da tragédia em Aristóteles, nos seus

aspectos mais significativos, como a hamartia e a hybris. Contudo, A poética foi

desenvolvida por Aristóteles para teorizar a respeito dos gêneros literários de sua

época: a Grécia antiga. Quando ele caracteriza o lírico, o épico e o trágico, traz

como exemplos os autores anteriores a ele. Para o trágico analisa, logicamente, as

tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides.

A obra por nós estudada, entretanto, foi elaborada em um período posterior e,

exatamente por isso, enquadra-se nas análises de Aristóteles tanto da elegia, por

sua métrica, quanto da tragédia, por seu conteúdo. O aprofundamento da obra nos

leva a discutir sobre a tradicional classificação dos gêneros e a conseqüente

inviabilidade de uma obra pertencer a um único gênero. Teóricos da literatura desde

a Antigüidade, como Aristóteles, Horácio, Longino e, mais recentemente, Frye e

Staiger, detiveram-se no tema. Por isso, vemos a necessidade de observar que, na

forma e em vários outros aspectos, como a temática amorosa e os tópoi da poesia

elegíaca romana, entre eles a visualização da própria morte pelo protagonista da

desilusão amorosa, as Heroides são elegias. Devemos, conseqüentemente,

discorrer sobre a elegia na literatura clássica, desde sua origem, na Grécia, como

mediadora entre a uniformidade métrica do épico e a variedade métrica dos sistemas

líricos, até se tornar um gênero autônomo, em Roma, com sua temática amorosa.

Ovídio, último elegíaco do período augustano, foi um poeta que abordou os

temas elegíacos de forma diferente dos autores anteriores. Iniciou sua composição

poética seguindo os ensinamentos dos alexandrinos e dos elegíacos romanos, mas

inovou, nas Heroides, tanto na forma, quanto no conteúdo. Na forma, ao compor

elegias como cartas, e, no conteúdo, ao deslocar o foco do amor do eu-poético, por

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uma amada específica, em que se tentava identificá-la a uma pessoa da época, para

o amor lendário já difundido e sedimentado por séculos de conhecimento popular. A

lenda, que se diferencia do mito, já era usada pelos poetas anteriores e o amor no

mito já havia sido tratado pelos elegíacos alexandrinos, porém a visão de Ovídio é

particular, pois dá voz às personagens míticas para revelar seus amores. E faz isso

privilegiando a voz feminina. A maioria das cartas tem como protagonista e, ao

mesmo tempo, remetente, uma mulher lendária, mas que indica, em suas dores e

angústias amorosas, características humanas ligadas à personagem feminina. Essas

desventuras nos mostram que os mitos utilizados são originalmente trágicos, de

acordo com as leituras de dicionários de mitologia como o de Pierre Grimal.

As elegias em forma de carta, compostas por Ovídio, fazem com que as

personagens lendárias precisem narrar os acontecimentos geradores de seus

sofrimentos e desventuras e, por isso, vemos que os poemas são eminentemente

narrativos. As lendas, contudo, são narradas pelas próprias personagens que sofrem

a desilusão amorosa, fazendo com que Ovídio reelabore as lendas a partir da visão

de suas protagonistas, que, apesar de apresentarem os aspectos trágicos propostos

na poética da tragédia de Aristóteles, não possuem propriamente um desfecho

trágico, que, na maior parte das vezes, seria a morte, pois elas estão obviamente

vivas, o que prejudica, em parte, a catarse, a purgação do sentimentos, tão

importante na tragédia.

As Heroides, se, por um lado, apresentam aspectos trágicos marcantes, por

outro, não podem ser analisadas como se as cartas fossem tragédias, pois, de fato,

não o são. Contudo, não podemos negar que há um forte conteúdo trágico no

poema de Ovídio. Mas o que seria o trágico e como poderíamos abordá-lo numa

obra que não é uma tragédia? A resposta a esses questionamentos foi encontrada

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na filosofia do trágico, proposta pelos idealistas alemães. Em quase todas as cartas

observamos que o que causa o sofrimento é a paixão desmedida das personagens.

Mas, para uma abordagem mais específica, tornou-se necessário delimitar o corpus,

no sentido de buscar uma compreensão mais ampla da essência do trágico como

fonte de sofrimento, mas não obrigatoriamente vinculado à tragédia. Percebemos

que os idealistas alemães, desde Schelling até Scheler, tomando por base

Aristóteles, haviam não só elaborado os conceitos de tragicidade (tragik) e de trágico

(tragisch) como também uma filosofia do trágico, que consiste basicamente na

dialética configurada pela oposição entre salvação e aniquilamento. Com isso,

observamos que cinco cartas, além de terem a paixão desmedida como fonte da

hamartia e da hybris das personagens, acordada à poética da tragédia de

Aristóteles, apresentavam essa paixão, inicialmente, como a fonte de salvação da

personagem, que, na verdade, estava acometida da áte, falta de discernimento

intelectual para perceber que o que parecia sua salvação seria a causa de seu

aniquilamento.

As cinco cartas escolhidas que podem ilustrar de forma efetiva a abordagem

trágica dada por Ovídio a suas personagens são a carta VI, em que Hipsípile sofre

pelo abandono de Jasão que a troca por Medéia; a carta VII, em que Dido enfrenta

sua dor e angústia ao ser abandonada por Enéias; a carta IX, que mostra a dor de

Dejanira ao tomar conhecimento da morte de Hércules; a X, que apresenta o

desespero de Ariadne deixada por Teseu em uma ilha desconhecida; e a carta XII,

em que Medéia demonstra todo seu ódio contra Jasão que a abandonou.

Essas cinco cartas abordam os aspectos principais da tragédia, segundo

Aristóteles, e a dialética trágica de oposição entre salvação e aniquilamento dos

idealistas alemães. As duas abordagens remetem para uma síntese elaborada a

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partir da definição de trágico dada posteriormente por Staiger, em seus Conceitos

Fundamentais da Poética. Analisamos as cartas tendo por critério essa conceituação

progressiva do trágico que se estende além da tragédia e pode ser encontrado em

vários outros gêneros, como a elegia em que se inserem as Heroides.

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2. AS HEROIDES E OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Desde a Antigüidade, há uma preocupação em caracterizar as obras literárias

de acordo com um gênero específico. Platão foi o primeiro a estabelecer, no livro III

de A República, as bases de uma divisão tripartida dos gêneros literários. Através

do conceito de mimese ou imitação, ele distingue os gêneros: imitativo ou mimético,

no qual o poeta dá voz a uma outra pessoa, como na tragédia e na comédia; o

gênero narrativo puro, em que o próprio poeta fala, como no ditirambo; e o gênero

misto que mescla as duas formas anteriores, como a epopéia.

Aristóteles, na Poética, também parte da imitação, que para ele é o princípio

unificador de todos os textos poéticos, e estabelece a diferenciação dos meios pelos

quais a imitação acontece, os objetos imitados e os modos de imitação. Segundo os

meios de imitação, há poemas que utilizam o ritmo, o canto e o verso ao mesmo

tempo, como os ditirambos e os nomos; há poemas em que esses recursos são

usados só parcialmente, como a comédia e a tragédia; e há poemas em que apenas

um dos elementos é utilizado, como a epopéia. De acordo com os objetos imitados -

os homens em ação - poderemos ter a imitação dos homens como são (as tragédias

de Cleofonte), melhores do que são (a epopéia e as tragédias), ou piores do que são

(as comédias). O modo de imitar também difere como vemos nas palavras do

próprio Aristóteles1:

Existe uma terceira diferença, segundo a maneira de imitar cada um dos modelos. Com efeito é possível imitar os mesmos objetos nas mesmas situações, numa simples narrativa, ou pela introdução de um terceiro, como faz Homero, ou insinuando-se a própria pessoa sem que intervenha outra personagem, ou ainda apresentando a imitação com a ajuda de personagens que vemos agirem e executarem elas próprias.

1 ARISTÓTELES, /s.d./, p. 289.

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A diferença entre o modo de imitar para Aristóteles, como narrativa, sem

personagens ou com as personagens em ação, assemelha-se à divisão de Platão

em gênero narrativo, misto ou mimético.

Em Roma, Horácio, na Epistola ad Pisones ou Ars poetica, utiliza toda a

tradição anterior e acrescenta a ela a importância da unidade de tom que vincula os

textos literários a um único gênero, devendo o autor ter cuidado em não os misturar.

Um outro autor latino do século IV, Diomedes, elaborou uma divisão tripartida

que foi utilizada em toda a Idade Média. Segundo ele, as obras seriam divididas em

genus actiuum uel imitatiuum, em que somente as personagens narravam; genus

enarratiuum, no qual apenas o poeta fala; e o genus commune uel mixtum, no qual

há a mistura os dois anteriores.

Como percebemos pela classificação dos autores mencionados, a poesia

lírica nos moldes hodiernos não se enquadra em nenhuma delas. Vitor Manuel de

Aguiar e Silva2 diz a esse respeito:

Embora Diomedes distinga no genus commune duas espécies, a heroica species (Homero) e a lyrica species (Arquíloco, Horácio), a lírica, na acepção moderna do termo, não encontra ainda lugar neste esquema classificativo. O princípio de que toda a poesia se fundava na mimese, ou na representação imitativa da natureza bloqueava a possibilidade de uma adequada compreensão, no plano da teoria literária, da poesia lírica.

Somente no Renascimento, houve uma ampliação da concepção mimética

da arte, adquirindo esta a possibilidade de imitação não só de ações mas também

de conceitos, sendo incluído, portanto, o lírico, nos moldes hodiernos, como um

dos três gêneros literários.

2 AGUIAR E SILVA, V. M., 1983, p. 348.

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Temos assim os três gêneros provenientes da Antigüidade, que evoluíram até

nossos dias. O gênero épico, que, na Antigüidade, narrava fatos históricos ligados a

mitos e lendas, desenvolveu-se como gênero narrativo que gerou o romance. O

gênero lírico, ligado à musica, ampliou-se em seu caráter subjetivo, evolvendo a

lírica contemporânea. O gênero dramático, logo de início, uniu-se ao teatro,

pressupondo a existência de um público que se emocionaria, através do pathos da

dor ou do prazer.

Os três gêneros eram vistos desde a Antigüidade de forma isolada, não

devendo haver mistura entre eles. Essa visão prevaleceu até o classicismo francês,

que ainda pregava a regra da unidade de tom, determinando que uma obra não

poderia mesclar gêneros. Com o maneirismo e o barroco, contudo, começa o

questionamento do assunto, aceitando-se os gêneros híbridos ou mistos, o que vai

gerar a querela entre antigos e modernos, contenda entre os defensores do gênero

puro e os simpatizantes do hibridismo, ligados à historicidade do gênero literário, que

variaria de acordo com os valores do homem e de sua época.

2.1. Mistura de gêneros

Mesmo na Antigüidade clássica a problemática dos gêneros já causava

preocupação e, por vezes, era difícil enquadrar uma obra em um dos três gêneros

apresentados acima. As obras de Ovídio são um exemplo dessa complexidade. As

Metamorfoses, apesar de compostas no verso heróico e versarem sobre os deuses,

não podiam ser classificadas como uma epopéia e também a Arte de Amar e as

próprias Heroides não se inseriam perfeitamente no gênero lírico. Devido a esses

problemas de conceituação, começou-se a defender a mistura dos gêneros. A

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discussão estendeu-se por séculos. Muitos autores pronunciaram-se a favor dessa

mistura ou contra ela. Mas, com o advento do evolucionismo e uma maior

preocupação com a historicidade do gênero, a partir da interpretação de que uma

obra é composta em uma determinada época, respeitando valores estabelecidos,

admitiu-se inequivocamente não só a mistura de gêneros mas também a subdivisão

e a existência de novos gêneros.

A admissão dos gêneros mistos e de novos gêneros fez com que os autores

passassem a observar a predominância dos gêneros nas obras. Muitos autores

teorizaram a respeito da mistura de gêneros, mas dois autores, em especial,

interessam ao nosso estudo: Emil Staiger, em Conceitos fundamentais da poética, e

Northop Frye, em Anatomia da crítica. Staiger aborda as classificações fechadas e

substantivas de gêneros que pretendem sempre classificar as obras dentro da lírica,

da épica ou do drama. Ele afirma que existe uma noção adjetiva e, dessa forma, as

obras seriam classificadas através da predominância de traços estilísticos líricos,

épicos ou dramáticos e, ainda, segundo suas próprias palavras:

... apenas chamo a atenção para um ponto: uma obra exclusivamente lírica, exclusivamente épica ou exclusivamente dramática é absolutamente inconcebível: toda obra poética participa em maior ou menor escala de todos os gêneros e apenas em função de sua maior ou menor participação, designamo-la lírica, épica ou dramática3.

Frye também compartilha da idéia de que uma obra pode possuir aspectos

líricos, sem ser necessariamente lírica, ou trágicos, sem ser precisamente uma

tragédia. Em suas palavras: “... podemos acrescentar o corolário de que a tragédia é

3 STAIGER, E., 1974, p. 190.

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algo maior do que uma fase do drama grego. Podemos também achar a tragédia em

obras literárias que não são dramas.”4

Através da abordagem sobre os conceitos de gênero literário, notamos a

dificuldade em classificar as Heroides no gênero lírico, desprezando o teor trágico

tão determinante nas cartas, o que impossibilitaria a sua classificação nos moldes de

conceitos fechados de gênero.

2.2. A elegia: entre o lírico e o épico

Apesar de a poesia lírica, na concepção moderna, não figurar entre os

gêneros literários da Antigüidade, a elegia está atrelada à concepção antiga de lírico.

A poesia lírica, inicialmente, designava todo poema que não devesse ser recitado,

mas cantado ao som da lira. Poderia ser acompanhado, ainda, por outros

instrumentos musicais como a cítara ou a flauta. O termo lírico é proveniente do

grego lyrikós, que significa algo relacionado à lira, ou o som da própria lira. Portanto,

o artista lírico seria aquele que não estaria no palco para recitar ou representar, mas

para cantar, e o teatro lírico seria a representação de peças musicais.

Na Grécia, era considerado lírico todo poema cantado, acompanhado de um

instrumento musical de corda ou sopro. Em Roma, como já havia acontecido na

lírica alexandrina, há a separação entre música e poesia. Com isso, acrescem-se

aos versos traços musicais como o ritmo, a aliteração, entre outros que acentuam a

sonoridade.

Na Grécia, há dois momentos distintos na lírica: a lírica arcaica (séc. VII a V

a.C.) e a lírica alexandrina (séc. III e II a.C.).

4 FRYE, N., 1957, p. 98.

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No período arcaico, os gregos, que sofriam com a superpopulação de um

território de solo pobre, voltam-se para o comércio e as navegações, pretendendo

criar novas cidades. Com a colonização, acontece o enriquecimento de uma classe

emergente que passa a utilizar a moeda como forma de riqueza, não mais as terras.

Isso gera um grande movimento para a reivindicação de novas leis que

beneficiassem não só aos eupátridas, mas a todo povo livre. Por estas razões, o

individualismo cresce e proporciona o surgimento da lírica, ligada a uma longa

tradição de caráter religioso como os cantos a Himeneu, deus do casamento, e

profano, relacionado a atividades cotidianas e cantigas populares, que evidenciam o

sentimento.

O poema lírico mostra os sentimentos e as emoções e também a vida da

pólis. Nas composições, o poeta exorta, recorda preceitos morais, louva os que

demonstram qualidades etc. Para cada modalidade lírica havia uma estrutura

métrica diferente. As principais formas líricas arcaicas, de acordo com o metro e o

dialeto, foram: a elegia, o iambo e a mélica.

No século IV a.C., na Grécia, inicia-se um período de transformações,

motivadas pelo domínio macedônico, que leva à derrocada da pólis e à debilidade

do sentimento de pátria, causando a ampliação da visão de cidadania que conduziu

ao cosmopolitismo e gerou uma forte tendência ao individualismo. Na poesia,

acontece a transferência do centro cultural de Atenas para Alexandria, no Egito,

onde se reuniam sábios e escritores, especialmente no século III a.C. Esse período

chamar-se-á alexandrino e os principais poetas são Calímaco, Apolônio de Rodes e

Teócrito. A época apresenta-se carregada por um sentimento de renúncia, de

desilusão e de desconfiança por tudo que indicava grandeza. Daí, a rejeição da

epopéia e da tragédia e a busca por formas poéticas pequenas: a elegia, de

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conteúdo amoroso e mitológico; o poema erótico; os epílios, nos quais os episódios

mitológicos davam lugar a cenas cotidianas, e, especialmente, ao amor; o idílio e a

poesia bucólica, ambos criados nesse período.

A lírica alexandrina é caracterizada pelo culto à forma, pela busca da

expressão rara e pelo distanciamento da linguagem coloquial, proporcionados pelos

anseios de erudição, dentre outras características.

O período alexandrino inspirou os poetas romanos do século I a.C.,

descontentes com os modelos de Homero e dos trágicos, imitados por Névio e Ênio.

Numa época sacudida por guerras externas e internas, os autores ansiavam por

uma poesia que falasse do individualismo do poeta, de seus amores, amizades e

inimizades, que privilegiasse o otium em detrimento do negotium. Era o momento do

lirismo em Roma. Surgem, assim, os denominados pejorativamente, por Cícero,

neoterói ou poetae noui, que contavam com Públio Valério Catão, Licínio Calvo,

Hélvio Cina, Fúrio Bibáculo e Catulo, o maior desses poetas.

Atualmente, a elegia é considerada um gênero de poesia relacionado aos

problemas amorosos ou à melancolia. Em sua origem etimológica, ela provém de

elegós, canto lutuoso. Contudo, desde o seu surgimento na Grécia, a elegia não se

limitava somente à temática do luto, sendo considerada como elegíaca toda poesia

composta de dísticos elegíacos, ou seja, um hexâmetro e um pentâmetro. Segundo

Spalding a elegia era “.... transição do ritmo uniforme da epopéia para a variedade

quase infinita dos sistemas líricos; era, portanto, a mediadora entre epopéia e poesia

lírica”5. Distancia-se da épica, entretanto, pelo subjetivismo e espontaneidade.

Na Grécia, desenvolve-se como forma poética já no século VII a.C., sendo

usado o dístico elegíaco em inscrições ou em poemas cantados ao som da flauta.

5 SPALDING, T. O., /s.d./, p. 76.

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Page 22: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

21

Quanto aos temas tratados pelas elegias eram muito variados: celebrações

religiosas, feitos militares, dedicatórias, epitáfios, etc. Não podiam, portanto, serem

classificadas como elegias, através somente desse prisma. Na época, temos como

adeptos de tal poesia Calino, Tirteu e Mimnerno, porém o tema amoroso não era o

principal, só tendo sido tratado pelo terceiro poeta. Mas não se pode esquecer que

René Martin e Jacques Gaillard6 nos dizem que, na Grécia Antiga, a elegia não foi

propriamente um gênero literário, pois os poemas em dísticos elegíacos não tinham

unidade de tema nem de tom e, por isso, poderiam ser considerados como sátiras,

epigramas, poesia didática, mas não “verdadeiramente elegias”.

Foi no período alexandrino que a elegia se tornou popular, através de autores

como Calímaco e Fílitas. Nessas poesias, a preocupação com a forma é

fundamental. Para os poetas, a temática amorosa era muito ligada a heróis e

heroínas mitológicos. Foram justamente esses elegíacos que influenciaram a elegia

romana.

2.3. A elegia latina

Em Roma, o primeiro a se destacar no estilo, em meados do século I a.C., foi

Catulo que escreveu muitos poemas dedicados a Lésbia, nome que ele deu à

mulher amada, inaugurando um tipo de poesia dedicado a uma mulher específica,

que influenciará a geração de elegíacos posterior.

Catulo foi o primeiro grande poeta de amor latino. Utiliza os mais variados

metros e sua linguagem varia, dependendo do tema, desde a vulgar e grosseira até

a elevada. Preocupa-se sempre com a forma do poema e, mesmo nas poesias

6 MARTIN, R. e GAILLARD, J., 1981, p. 107-111.

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Page 23: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

22

imitadas dos alexandrinos, coloca uma nova força e uma alma latina, tornando-as

originais. As elegias 66 e 68 trazem consigo o cerne da poesia erótica e amorosa,

que será plenamente desenvolvida na época de Augusto.

O século I a.C. foi um período conturbado em Roma: época de guerras civis.

Contudo, após a vitória de Augusto, começará um período de paz que propiciará a

poesia subjetiva e, especialmente, amorosa. Com o término das guerras civis,

Roma tornou-se o centro do mundo e os romanos puderam se dedicar ao otium

contemplativo e desenvolver uma poesia latina sem preocupações com guerras.

Voltaram-se para seu interior, para seus sentimentos e sua visão de mundo, para

seus amores. Isso levará a uma geração de poetas que expõem sua subjetividade e

seus sentimentos. Como diz Mlle A. Guillemin “poesia da paz, poesia do amor...”7. E,

assim, desenvolveu-se a poesia elegíaca romana.

Segundo Pierre Grimal8, foi a chegada de Partênio de Nice a Roma que

precipitou o desenvolvimento da elegia, pois transmitiu aos romanos, inclusive a

Catulo, seus conhecimentos sobre Calímaco, além de escrever para Cornélio Galo,

o primeiro elegíaco da época de Augusto, cuja obra se perdeu, uma obra em prosa

intitulada “As paixões de amor”, com muitas histórias de amor, pouco conhecidas,

tiradas de autores gregos. Talvez isto explique o fato de muitas das referências

mitológicas feitas pelos poetas elegíacos romanos serem quase desconhecidas.

No período augustano, especialmente, com Tibulo, Propércio e Ovídio, a

elegia ganha caráter de um gênero elevado que quer a imortalidade. Esses poetas

escrevem livros inteiros de elegias, normalmente dedicados a uma mulher, como

Delia e Nêmesis, em Tibulo e Cíntia, em Propércio, sendo que esses pseudônimos

não deixam transparecer, com clareza, a identidade de suas amadas.

7 GUILLEMIN, A., 1939, p. 288. Cf. “Poésie de la paix, poésie de l’amour...”

8 GRIMAL, P., 1978, p.117-118.

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Page 24: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

23

As elegias amorosas de Tibulo são marcadas pela ausência da amada e pelo

tom melancólico. Nega o heroísmo e apresenta o campo como lugar em que o amor

pode ser realizado plenamente.

O amor por Cíntia foi o principal acontecimento da vida de Propércio e o

fundamento da maior parte de seus poemas. O poeta utiliza-se muito de fábulas

mitológicas, bem ao gosto alexandrino, para enaltecer a grandeza de seu amor. É,

na verdade, um poeta apaixonado. Segundo George Luck9, Propércio sente-se como

um amante romântico, pois o leitor deve ver, no poeta, um herói que deseja lutar

contra a inveja dos deuses, sendo maior do que o seu próprio destino. Propércio vê

o amor como algo transcendental que serve para enaltecer outros valores como a

nobreza, o poder, a riqueza.

Ao contrário de Tibulo, Propércio é citadino, a paisagem campestre em seus

poemas tem um valor mais puramente poético da tradição literária. Ele busca na

Mitologia temas para mostrar que seu amor não é menor do que o dos heróis e

deuses. Além disso, a fidelidade a Cíntia é a marca de toda sua obra. Sua vida foi o

amor por Cíntia, por isso não se estranha o fato de ter Propércio falecido logo após a

morte de sua amada.

Segundo nos afirma George Luck, há três tipos de “mulheres na elegia”10:

1) a matrona, a mulher casada que desfruta de certa independência, como

Cornélia (Prop., 4, 11).

2) a cortesã, que pode estar casada porém mais provavelmente será solteira

ou divorciada, e que tem relações firmes que duram meses ou anos.

3 ) a meretrix, a prostituta com a qual os homens têm encontros breves,

casuais.

9 LUCK, G., in KENNEY E. e CLAUSEN, W. V., /s.d./, p. 458.

10 ibidem, p. 451.

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Page 25: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

24

A maior parte das elegias são dedicadas ao segundo tipo de mulher.

Composições para o primeiro tipo eram incomuns. De um modo geral, os poemas

elegíacos têm como finalidade a conquista da mulher amada pelo eu-lírico

apaixonado. O amor, contudo, normalmente, era ilícito, já que se tratava de uma

cortesã.

2.4. O dístico elegíaco em Ovídio

Publius Ouidius Nasus, filho de rica família eqüestre, nasceu a 20 de março

de 43 a.C., em Sulmona. Estudou em Roma, depois em Atenas. Visitou a Ásia e a

Sicília. Reforçou sua formação em eloqüência estudando com os grandes mestres

de retórica do seu tempo, o que proporcionou grande influência em toda sua obra.

Seu pai queria que se dedicasse ao Direito, mas, depois de ter exercido alguns

cargos públicos, deixou tudo e dedicou-se à poesia, pois segundo ele: Et quod

temptabam scribere uersus erat (Tristes, IV, 10, 26) “Tudo o que tentava escrever,

saía em versos”. Em relação à época em que viveu o poeta e a juventude à qual

pertenceu, esclarece-nos Ettore Bignone:

É o verdadeiro filho da sociedade romana de seu tempo, cansada dos trágicos sobressaltos e das sangüinárias lutas do último período das guerras civis pelos moribundos ideais republicanos, a que Augusto deu a paz, em troca das antigas liberdades que tinham degenerado em anarquia e em lincenciosidade.

As antigas paixões tumultuosas da política, as ambições ardentes de superioridade, resultaram em avidez pelo prazer. Agora esta juventude fastuosa e festiva quer gozar de todos os prazeres, antes de tudo, dos que proporcionam a arte e a beleza. Porém se trata de arte e beleza voluptuosas, de superfície mais que de profundidade; de gozo exterior mais que de íntimo e apaixonado

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Page 26: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

25

abandono da alma. Ovídio reúne todos os dons e todas as qualidades de engenho necessárias para ser o poeta desta época voluptuosa e divertida. 11:

Ovídio casou-se três vezes e teve uma filha. Em 8 d.C., foi exilado por

Augusto na ilha de Tomos, no Ponto Euxino. Ninguém sabe a causa do exílio, sabe-

se somente que lá morreu, em 17 ou 18 de nossa era, sem conseguir o perdão.

Em sua mocidade, Ovídio escreveu uma tragédia, Medea, da qual nos

chegaram apenas dois versos. Fez parte do círculo de Messala, do qual também

participou Tibulo. Foi um círculo poético bastante expressivo, após o de Mecenas.

Em sua fase adulta, inicia a composição do primeiro período de sua obra,

intitulado, por Ettore Paratore12, de ciclo erótico, todo escrito em dísticos elegíacos.

Primeiramente, escreveu os Amores que são poemas, nos quais o poeta canta sua

paixão por Corina, personagem representativa de todas as mulheres que ele amou.

A obra possuía, inicialmente, cinco livros, tendo sido resumida a três pelo próprio

poeta. Sua obra seguinte foi as Heroides, cartas imaginárias enviadas por heroínas

gregas e romanas a seus amantes, procedentes de diversas fontes; o poema teve

influência da retórica e logrou bastante sucesso na época. A Ars Amandi ou Ars

Amatoria, em três livros, explica a arte de amar, poema profundamente licencioso e,

por isso, acredita-se que tenha contribuído para o exílio do poeta, devido aos

preceitos morais valorizados por Augusto. Foi uma das grandes obras de Ovídio, em

11

BIGNONE, E., 1952, p. 309. Tradução feita do original em espanhol: “Es el verdadero hijo de la sociedad romana de su tiempo, cansada de los trágicos sobresaltos y de las sanguinarias contiendas del último período de las guerras civiles por los moribundos ideales republicanos, a la que Augusto há dado la paz, en cambio de las antiguas libertades que habían degenerado en anarquía y en licencia. Las antiguas pasiones tumultuosas de la política, las ambiciones ardientes de predomínio, se han resuelto en avidez de placer. Ahora esta juventud fastuosa y festiva quiere gozar de todos los placeres, ante todo, de los que proporciona el arte y la belleza. Pero se trata de arte y belleza voluptuosos, de superficie más que de profundidad; de goce exterior más que de íntimo y apasionado abandono del alma. Ovidio reúne todos los dones y todas las cualidades de ingenio necesarias para ser el poeta de esta época voluptuosa y divertida.” 12

PARATORE, E., 1983, p. 504.

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Page 27: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

26

que mostra seu engenho e arte com bom-senso e elegância. O Remedium Amoris

fala sobre os meios de se combater o amor, tem, porém, menos méritos que a Arte

de Amar. O Medicamina Faciei é um livro no qual o poeta versa sobre cosméticos

femininos.

Após a composição destas obras, Ovídio passa a sua segunda fase. Ele

escreve As Metamorfoses, em 15 livros, a obra mais grandiosa do poeta, na qual ele

narra as mutações mitológicas desde a origem do mundo até a apoteose de César.

Depois começa a escrever os Fastos, que deveriam ter 12 livros, porém só 6 ficaram

prontos, pois foi desterrado. A obra consiste numa explicação, em versos elegíacos,

do calendário romano. Com a partida do poeta para o Ponto Euxino, iniciam-se as

composições do desterro. Escreveu Ibis , durante a viagem, poema imitado de

Calímaco. Após sua chegada, compôs Tristia, em 5 livros, elegias lastimando o

desterro e pedindo perdão, e Epistulae ex Ponto, em 4 livros, com a mesma temática

anterior, porém apresentando o nome do destinatário. Escreveu ainda, após

observar os costumes em Tomos, a Halieutica, obra didática sobre os peixes do Mar

Negro.

Apesar de desenvolver temas cotidianos nas elegias, ele consegue manter a

atenção e o gosto do público para suas obras, pois se faz porta-voz da sociedade

elegante e frívola em que viveu, utilizando os temas com humor e malícia. Como

pudemos notar ele usa o presente como fonte de inspiração. Jean Bayet13 fala sobre

a inspiração de Ovídio:

Para manter e variar sua inspiração natural, Ovídio seguiu os conselhos dos oradores, sua arte da composição, seu gosto por

13

BAYET, J., 1985, p. 278. Traduzido do original em espanhol: “Para mantener y variar su inspiración natural, Ovidio siguió los consejos de los rétores, su arte de la composición, su complacencia en las enumeraciones, sus efectos de sorpresa o sus artificios de transición devem mucho a ellos”.

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Page 28: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

27

enumerações, seus efeitos de surpresa ou seus artifícios de transição devem muito a eles.

De fato, a retórica influenciou muito toda a sua obra, especialmente as

Heroides. Porém, isso não faz com que seus poemas sejam desprovidos de

sentimento, que é encontrado intimamente ligado à sensualidade e a sua

sensibilidade em relação à Roma de seu tempo.

É visto como um poeta menor por muitos críticos, que insistem em dizer que

ele é repetitivo e suas poesias não possuem um caráter elevado. Vejamos o que nos

diz Paul Harvey14:

Ovídio é um escritor fluente, superficial, espirituoso e engenhoso, nítido no verso e na frase, um contador de histórias vivido e lúcido, com muito virtuosismo de imaginação e descrições pitorescas. Nele a arte poética perdeu o ar sério que teve em Virgílio e Horácio, e ela não é (exceto nas Tristia e nas Epistulae) a expressão de forte sentimento pessoal, como acontece às vezes com Catulo. Seu objetivo é divertir. Sua poesia amorosa é artificial.

O poeta soube manejar muito bem o metro, especialmente, o dístico elegíaco,

fazendo com que cada dístico se tornasse mais independente do que já era definido

pela sua natureza métrica. A respeito da técnica ovidiana poderíamos citar

Kenney15:

14

HARVEY, P., 1987, p. 235. 15

KENNEY, E. J. e CLAUSEN, W. V., /s.d./, p. 502. Traduzido do espanhol: “Tiene mucho de artífice, poeta en el sentido pleno del poihthV original, un creador. Las diferencias técnicas entre Ovidio y Virgilio están en función de su temperamento y su propósito. Virgilio es ambiguo e amnivalente donde Ovidio es definido; Ovidio dice sólo lo que tiene posibilidad de expresar mientras que para Virgilio el recurso del lenguage – estando como estaba entonces en el seno del tiempo la prosa de Henry James - era claramente insuficiente para expresar todo lo que él sentía sobre los conflictos y la inseguridad de la condición humana”.

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Page 29: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

28

Tem muito de artífice, poeta no sentido pleno do poihthV original, um criador. As diferenças técnicas entre Ovídio e Virgílio estão em função de seu temperamento e seu propósito. Virgílio é ambíguo e ambivalente, enquanto Ovídio é definido; Ovídio disse somente o que tinha possibilidade de expressar, enquanto que para Virgílio o recurso da linguagem (...) era claramente insuficiente para expressar tudo o que ele sentia sobre os conflitos e a insegurança da condição humana.

Pela observação de suas obras, podemos notar que Ovídio ampliou os temas

elegíacos romanos. Iniciou com as elegias amorosas para uma determinada mulher,

em Amores; depois abordou o amor de personagens míticas, nas Heroides;

transferiu o eixo do amor para a conquista amorosa, em Ars Amandi; e, finalmente,

inaugurou uma elegia intimista sem ligação com a temática amorosa, em Tristia e

Pontica.

Catulo, Tibulo e Propércio inspiraram-se em sua vida pessoal, em seus

próprios amores. Ovídio não. Usou amores inventados. E segundo Grimal16:

No entanto exatamente por isso Ovídio é testemunha de sua época. Seus predecessores haviam sido em larga medida testemunhas de si mesmos. Ovídio, ao contrário, representa fielmente a opinião de seus contemporâneos sobre o amor, a idéia que faziam de seu papel na vida das criaturas, da parte que convinha lhe atribuir, dos objetivos que ele perseguia.

Em Roma, portanto, a elegia consagra-se como gênero poético dedicado ao

amor, passando de uma poesia que exaltava a paixão vivida pelo poeta a uma

poesia que contempla os sofrimentos amorosos universais. Na verdade, ainda

citando Grimal17, “coube a Ovídio fazer uma espécie de balanço de um meio século

16

GRIMAL, P., 1991, p. 155. 17

Ibidem, p. 156.

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Page 30: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

29

de amores do qual Roma saía transformada, após uma crise moral que destruíra

velhas concepções de sete séculos.”

Para Ovídio, amar é o mesmo que desejar, mantendo a própria etimologia

latina em que o verbo amare remete a ser amante. Com isso, Ovídio canta os

amores ilícitos e não as uniões legítimas. Mesmo nas Heroides, quando remete

cartas de mulheres a esposos ausentes, observamos que o modo de amar e a

intensidade com que o amor consome as protagonistas míticas as tornam

semelhantes, em seus amores, às cortesãs. É ainda Grimal quem nos diz que

“Penélope, Ariadne, Laodâmia pensam e sentem como cortesãs – mas porque o

amor das cortesãs é o que melhor permite chegar à plenitude e à verdade da

paixão.”18

O drama da época elegíaca romana está centrado, justamente, na oposição

amare (amor carnal) X bene uelle (ternura de coração). Segundo Grimal, os homens

iniciavam na ternura e não podiam realizar o prazer com a esposa, enquanto com a

cortesã começavam pelo prazer, mas, dificilmente, chegavam ao bem querer. Os

poetas, de certa forma, refletem o conflito em suas elegias e as Heroides sintetizam

os dois anseios, ainda que na esfera mítica.

2.5. As Heroides

Ovídio, através das Heroides, objeto de nossa tese, consoante Armando

Salvatore19, traz para a elegia uma nova característica, que o distingue dos demais

elegíacos: a capacidade de mostrar os sentimentos das mulheres e aprofundá-los.

Catulo, Tibulo e Propércio e, nos Amores, o próprio Ovídio, fazem, em alguns

18

Ibidem, p. 163. 19

SALVATORE, A., 1959, p. 238.

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Page 31: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

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poemas, análise dos sentimentos da mulher, mas, nas Heroides, há um

aprofundamento deles, especialmente, das dores e aflições sentidas com as

separações ou abandonos amorosos.

Não podemos deixar de citar a análise que Paul Veyne, no livro A elegia

erótica romana, faz dos poemas elegíacos e de seus autores. Segundo ele

(...) Propércio, Tibulo e, na geração seguinte, Ovídio, decidiram-se a cantar na primeira pessoa, com seu verdadeiro nome, episódios amorosos e a relacionar esses diversos episódios a uma só e mesma heroína, designada por um nome mitológico; (...)

Veyne mostra uma visão diferenciada ao tentar demonstrar que não há

relação entre o eu, que ele chama de Ego, e a vida real do poeta. Normalmente,

imaginava-se o poeta e a sua amada como figuras reais e que o poeta, de fato, se

sentia apaixonado por uma mulher e cantava seus amores por ela. Mas, de acordo

com Veyne, a elegia é, na verdade, um jogo irônico para divertir o público da época.

Ele justifica essa idéia através do desenvolvimento de dois pontos: o fato de o Ego

encontrar-se em uma situação de submissão total ou escravidão em relação à

amada e o fato de sua entrega total à paixão.

Tanto um fato como outro não seriam aceitos pela sociedade romana, pois a

paixão era tida como algo destrutivo, uma verdadeira doença, conforme nos ensina

Lucrécio, e a sujeição total de um homem a uma mulher também não era aprovada

pela sociedade, ainda mais se essa mulher tivesse uma vida irregular, fosse ela

uma cortesã ou uma liberta.

Com esses argumentos, Veyne busca demonstrar que as elegias só foram

apreciadas, na época, porque, na verdade, elas usavam de ironia em relação a

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Page 32: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

31

essas relações amorosas. Seria, segundo ele, efetivamente um pastiche da

realidade, uma representação teatral.

Ela (a elegia) não descreve nada em absoluto e não impõe a seus leitores que pensem na sociedade real; ela se passa num mundo de ficção onde as heroínas são também mulheres levianas, onde a realidade só é evocada por flashes, e por flashes pouco coerentes; de uma página a outra, Delia, Cíntia poderiam ser cortesãs, esposas adúlteras, mulheres livres; o mais freqüentemente, não se sabe o que elas são e não se está preocupado com isso; são mulheres de vida irregular, é tudo. Não seria preciso mais do que isso para se estabelecer entre o Ego, a heroína e o narratário esses jogos de espelhos, de olhares de esguelha e de falso natural de que falávamos. Esta irregularidade não é uma parte da vida de nossos poetas e de sua suposta amante, mas uma peça de um sistema; ela representa a lei do gênero, desempenha um papel que chamaremos de semiótico.20

Se, por um lado, sua visão é discutível em relação a Propércio e Tibulo, por

outro, em relação a Ovídio, já havia uma dificuldade, entre os estudiosos, em

associar sua Corina, nos Amores, a uma mulher real.

Nas Heroides, essa visão de uma representação teatral amorosa apresenta-

se adequada, pois Ovídio não mais utiliza um Ego que tenha um contraponto na

realidade, os vários Egos das cartas são personagens ficcionais, pois ou são míticas

ou já não vivem, como Safo, a única personagem inspirada em uma mulher real. Na

obra, existe a elaboração do sofrimento amoroso em uma esfera mítica, portanto

aceitável do ponto de vista social, já que não aborda pessoas da sociedade, mas

personagens.

Nesses poemas, há um aspecto novo em relação à elegia antiga, pois, se no

carmen 66 de Catulo, encontramos a elegia sob a forma alexandrina, que tem como

personagens heróis mitológicos, nas Heroides, os heróis e, principalmente, as

20

VEYNE, P., 1985, p. 17.

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Page 33: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

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heroínas, apesar de serem, em sua maioria, provenientes do mito, vivenciam

sentimentos e sensações elaborados a partir da visão amorosa do poeta, com toda

herança elegíaca, e o conhecimento de sua época, transformando as personagens

míticas em personagens que apresentam conflitos amorosos semelhantes aos dos

romanos da época do autor.

2.6. Uma nova visão elegíaca: o gênero epistolar

Não havia preocupação, em Roma, de elaborar um gênero poético novo,

muito pelo contrário, tanto maior credibilidade tinha a poesia, quanto mais ela se

coadunava a um gênero grego. A originalidade era dada pelo tratamento do assunto

elaborado pelo poeta. No caso da elegia, pela forma de cantar o amor e a amada em

primeira pessoa. Paul Veyne21 diz sobre esse assunto:

A elegia erótica, ela também, quer seja mentira divertida quer transforme a realidade em objeto de arte, é de origem helenística. Os romanos sabiam há dois séculos que os amantes escreviam elegias sobre a casa de sua amada. Fazia seis ou sete séculos que os gregos cantavam o amor, nas métricas mais variadas, na primeira ou na terceira pessoa; saber se se havia omitido a cantar também, na primeira pessoa, em ritmo elegíaco e se deixaram aos romanos a honra de terem sido os primeiros a fazê-lo, não deixa de ter um interesse limitado e cuja resposta mais provável é não: já houve elegias helenísticas onde o amor era cantado sob a ficção do ego, mesmo que fossem essas elegias que chamamos erradamente de epigramas sob o falso pretexto de que são breves demais. Uma questão mais interessante seria a de saber se, na elegia helenística, o poeta se limitava a evocar brevemente os problemas sentimentais de seu ego, para narrar longamente mitos em que o mesmo problema amoroso se achava posto (lembremo-nos de que uma vez Propércio deslizou assim de seu próprio caso para a lenda de Antíope); ou se a narração mítica se reduzia a algumas alusões mitológicas, ficando a maior parte do poema consagrada ao caso pessoal do poeta. Em todo caso, os romanos nunca reivindicaram a menor originalidade em matéria de elegia.

21

Ibidem, p. 48-49.

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Page 34: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

33

Nas Heroides, notamos a união dos dois conceitos precedentes: o amor no

mito passa a ser abordado na primeira pessoa, através da fala da própria

personagem e isso só se torna possível, porque As Heroides de Ovídio não eram

somente elegias, mas foram escritas em forma de carta, constituindo um novo

gênero na literatura latina. Diz Kenney a esse respeito:

Para este novo gênero não havia um único modelo grego ou romano. Sua originalidade, por conseguinte, como na mesma elegia amorosa, consistia na mescla de elementos existentes procedentes da tradição literária e retórica.22

Howard Jacobson23 diz, a respeito da originalidade de Ovídio ao compor as

Heroides, que não havia exatamente um modelo helenístico, isto é, uma coleção de

poemas de amor epistolares mitológicos que ele pudesse usar como fonte. Mesmo

que existissem epístolas míticas antes de Ovídio, ele foi o primeiro a perceber que

isto poderia ser visto não como um fenômeno isolado, mas como uma categoria de

poesia em si mesma.

A temática da obra é comum a outras elegias, pois trata temas eróticos da

mitologia grega em estilo subjetivo. Esse ponto será mais bem desenvolvido no

próximo capítulo ao analisarmos as cartas selecionadas. Além disso, abordar a

separação, a infidelidade e a traição eram muito comuns nesse gênero de poesia.

Porém, os solilóquios não eram comum à época. Houaiss define solilóquio:

recurso dramático ou literário que consiste em verbalizar, na primeira pessoa, aquilo que se passa na consciência de um

22

KENEY, E. J. y CLAUSEN, W. V., /s.d./, p. 466. Traduzido do espanhol: “Para este nuevo género no había un solo modelo griego o romano. Su originalidad, sin embargo, como en la mísma elegía amorosa, consistía en la mezcla de elementos existentes procedentes de la tradición literaria y retórica”. 23

JACOBSON, H., 1974, p. 323.

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Page 35: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

34

personagem. Opõe-se ao monólogo interior, porque o personagem, no solilóquio, articula os seus pensamentos de forma lógica, coerente.24

Ovídio tornou os solilóquios legítimos ao dar-lhes a forma de carta, estilo

literário muito antigo, que ganhou espaço na poesia latina com Lucílio e Horácio. Fez

de cada carta uma obra de arte independente, que não precisa de uma resposta (as

cartas respondidas são certamente tardias). A idéia de usar a carta como forma

poética veio, segundo Jacobson, de várias fontes, principalmente, de uma elegia de

Propércio (4, 3), que era uma carta de Aretusa a Licotas, porém essas personagens

faziam eco a personagens reais, ao contrário das escritas por Ovídio.

Como já mencionamos, o material por ele utilizado procedia, principalmente,

da épica grega e da tragédia. Exceção feita à Carta de Dido a Enéias, que se baseia

na Eneida, e à de Ariadne, que se baseia em Catulo. Os temas são os mesmos: o

impedimento da paixão entre o emissor e o destinatário. Por isso, Ovídio apresentou

uma grande variedade de tratamento e de tom para evitar a monotonia. Assim, o

poeta utiliza uma retórica adequada e uma narrativa retrospectiva dando realce à

situação vivida pela personagem. Além disso, Ovídio dá destaque ao aspecto

psicológico da personagem, enfatizando os efeitos causados pelo sofrimento vivido

pelo protagonista do abandono amoroso.

Em relação à retórica na obra de Ovídio, faz-se mister uma consideração final

fundamentada em Howard Jacobson. Ele contesta que as Heroides sejam exercícios

retóricos pura e simplesmente, mas não nega a influência da retórica nesta obra,

pois, segundo ele, a retórica, como arte do falar e escrever bem, foi uma força

cultural tão penetrante no mundo antigo que é quase impossível falar de qualquer

24

HOUAISS, Dicionário eletrônico da língua portuguesa.

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35

literatura ou pensamento que não fosse retórico, ou formado e influenciado pela

retórica.

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36

3. AS HEROIDES E AS LENDAS

A elegia com suas formas e temáticas, como sabemos, foi usada na

composição das Heroides de Ovídio, poema que dá voz a personagens lendárias,

em sua maioria mulheres, para expressarem suas desventuras amorosas em carta a

seus amados. O autor enfatiza a voz feminina, numa sociedade em que,

poeticamente, a mulher não tinha vez nem voz, por isso a lenda é o pano de fundo

de todos os poemas, já que por serem lendárias as personagens não tinham ligação

direta com a realidade da época. É necessário, portanto, fazer uma abordagem

sobre o que representa o mito para a cultura clássica e diferenciá-lo da lenda, pois

muitos autores não atentam para essa especificidade.

O mito, segundo Mircea Eliade, relata uma história sagrada, pois está

relacionada ao tempo primordial, ou seja, aconteceu no tempo dos princípios, no

qual os Entes Sobrenaturais fizeram com que algo de importante e duradouro

passasse a existir, seja o Cosmo como um todo, ou um comportamento, uma ilha, a

função medicinal de uma planta. O mito, portanto, está diretamente ligado à criação,

porque mostra como alguma coisa foi feita e passou a existir. Nesse sentido, o mito

fala de uma realidade. Nos dizeres do autor: “o mito é considerado uma história

sagrada e, portanto, uma “história verdadeira”, porque sempre se refere a

realidades.”25

Pari passu com os mitos, encontram-se as lendas, segundo Pierre Grimal26 na

Introdução de seu Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Elas narram

acontecimentos que não alteram a condição humana e estão ligados a heróis, não a

25

ELIADE, M., 1972, p. 12. 26

GRIMAL, P., 1997, p. xxxiii-xlvii.

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37

divindades. Mircea Eliade também diferencia o mito do que ele chama de contos ou

fábulas. Diz ele:

(...)Embora os protagonistas dos mitos sejam geralmente Deuses e Entes Sobrenaturais, enquanto os dos contos são heróis ou animais miraculosos, todos esses personagens têm uma característica em comum: eles não pertencem ao mundo quotidiano.(...). Tudo o que é narrado nos mitos concerne diretamente a eles, ao passo que os contos e as fábulas se referem a acontecimentos que, embora tendo ocasionado mudanças no Mundo (...), não modificaram a condição humana como tal.27

Os temas desenvolvidos por Ovídio não constituem mitos, pois não estão

ligados diretamente à criação, e sim lendas. Escolhemos, portanto, cinco cartas

lendárias para analisarmos a constituição do trágico em cada uma delas.

3.1. As lendas trágicas e as Heroides

As Heroides são compostas de vinte e uma cartas de personagens lendárias,

apenas uma é histórica, a de Safo, a seus amados ou amadas ausentes. As cartas

são: de Penélope a Ulisses, de Fílide a Demofonte, de Briseida a Aquiles, de Fedra

a Hipólito, de Enone a Páris, de Hipsípile a Jasão, de Dido a Enéias, de Hermíone a

Orestes, de Dejanira a Hércules, de Ariadne a Teseu, de Cânace a Macareu, de

Medéia a Jasão, de Laodâmia a Protesilau, de Hipermnestra a Linceu, de Safo a

Faon, de Páris a Helena, de Helena a Páris, de Leandro a Hero, de Hero a Leandro,

de Acôncio a Cípide e de Cípide a Acôncio. As lendas e mesmo a história de Safo

são de conhecimento público e praticamente todas possuem um enredo propício à

tragédia ou pelo desfecho na morte da personagem ou pelo erro, a hamartia,

27

ELIADE, M., 1972, p. 15.

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Page 39: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

38

cometida por ela, ou ainda pela hybris, o descomedimento, a ultrapassagem da sua

medida. Exatamente, por isso, muitas dessas lendas foram temas de tragédias

gregas.

Contudo, não temos tragédias, mas cartas elegíacas, aos amados ou amadas

ausentes em que a dor da separação é exposta pela própria personagem, por um

eu-lírico que sofre e apresenta sua visão dos acontecimentos que levaram a esse

sofrimento. A paixão desmedida é a causa dos males de praticamente todas as

personagens. Observamos, com isso o trágico em uma obra lírica e, não só

características determinantes da tragédia. Assim escolhemos cinco cartas, nas quais

Ovídio reelaborou lendas, que originalmente são trágicas, mas que, além disso, têm

a paixão como fonte da salvação e da destruição da personagem, trazendo o cerne

da dialética trágica, proposta pela filosofia do trágico. Pois vemos, nas cartas

escolhidas, que a protagonista acredita, por um erro de discernimento intelectual,

que a paixão é para ela a fonte de sua salvação, mas que, posteriormente, tornar-

se-á a fonte de seu aniquilamento, da destruição de seu mundo e, por vezes, de sua

própria vida.

As cinco cartas escolhidas que podem ilustrar de forma efetiva a abordagem

trágica dada por Ovídio a suas personagens são a carta VI, em que Hipsípile sofre

pelo abandono de Jasão que a troca por Medéia; a carta VII, em que Dido enfrenta

sua dor e angústia ao ser abandonada por Enéias; a carta IX, que mostra a dor de

Dejanira ao tomar conhecimento da morte de Hércules; a X, que apresenta o

desespero de Ariadne deixada por Teseu em uma ilha desconhecida; e a carta XII,

em que Medéia demonstra todo seu ódio contra Jasão que a abandonou.

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Page 40: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

39

A maioria consiste de lendas gregas, dentre elas algumas foram temas de

tragédias e outras faziam parte do imenso universo mítico grego. Apenas uma foi

retiradas da lenda romana, a carta VII.

Algumas lendas tornaram-se tragédias como Hipsípile, em parte perdida, e

Medéia, de Eurípides; e as Traquínias de Sófocles, que elabora o fim de Héracles.

Existe uma predileção de Ovídio pelas lendas trabalhadas pelo tragediógrafo

Eurípides que foi considerado por Aristóteles, na Poética, como o mais trágico dos

poetas áticos por elaborar finais que tinham como única solução possível a

catástrofe. Albin Lesky28 nos explica que

A peça séria de lenda heróica, tratada pela tragédia, contém em geral um acontecimento repleto de sofrimentos. Como esse acontecimento doloroso é que assegura o efeito que Aristóteles reconheceu como específico, ou seja, o desencadeamento liberador de determinados afetos, foi ele necessariamente considerado, em grau cada vez maior, como o que caracterizava propriamente a tragédia.

Esse recurso utilizado por Eurípides é proveniente, em grande parte, da

temática das lendas escolhidas por ele: a paixão. Diferente dos outros autores

trágicos, ele elabora, em primeiro plano, a destruição causada pela paixão àqueles,

especialmente, àquelas, que sucumbem a ela.

Nos dizeres de Junito Brandão29:

Em outros termos, a paixão amorosa, tão ausente em Ésquilo e Sófocles, há de ser a mola-mestra do drama euripidiano. Eis aí o motivo por que o poeta concedeu à mulher o trono de sua tragédia. Basta dizer que das dezessete tragédias euripidianas, que chegaram até nós, doze são nomes femininos e treze têm como protagonista uma mulher.

28

LESKY, A., 2001, p. 37. 29

BRANDÃO, J. de S., 1999, p. 59.

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Page 41: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

40

Não é difícil concluir que as semelhanças entre Eurípides e Ovídio são

grandes, se tomarmos como base as Heroides. Ambos utilizam como tema a paixão

e a mulher. Das vinte e uma cartas de Ovídio, dezoito trazem como remetentes

personagens femininas. Há uma nítida prioridade feminina na paixão. Tanto na

Grécia quanto em Roma, a paixão era considerada algo destrutivo, uma doença, que

podia causar os maiores transtornos à sociedade, um homem não deveria se deixar

acometer pela paixão. A mulher, nessas sociedades, por ser considerada legalmente

como uma criança que não pode discernir o que seria bom para ela e para a própria

sociedade, talvez fosse uma boa representante do mal que a paixão desmesurada

causava à humanidade. Pierre Grimal discorre a respeito do assunto30:

Para Ovídio toda mulher é passional e, por conseguinte, uma vítima prestes a receber seu sedutor. Ele não se refere apenas às cortesãs, cujo ofício é seduzir; como todos os romanos, e já falamos de suas preocupações para proteger as companheiras dos demônios do desejo, Ovídio está convencido de que essa fraqueza constitui um dos traços essenciais da natureza feminina. “Seu desejo é mais intenso que o nosso e comporta mais violência e desregramento”31. É mais ou menos a linguagem adotada pelos filósofos ao tentar justificar as leis que autorizam as meninas a se casar aos doze anos “por causa do desejo que sentem”. Tal é a lei da criação, e Ovídio não deixa de citar exemplos do frenesi amoroso que o senso comum atribuía às mulheres.

Há ainda outro ponto de contato entre Eurípides e Ovídio: as personagens

não se encontram mais em sua superioridade majestosa que caracteriza as

personagens trágicas anteriores. Encontramos nelas o ser humano atormentado

pela paixão.

30

GRIMAL, P., 1991, p. 158. 31

Nota do autor: OVÍDIO, A arte de amar, 1, 341: acrior est nostra (libidine) plusque furoris habet.

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3.2. Heroides: um poema narrativo

As lendas constituem narrativas de heróis e seus feitos ilustres. Elas podem

ser usadas, no teatro, com personagens em ação; na epopéia, com um narrador

apresentado-as; ou podem ser utilizadas como exemplificação de algo vivido pelo

eu-lírico, em poemas. No caso das Heroides, Ovídio utiliza a própria personagem

narrando suas desventuras amorosas. Constituem, não uma experiência de um eu-

lírico, já que os mitos e as lendas são de domínio público e não se poderia alterar

muito seu conteúdo, mas a narrativa, em primeira pessoa, dos sentimentos das

personagens. Temos, portanto, um poema narrativo.

Denominamos narrativa a estrutura que conta com um narrador que relata

uma seqüência de eventos realizados no tempo e são vivenciados por agentes ou

personagens em um determinado espaço de um mundo possível.

As Heroides constituem, nesse sentido, narrativas de narradores que são ao

mesmo tempo personagens, relatando seus sentimentos e suas dores e os motivos

que causaram o sofrimento, situados em um tempo e um espaço lendários.

Em todas as cartas escolhidas, há além da narrativa das desventuras da

mulher abandonada, a narrativa das lendas que foram as fontes dos poemas. O fato

de serem poemas narrativos de lendas conhecidas e não um eu-lírico desconhecido

pela coletividade, deixa transparecer a tragicidade da obra.

A carta VI apresenta Hipsípile, filha de Toas e de Mirina. Seu pai era rei da

ilha de Lemnos, quando as Lemnías decidiram matar todos os homens, porque

foram punidas por Afrodite com um cheiro insuportável, após terem negligenciado o

culto da deusa. Por causa do odor, os maridos abandonaram-nas e elas decidiram

matá-los. Hipsípile salva o pai às escondidas e torna-se rainha. Durante o seu

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reinado, os Argonautas aportam na ilha e são, inicialmente, hostilizados pelas

Lemnías, que decidem não lutar, após a proposta dos heróis da nau Argos de se

unirem a elas. Com isso, Hipsípile torna-se amante de Jasão, tendo com ele dois

filhos. Porém Jasão tinha seu fatum e precisava cumpri-lo: buscar o tosão de ouro.

Assim, o herói parte, abandonando Hipsípile, que narra as coisas que soube sobre

os feitos de Jasão:

Cur mihi fama prior de te quam littera uenit Isse sacros Martis sub iuga panda boues, Seminibus iactis segetes adolesse uirorum Inque necem dextra non eguisse tua, Peruigilem spolium pecudis seruasse draconem

Rapta tamen forti uellera fulua manu? (VI, 9-14)32 Por que razão de ti chegou-me antes da carta a fama de que os touros sagrados de Marte tinham passado sob o jugo encurvado, de que, lançadas as semente, tinham crescido multidões cerradas de homens, e de que não tinham necessidade de tua mão para a morte, de que um dragão que não dorme tinha guardado a pele do carneiro e de que, contudo, o fulvo pêlo tinha sido agarrado por tua forte mão?

Os versos expõem a narração das aventuras de Jasão na conquista do velo

de ouro (uellera fulua), conforme a lenda determina. Conta o que teria que enfrentar

para se apoderar do tosão: subjugar os toros de Ares, deus ao qual estava

consagrado o velo (boues sacros Martis), depois deveria derrotar um exército de

homens que nasciam dos dentes de um dragão semeados por Jasão (uirorum

seminibus iactis) e, finalmente, fazer dormir o dragão que guardava o velo para

poder roubá-lo (draconem peruigilem). Essa narrativa demonstra a frustração de

Hipsípile por saber dessas coisas não pelo próprio Jasão (littera), mas por outros

(fama). Essa frustração do início da carta se transformará em desespero após a 32

Todos os trechos em latim são retirados de OVIDE. Héroïdes. Paris: Les Belles-Lettres, 1928.

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constatação do abandono, ratificado pela chegada de Jasão com Medéia. A

narração, assim, é importante para o desenvolvimento trágico da personagem.

A carta VII narra a respeito de Dido, filha de Muto, rei de Tiro, cujo irmão,

Pigmalião, mesmo sendo uma criança, foi reconhecido como rei, após a morte do

pai. Dido casou-se com o tio Sicarbas, sacerdote de Hércules. Pigmalião torna-se

um déspota e, com receio de perder o trono para Sicarbas, resolve matá-lo. O corpo

do tio fica insepulto e aparece em sonho a Dido, que o encontra e presta-lhe os ritos

fúnebres, prometendo fidelidade eterna. Com medo do irmão, Dido foge com suas

riquezas e todos aqueles que não estão satisfeitos com o rei. Aporta na África, onde

constrói Cartago, que se torna uma cidade importante e uma ameaça aos povos

vizinhos. Por isso, vários reis locais pedem a rainha em casamento, porém ela

recusa todos os pretendentes, e acaba se suicidando, quando Jarbas, rei local, dá-

lhe um ultimato para que se case com ele.

Na carta de Dido a Enéias, dentro da narrativa geral, encontramos a narração

do assassínio de Siqueu, esposo de Dido, pelo irmão dela, da fuga da rainha para a

África e da construção da cidade de Cartago, além dos pedidos de casamento que

ela recusara, antes da chegada de Enéias. Há, portanto, nesses versos um resumo

narrativo de tudo o que havia acontecido na vida de Dido antes de conhecer Enéias.

Observemos os versos:

Occidit Herceas coniunx mactatus ad aras, Et sceleris tanti praemia frater habet. Exul agor cineresque uiri patriamque relinquo Et feror in duras hoste sequente uias. Adplicor ignotis fratrique elapsa fretoque Quod tibi donaui, perfide, litus emo; Vrbem constitui lateque patentia fixi Moenia finitimis inuidiosa locis. Bella tument; bellis peregrina et femina temptor, Vixque rudis portas urbis et arma paro; Mille procis placui, qui in me coiere querentes

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Nescio quem thalamis praeposuisse suis. (VII, 113- 124) O meu marido morreu sacrificado junto aos altares de Júpiter Hirceu, E o meu irmão possui os despojos de tamanho crime.

Sou conduzida como desterrada e deixo as cinzas do meu esposo e a pátria E sou levada por difíceis caminhos pelo inimigo que me persegue. Sou aportada entre desconhecidos e, pérfido, fugida Ao meu irmão e ao mar, compro um litoral, que te dei; Fundei uma cidade e fixei vastas muralhas ao largo Que provocam inveja aos lugares vizinhos. As guerras ameaçam; eu, mulher e peregrina, sou atacada por guerras, E com custo preparo as portas da cidade em construção e as armas; Agradei a mil pretendentes, que se aproximaram de mim queixosos, Não conheço aquele que foi preferido aos seus tálamos.

O trecho apresenta o assassínio do marido de Dido (coniunx occidit)

promovido por seu irmão (frater), sua fuga (exul), a chegada à África (adplicor), a

fundação de Cartago (urbem constituit) e a proposta dos pretendentes (mille procuis

placui). Este é apenas um trecho em que há uma perfeita estrutura narrativa de

acontecimentos dentro da estrutura maior de narrativa dos sentimentos da heroína

Dido, que conduzem gradativamente a sua destruição.

Outra heroína cantada por Ovídio é Dejanira, na carta IX. Filha de Altéia e

Eneu, que reinava em Cólidon, e irmã de Meleagro, que morreu na luta contra os

curetes, foi desposada por Hércules a pedido do irmão, quando este encontrou o

herói nos Infernos. Hércules e Dejanira viveram algum tempo em Cólidon, onde

tiveram um filho. Após deixarem o reino, na travessia de um rio, o centauro Neso

tentou violar Dejanira, mas foi morto por Hércules. Antes de morrer, contudo, Neso

deu a Dejanira uma droga, composta pelo sangue de sua ferida, que disse ser um

filtro de amor, que traria o herói de volta, caso ele a abandonasse. Quando Hércules

luta para obter Iole, que havia sido oferecida como recompensa de uma concurso de

tiro ao arco vencido pelo herói, mas recusada a ser entregue a ele, Dejanira sente

ciúmes e envia-lhe uma túnica embebida da droga dada por Neso. Hércules veste a

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túnica que consome suas carnes e obriga-o, por não resistir ao sofrimento, a se

matar. Dejanira, ao descobrir que não era uma filtro de amor, mas um veneno, que

havia colocado na túnica, suicida-se.

A carta de Dejanira é basicamente a narração dos grandes feitos de Hércules;

contudo ao demonstrar a submissão do herói ao amor que sente por Iole, ressalta o

paradoxo por ele vivenciado, tendo como ponto de referência seus feitos heróicos.

Factaque narrabas dissimulanda tibi, Scilicet immanes elisis faucibus hydros Infantem caudis inuoluisse manum, Vt Tegaeus aper [in] cupressifero Erymantho Incubet et uasto pondere laedat humum. (IX, 84-88) E narravas os feitos que deviam ser escondidos por ti, A saber: que enormes serpentes com as gargantas estranguladas Envolveram tua mão infantil com as caudas, E como o javali da Arcádia, no Erimanto coberto de ciprestes, Cai e danifica a terra com seu peso imenso.

Dejanira, ao narrar os feitos do herói, imagina, em seu sofrimento causado

pelo ciúme, o próprio Hércules narrando (narrabas) seus feitos (facta). Ela, contudo,

não o considera digno desses feitos, que ele deveria esconder (dissimulanda tibi),

porque ela acreditava que o herói encontrava-se escravo de seu amor por Iole. A

submissão à paixão que não era aceitável a um homem, seria abominável a um

herói. A etimologia da palavra indica que está relacionada ao sofrimento (pathos),

sofrimento indigno para um herói.

Ariadne, filha de Pasífae e Minos, rei de Creta, é a protagonista da carta X.

Quando Teseu chega à ilha com a intenção de matar o Minotauro, um ser metade

touro e metade gente, nascido dos amores de Pasífae com um touro saído do mar

por obra de Poseidon, Ariadne apaixona-se pelo herói e o ajuda no intento. O

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Minotauro estava preso no labirinto e alimentava-se de seres humanos. Teseu entra

no labirinto com um novelo de fio, que ele foi desenrolando, e serviu para conduzi-lo

no caminho de volta. Ariadne para fugir da ira de seu pai, foge com Teseu, mas é

abandonada por ele na ilha de Naxos, após adormecer a seu lado. Quando acorda,

encontra-se sozinha em uma ilha desconhecida. Os versos abaixo narram o

momento em que Ariadne acorda sem Teseu:

Tempus erat, uitrea quo primum terra pruina Spargitur et tectae fronde queruntur aues. Incertum uigilans, a somno languida, moui Thesea prensuras semisupina manus; Nullus erat. Referoque manus iterumque retempto Perque torum moueo bracchia; nullus erat. (X, 7-12) Era a ocasião, em que a terra primeiramente é coberta Pela clara neve e as aves escondidas na folhagem lamentam-se. Acordando, indolente de sono, movi, de forma incerta, as mãos Que haveriam de tocar as costas de Teseu; Não havia ninguém. E retiro as mãos e tento pela segunda vez E movo os braços pela cama; não havia ninguém.

A narrativa importa-se, essencialmente, com a determinação do tempo e do

espaço como expressa Salvatore D’Onofrio33:

Sua função é dúplice e antitética: de um lado, dão-nos a impressão de naturalidade, pois as informações temporais e espaciais têm o papel de enraizar a ficção na realidade, tornando-a inteligível; mas, de outro lado, instauram o mundo do imaginário, suspendendo as leis do real.

Nos versos, há um tempo determinado (tempus erat), em que a personagem

desperta na manhã do abandono, e um espaço preciso (terra pruina spargitur), a

33

D’ONOFRIO, S., 2002, p. 96.

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terra, onde se encontrava a cama improvisada, que antes havia abrigado o casal, e

que agora a detinha sozinha, sem o amado Teseu (nullus erat). A ambientação

temporal e espacial contribuem profundamente para intensificar o sofrimento da

personagem que percebe o equívoco de ter acreditado em sua paixão.

O abandono de Medéia, filha de Eetes, rei da Cólquida, por Jasão é o tema

da carta XII. Quando os Argonautas chegam à Cólquida, chefiados por Jasão, que

fora incumbido por Pélias de resgatar o velo de ouro, Medéia apaixona-se pelo herói

e resolve trair os seus e ajudá-lo a se apossar do velocino, usando suas artes

mágicas contra as criaturas que Jasão precisava enfrentar. Após o herói ter se

apossado da pele do carneiro, Medéia, para se livrar da cólera do pai, foge com ele,

que promete-lhe casamento. Na fuga ela mata o irmão e esquarteja-o para retardar

seu pai que a perseguia. Chegando a Iolco com Jasão, ela provoca a morte do rei

Pélias e depois parte para Corinto com o herói, onde o rei Creonte oferece sua filha

em casamento a Jasão e manda banir Medéia e seus filhos. Ela retarda a partida por

um dia e aproveita para enviar uma túnica envenenada para a noiva, que morre

junto com o rei que tenta salvá-la. Para se vingar de Jasão ela ainda mata os filhos e

foge num carro alado, presente do deus Sol, para Atenas, onde se casa com Egeu,

pois havia prometido dar-lhe um filho. Após tentar fazer perecer Teseu, filho de

Egeu, é banida com seu filho Medo, que havia tido de Egeu, e regressa à Cólquida.

O trecho destacado abaixo narra o momento em que a irmã de Medéia pede-

lhe que não traia os seus, após ver seu desespero.

Mane erat et thalamo cara recepta soror Disiectamque comas auersaque in ora iacentem Inuenit et lacrimis omnia plena meis. Orat opem Minyis.................................... Aesonio iuueni, quod rogat illa, damus. (XII, 62-66)

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Era manhã e minha querida irmã foi recebida em meu quarto E encontrou-me com os cabelos desgrenhados e deitada sobre o rosto hostil e tudo cheio de minhas lágrimas. Pede ajuda para os Mínios.............................. O que ela roga, damos ao jovem filho de Esão.

Existe a preocupação com a determinação temporal (mane erat), que também

nesta carta representa a manhã do dia em que Medéia decide tomar atitudes que

serão as causas de seu sofrimento, e espacial (thalamo) que, como em Ariadne,

também é o leito, o lugar em que as decisões são tomadas, por Medéia, que decide

dar sua ajuda a Jasão, nesta carta, e por Teseu, na carta anterior, que abandona

Ariadne. O leito é o lugar da concretização da paixão por excelência, mas também

torna-se o lugar em que mais se sente o abandono amoroso. Temos assim, a íntima

relação do estado de espírito da personagem com o lugar em que ela se encontra,

estendida com os cabelos desgrenhados (disiectam e iacentem), como nos ensina

Salvatore D’Onofrio sobre o espaço na narrativa34:

Evidentemente, todo texto literário possui seu espaço, na medida em que encerra um pedaço da realidade, estabelecendo uma fronteira entre ela e o mundo imaginário. O espaço da ficção constitui o cenário da obra, onde as personagens vivem seus atos e seus sentimentos. As descrições de cidades, ruas, casas, móveis, etc. funcionam como pano de fundo dos acontecimentos, constituindo índices da condição social da personagem (rica ou pobre, nobre ou plebéia) e de seu estado de espírito (ambiente fechado = angústia; paisagens abertas = sensação de liberdade).

Os trechos destacados demonstram que todas as cartas são eminentemente

narrativas, tanto em relação aos sofrimentos das protagonistas, como em relação

aos acontecimentos que geraram suas dores, estruturadas em um tempo e um

34 Ibidem, p. 98.

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espaço determinados. A narrativa corrobora, portanto, para a tragicidade das

personagens já que a narração é importante em quase todos os gêneros literários

para torná-los mais próximos à realidade do destinatário e portanto mais inteligíveis.

É o que nos esclarece Roland Barthes35:

Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro lugar uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas essas substâncias; está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura, no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disso, sob essas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades... internacional, trans-histórica, transcultural, a narrativa está aí, com a vida.

3.3. As Heroides e as lendas: convergências e divergências

Ovídio, ao utilizar o material lendário, faz modificações, em algumas cartas,

para adequá-las ao tipo de composição poética usado.

Os poemas de Hipsípile e de Dejanira não sofrem alterações significativas em

relação às lendas mais difundidas. Contudo as outras cartas recebem adaptações

para, por vezes, acentuar o trágico.

A lenda de Dido, em Ovídio, está interligada à de Enéias, herói troiano, que

após deixar Tróia incendiada pelos gregos, navega em busca da terra predestinada

a ser sua nova pátria. É colhido por uma tempestade mandada por Juno que

dispersa seus navios e os arremessa à costa da África, mais precisamente, em

35

BARTHES, R., 1972, p. 19-20.

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50

Cartago, cidade em construção governada pela rainha Dido, viúva de Siqueu, que

fora morto pelo irmão desta, desejoso do trono e dos tesouros de Sidon. Dido,

avisada em sonho pelo marido assassinado, foge da cidade levando seu ouro e

procura reconstruir sua vida e um novo reino. A rainha, conhecedora das

desventuras dos troianos, acolhe-os e logo se apaixona por Enéias. Juno e Vênus,

com ardilosa intenção, reforçam essa paixão e premeditam uma situação para que

Dido e Enéias pudessem se unir: uma tempestade no meio de uma caçada. A rainha

e o herói refugiam-se na mesma gruta e unem-se. Enéias, a partir de então, participa

dos trabalhos de construção da cidade, até o dia em que Júpiter ordena a Mercúrio

que o alerte para o cumprimento de sua missão: dar aos troianos uma nova pátria e

a Ascânio uma grande descendência. Enéias parte. Dido, ao saber disso, reprova

sua atitude e dilacerada pela dor e pela vergonha resolve matar-se. Constrói uma

enorme fogueira, que será sua pira funerária, e usa a espada de Enéias para pôr fim

à vida, enquanto os navios troianos partem.

O autor, portanto, se baseia numa versão que apresenta uma diferença

bastante significativa em relação à outra também bastante difundida e narrada

anteriormente:

Mille procis placui, qui in me coiere querentes Nescio quem thalamis praeposuisse suis. Quid dubitas uinctam Gaetulo tradere Iarbae? Praebuerim sceleri bracchia nostra tuo. (VII, 123-126) Agradei a mil pretendentes, que se aproximaram de mim Queixosos, não conheço aquele que foi preferido aos seus tálamos. Por que hesitas em entregar-me amarrada ao gétulo Jarbas? Eu teria oferecido meus braços ao teu crime.

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Jarbas é mencionado entre os pretendentes de Dido, mas, na obra, a outra

versão da lenda, apresentada anteriormente, é alterada, para dar lugar à paixão de

Dido e Enéias, fazendo com que Dido cometa suicídio, não por causa do casamento

forçado com Jarbas, mas por causa do abandono de Enéias, conforme já

assinalamos.

Ovídio mostra que os pretendentes foram rejeitados antes da chegada de

Enéias através dos verbos (placui, coiere), mas as queixas dos pretendentes e o

verbo no presente (Nescio quem thalamis praeposuisse suis) indicam que Dido já

não tem tanta certeza a respeito de ter sido certa sua escolha por Enéias, já que ela

parece não conhecê-lo tão bem como imaginava.

O autor das Heroides toma Virgílio, na Eneida, como fonte de sua carta VII.

Segundo Howard Jacobson, em Ovid’s Heroides36, Virgílio pela primeira vez elabora

a relação de Dido e Enéias e, por isso, aceita-se que Ovídio estivesse usando a

Eneida como fonte. Contudo, Virgílio utiliza autores anteriores que teriam

estabelecido a relação entre as duas personagens. Segundo a tradição, um

fragmento de Ênio traz o herói troiano dirigindo-se, possivelmente, à rainha de

Cartago, revelando a relação entre eles. Cada um dos autores, através de um estilo

pessoal, apresenta a sua composição sobre esse relacionamento.

Dido é mostrada como viúva de Siqueu, que fora morto pelo irmão da rainha.

Virgílio muda o nome Sicarbas para Siqueu e Ovídio utiliza também esse último

nome. Nos versos abaixo, Dido recorda a morte de seu marido:

Occidit Herceas coniunx mactatus ad aras, Et sceleris tanti praemia frater habet. Exul agor cineresque uiri patriamque relinquo Et feror in duras hoste sequente uias. (VII, 113-116)

36

JACOBSON, H., 1974, p. 76.

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Page 53: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

52

O meu marido morreu sacrificado junto aos altares de Júpiter Hirceu, E o meu irmão possui os despojos de tamanho crime. Sou conduzida como desterrada e deixo as cinzas do meu esposo e a pátria E sou levada para difíceis caminhos pelo inimigo que me persegue.

O trecho recorda o que aconteceu com Dido antes da fundação de Cartago.

Ovídio dá detalhes dos acontecimentos, mostrando como ela se viu expulsa de sua

terra natal (Exul agor), sendo obrigada a deixar para trás tudo o que lhe era

importante (cineres uiri, patriam) e ainda se desvencilhar da perseguição do irmão

(Et feror in duras hoste sequente uias). Todas essas provações são mostradas de

uma forma bastante detalhada, que pode ser observada pela adjetivação (mactatus,

tanti, exul, duras, sequente). Nas Heroides, a rainha escreve a Enéias tentando

dissuadi-lo de partir, usando uma situação que ele próprio vivenciou: a fuga da

pátria. Por isso apresenta os acontecimentos de forma contundente, mostrando que

também ela passou pelo mesmo problema.

A genealogia divina de Enéias é abordada, no poema, pelas palavras da

própria Dido, mas para contestá-la diante da determinação inabalável do herói em

partir.

Parce, Venus, nurui, durumque amplectere fratrem, Frater Amor! (...) Fallor et ista mihi falso iactatur imago; Matris ab ingenio dissidet ille suae. Te lapis et montes innataque rupibus altis Robora, te saeuae progenuere ferae, Aut mare, quale uides agitari nunc quoque uentis, Quo tamen aduersis fluctibus ire paras. (VII, 31-32;35-40) Poupa, Vênus, a tua nora, e abraça, irmão Amor, Teu irmão insensível! (...) Sou enganada e esta imagem me abala injustamente; Ele está separado do gênio de sua mãe. A pedra e os montes e os carvalhos nascidos Nos altos rochedos e as feras cruéis te geraram,

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53

Ou o mar, tal qual agora vês também ser agitado pelos ventos, Para onde, ainda, te preparas para enfrentar as ondas adversas.

A personagem de Ovídio, inicialmente, faz um apelo aos parentes divinos de

Enéias (Venus, Amor), buscando familiaridade com eles. Apresenta-se de forma

íntima, como nora (nurui), para que estes, que são as divindades que protegem os

amantes, possam tirar a insensibilidade de seu coração. Essa relação de

familiaridade é um tópos na elegia, pois o poeta procura dar uma feição de

legalidade a uma união ilícita. Dido vivencia um amor ilícito (fallor) e ao se

autodenominar nora de Vênus, ela busca, através da invocação do laço familiar,

apresentar-se como esposa legítima.

Vendo, porém, que não será ouvida, ela renega a origem divina do herói, mas

de forma pouco veemente. A rainha utiliza-se de uma gradação decrescente,

mostrando valores simbólicos que vão do mais duro (insensível) ao mais mole ou

volúvel (sensível) para mostrar a dureza de Enéias, dizendo que ele teria sido

gerado pelas pedras (lapis), os montes (montes), os carvalhos (robora), feras cruéis

(saeuae ferae) ou pelo mar (mare). Isso mostra, evidentemente, que Ovídio

apresenta uma personagem que procura argumentar e apelar para a piedade de

Enéias de forma a enternecê-lo e conseguir que ele permaneça ao seu lado.

A genealogia é um recurso muito utilizado nas epopéias e nas tragédias para

dar credibilidade aos feitos do herói, através da importância de sua ascendência. No

trecho analisado, acontece o contrário, pois diante da atitude insensível de Enéias,

em relação à dor da amante, Dido contesta exatamente sua genealogia divina, já

que, se ele fosse realmente descendente de Vênus, deveria dar mais valor ao amor

do que à fundação de uma nova Tróia.

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Page 55: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

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O desfecho dos amores entre Dido e Enéias realiza-se com a trágica morte da

rainha, o que segundo a lenda de fato acontece. Porém, em Ovídio o motivo de sua

decisão de tirar a própria vida não é o pedido de casamento feito por Jarbas, mas

sua relação amorosa mal sucedida com Enéias. A morte de Dido obviamente não

acontece na carta, mas a determinação de que o suicídio está iminente nos é

transmitida pelas suas últimas palavras.

Nec consumpta rogis inscribar Elissa Sychaei; Hoc tamen in tumuli marmore carmen erit: “Praebuit Aeneas et causam mortis et ensem; Ipsa sua Dido concidit usa manu.” (VII, 193-196)

E, consumida pela pira, não serei inscrita como Elisa de Siqueu; Esta inscrição contudo estará no mármore do túmulo: “Enéias deu não só a causa da morte mas também a espada; Tendo usado a sua própria mão, Dido morreu.”

Desde a Ilíada, Enéias é apresentado como um herói obediente aos deuses e

observador dos costumes e das leis. E é assim que se configura o pius Aeneas da

Eneida, que representa como nenhuma outra personagem lendária a pietas e

humanitas romanas. Esses dois preceitos morais devem ser um pouco mais

desenvolvidos.

A pietas pode ser definida, segundo Maria Helena da Rocha Pereira, “como

um sentimento de obrigação para com aqueles a quem o homem está ligado por

natureza (pais, filhos, parentes)”37. Obviamente, esta obrigação estende-se

também aos antepassados que são cultuados como Manes, Lares ou Penates. Com

isso, apresenta-se ligada à religiosidade sendo extensiva aos deuses e, em último

lugar, ao Estado.

37

PEREIRA, M. H. da R., 1989, p. 328

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Enéias busca honrar a pietas em seu sentido religioso, já que procura cumprir

o destino predito pelos deuses que consiste em dar a seus descendentes um grande

império. É essa firmeza de caráter do herói que leva Dido a deixar, no âmbito

poético, seu próprio epitáfio (Her., VII, 195-196), visto na página anterior, culpando

Enéias por sua morte. Nesse aspecto as Heroides apresentam um tópos da elegia

latina: a visualização da morte pelo eu-lírico que se encontra afastado de sua

amada. Não raras vezes, o eu-lírico imagina-se morto e elabora para si um epitáfio

ou vê-se à beira da morte, como nos versos 13 e 14 da elegia 17 do livro II de

Propércio.

Essas alterações feitas à lenda por Virgílio e desenvolvidas por Ovídio, na

carta VII das Heroides, trazem à trajetória de Dido aspectos trágicos marcantes. É o

que nos diz Junito Brandão:

Vergílio, em sua Eneida, cantos 1-4, segue a mesma temática, mas introduziu-lhe modificações de tal ordem, que transformou num drama de amor, semelhante, por sinal, a uma tragédia de Eurípides, o encontro de Enéias com Dido e suas conseqüências.38

A lenda de Ariadne não apresenta grandes modificações na carta de Ovídio,

apenas o desfecho da lenda não é mencionado pelo poeta. Após ser abandonada

por Teseu, segundo a lenda, Dioniso chega à ilha e resgata Ariadne, tornando-a sua

esposa. Esse epílogo é omitido por Ovídio, em sua carta, para que prevaleça a dor e

o sofrimento da amada abandonada. Os versos seguintes enfatizam o sofrimento

causado pelo abandono, que perpassa todo o poema.

38

BRANDÃO, J. de S., 1993, p. 94

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Quid faciam? quo sola ferar? uacat insula cultu; Non hominum uideo, non ego facta boum. Omne latus terrae cingit mare; nauita nusquam, Nulla per ambiguas puppis itura uias. (X, 59-62) O que farei? Para onde irei sozinha? A ilha está vazia de civilização; Não vejo ações de homens, nem de bois. O mar cinge todo lado da terra; não há marinheiro em nenhuma parte, Nenhum navio haverá de ir por caminhos incertos.

Ariadne vê-se sozinha (sola) em uma ilha deserta, sem saber o que fazer

(quid faciam) ou para onde ir, pois em nenhum lugar (nusquam) há sinal de vida. O

abandono e a ausência de vida longe do ser amado é outro tópos da elegia latina. O

eu-lírico só vê razão para viver se for com e para a amada. A questão de viver em

função da amada foi tão forte na elegia latina que Propércio morreu, segundo os

biógrafos, logo após a morte da mulher que inspirava a composição de sua Cíntia.

Diante disso, não é de se admirar que Ariadne só conseguisse vislumbrar um final

cruel para sua situação, como vemos no último dístico do poema:

Flecte ratem, Theseu, uersoque relabere uelo. Si prius occidero, tu tamen ossa feres. (X, 149-150) Teseu, faze voltar teu navio, e retrocede com a vela contrária. Se eu tiver morrido antes, tu, contudo, levarás meus ossos.

O sofrimento de Ariadne é tão grande que a faz acreditar que, mesmo que

Teseu volte com o navio (flecte ratem), ela não resistirá à espera e morrerá antes

(occidero prius), contudo ela espera que ele volte para, ao menos, levar seus ossos

(ossa) e dar a eles as exéquias necessárias para conduzi-la ao mundo dos mortos.

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A lenda de Medéia atesta a morte da noiva de Jasão, Creusa, filha do rei de

Corinto, bem como o assassinato dos filhos de Medéia. A carta de Ovídio, contudo,

faz algumas alterações a essas mortes, já que a carta é escrita pela própria

personagem que traz sua visão dos acontecimentos e, logicamente, ela não se

considera cruel ou impiedosa. A primeira modificação é a menção ao assassínio de

Creusa como uma possibilidade.

Quos ego seruaui, paelex amplectitur artus Et nostri fructus illa laboris habet. Forsitan et, stultae dum te iactare maritae Quaeris et infestis auribus apta loqui, In faciem moresque meos noua crimina fingas. Rideat et uitiis laeta sit illa meis; Rideat et Tyrio iaceat sublimis in ostro. Flebit et ardores uincet adusta meos. (XII, 173-180) Uma concubina abraça o corpo, que eu salvei E ela possui os frutos de nosso trabalho. E talvez, enquanto procuras te vangloriar para a tola mulher E falar aos ouvidos hostis coisas convenientes, Inventes novas falhas contra minha pessoa e meus costumes. Que ela se ria e esteja alegre com meus vícios; Que se ria e se estenda altiva na púrpura de Tiro. Chorará e, queimada, superará meus sofrimentos.

Medéia visualiza, herança das elegias latinas anteriores, o amado com a outra

mulher (paelex). Jasão, na visão da personagem, gaba-se e desvaloriza aquela a

quem abandonou, mas ela prediz que a alegria que eles estão vivendo será

passageira. Há da parte de Medéia uma ameaça futura, como nos mostram os

verbos (flebit e uincet), que fazem parecer que ela sofrerá de amor como Medéia,

não que será efetivamente devorada pelo fogo por artimanha da rival. Vemos essa

ambigüidade pelo jogo com as palavras queimada (adusta), referindo-se a Creusa, e

meus fogos (meos ardores) relacionado a Medéia. O primeiro vocábulo (adusta) é

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empregado em sentido denotativo, enquanto o segundo (ardores) é usado em

sentido conotativo, indicando a dor da paixão de Medéia. Há uma aproximação dos

dois vocábulos e a redução da significância do primeiro, que nos parece apontar

para o valor conotativo, amenizando a forma cruel com que Medéia matou a rival,

consumida por um fogo que nunca se extinguia. A forma de carta escrita pela própria

personagem é responsável pelo fato de ela não se mostrar como uma pessoa

totalmente insensível e malvada como a lenda a apresenta, pois é a versão da

própria Medéia, que pretende justificar seus atos de paixão desmesurada pelo

sofrimento do abandono. Também por esse motivo não há, no poema, a morte dos

filhos, apenas a menção à pretensão de fazer algo terrível.

Quos equidem actutum... Sed quid praedicere poenam Attinet? Ingentis parturit ira minas. Quo feret ira, sequar. Facti fortasse pigebit; Et piget infido consuluisse uiro. Viderit ista deus, qui nunc mea pectora uersat. Nescio quid certe mens mea maius agit. (XII, 207-212) Aqueles que sem dúvida imediatamente... Mas que importa dizer Antecipadamente a pena? A ira gera ameaças enormes. Irei para onde a ira me levar. O que farei talvez seja pesaroso; E é pesaroso ter cuidado de um homem infiel. Um deus, que agora revolve meu peito, terá visto essas coisas. Não sei a que coisa maior certamente meu pensamento impele.

Medéia não diz o que pretende fazer e nem com quem, apenas se refere a

algo maior (quid maius), mas se justifica de futuras atitudes que irá tomar, alegando

estar impelida pela ira (ira) e por um deus (deus) e, por isso, está, de certa forma,

isenta de culpa, já que ela mesma desconhece o que fará (nescio). O deus ao qual

Medéia refere-se, provavelmente, é Dioniso, aquele de cujo culto originou-se a

tragédia e que leva suas sacerdotisas, as Mênades ou Bacantes, a um estado de

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êxtase e entusiasmo, que as deixa fora de si e, portanto, capazes de cometer atos

de crueldade sem a consciência momentânea deles, como Agave que despeça seu

filho Penteu, juntamente com outras Mênades, sem perceber que era ele, porque ele

estava vendo a dança das Bacantes. Essa invocação ao deus assemelha Medéia às

personagens de tragédias. Pierre Grimal expõe as características das Mênades39:

As Mênades (isto é, as “Mulheres Possuídas”) são as Bacantes divinas, seguidoras de Dioniso. Representam-se nuas, ou vestidas com véus ligeiros que mal lhes dissimulam a nudez; estão coroadas de hera, trazem na mão um tirso, por vezes um cântaro, ou então tocam flauta de dois tubos, ou percutem um tamboril, entregando-se a uma dança violenta. As Mênades personificam os espíritos orgiásticos da Natureza. Na lenda, as primeiras Mênades foram as ninfas que alimentaram o deus. Possuídas pelo deus, que lhes inspira uma loucura mística, erram pelos campos, bebendo das nascentes e julgando que delas recebem leite e mel. São os seus jogos que as Bacantes humanas, as mulheres que se entregam ao culto de Dioniso, imitam. Têm poder sobre as feras: por vezes, vêem-se levadas por panteras, com pequenos lobos nos braços, etc.

Os versos analisados mostram que, em algumas cartas, as alterações nas

lendas são maiores, em outras, menores, porém há uma alteração comum feita por

Ovídio em todas as lendas por ele utilizadas para elaborar as cartas: o desfecho.

3.5. A ausência do desfecho

O trágico tem sua origem na tragédia ática, já que os teóricos ocuparam-se

em explicá-la em suas origens e estrutura, para, a partir daí, estabelecer uma teoria

do trágico mais ampla, que não estaria necessariamente subordinada apenas à

tragédia, mas também poderia ser encontrada em outros gêneros.

39

GRIMAL, P., 1997, p. 302.

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Aristóteles foi o primeiro teórico da tragédia, na Poética e, assim, ele a define:

É a tragédia a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas, segundo as partes; ação apresentada, não com a ajuda da narrativa, mas por atores, e que, suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação

dessas emoções. 40:

Aristóteles refere-se à purgação que é a significação dada pelo tradutor para

a palavra catarse, vocábulo proveniente da linguagem médica que significava

efetivamente purgação, purificação. Essa catarse aconteceria, de acordo com o

autor, pela compaixão e o terror, sentimentos que levariam à catarse. O próprio

conceito é controverso e muitos teorizaram a seu respeito sem chegar a uma

conclusão satisfatória, mas podemos afirmar que essa catarse seria responsável por

trazer uma satisfação ao espectador, pois todos os acontecimentos dolorosos foram

trazidos através da imitação ou mimese e, por isso mesmo, não atingem diretamente

àquele que assiste, pois quando ele retorna à realidade ela permanece como

sempre esteve.

O conceito de catarse está intimamente relacionado ao desfecho da tragédia,

que é a representação final da mudança da felicidade à infelicidade ou da boa à má

fortuna. Tomamos esse conceito, porque é preciso ressaltar que como os poemas

analisados foram compostos em forma de cartas, não acontecerá explicitamente

esse desfecho trágico, pois são os próprios protagonistas das lendas trágicas que

são os emissores. Com isso, não há o desfecho trágico das lendas que provocaria a

catarse, mas apenas a menção a ele em algumas cartas, como a de Dido e a de

40

ARISTÓTELES, /s.d./, p. 296.

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Dejanira; a ausência de qualquer revelação sobre um final trágico, como na carta de

Hipsípile; a dissimulação do desfecho, em Medéia; e a criação de um desfecho

trágico hipotético, como no poema de Ariadne.

A carta de Hipsípile está centrada nos sofrimentos da personagem, portanto

nos sentimentos de terror e compaixão, marcados pela traição e pelo abandono de

Jasão, em relação àquela que o acolheu e manteve-se fiel a ele, dando-lhe filhos

gêmeos.

Hanc, hanc, o demens Colchisque ablate uenenis, Diceris Hypsipyles praeposuisse toro! Turpiter illa uirum cognouit adultera uirgo; Me tibi teque mihi taeda pudica dedit. Prodidit illa patrem; rapui de caede Thoanta. Deseruit Colchos; me mea Lemnos habet. Quid refert, scelerata piam si uincet et ipso Crimine dotata est emeruitque uirum? (VI, 133-140) Ó! tu louco, arrastado pelos feitiços da Cólquida (Medéia), terás dito, Que preferiste esta, esta, ao leito de Hipsípile! Vergonhosamente aquela virgem conheceu como adúltera um homem; Um casamento casto consagrou-me a ti e consagrou-te a mim. Ela traiu o pai, eu tirei Toante da morte. Abandonou a Cólquida; minha Lemnos me tem. O que importa, se a criminosa vencerá a justa e não só Foi dotada com este mesmo crime mas também mereceu o marido?

O leitor sofre com Hipsípile pois sabe que seu sofrimento é injusto, como

vemos na oposição entre ela e Medéia, sua rival. A personagem é apresentada

como justa (piam), enquanto a rival é criminosa (scelerata). O efeito trágico acontece

pelo pathos da dor da personagem Hipsípile, centrada no sentimento de compaixão,

um daqueles que causa a catarse. A compaixão, éleos, acontece quando o

espectador conscientiza-se de que o sofrimento que assola o herói é injusto, brotado

do acaso ou da sorte. Jasão aporta por obra do acaso, em Lemnos, onde Hipsípile

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apaixona-se por ele e torna-se sua amante, que, como um tópos da elegia latina, ela

quer fazer crer que é uma união legítima (taeda pudica). Contudo, o herói tem um

destino, que mais cedo ou mais tarde precisará cumprir, buscar o velo de ouro para

conseguir o trono de Iolco. Dessa forma, Hipsípile é abandonada, com a esperança

do retorno do herói, que, novamente, por acaso, conhece Medéia e necessita de sua

ajuda para obter o velocino, prometendo-lhe, em troca, casamento. Hipsípile, assim,

vê-se abandonada e trocada por outra, por obra do acaso e do destino, o que causa

o sentimento de compaixão pelo sofrimento da personagem que não o merecia.

A dor de Dido, na carta VII, é apresentada logo no início (versos 1-2), quando

ela se mostra como aquela que vai morrer, com a afirmação da morte através do

particípio futuro (moriturae). A retórica é utilizada para dar, através do uso do futuro,

uma idéia de que podia haver uma mudança na decisão de Enéias de partir. E é

exatamente essa tentativa de mudança do destino que acompanha as palavras da

rainha no decorrer da carta. Vejamos os versos:

[Accipe, Dardanide, moriturae carmen Elissae; Quae legis, a nobis ultima uerba legis.](VII, 1-2) [Ouve, Enéias, o canto de Elisa que vai morrer; o que lês são minhas últimas palavras.]

Ela tem consciência do seu destino, pois sabe que estas são suas últimas

palavras (ultima uerba), portanto a morte é certa, mas se encontra no futuro. E para

que o trágico tenha realmente o efeito desejado: o terror e a compaixão, é

necessário que as personagens estejam cientes e conscientes do que está

acontecendo. Quanto a isso, Albin Lesky é taxativo:

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O sujeito da ação trágica, o que está enredado num conflito insolúvel, deve ter elevado à sua consciência tudo isso e sofrer tudo conscientemente. Onde uma vítima sem vontade é conduzida surda e muda ao matadouro não há impacto trágico.41

Em outro trecho da carta, Dido aponta novamente para uma possível morte.

Te satis est titulum mortis habere meae. (VII, 76) Basta que tu tenhas o indício da minha morte.

Apresenta Enéias, mais uma vez, como culpado, pois ele terá como indício

(titulum) sua morte. A culpa de Enéias é reforçada pela descrição da preparação da

futura morte de Dido.

Adspicias utinam quae sit scribentis imago; Scribimus, et gremio Troicus ensis adest, Perque genas lacrimae strictum labuntur in ensem, Qui iam pro lacrimis sanguine tinctus erit. (VII, 183-186) Oxalá vejas qual seja a imagem daquela que está escrevendo; escrevemos, e a espada troiana está presente em meu seio, e as lágrimas deslizam pelas faces para a espada desembainhada, que já será manchada de sangue em lugar das lágrimas.

Nestes versos, Dido prepara-se para a morte, pois a espada de Enéias já está

com ela (ensis Troicus) e está desembainhada (strictum). Mas ela chama a atenção

para o seu estado desesperador (lacrimae per genas) e para a imagem do sangue

espirrando em seu rosto (sanguine pro lacrimis tinctus erit). O trecho destacado,

assim como os anteriores, nos trazem, além do sentimento de compaixão, pelo

41

LESKY, A., 2001, p. 34.

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sofrimento da rainha abandonada, também o terror, phóbos, que se concretiza

através do sentimento de humanidade, uma vez que a pessoa que sofre, assim

como os espectadores, pertencem ao gênero humano e o que acontece a ela

poderia acontecer a qualquer um. Não é incomum, mesmo nos dias de hoje, a morte

passional, quer o assassinato, quer o suicídio. Portanto, o leitor sente, além de

compaixão, terror ao ver Dido decidida a morrer por causa da paixão que sente por

Enéias, que a abandonou.

Dejanira em sua carta a Hércules, apresenta todo seu sofrimento diante da

morte, única solução possível para o fato de ter enviado a túnica com o sangue

envenenado do centauro Neso para Hércules vestir e tornar-se a causa da morte do

herói. A dor de Dejanira, que acreditava estar enviando a Hércules um elixir de amor

para que ele retornasse para ela, é marcada pela repetição constante do seguinte

verso:

Impia quid dubitas Deianira mori? (IX, 152) Por que hesitas, ó ímpia Dejanira, em morrer?

O verso acima é bastante significativo em relação ao sofrimento de Dejanira,

que se, por um lado, não foi causado por um ato intencional, por outro, foi a causa

da morte de Hércules. A palavra mais significativa desse verso é impia. Dejanira

abandona sua pietas, deixa de ser obediente aos deuses, a partir do momento em

que se torna fonte do sofrimento do amado e, por isso, deve morrer (mori).

Os sentimentos de terror e compaixão também estão presentes nos últimos

versos da carta de Medéia (207-212), analisados no tópico anterior. Neles há,

intencionalmente, a não referência expressa do desfecho da lenda, usada por

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Eurípides em sua tragédia. A personagem, como a remetente da carta, não poderia,

de fato, fazê-la, já que demonstra sua visão dos acontecimentos. Se ela mostrasse a

resolução consciente de matar os próprios filhos, demonstraria tamanha crueldade

que causaria repúdio pela sua atitude e não compaixão pelo sofrimento ocasionado

pela traição de Jasão. Medéia, então, procura se isentar da culpa, atribuindo seus

pensamentos (mens) a obra da ira e de uma divindade, tirando de si a crueldade.

Aristóteles42 observa que é preciso ter cuidado para não suscitar sentimentos

errados, porque ferirá a natureza da tragédia:

Os autores que provocam, pelo espetáculo, não o terror, mas só a emoção perante o monstruoso, nada têm em comum com a natureza da tragédia; pois, pela tragédia não se deve produzir um prazer qualquer, mas apenas o que lhe é próprio. Como o poeta deve proporcionar-nos o prazer de sentir compaixão ou temor por meio de uma imitação, é evidente que estas emoções devem ser suscitadas nos ânimos pelos fatos.

Apesar da lenda de Ariadne não ter um desfecho trágico, ela idealiza em sua

carta sua própria morte, como faz o eu-lírico da elegia latina. O temor à morte é uma

marca constante nesse poema ovidiano. Segundo a visão da personagem, o

desfecho fatídico é inevitável.

Nunc ego non tantum quae sum passura recordor, Sed quaecumque potest ulla relicta pati. Occurrunt animo pereundi mille figurae. Morsque minus poenae quam mora mortis habet. (X, 79-82) Agora eu não me lembro tanto daquelas coisas que deverei sofrer, Mas tudo aquilo que pode sofrer alguém abandonada. Passam-me pelo espírito mil formas de morrer. E a morte tem menos dor do que a demora da morte.

42

ARISTÓTELES, /s.d./, p. 312.

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Ariadne menciona a morte como algo certo, daí, o emprego do verbo no

presente do indicativo (occurrunt) e a comparação entre a morte (mors) e a sua

demora (mora mortis). Morte que, como sabemos pela lenda, não chegará, muito

pelo contrário, virá Dioniso para salvá-la. Contudo, o que o autor pretende, através

da voz da personagem, é enfatizar a situação de abandono e de desespero da

mulher apaixonada, que se vê sozinha. Solidão que representa para ela a morte.

Os versos escolhidos mostram que as personagens despertam os principais

sentimentos da tragédia, segundo Aristóteles, o terror e a compaixão. Contudo a

ausência do desfecho trágico, que se mostra incompatível com o gênero epistolar,

prejudica, de certo modo, o efeito da catarse, que só se torna realizável, por se

tratar de uma lenda da qual todos sabem necessariamente o fim e por causa da

menção constante das personagem a respeito de suas mortes. Se os emissores

fossem pessoas comuns, certamente, restaria a dúvida se a carta teria ou não

atingindo o objetivo de fazer com que os amantes retornassem aos braços dos

amados.

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4. HEROIDES: UM HINO TRÁGICO ÀS PERDAS AMOROSAS

As lendas descritas e, conseqüentemente, as cartas que as utilizaram

possuem características comuns à tragédia grega, segundo os conceitos

aristotélicos, especialmente, a respeito dos sentimentos que uma tragédia deve

suscitar, o terror e a compaixão, para que a catarse, que é a finalidade desse tipo de

composição poética, seja alcançada. As cartas analisadas apresentam esses

sentimentos e, pelo fato de serem lendas com desfechos conhecidos, produzem o

efeito catártico. Além dessas, outras características da tragédia são encontradas nas

Heroides, principalmente a hamartia, o erro, e a hybris, a desmedida, relacionados

sempre à paixão da personagem. Apesar de toda essa identidade com a tragédia, a

obra possui características marcantes também de seu gênero, a elegia, como a

paixão amorosa, a visualização da morte e o sofrimento amoroso, além da métrica.

Portanto, não podemos caracterizar as Heroides como tragédia e também não

devemos negar seu conteúdo trágico. Precisamos analisar o trágico que se encontra

além da tragédia, isso nos leva a buscar, na filosofia, a resposta do que é o trágico

como um conceito universal. Essa busca conduziu-nos aos idealistas alemães que

observam no trágico uma estrutura dialética, que será aplicada nas cinco cartas das

Heroides, como a oposição entre salvação e aniquilamento, que ocorre com cada

uma das personagens a partir do momento em que, tomadas pela paixão amorosa

que lhes tira a razão, elas acreditam que o relacionamento com o amado será para

elas a salvação de suas vidas, mas que, posteriormente, se apresenta exatamente

como a causa do aniquilamento. Aliando a poética da tragédia à filosofia do trágico,

encontramos uma síntese na definição de Staiger sobre o trágico como fonte de

destruição.

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Page 69: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

68

4.1. A poética da tragédia

Qualquer abordagem sobre o trágico deve ter como ponto de partida a poética

da tragédia de Aristóteles, base de toda conceituação trágica posterior. Na Poética,

o autor estabelece as principais características da tragédia, desde o tipo de

personagem até o enredo, bem como a estrutura da tragédia. Os sentimentos de

terror e compaixão que geram a catarse trágica já foram analisados nas cartas

selecionadas. Há, ainda, outras características da tragédia que podem ser

apreciadas nas Heroides.

Em sua sistematização da poética da tragédia, Aristóteles, na Poética43, diz

que o herói trágico deve figurar entre as camadas mais altas da sociedade e cair,

preferencialmente, da felicidade à infelicidade.

Hipsípile, Dido, Dejanira, Ariadne e Medéia estão configuradas dentro da

conceituação de um herói trágico, pois são rainhas ou filhas de reis que, exatamente

por sua posição, podem auxiliar os amados em seus perigos.

Todas elas também passam da felicidade à infelicidade, ou seja, de rainhas

ou filhas de reis, que desfrutavam de sua posição social, tornam-se escravas de um

amor que as conduz à morte ou à desonra.

As heroínas de Ovídio, aqui analisadas, estão de acordo com as

características do herói trágico, especialmente, nas duas principais características

da tragédia: a hamartia, o erro, a falta de discernimento intelectual de saber o que é

certo ou o que é errado; e a hybris, a de falta de comedimento, a desmedida, a

ultrapassagem do métron.

43

ARISTÓTELES, /s.d./, p. 309-311.

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69

4.2. A hamartia e a hybris

É conveniente retomar a questão da mudança de fortuna, apresentado as

palavras de Aristóteles:

Para que uma fábula seja bela, é portanto necessário que ela se proponha um fim único e não duplo, como alguns pretendem; ela deve oferecer a mudança, não da infelicidade para a felicidade, mas pelo contrário, da felicidade para o infortúnio, e isto não em conseqüência da perversidade da personagem, mas por causa de algum erro grave, como indicamos, visto a personagem ser antes melhor que pior.44

Aristóteles menciona um grave erro, ao qual chama de hamartia. Erro que não

deverá ser uma falha moral, pois não cabe na tragédia a idéia de culpa ou expiação

de pecados, porque se o sofrimento não for imerecido, não haverá a compaixão, que

é um dos sentimentos básicos da tragédia. Então, a falha da qual Aristóteles fala,

deve vir de uma falta de discernimento intelectual do que seria o correto. A respeito

da hamartia, nos diz Albin Lesky:

A coisa não é tão simples quanto crer que a amartia, como erro sem culpa, se contraponha ao crime condenável moralmente; devemos antes supor, seguindo o pensamento antigo, que aceitar uma culpa que subjetivamente não é imputável e que no entanto objetivamente existe com toda a gravidade, é odioso aos homens e aos deuses, podendo empestar um país inteiro.45

A realidade é que, se, por um lado, não há culpa, pois não se cometeu algo

por se ter um caráter mau, por outro, as ações feitas são prejudiciais e, portanto,

44

ARISTÓTELES, /s.d./, p. 32. 45

LESKY, A., 2001, p. 44.

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devem trazer suas conseqüências. Nos poemas abordados, as heroínas têm como

erro a paixão desenfreada pelos heróis a quem encaminham suas cartas e, como

essa paixão é fomentada, muitas vezes, pelas próprias divindades para auxiliar os

heróis aos quais se destina a paixão das personagens, ela é o principal erro e

motivo de queda das protagonistas.

Hipsípile comete um erro ao acreditar, em sua posição de mulher apaixonada,

que Jasão, que se uniu a ela para evitar uma luta entre os Argonautas e as Lêmnias

e assegurar uma boa estada para todos, enquanto não partiam em busca do

velocino de ouro, podia dar-lhe um amor sincero e durável. Sua visão a respeito do

amor de Jasão por ela mostra-se equivocada quando diz:

Credula res amor est. Vtinam temeraria dicar Criminibus falsis insimulasse uirum! (VI, 21-22) Coisa crédula é o amor. Oxalá seja chamada imprudente Por ter censurado o marido por falsos crimes!

O erro de Hipsípile é justamente a credulidade no amor de Jasão (amor, res

credula). Ela gostaria de acreditar, expresso pelo optativo (utinam dicar), que ele não

a tivesse esquecido (falsis criminibus) e que seu erro não fosse amá-lo, mas acusá-

lo de traição (insimulasse).

Alguns versos depois, seu engano também se estende à união entre ela e o

herói, que ela acreditava que fosse estável e que havia sido presidida pelos deuses

do casamento: Juno e Himeneu. Junito Brandão46 discorre sobre a importância de

Juno na sociedade romana, especialmente, para as mulheres.

46

BRANDÃO, J., 1993, p.187-178.

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Deusa romana, esposa de Júpiter e mãe de Marte, muito cedo foi assimilada a Hera. Desde as origens da tradição romana a rainha dos deuses personificava o ciclo lunar e figurava na tríade Júpiter, Juno e Minerva, primitivamente venerada no Quirinal e depois no Capitólio. Outros santuários lhe foram consagrados, o que lhe proporcionou, com a proteção sobretudo à mulher, uma série de epítetos honrosos. (...) Juno Prónuba, presidia ao casamento, às uniões (...). Defensora inconteste das mulheres, sobretudo das detentoras do estado jurídico vigente na cidade, isto é, das mulheres legitimamente casadas, Juno fazia jus a uma grande festa no dia primeiro de março.

A presença das duas divindades responsáveis pela legalização do casamento

é importante na elegia, que busca apresentar como legal uma união ilícita, mas

também é a demonstração da falta de discernimento de Hipsípile, que acredita nas

palavras de Jasão. Nos versos abaixo, vemos a oposição entre o que acreditava

Hipsípile e o que realmente aconteceu:

Non ego sum furto tibi cognita; pronuba Iuno Adfuit et sertis tempora uinctus Hymen; [At mihi nec Iuno, nec Hymen, sed tristis Erinys Praetulit infaustas sanguinulenta faces.] (VI, 43-46) Eu não fui conhecida por ti pelo adultério; Juno que preside o casamento Esteve presente e o Himeneu com as têmporas cingidas com grinaldas; [Porém nem Juno, nem Himeneu, mas a triste Erines Ensangüentada mostrou-me as faces funestas.]

Ela mesma toma conhecimento do seu engano fatídico: não eram Juno e

Himeneu que estavam presentes, mas a triste Erines ensangüentada (tristis Erinys

sanguinulenta), pronta para vingar sua hamartia. Erinys representa uma das Fúrias,

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divindades infernais, associadas às Erínias gregas. Pierre Grimal47 mostra a

importância dessas divindades:

Nasceram das gotas de sangue de Urano, que impregnaram a Terra, quando o deus foi mutilado. Pertencem, por conseguinte, ao grupo das mais antigas divindades do panteão helênico. São forças primitivas que não reconhecem a autoridade dos deuses da geração mais jovem. Protetoras da ordem social, castigam todos os crimes susceptíveis de a perturbar, punindo também o excesso, a hybris, que tende a levar o homem a esquecer-se da sua condição de mortal. (...) Uma das funções das Erínias é naturalmente castigar o assassino, não apenas o que age voluntariamente, mas o homicida em geral, pois o crime é uma mácula religiosa que põe em perigo a estabilidade do grupo social no qual é cometido. Geralmente, o assassino é banido da cidade e anda errante de terra em terra, até o momento em que alguém aceita purificá-lo do seu crime. Muitas vezes, é acometido de loucura por acção das Erínias. Pouco a pouco, as Erínias vão sendo concebidas como divindades responsáveis pelos castigos infernais, à medida que se vai estabelecendo a crença no Além. Esta função surge já timidamente em Homero, mas é sobretudo na Eneida que ela se afirma. Virgílio mostra as Fúrias a atormentar as “almas” dos mortos com os seus chicotes, aterrando-as com as suas serpentes no fundo do Tártaro. É muito possível que estas concepções sombrias tenham sofrido a influência da religião etrusca, que se comprazia em colocar no mundo infernal seres monstruosos que torturavam os mortos.

A própria heroína apresenta seu erro de discernimento, porque ela cobra de

Jasão a fidelidade dos laços matrimoniais, mas o herói não atende às suas súplicas,

pois, por um lado, precisa cumprir o seu destino e recuperar o velo de ouro e, por

outro lado, a visão que Hipsípile apresenta dele, através da adjetivação, mostra que

o caráter do herói não pode ser confiável do ponto de vista dos sentimentos.

Mobilis Aesonide uernaque incertior aura, Cur tua polliciti pondere uerba carent? Vir meus hinc ieras, uir non meus inde redisti; Sim reducis coniunx, sicut euntis eram! (VI, 109-112)

47

GRIMAL, P., 1997, p. 146-7.

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Volúvel Jasão e mais instável do que a brisa primaveril, Por que tuas palavras carecem do valor prometido? Tinhas saído daqui como meu marido, não voltaste de lá como meu marido; Que eu seja esposa do que volta, assim como era do que partia!

Jasão é volúvel (mobilis) e mais instável ( incertior) no comparativo de

superioridade, por isso ele não era confiável para cumprir o que prometera antes de

partir: permanecer marido de Hipsípile (uir), para que ela continuasse em sua

condição de esposa (coniunx).

Ele faz sua escolha independente da vontade da amada, pois ele tinha um

destino a cumprir e, como um herói, não poderia abandoná-lo, por causa de uma

paixão. O fatum é o que há de mais importante para um herói, pois significa a

vontade dos deuses, a palavra deles. Portanto, Jasão tinha de partir para Cólquida

e, como conseqüência, encontrar Medéia.

Hanc, hanc, o demens Colchisque ablate uenenis, Diceris Hypsipyles praeposuisse toro! (VI, 131-132) Ó! tu louco, arrastado pelos feitiços da Cólquida, terás dito, Que preferiste esta, esta, ao leito de Hipsípile!

A escolha por Medéia, representada metonimicamente pela sua região,

Cólquida (Colchis), faz com que Jasão receba um outro adjetivo: louco (demens), na

verdade aquele que perdeu a razão, pois trocou Hipsípile por outra. Mens, -entis, da

raiz do indo-europeu *men, donde memini, no latim, e no grego menos, significa

primeiramente espírito, alma e, por extensão, razão, sabedoria, juízo, discernimento.

Unido ao prefixo de-, que indica o movimento de cima para baixo, traz a idéia de

queda do juízo, da razão, o não senso. Hipsípile acusa Jasão de estar ausente do

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juízo, mas, na verdade, é ela mesma que perdeu o discernimento, quando se tornou

possuída, tal qual uma Bacante por Dioniso, pela paixão que lhe despertou o herói,

causa de sua hamartia.

Na carta VII, também encontramos versos que mencionam uma falta

cometida por Dido, sua hamartia.

Sed merita et famam corpusque animumque pudicum Cum male perdiderim, perdere uerba leue est. (VII, 7-8) Mas já que perdi injustamente os atos e a reputação, o corpo e

o espírito casto, é de pouca importância perder as palavras.

Dido inicia sua carta mostrando as coisas que já havia perdido (perdiderim)

por causa de sua paixão por Enéias. E essa perda deu-se de forma injusta (male). O

que se perdeu é abordado através de uma gradação (merita et famam corpusque

animumque), que forma entre si pares antitéticos: atos x reputação; corpo x espírito,

e que liga, por outro lado, merita a corpus devido a seu sentido material e famam a

animum, pelo sentido espiritual. Animum ligado ao adjetivo pudicum remete ainda à

idéia do pudor, que será um dos motivos da hybris da rainha, como veremos adiante.

Finalmente, para transmitir a idéia de que Dido perdera tudo é usado o polissíndeto

da conjunção aditiva et ( -que), pois a tentativa de convencer Enéias através das

palavras (uerba) é a única coisa que resta à rainha.

Mais adiante, Dido aponta expressamente que uma falta havia sido cometida:

Et Phrygia Dido fraude coacta mori;(...) (VII, 68) E Dido obrigada a morrer por causa de um engano frígio; (...)

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A fraude cometida é muito grave, pois a pena para ela é a morte. A

cartaginesa vê-se obrigada a morrer (coacta mori). Ela não quer a morte. O sentido

de fraude aqui é muito interessante, pois na verdade o erro foi uma armadilha, mas

não feita por ela. Quem cometeu o engano foi Enéias (fraude Prhygia). Ela desloca,

assim, a responsabilidade de se ter entregado ao troiano, ou seja, de ter sucumbido

à paixão, para ele. Um erro é novamente mencionado alguns versos depois:

Diua parens seniorque pater, pia sarcina nati, Spem mihi mansuri rite dedere uiri; Si fuit errandum, causas habet error honestas; (VII, 107-109) A mãe divina e o velho pai, o fardo piedoso do filho, Deram-me a esperança de um homem que iria permanecer, segundo o costume, Se tinha de errar, o erro tem causas honestas;

Aqui é Dido quem erra, mas dá os motivos (Diua parens seniorque pater) que

a conduziram ao erro (errandum, error): acreditar em algo enganoso que é a

permanência de Enéias (uiri mansuri). Mas tenta se justificar (causas honestas),

deixando implícito que o amor é uma boa causa. Em sua paixão, ela não percebe

que seu erro pode conduzi-la à destruição e, por isso, tenta justificá-lo, através da

genealogia do herói e de sua piedade filial. Essas coisas que deveriam mostrar a ela

que Enéias não iria fugir de seu destino, foram erroneamente interpretados como

motivos de estabilidade amorosa. Mais adiante, ela explicita isso:

Quod crimen dicis praeter amasse meum? (VII, 164) Que falta dizes que é minha além de ter eu amado?

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Dido usa, neste verso, uma outra palavra, crimen, mas esta não é empregada

para classificar seu ato e sim, contrariamente, para afirmar que está sendo acusada

injustamente, pois é esta a primeira significação dessa palavra, acusação, queixa,

agravo, injúria, e, por extensão, delito, falta, erro, crime. O verso escolhido, mostra,

portanto, o significado próprio de hamartia como um erro sem culpa, mas que, por

outro lado, se for cometido, deve ser punido, pois traz implicações não só para a

personagem, como para toda a sociedade. A paixão de Dido por Enéias, coloca em

risco Cartago, já que os inimigos tinham a pretensão da união de seus reinos com o

de Dido. A rainha, contudo, argumenta que ninguém deve ser condenado por amar e

ela utiliza, para tanto, uma argumentação retórica, ou seja, não se precisa

responder, porque obviamente ela não quer se comprometer com o ato. Ovídio

mostra-nos uma Dido que argumenta contra a culpa, deslocando-a até mesmo para

Enéias, pois ele a teria traído.

Assim, o autor apresenta o íntimo de uma Dido derrotada. Ele demonstra que

Dido foi vítima e não culpada. Ela apenas amou. É esta Dido muito mais humana,

que sofre como qualquer mulher, por causa de um abandono de amor, que a deixa

tão fascinante. A visão ovididana de uma Dido vítima da paixão amorosa é

interessante e talvez perigosa na Roma de Augusto, sociedade, que provavelmente

associasse Cleópatra, mutatis mutandis, a uma nova Dido, que devia ser destruída.

Dejanira também menciona, várias vezes, um erro, que em seu caso, foi

puramente inconsciente, já que ela não sabia que o conteúdo da droga era um

veneno capaz de consumir a carne de Hércules. Sua intenção e seu erro foram

unicamente acreditar no centauro e em seu amor desmedido. Os versos 143 a 145,

apresentados anteriormente, nos mostram a hamartia de Dejanira. Seus dois erros

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foram enviar a túnica (meae tunicae) e amar demais (me amantem), sendo

dominada pelo furor (furor), por causa disso.

Alguns versos depois, ela se refere ao seu ato como um crime tão grande

(tanti sceleris) que não pode permanecer sem punição, por isso ela não pode ficar

incólume (superstes) e deve morrer (mori).

Impia quid dubitas Deianira mori? [An tuus in media coniunx lacerabitur Oeta, Tu sceleris tanti causa superstes eris? (IX, 146-148) Por que hesitas em morrer, ímpia Dejanira? [Acaso teu marido será torturado no meio do Eta, Tu incólume serás a causa de tamanho crime?

Ainda que Dejanira não tenha culpa, pois não sabia do veneno na túnica, ela

cometeu um erro ao enviá-la a Hércules, achando que, com isso, conseguiria ter de

volta seu amor.

Deprecor hoc unum per iura sacerrima lecti, Ne uidear fatis insidiata tuis. Nessus, ut est auidum percussus arundine pectus, “Hic, dixit, uires sanguis amoris habet.” Inlita Nesseo misi tibi texta ueneno. (IX, 159-163) Peço, pelos juramentos sagrados do leito, apenas isto, Que eu não pareça ter preparado teus destinos. Neso, como o peito ávido foi ferido pelo dardo, “este sangue, disse, tem as forças do amor.” Enviei a ti a túnica ensopada do veneno de Neso.

Mesmo que ela tente desculpar-se (ne uidear), o fato é que ela acreditou em

quem não deveria (Neso) e foi seu ato (misi) que matou Hércules. A paixão a levou a

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acreditar nas palavras do Centauro e a cometer seu erro, sua hamartia. É também

essa interpretação que Kitto48 dá à hamartia de Dejanira na tragédia grega.

É natural que tratemos como uma hamartia Aristotélica o que Dejanira põe em prática: tem muitas virtudes, mas é demasiado simplória e tem de sofrer o castigo trágico. Dito isto, vejamos o tratamento que Sófocles lhe dá. Em primeiro lugar faz com que ela obtenha a aprovação cautelosa do coro antes de se servir do filtro do amor; isto já torna o seu erro mais do que individual, dando-lhe o caráter mais de erro típico; “acção impetuosa realizada na incerteza”, como ela própria diz mais tarde, “ uma coisa horrível feita na esperança do bem”; “Sei a verdade demasiado tarde quando já não remedeia”. (...) Temos de novo, e por mais que uma vez, o que Édipo fez; o que é típico da cegueira que constitui o destino inelutável da humanidade.

A cegueira da razão faz com que Ariadne cometa um erro ao acreditar na

promessa de Teseu de que iria desposá-la, se ela o ajudasse.

Cum mihi discebas: “Per ego ipsa pericula iuro, Te fore, dum nostrum uiuet uterque, meam.” Viuimus, et non sum, Theseu, tua, si modo uiuis Femina periuri fraude sepulta uiri. (X, 73-76) Quando me dizias: “Eu juro pelos mesmos perigos, Enquanto um de nós dois viver, tu serás minha.” Vivemos, e não sou, Teseu, tua, se todavia vives, Mulher sepultada pela fraude de um esposo perjuro.

Por causa da sua condição de crédula na paixão que a domina, encontra-se

agora como morta (sepulta) e a causa da morte é um erro, um engano, uma fraude

(fraude) causada pelo próprio marido (uiri), que adquire a condição de perjuro

(periuri), já que não cumpre a promessa feita, a ius, o direito humano, a justiça

48

KITTO, H., 1990, p. 192-193.

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humana. Ele torna-se, então, injusto. Ela o culpa, nos versos acima, de seu próprio

erro: ter acreditado que sua paixão iria salvá-la da fúria de seu pai e mantê-la segura

ao lado do amado. Em outros versos, porém, ela nos mostra sua hamartia.

Viueret Androgeos utinam, nec facta luisses Impia funeribus, Cecropi terra, tuis, Nec tua mactasset nodoso stipite, Theseu, Ardua parte uirum dextera, parte bouem, Nec tibi, quae reditus monstrarent, fila dedissem, Fila per adductas saepe recepta manus. (X, 99-104) Oxalá vivesse Androgeu, e não tivesses expiado os feitos Ímpios, terra de Cécrope, com teus cadáveres, Nem tua forte destra, Teseu, tivesse matado com seu bastão, Com muitos nós, o monstro em parte homem, em parte boi, Nem a ti eu tivesse dado os fios, que te mostrassem os caminhos de volta, Fios recolhidos muitas vezes por suas mãos conduzidas.

A exortação inicial apresenta nitidamente que o erro de Ariadne, por estar

apaixonada, foi trair os seus (Androgeos, Cecropi) e guiar Teseu pelo labirinto (fila

dedissem) para que matasse o Minotauro (parte uirum, parte bouem) e pudesse

encontrar o caminho de volta (reditus).

Na carta XII, Medéia deixa claro seu erro: a traição dos seus, motivada pela

paixão por Jasão e resumida em uns poucos versos.

Proditus est genitor, regnum patriamque reliqui; Optima cum cara matre relicta soror; Virginitas facta est peregrini praeda latronis; Munus, in exilio quodlibet esse, tuli. At non te fugiens sine me, germane, reliqui; Deficit hoc uno littera nostra loco; Quod facere ausa mea est, non audet scribere dextra; Sic ego, sed tecum, dilaceranda fui. Nec tamen extimui (quid enim post illa timerem?) Credere me pelago, femina iamque nocens. Numen ubi est? ubi di? meritas subeamus in alto Tu fraudis poenas, credulitatis ego. (XII,109-120)

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Meu pai foi traído, deixei o reino e a pátria; Minha irmã adorada com minha querida mãe abandonada; A minha virgindade foi feita presa de um ladrão peregrino; Levei o presente, que podia existir no exílio. Mas fugindo não te deixei sem mim, irmão; A nossa carta falta neste único lugar; O que minha mão ousou fazer, não ousa escrever; Assim eu devia ter sido dilacerada, mas contigo. E contudo não temi (de fato o que temeria depois daquilo?) Confiar-me ao mar, mulher e já criminosa. Onde está a proteção divina? Onde estão os deuses? Soframos as penas Merecidas no alto, tu da fraude, eu da credulidade.

O trecho acima demonstra claramente a hamatia de Medéia, ela traiu o pai

(genitor), deixou o reino e a pátria (regnum patriamque), abandonou a mãe (matre) e

a irmã (soror), levou as riquezas (munus) e assassinou o irmão (germane,

dilaceranda fui), embora não diga abertamente isso. Ela mesma se considera uma

criminosa (nocens), mas se defende afirmando que o crime, a fraude (fraudis), foi

realmente cometida por Jasão ao vê-la apaixonada e prometer-lhe casamento. O

erro dela teria sido apenas apaixonar-se e acreditar no amado (credulitatis). Porém,

ambos deveriam ser punidos (subeamos).

A hamartia leva a hybris, ou seja, o erro conduz à desmedida que é aquilo

que provoca a destruição do herói e que está no centro da dialética da salvação e do

aniquilamento. Através da hybris o herói busca ser mais do que ele pode ser e isso é

o cerne da tragédia e, conseqüentemente, do trágico.

A tragédia origina-se do culto a Dioniso, deus do vinho, relembrando o

momento do mito em que o deus faz o vinho e o dá às Ninfas e aos Sátiros, que

cantam e dançam até desfalecer. A esse respeito ensina Junito Brandão que

... os devotos de Dioniso, após a dança vertiginosa de que se falou, caíam semidesfalecidos. Nesse estado acreditavam sair de si, pelo processo do ekstasiV êxtase. Esse sair de si implicava num mergulho em Dioniso e este no seu adorador pelo processo do

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enqousiasmoV entusiasmo. O homem, simples mortal, anqrwpoV em êxtase e entusiasmo, comungando com a imortalidade, tornava-se anhr isto é, um herói, um varão que ultrapassou o metron a medida de cada um. Tendo ultrapassado o métron, o anér é, ipso facto, um upokrithV, hypocrités, quer dizer, aquele que responde em êxtase e entusiasmo, o ATOR. Essa ultrapassagem do métron é uma “démesure”, uma hybris, ubriV uma violência feita a si mesmo e aos deuses imortais, o que provoca a némesis, nemesiV o “ciúme” divino: o anér, o ator, torna-se êmulo dos deuses. A punição é imediata: contra o anér é lançada áte, ath cegueira da razão; tudo o que o hypocrités fizer, realizá-lo-á contra si mesmo (Édipo, por exemplo). Mais um passo e fechar-se-ão sobre ele as garras da Moira, Moira o destino cego.49

Percebemos, com a citação, que para haver tragédia, em sua origem, é

preciso acontecer a ultrapassagem do métron, ou seja, a hybris, a desmedida.

Todas as personagens apresentam como principal hybris o fato de

acreditarem que são capazes de mudar o destino dos amados ou o seu próprio.

Sabemos que o destino para os romanos é o fatum, segundo Pierre Grimal50

Fatum é o deus do Destino. Na origem, este vocábulo, que se relaciona com a raiz do verbo que significa “falar” (fari), designava a “palavra” de um deus e, como tal, aplicava-se a uma decisão divina irrevogável.

O fatum, portanto, é estabelecido pelos deuses, os homens não podem mudá-

lo. Na tentativa ou, pelo menos, na crença de que poderão mudá-lo, para conseguir

satisfazer sua paixão e manter os amados consigo, é que reside a hybris das

personagens.

Hipsípile pretendia manter Jasão ao seu lado e retardá-lo em seu destino de

buscar o velo de ouro.

49

BRANDÃO, J. de S. , 1980, p. 27-28 50

GRIMAL, P., 1997, p. 164.

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Certa fui primo (sed me mala fata trahebant) Hospita feminea pellere castra manu, Lemniadesque uiros, nimium quoque, uincere norunt; Milite tam forti uitta tuenda fuit. (VI, 51-54) Primeiramente estava certa (mas os maus destinos arrastavam-me) De expulsar os acampamentos estrangeiros com a força feminina e, Também excessivamente, as mulheres de Lemnos imaginaram vencer os homens. Com tão forte soldado a mulher51 devia ser protegida.

Nestes versos, Ovídio elabora o engano de Hipsípile em relação ao destino

(fata) como incerteza, que se torna uma antítese da certeza da personagem (certa)

quanto à possibilidade de vencer os estrangeiros, ampliando-se, depois, para a

possibilidade de deter Jasão e obter seu amor. A certeza da heroína de manter

Jasão a seu lado é o motivo de sua hybris.

No poema VI I , a rainha de Cartago ultrapassou sua medida (métron),

incorrendo na hybris, no momento em que quis desviar Enéias de seu destino. Dido

utiliza um grande número de argumentos retóricos para impedir Enéias de partir.

Logicamente, isto acontece porque a carta de Dido tem como fim último,

exatamente, convencer o troiano a ficar. Observamos isto nos seguintes versos:

Certus es ire tamen miseramque relinquere Didon, Atque idem uenti uela fidemque ferent? Certus es, Aenea, cum foedere soluere naues Quaeque ubi sint nescis, Itala regna sequi? (VII, 9-12)

Contudo estás decidido a ir e abandonar a infeliz Dido, E os mesmos ventos levarão as velas e a fidelidade? Estás decidido, Enéias, a soltar os navios com a aliança, A perseguir os reinos da Itália, que ignoras onde estejam?

51

Vitta traduz-se como fita, porém, no contexto, encontramos uma metonímia, já que a fita na sociedade romana, representa a própria mulher.

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83

Dido argumenta usando comparações com os atos de Enéias para partir

(ferent uela fidemque, soluere naues cum foedere). As velas estão para a fidelidade,

assim como os navios estão para a aliança. Ela não menciona o Himeneu, deus do

casamento, e sim a fides. Ora, a fides para os romanos era um conceito moral e

religioso de extrema importância. Segundo Maria Helena da Rocha Pereira, “Esta

fides é um juramento que compromete ambas as partes na observância de um pacto

“bem firme””52. De tamanha significação era a palavra dada de um romano que

existia, até mesmo, uma deusa chamada Fides. Dido não usa um argumento

qualquer para fazer Enéias ficar, ela reclama a palavra por ele empenhada. Ir contra

isso era difícil. É utilizada também a palavra foedus, -eris que, de acordo com Maria

Helena da Rocha Pereira53, Varrão afirma estar ligada ao mesmo radical de fides.

Há, portanto, o reforço da idéia anterior. É bom observar também que a anáfora de

certus es, aqui, funciona como evocação à idéia contrária: na verdade ela

tencionava fazê-lo desistir da partida.

Ainda na tentativa de fazer com que Enéias não parta, Dido usa, entre outros,

mais um argumento bastante convincente:

Nec mihi tu curae; puero parcatur Iulo. Te satis est titulum mortis habere meae. Quid puer Ascanius, quid commeruere Penates? Ignibus ereptos obruet unda deos? (VII, 75-78)

Não tens os meus cuidados; que se poupe o menino Iulo. Basta que tu tenhas o indício de minha morte. O que mereceu o menino Ascânio, o que mereceram os Penates? A onda submergirá os deuses arrebatados dos incêndios?

52

PEREIRA, M. H. da R., 1989, p. 324. 53

Ibidem, p. 324.

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84

Enéias quer partir em pleno inverno. A tentativa de convencer o herói troiano,

nestes versos, passa do plano individual de respeito a fides, para um plano coletivo.

Inicialmente, Dido pretende atingir o instinto paternal de Enéias, pois um pai não

deseja colocar o filho (Iulo, Ascanius) em uma situação de risco. E, depois, usa um

argumento ainda mais poderoso: os Penates teriam sido tirados de Tróia para serem

afundados no mar? Os Penates representavam os antepassados de Enéias,

divindades que protegiam o herói e sua família. Ele iria colocá-los em perigo?

Certamente, sem eles, o troiano não iria conseguir fundar o novo reino predito pelos

deuses. Há, aí, uma excelente argumentação retórica.

A respeito disso, Howard Jacobson54 diz que Ovídio inverte o material

virgiliano, pois, na Eneida, para os deuses, Ascânio é o herdeiro do destino de

Enéias e não deve dele ser privado. Nas Heroides, Ascânio e o seu bem-estar são

assuntos da inquietação paterna. Isso não deixa de ser uma forma de Dido mostrar

seu amor, através da sua preocupação em preservar a família de Enéias. Mesmo

que essa preocupação tenha sido motivada pelo egoísmo da rainha, que não queria

deixar o troiano partir.

Em sua trajetória trágica, a rainha de Cartago ultrapassa o métron, ou seja,

sua medida ao se apaixonar por Enéias e tentar detê-lo em Cartago, unindo-se a

ele. Essa união, configuraria também a união de seu reino ao de Enéias, o que faria

com que ele não cumprisse o destino estabelecido pelos deuses: a fundação de um

novo reino que viria a ser Roma. A partir de então é lançada contra ela a áte, a

cegueira da razão, que acontece através da paixão desmesurada, que a leva a fazer

de tudo para impedir sua partida, até mesmo pedir que ele fique apenas até que ela

possa acostumar-se com a idéia de perdê-lo.

54

JACOBSON, H., 1974, p. 79;86.

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Pro meritis et siqua tibi debebimus ultra, Pro spe coniugii tempora parua peto; Dum freta mitescant et amorem temperet usus Fortiter ediscam tristia posse pati. (VII,177-180) Por causa dos méritos e se devemos mais coisas a ti, peço, por causa da esperança de união, um pouco de tempo; até que as ondas se acalmem e o costume modere o amor, aprenderei a ser capaz de suportar as coisas tristes corajosamente.

Nesta passagem, Ovídio mostra uma Dido que ainda possui a esperança de

união (pro spe coniugii), embora tudo concorra contrariamente. Ela limita-se a

implorar um tempo (parua tempora), pois diz a sabedoria popular que o tempo esfria

o amor (usus temperet amorem), para que, quem sabe assim, ela possa se

acostumar à idéia de perdê-lo (pati tristia fortiter). Logicamente, ela está se iludindo,

pois não poderá voltar atrás no caminho que a leva ao encontro de seu fatum.

Domenach55 afirma que o trágico é o álibi da paixão, pois nele se estabelece

um acordo entre a liberdade do apaixonado e a sua escravidão, configurando-se

como uma causalidade escondida para a qual se transfere a responsabilidade de

seu fascínio, de seu delírio e da catástrofe que é o resultado provável.

Em relação à hybris, não se pode esquecer um aspecto importante: a ofensa

de Dido ao pudor. O pudor era uma questão relevante para os romanos, pois

significava não somente a castidade, mas o sentimento de honra, tratando-se de um

sentimento moral. Ora, a rainha havia prometido que não se uniria a outro homem

após a morte de seu marido Siqueu, mas descumpriu o juramento feito.

Encontramos a própria Dido referindo-se a essa promessa.

Exige, laese pudor, poenam et uiolate Sychaeeu Ad quem, me miseram, plena pudoris eo.

55

DOMENACH, Jean-Marie, 1967, p. 21-70.

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Est mihi marmorea sacratus in aede Sychaeus (Oppositae frondes uelleraque alba tegunt); Hinc ego me sensi noto quater ore citari; Ipse sono tenui dixit: “Elissa, ueni.”(VII, 97-102) Reclama, pudor ferido, o castigo e, Siqueu violado, para quem me dirijo infeliz, cheia de pudor. Siqueu foi honrado por mim num templo de mármore (grinaldas expostas e faixas brancas cobrem-no);

daqui eu senti que eu tinha sido chamada quatro vezes por voz conhecida.

Ele mesmo disse com uma voz doce: “Elisa, vem”.

Nestes versos, acontece uma associação expressa entre o pudor laese e

Sychaeeu uiolate, ocorrendo a personificação do pudor que foi lesado. Essa

associação é reforçada ainda pelo poliptoto que ocorre em pudor, pudoris e

Sychaeeu, Sychaeus. Por ofender aos dois, ela se considera me miseram e,

contraditoriamente, dirige-se ao marido cheia de pudor. Segue-se a isso uma

descrição de como ela venerava o esposo morto. E, a partir daí, observamos a cena

do marido “traído” chamando a amada para ir a seu encontro, ou seja, a morte.

Inicialmente, ela sente (sensi) ter sido chamada. O verbo sentio está ligado à

percepção pelos sentidos de um modo geral, portanto mostra a certeza do chamado,

reforçado pelo número determinado de vezes (quater), mas o chamado pareceu-lhe

doce (sono tenui).

Observamos, até aqui, duas faltas que levaram Dido à hybris. É conveniente,

contudo, lembrar que, mais significativo, para a ultrapassagem do métron, que o

pudor ferido, palavra ligada ao verbo pudet (envergonhar-se) e ao substantivo

pudicitia que representava a virtude, o recato e a honra para as mulheres romanas,

foi a paixão desmesurada que, talvez inconscientemente, alimentou o intuito de unir

a raça troiana à cartaginesa e fez com que Dido abandonasse a fides, promessa

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feita por ela ao marido morto de nunca mais se unir a outro homem. Ovídio procura

mostrar o lado mais humano e mais vulnerável de Dido, enquanto mulher sofredora

abandonada pelo homem amado.

Dejanira também pretende mudar seu destino e o de Hércules, tentando fazê-

lo voltar a amá-la e não desposar Iole, como vimos nos exemplos dados para a

hamartia.

Ariadne também busca mudar o destino, como vemos nos versos seguintes:

Me quoque, qua fratrem, mactasses, improbe, claua; Esset, quam dederas, morte soluta fides. (X, 77-78) Também me terias matado, como a meu irmão, com a clava, ímpio; A fidelidade, que tinhas prometido, teria sido desfeita com minha morte.

Ela, como Dido, também sofre pela fides violada, ela cobra dele a mesma

fides que lhe deu, mas ela não podia mudar o destino.

Em Medéia, há a hybris no momento em que ela se entrega completamente à

ira, provocada pela sua paixão desmedida por Jasão, e inclina-se a fazer mal contra

a noiva do amado, acreditando que com sua magia ela podia modificar o destino.

Dum ferrum flammaque aderunt sucusque ueneni, Hostis Medeae nullus inultus erit. (XII, 181-182)

Enquanto existir ferro e fogo e suco de veneno, Nenhum inimigo de Medéia estará impune.

Ela age como se fosse um deus diante de seus inimigos, quando acredita que

pode punir com a morte a noiva de Jasão, através de suas artes mágicas. Isso

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mostra como ela ultrapassa o métron, por estar completamente dominada pela

paixão.

4.3. A filosofia do trágico

Os versos analisados demonstram que as Heroides apresentam

características da poética da tragédia, segundo a teoria aristotélica. Porém, em se

tratando de uma obra posterior a Aristóteles e pertencente ao gênero lírico,

pretendemos buscar uma concepção de trágico que não estivesse vinculada à

tragédia, mas pudesse ser aplicada a obras dos mais diversos gêneros. Chegamos,

então aos idealistas alemães, que propuseram, a partir do século XVIII, uma

concepção filosófica do trágico com base na Poética de Aristóteles.

Os alemães estabelecem um novo ideal estético baseado no conceito

clássico de beleza e de mimese, conceitos usados por Aristóteles, o primeiro a

elaborar uma poética da tragédia. Observemos o comentário de Roberto Machado

em O Nascimento do trágico, após fazer um resumo das partes da Poética de

Aristóteles:

O que se nota por essa indicação dos temas da parte da Poética dedicada à tragédia é que a análise aristotélica se interessa pela forma, pela estrutura formal, pela organização interna da tragédia, considerando-a uma espécie de poesia ao lado de outras, com o objetivo de estabelecer uma diferenciação ou, mais precisamente, uma classificação56.

As poéticas clássicas, como vimos no primeiro capítulo, desde Aristóteles,

passando por Horácio, até o Iluminismo, buscam uma normatização dos três

56

MACHADO, R., 2006, p. 26-27.

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gêneros de poesia, propondo-lhes uma definição e normas para serem escritos. Os

teóricos tomavam por base formas preestabelecidas para determinar as regras que

deveriam ser seguidas para alcançar o efeito desejado por cada gênero. No

Idealismo alemão, os gêneros poéticos passaram a ser vistos a partir de sistemas

filosóficos em uma dialética histórica. Passa-se a pensá-los como uma unidade

dialética entre a forma e o conteúdo. Buscam-se conceitos que estão por trás de

cada gênero.

As tragédias passam, a partir do Idealismo alemão, a serem analisadas na

esperança de se estabelecer um conceito universal de trágico, que, em seu aspecto

filosófico, é visto a partir de uma estrutura dialética. A poética filosófica procura

extrair das tragédias a concepção do trágico, em que há a relação dialética entre o

absoluto e o individual, entre o divino e as suas manifestações, entre o universal e o

particular. Por isso, os conceitos de tragicidade (Tragik) e de trágico (Tragisch) são

fundamentalmente alemães.

Peter Szondi57, a esse respeito, declara:

Desde Aristóteles há uma poética da tragédia; apenas desde Schelling, uma filosofia do trágico. Sendo um ensinamento acerca da criação poética, o escrito de Aristóteles pretende determinar os elementos da arte trágica; seu objeto é a tragédia, não a idéia de tragédia.

Os idealistas alemães, desde Schelling até Scheler, buscam, através das

tragédias, um conceito filosófico do trágico. Schelling, o primeiro a tentar identificar o

conceito de trágico nas tragédias, pensa a contradição trágica como o conflito entre

liberdade humana e o fatum. Em suas palavras:

57

SZONDI, P. , 2004, p. 23

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O essencial da tragédia é... um conflito real entre a liberdade no sujeito e a necessidade, como necessidade objetiva. Esse conflito não termina com a derrota de uma ou de outra, mas pelo fato de ambas aparecerem indiferentemente como vencedoras e vencidas58.

Vemos, nesta afirmação, que o trágico é elaborado como um fenômeno

dialético, pois o conflito entre liberdade e necessidade, só se torna possível se o

vencedor for ao mesmo tempo o vencido. Vários versos das cartas analisadas

demonstram essa problemática entre o destino e a liberdade humana, que se torna o

cerne da filosofia de Schelling.

Hölderlin observa a dialética na oposição entre deus e homem, pois a

infidelidade divina mostra que os deuses só estão próximos pelo seu afastamento, já

que o herói não consegue prevalecer contra as forças divinas, sendo por causa

delas aniquilado. Segundo sua análise do Édipo, quando o herói interpreta o oráculo,

que diz que ele matará o pai e se casará com a mãe, como determinação religiosa e

o cumpre, na tentativa de fugir de seu destino, ele unifica-se com o deus. Contudo, é

exatamente essa unificação que provoca a separação da divindade, pois, por ter

cumprido o oráculo, ele deve ser punido. Para Hölderlin, segundo Szondi59,

... o trágico é como que imanente à sua representação da relação entre deus e homem, do modo como a idéia da “infidelidade divina expressa” tal relação. Do ponto de vista da filosofia da história, Hölderlin compreende tanto a época da ação de Édipo quanto a sua própria época como período intermediário, como noite na qual “o deus e o homem, para que o curso do mundo não tenha nenhuma lacuna e a memória dos celestiais não desapareça, comunicam-se na forma da infidelidade, que tudo esquece, pois a infidelidade divina é o que há de melhor para ser lembrado”. Essa dialética de fidelidade e infidelidade, de lembrar e esquecer, é o fundamento temático dos poemas tardios de Hölderlin. Eles ao mesmo tempo

58

Ibidem, p. 31. 59

Ibidem, p. 35-36.

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definem e cumprem a tarefa do poeta em uma época na qual os deuses só podem estar próximos por meio de seu afastamento.

Hegel propõe a dialética como conflito entre amor e lei, ou a lei divina e a lei

humana, que acontece quando os dois lados tem igualmente razão. Os seus dizeres

são esclarecedores:

...o trágico consiste originalmente no fato de que, em tal colisão, cada um dos lados opostos se justifica, e no entanto, cada lado só é capaz de estabelecer o verdadeiro conteúdo positivo de sua meta e de seu caráter ao negar e violar o outro poder, igualmente justificado. Portanto, cada lado se torna culpado em sua eticidade60.

Para Goethe, o trágico existe, quando há uma oposição irreconciliável. Em

sua visão, a dialética trágica, acontece no interior do homem, onde o herói enganado

em relação à meta de seu dever, precisa querer o que não pode querer. Esse

conflito ameaça romper a unidade do Eu, dividindo o que era uno. O autor desloca o

fator trágico da morte do herói para a despedida, assim ele nos diz que

A motivação fundamental de todas as situações trágicas é o ato de partir [Abscheiden], e nesse caso não é preciso nem veneno nem punhal, nem lança nem espada; também é uma variação do mesmo tema o ato de se separar de um situação habitual, amada, correta, seja por causa de uma calamidade maior ou menor, seja por causa de uma violência sofrida, que pode ser mais ou menos odiosa61.

60

Ibidem, p. 42. 61

Ibidem, p. 50.

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Ele toma o ato de partir como estrutura dialética porque ele promove a

divisão, a ligação que acontece pela separação, porque a separação faz com que a

todo momento ocorra a lembrança da ligação existente. Em todas as cartas das

Heroides acontece a partida, que demonstra a perda do amado e também o engano

das heroínas em relação ao que elas querem e o que elas precisam querer, ou

melhor, aceitar. Elas lembram e sofrem todo tempo pela ligação que existia e que foi

rompida.

Schopenhauer elabora a dialética trágica na luta da vontade contra si mesma.

A vontade, representada pelo homem, causa sua autodestruição, pois, na verdade,

“considerada puramente em si mesma, a vontade é destituída de conhecimento e

consiste apenas em um impulso cego, incontrolável.”62 Passa a ser, assim, o motivo

da destruição do herói, pois ele torna-se destituído da razão.

Após Shopenhauer, Hebbel, Nietzsche e Simel estabelecem a oposição

trágica no individualismo, que se insurge no primeiro contra o absoluto; no segundo

contra o uno-original (o dionisíaco ou a vontade); e, no terceiro, obtemos a

tragicidade do amor que “só é despertado na individualidade e se despedaça na

insuperabilidade da individualidade”63.

O último idealista alemão, Scheler, tomando como herança o pensamento de

todos os filósofos anteriores, vê no trágico um conflito ocorrido quando uma coisa

tem um valor positivo, mas se torna a causa do seu aniquilamento como portadora

de valor. Que poderia ser resumida na contradição entre salvação e aniquilamento,

ou seja, um acontecimento que, em determinado momento, é interpretado como a

única possibilidade de salvação de alguém, mostra-se, futuramente, como a causa

da destruição desse ser.

62

Ibidem, p. 53. 63

Ibidem, p. 71.

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Todos os autores abordados buscam nas análises das tragédias não mais

uma categorização poética, mas algo mais amplo, pois pretendem definir um

conceito de trágico na ligação entre homem e algo superior ao próprio homem,

buscando um conceito filosófico do trágico.

4.4. A dialética do trágico

Como ficou claro na visão de todos os filósofos citados, estabelece-se o

trágico como dialética, ou melhor, uma dialética do trágico, ou seja, tudo aquilo que

contém a unidade de contrários, a mudança de um dos termos em seu contrário,

que pode apresentar-se em vários tipos de contradição, mas que se configura, nas

cartas escolhidas, sempre por uma oposição que leva a uma queda e cuja fonte

propulsora é a paixão. Peter Szondi sintetiza:

O trágico é um modus, um modo determinado de aniquilamento iminente ou consumado, é justamente o modo dialético. É trágico apenas o declínio que ocorre a partir da unidade dos opostos, a partir da transformação de algo em seu oposto, a partir da auto-divisão. Mas também só é trágico o declínio de algo que não pode declinar, algo cujo desaparecimento deixa uma ferida incurável. Pois a contradição trágica não pode ser suprimida em uma esfera de ordem superior – seja imanente ou transcendente64.

A análise das cinco cartas das Heroides, feita a seguir, busca apresentar que

há nelas uma estrutura dialética do trágico, a partir da transformação da paixão das

personagens, de causa de salvação, já que elas tinham, por algum motivo suas

vidas ameaçadas, em aniquilamento, pois, essa mesma paixão converte-se no

motivo da morte ou da visualização da morte das heroínas.

64

Ibidem, p. 84-85.

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Na carta VI, há a dialética trágica, quando Hipsípile, depois da maldição de

Afrodite e a conseqüente morte dos homens de Lemnos por suas mulheres e filhas,

encontra Jasão e os Argonautas e interpreta, após apaixonar-se pelo herói, que a

união entre os homens da nau Argos e as Lêmnias possa ser considerada como

salvação da própria raça das Lêmnias, e sua entrega a Jasão, como amante, a

salvação de sua condição de rainha e de mulher apaixonada. Aparece a união como

possibilidade de salvação na seguinte passagem:

Certa fui primo (sed me mala fata trahebant) Hospita feminea pellere castra manu, Lemniadesque uiros, nimium quoque, uincere norunt; Milite tam forti uitta tuenda fuit. Vrbe uirum ut uidi, tectoque animoque recepi. (VI, 51-55)

Primeiramente estava certa (mas os maus destinos arrastavam-me) De expulsar os acampamentos estrangeiros com a força feminina e, Também excessivamente, as mulheres de Lemnos imaginaram vencer os homens. Com tão forte soldado a mulher devia ser protegida. Como vi um homem na cidade, e recebi-o tanto em minha casa quanto em meu coração.

Esses versos deixam claro a condição inicial das Lêmnias como mulheres

(feminea) sozinhas que deviam proteger suas terras contra invasores (uiros), mas

que talvez não fossem fortes o suficiente para isso, como denota a forma verbal

norunt ligada aos infinitivos pellere e uincere e o advérbio nimium. A vitória de

mulheres sobre homens seria muito difícil. A conclusão, portanto, a que chega

Hipsípile é de que elas precisavam dos homens para protegê-las. Era a condição da

salvação, marcada pelo gerundivo de obrigação tuenda fuit, e com o ablativo milite

(soldado), sintetizado em um único homem, uirum (Jasão), visto (uidi) e recebido

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(recepi) pela rainha como a mola propulsora para a sua salvação como rainha,

responsável pela estirpe, e como mulher, ansiosa por ser amada.

A contradição trágica acontece porque o que deveria ser a salvação torna-se

o motivo do aniquilamento da rainha, concretizado pelo abandono e pela traição de

Jasão. Esse aniquilamento já era pressentido pela protagonista, como mostram os

versos:

Non equidem secura fui semperque uerebar Ne pater Argolica sumeret urbe nurum. (VI, 79-80) Evidentemente não estava tranqüila e sempre receava Que teu pai escolhesse uma nora da cidade de Argos.

A salvação, nesse dístico, já se apresenta como ilusória e, por isso, a rainha

não se sentia segura (secura). Ela temia, por ser para Jasão uma estrangeira, que

ele a trocasse por uma mulher de sua cidade (Argolica).

De fato, o abandono, causa do aniquilamento, concretiza-se, pois Jasão e os

Argonautas, têm uma missão, o destino, que não pode deixar de ser cumprido pelo

herói: eles devem buscar o velocino de ouro.

Hic tibi bisque aestas bisque cucurrit hiemps. Tertia messis erat, cum tu dare uela coactus Implesti lacrimis talia uerba tuis: (VI, 56-58) Aqui correu para ti tanto duas vezes o verão como duas vezes o inverno. Era a terceira colheita, quando tu foste forçado a estender as velas, Encheste tais palavras com tuas lágrimas:

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Os versos acima mostram a partida como algo forçado (coactus) e doloroso

(lacrimis), mesmo para Jasão, que, contudo, esquece muito facilmente a dor, as

promessas e a própria Hipsípile, trocando-a não por uma conterrânea, como ela

temia, mas por uma outra estrangeira, Medéia. Assim, o que Hipsípile acreditava ser

sua salvação, a paixão por Jasão, foi também motivo de seu aniquilamento. Como

os versos abaixo, já analisados, deixam transparecer:

Mobilis Aesonide uernaque incertior aura, Cur tua polliciti pondere uerba carent? Vir meus hinc ieras, uir non meus inde redisti; Sim reducis coniunx, sicut euntis eram! (VI, 109-112) Volúvel Jasão e mais instável do que a brisa primaveril, Por que tuas palavras carecem do valor prometido? Tinhas saído daqui como meu marido, não voltaste de lá como meu marido; Que eu seja esposa do que volta, assim como era do que partia!

A caracterização de Jasão demonstra o motivo tanto da salvação como do

aniquilamento de Hipsípile. Ele é mobilis e incertior e, por isso aceitou a união, mas

também, por isso, a trocou por outra. Ele como esposo (uir) foi a salvação e a

destruição da personagem.

A dialética encontrada na oposição entre salvação e aniquilamento, em todas

as cartas, como na precedente, decorrerá da paixão. Já no classicismo francês,

antes dos idealistas alemães, vemos que, os teóricos da literatura, colocam a paixão

como principal fonte do excesso, sendo consideradas más por si próprias. Corneille,

o principal representante deste pensamento acredita que

... na perspectiva cristã, que é a do classicismo francês, são as próprias paixões, e não apenas seu excesso, que são consideradas más. Traduzindo pathos por passion, Corneille está transformando

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as emoções, pensadas por Aristóteles sem significação moral, em sentimentos irracionais que encarnam no amor profano e cegam quando são dominados. Pensado como paixão amorosa, o pathos aristotélico torna-se em Corneille desregramento, uma paixão irracional perigosa ou imoral na medida em que ofusca a razão.65

Não seria preciso esperar pela perspectiva cristã do classicismo francês para

ver a paixão como algo destruidor, ainda que sem uma conotação moral de pecado.

Quando Eurípides ou Ovídio, como já verificamos, tomam como base a paixão é

exatamente para demonstrar como ela pode ser funesta, fonte do aniquilamento,

àqueles que se deixam dominar por ela e, perdem, conseqüentemente, a razão para

discernir que a própria paixão, que parece em determinado momento a salvação,

será a causa da destruição.

Temos a mesma dinâmica de contradição na carta VII, no momento em que

Dido, rainha de Cartago, vê na união com Enéias sua salvação, mas será,

contraditoriamente, também a causa de sua destruição. Ela havia construído uma

grande cidade e, como mulher, reinava sozinha, e, exatamente por isso, era

assediada e invejada pelos reinos vizinhos, tendo tido vários pedidos de casamento.

A paixão por Enéias e a possibilidade de união com o herói pareceu a ela uma

proteção em relação aos povos vizinhos e ao desgosto dos reis que não foram

aceitos, como nos indicam os versos já apresentados:

Adplicor ignotis fratrique elapsa fretoque Quod tibi donaui, perfide, litus emo; Vrbem constitui lateque patentia fixi Moenia finitimis inuidiosa locis. Bella tument; bellis peregrina et femina temptor, Vixque rudis portas urbis et arma paro; Mille procis placui, qui in me coiere querentes Nescio quem thalamis praeposuisse suis. Quid dubitas uinctam Gaetulo tradere Iarbae?

65

MACHADO, R., 2006, p. 33.

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Praebuerim sceleri bracchia nostra tuo. (VII, 117-126)

Sou aportada entre desconhecidos e, pérfido, fugida Ao meu irmão e ao mar, compro um litoral, que te dei; Fundei uma cidade e fixei vastas muralhas ao largo Que provocam inveja aos lugares vizinhos. As guerras ameaçam; eu, mulher e peregrina, sou atacada por guerras,

E com custo preparo as portas da cidade em construção e as armas; Agradei a mil pretendentes, que se aproximaram de mim queixosos, Não conheço aquele que foi preferido aos seus tálamos. Por que hesitas em entregar-me amarrada ao gétulo Jarbas? Eu teria oferecido meus braços ao teu crime.

Os versos demonstram como a rainha percebia sua paixão e a união com

Enéias como salvação em relação à situação de guerras iminentes, em que se

encontrava, no momento da chegada do herói. Novamente há a mulher fragilizada

diante da perspectiva de lutar (peregrina et femina), mas também consciente das

causas da guerra: a fundação de uma cidade (urbem) de vastas muralhas (moenia),

que provocava inveja (inuidiosa), e a recusa dos hiperbólicos mil pretendentes (mille

procis placui), dentre eles Jarbas (Gaetulo Iarbae), o mais importante dos reis locais.

Dido vê em Enéias, além da fonte de sua paixão, um rei, um marido, para protegê-la

e a seu reino, por isso ela dá seu reino (litus emo, quod tibi donaui) e seu coração a

Enéias. Doação lamentada por ela, ao perceber que o que lhe veio como salvação

poderia ser o motivo de sua destruição.

Fluctibus eiectum tuta statione recepi Vixque bene audito nomine regna dedi. His tamen officiis utinam contenta fuissem, Et mihi concubitus fama sepulta foret! (VII, 89-92)

Eu te acolhi lançado pelas tempestades em ancoradouro seguro E, apenas ouvido teu nome, com felicidade, entreguei meus reinos. Oxalá que eu ainda tivesse sido contida por esses favores, E fosse sepultada a notícia de união para mim!

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A exortação está acompanhada dos verbos no subjuntivo (utinam fuissem,

foret), que demonstram o estado de desespero da rainha, prevendo que o seu

aniquilamento seria conseqüência de sua união com Enéias. A paixão deveria ter

sido sepultada (sepulta), quando ainda era uma idéia (fama). A certeza da

destruição é marcada pelas interrogações retóricas a respeito da partida do herói.

Certus es ire tamen miseramque relinquere Didon, Atque idem uenti uela fidemque ferent? (VII, 9-10) Contudo estás decidido a ir e abandonar a infeliz Dido, E os mesmos ventos levarão as velas e a fidelidade?

A decisão de Enéias é imutável (certus es), pois a partida é o seu fatum, os

deuses assim o desejam, ainda que para isso precise sacrificar Dido. Essa idéia de

que o aniquilamento, sua morte, fora causado pelo que ela acreditava que fosse sua

salvação, a paixão e a união com Enéias, completa-se quando ela se refere à

espada presenteada pelo herói, que representava, a um só tempo, o instrumento

que a protegeria das guerras e arma que causaria sua morte.

Quam bene conueniunt fato tua munera nostro! (VII, 187) Quão bem os teus presentes reúnem-se ao nosso destino!

Hoc tamen in tumuli marmore carmen erit: “Praebuit Aeneas et causam mortis et ensem; Ipsa sua Dido concidit usa manu.” (VII, 194-196) Esta inscrição contudo estará no mármore do meu túmulo:

“Enéias deu não só a causa da morte mas também a espada; Tendo usado a sua própria mão, Dido morreu.”

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O verso 187, descreve muito bem o malefício (fato nostro) trazido pelo que

deveria ter sido um benefício (munera). Um presente que precisaria ser algo

agradável é usado para um fim funesto, fim este proporcionado, como o presente,

pelo próprio Enéias (Aeneas concidit causam mortis et ensem). A carta, portanto,

apresenta a contradição que caracteriza a dialética do trágico.

A personagem Dejanira, ao temer a união entre Hércules e Iole, crendo que o

herói estivesse apaixonado pela outra, resolve mandar-lhe uma túnica, embebida do

líquido dado a ela por Neso, antes morrer ferido por Hércules. Ela acredita no

Centauro que lhe havia afirmado, ser o líquido um elixir de amor que traria Hércules

de volta, caso ele a abandonasse. A paixão leva, portanto, Dejanira a aceitar que a

túnica embebida do sangue de Neso seria sua salvação contra o abandono de

Hércules.

Nessus, ut est auidum percussus arundine pectus, “Hic, dixit, uires sanguis amoris habet.” (IX, 161-162) Neso, como o peito ávido foi ferido pelo dardo, “este sangue, disse, tem as forças do amor.”

A heroína crê nas palavras do Centauro, que diz que seu sangue possui o

poder de fazer com que Hércules sempre a ame (uires amoris). Mas o que era

salvação converte-se em aniquilamento tanto de Hércules, quanto da própria

Dejanira. Enquanto ele não suporta a dor e termina com sua vida, ela se vê obrigada

a se punir com o suicídio, por se tornar culpada da morte do amado.

Inlita Nesseo misi tibi texta ueneno. Impia quid dubitas Deianira mori? (IX, 163-164)

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Enviei a ti a túnica ensopada do veneno de Neso. Por que hesitas em morrer, ímpia Dejanira?

Ao enviar a túnica, na tentativa de impedir a união de Hércules com Iole, ela,

na verdade, causa a morte do amado, perdendo-o de uma vez, pois a túnica estava

ensopada (inlita), não num elixir de amor, mas no veneno de Neso (ueneno Nesseo).

Dejanira, assim, torna-se ímpia e precisa morrer (mori). A contradição trágica

encontra-se totalmente delineada nos seguintes versos:

Sed quid ego haec refero? scribenti nuntia uenit Fama, uirum tunicae tabe perire meae.

Ei mihi! quid feci? quo me furor egit amantem? (IX, 143-145) Mas por que eu narro estas coisas? Escrevendo vem o boato Que anuncia que meu marido morreu com o veneno da minha túnica Ai de mim! o que fiz? Para onde o furor levou a mim que amo?

A túnica (meae tunicae), que era o objeto da salvação, porque devia trazer

Hércules de volta aos braços de Dejanira, torna-se a causa do aniquilamento (uirum

perire) com a morte do herói e o prenúncio de seu suicídio. No último verso, o amor,

ou seja, a paixão desmedida (amantem) está relacionada ao substantivo furor,

mostrando a ausência de razão da personagem, como prova da contradição trágica.

Ariadne, em sua carta a Teseu (carta X), também estabelece a relação de

contradição trágica entre salvação e aniquilamento, porque ao trair o pai, Minos, e

toda a sua pátria para ajudar Teseu a sair do labirinto, após derrotar o Minotauro, a

fuga com o amado e, conseqüentemente, a concretização de sua paixão, torna-se

para ela a salvação contra a ira do rei traído, como propõe o próprio Teseu.

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A! pater et tellus iusto regnata parenti Prodita sunt facto, nomina cara, meo, Cum tibi, ne uictor tecto morerere recuruo, Quae regerent passus, pro duce fila dedi, Cum mihi dicebas: “Per ego ipsa pericula iuro, Te fore, dum nostrum uiuet uterque, meam.” (X, 69-74) Ah! meu pai e a terra governada pelo parente justo,

Caros nomes, foram traídos por mim, Quando a ti dei os fios, que guiariam os (teus) passos, como condutor,

para que, vencedor, não morresses no impenetrável labirinto, Quando me dizias: “Eu juro, pelos mesmos perigos, Enquanto um de nós dois viver, tu serás minha.”

Ariadne deixa clara a traição (sunt prodita) e a salvação de sua vida (uiuet)

atrelada àquele que foi o motivo da traição (uictor). Contudo, novamente a causa da

salvação é também a da queda da personagem, pois Teseu que havia nos versos

acima, prometido (iuro) ficar com ela (te fore meam) para sempre (dum uiuet),

mostra-se também um traidor, abandonando-a numa ilha habitada apenas por feras.

[Mitius inueni quam te genus omne ferarum; Credita non ulli quam tibi peius eram.] Quae legis, ex illo, Theseu, tibi litore mitto,

Vnde tuam sine me uela tulere ratem, In quo me somnusque meus male prodidit et tu Per facinus somnis insidiate meis. (X, 1-6) [Conheci toda espécie de feras mais dóceis do que tu; Ter sido confiada a ti não é pior do que àquela espécie.] As coisas que lês, Teseu, envio a ti daquele litoral, Onde as velas levaram teu navio sem mim, E, neste lugar, meu sono traiu-me injustamente e tu Te aproveitaste de meus sonos para o crime.

A carta inicia-se mostrando o abandono de Ariadne por Teseu, que é

apresentado não mais como salvador, mas como aniquilador da vida da

personagem, já que a deixou às feras (genus ferarum), que se revelaram menos

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perigosas que o próprio Teseu (tibi non peius ulli). A síntese da dialética trágica,

encontra-se nas próprias palavras de Ariadne.

Sed nec poena quidem. Si non ego causa salutis, Non tamen est cur sis tu mihi causa necis. (X, 141-142) Mas também nenhum castigo é devido. Se eu não sou a causa da salvação, Então não há motivo para que tu sejas a causa da morte para mim.

Os versos mostram nitidamente a oposição trágica entre salvação como vida

ou direito de viver (salutis) e aniquilamento como morte (necis). Contradição

apresentada também nas palavras de Jasão (carta XII) na tentativa de convencer

Medéia a fazer o mesmo que Ariadne, trair os seus.

“Ius tibi et arbitrium nostrae fortuna salutis Tradidit inque tua est uitaque morsque manu.

Perdere posse sat est, siquem iuuet ista potestas: Sed tibi seruatus gloria maior ero.” (XII, 73-76) “A fortuna deu a ti o direito e o arbítrio da nossa Salvação e em tua mão está não só a vida mas também a morte. É bastante poder destruir, se esse poder agrada a alguém: Mas para ti salvo serei maior glória.”

O discurso de Jasão estabelece a mesma dialética, com basicamente as

mesmas palavras: salutis e uita em oposição a mors. Mas, ao mesmo tempo em que

ele se coloca nas mãos (tua manu) de Medéia, que tem o direito e o arbítrio (ius et

arbitrium) da vida dele, também se mostra como seu salvador (maior gloria tibi), se

for salvo (seruatus) por ela.

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A fuga com Jasão, que seria sua salvação em relação àqueles a quem traiu,

apresenta-se como seu aniquilamento, quando se vê abandonada por ele, prestes a

se casar como Creusa, filha do rei de Corinto, Creonte.

Deseror amissis regno patriaque domoque Coniuge, qui nobis omnia solus erat. (XII, 161-162) Perdidos o reino e a pátria e a casa, sou abandonada Pelo esposo, que sozinho era tudo para mim.

Jasão é apresentado não só como esposo (coniuge), mas também como

tudo, todas as coisas (omnia) para Medéia (nobis) em seu plural de modéstia. A

partir do momento em que traiu os seus, ela perdeu tudo e passa a ver em Jasão

tudo o que havia perdido. Com o abandono do amado (deseror), ela perde tudo. A

paixão por ele, que antes fora a salvação, agora é o aniquilamento de Medéia.

Tendo como base a filosofia do trágico, podemos afirmar que todas as

personagens analisadas são trágicas, pois apresentam em sua trajetória a

contradição, a partir do momento em que acreditam que a paixão pode trazer-lhes a

salvação, mas descobrem que ela é a fonte de sua destruição.

Percebemos até agora que as cartas, além de possuírem características

específicas da tragédia, sendo, contudo, líricas, também se coadunam com a

dialética trágica de salvação e aniquilamento, desenvolvida pela filosofia do trágico

para ampliar o conceito de tragicidade a obras de outros gêneros, ou seja, o trágico

que existe para além da tragédia. Assim, procuramos entender os conceitos gregos

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de tragédia, a partir de uma visão posterior e mais moderna, mas sempre tendo

como ponto de partida a Grécia, como nos apresenta Roberto Machado66

Essa idéia da Grécia como perfeição artística e modelo da arte moderna também pode ser encontrada na correspondência entre Goethe e Schiller, o grande documento do chamado classicismo de Weimar, quando os dois amigos estão sempre recorrendo à análise da arte grega e à teoria dos gregos para formular as leis gerais da arte, ou mais precisamente, se esforçando para compreender as leis formais da arte da Antigüidade e adaptá-las aos conteúdos que a época moderna oferece aos escritores.

Em se tratando de Ovídio, as teorias gregas, bem como as obras são

utilizadas sem dúvida alguma como a fonte primordial de imitação, já que aqui ainda

não saímos do que consideramos a Antigüidade Clássica. Contudo, não podemos

negar as particularidades do autor relacionadas à sua época específica: o século I

a.C.

4.5. A síntese do trágico entre a poética e a filosofia

A época do autor é de extrema importância para a análise de sua obra, pois

ela aponta para as transformações, pelas quais os homens da época estão

passando. No período de Ovídio, a paixão aparece como ponto de especulações,

especialmente, elegíacas, e a obra ovidiana, como vimos, muito nos tem a

esclarecer sobre o amor e a paixão, no período augustano, e, mesmo a dicotomia,

entre eles, como nos ensina Pierre Grimal, citado anteriormente. Convém, contudo,

relembrar como era visto o amor, nas elegias, e na visão ovidiana.

66 MACHADO, R., 2006, p. 21.

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Para Ovídio – e sem dúvida para a maioria de seus contemporâneos – o amor é acima de tudo o desejo. Aliás, o verbo latino amare significa antes ser amante de alguém, e a Arte de amar é a coletânea onde se encontram os conselhos mais eficazes para obter os favores de uma mulher. Na verdade, como já dissemos, Ovídio só pensa nas mulheres que vivem da libertinagem e cuja única preocupação, única razão de ser é exatamente conquistar e conservar amantes. Não fala da vida conjugal, a princípio por decoro, depois porque o casamento evidentemente não deixa lugar para “amores”. Ainda que ame a esposa, Ovídio se atém aos lugares-comuns tradicionais no tocante a uniões legítimas (...) Sem o peso das leis, o amor encontra sua própria verdade; não podia se satisfazer com mentiras – a menos que o homem fosse muito rico e que, à custa de presentes, conseguisse aprisionar aquela que desejava. Seja qual for o juízo que nossa moral possa fazer dessa absoluta liberdade de prazer, o fato é que ela criava as condições de uma experiência amorosa “no estado puro”. Perigosa para a vida social, para o próprio futuro de Roma, a longo prazo destruidora da família e até da pessoa, ela permitia que o sentimento amoroso tomasse consciência de si mesmo e alcançasse novos refinamentos.67

Ovídio leva, por conseguinte, para suas obras a dicotomia e mesmo a

dialética, tomada como oposição dos contrários, da vida amorosa do romano de sua

época. As obras analisadas mostram, a partir da poética e também da filosofia, essa

tragicidade da paixão. Contudo, os próprios idealistas alemães perceberam que os

conceitos sobre o trágico desenvolvidos na filosofia do trágico, somente podiam ser

interpretados adequadamente, quando analisados em uma obra literária. Por isso,

autores como Walter Benjamin recusam-se a ver a idéia de tragédia em um trágico

em si, sem ligação com uma situação histórica. Embora a questão dialética

permaneça, parte-se da filosofia do trágico e da poética da tragédia para uma

filosofia da história da tragédia, que considera que o trágico é condicionado

historicamente em uma obra de uma determinada época. Peter Szondi, nos

esclarece a respeito da visão de Benjamin:

67

GRIMAL, P., 1991, p. 157.

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Pois Benjamin não substitui a filosofia do trágico pela poética, mas pela filosofia da história da tragédia. O método de Benjamin é filosofia, porque pretende conhecer a idéia e não a lei formal da poesia trágica, mas essa filosofia se recusa a ver a idéia da tragédia em um trágico em si, em algo que não esteja ligado nem a uma situação histórica, nem necessariamente à forma da tragédia, à arte em geral.68

Nessa linha de raciocínio, temos os teóricos mais recentes que vêem o

trágico relacionado a um fator dialético e, ao mesmo tempo, histórico e literário.

Escolhemos, assim, a definição dada por Staiger para o trágico para finalizar a

nossa análise das Heroides como uma obra que contém uma forte tragicidade:

Quando se destrói a razão de uma existência humana, quando uma causa final e única cessa de existir, nasce o trágico. Dito de outro modo, há no trágico a explosão do mundo de um homem, de um povo, ou de uma classe69.

Em todas as cartas escolhidas, vemos que as personagens, colocando em

seus amados, erroneamente, toda sua expectativa de vida, percebem, na

impossibilidade da continuação do amor, a sua destruição, a explosão de seu

mundo. Albin Lesky nos esclarece que “o que temos de sentir como trágico deve

significar a queda de um mundo ilusório de segurança e felicidade para o abismo da

desgraça ineludível”70.

Hipsípile passa de rainha a prisioneira de um amor que a destrói.

Si te nobilitas generosaque nomina tangunt, En, ego Minoo nata Thoante feror. Bacchus auus; Bacchi coniunx redimita corona

68

SZONDI, P., 2004, p. 77. 69

STAIGER, E., 1974, p. 147. 70

LESKY, A., 2001, p. 33.

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Praeradiat stellis signa minora suis. Dos tibi Lemnos erit, terra ingeniosa colenti; Me quoque dotales inter habere potes. (VI, 113-118) Se a notoriedade e os nomes nobres te impressionam, Eis aqui, eu sou trazida de Toante (rei da Táurida), descendente de Minos. Baco é meu antepassado; a esposa de Baco, ornada de uma coroa, Ofusca as constelações menores com suas estrelas. Terás Lemnos como dote, terra apta para aquele que cultiva; Também podes ter-me entre as coisas do dote.

O fragmento demonstra a queda de Hipsípile, descendente de um deus

(Bacchus), Baco, e de Ariadne (coniunx Bacchi), ela possui a nobreza como herança

(nomina generosa), contudo se entrega a Jasão, como se fosse uma coisa (inter

dotales) que pudesse vir a pertencê-lo (potes habere).

É exatamente isso que acontece com Dido: ela construía um novo reino, que

representava, perante seu irmão e os povos vizinhos, sua vitória em relação à morte

de seu marido e à fuga de Tiro.

Nec noua Carthago, nec te crescentia tangunt Moenia nec sceptro tradita summa tuo? ........................................................................ Quando erit ut condas instar Carthaginis urbem

Et uideas populos altus ab arce tuos? (VII, 13-14; 21-22) Nem a nova Cartago, nem as muralhas que crescem

nem o lugar mais elevado dado a teu cetro te impressionam? ................................................................................................ Quando será que fundarias uma cidade à semelhança de Cartago e altivo verias da fortaleza teus povos?

Cartago é apresentada como uma cidade em pleno desenvolvimento (noua

Carthago). E não é uma cidadezinha qualquer, mas uma grande cidade. Pode-se

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notar isso através da palavra moenia. Ora, as muralhas representam uma cidade

que deverá vir a ser uma fortaleza e isso é percebido claramente, nas Heroides, pois

Dido duvida que Enéias possa um dia fundar uma cidade tão importante quanto

Cartago. Vemos isso através do emprego do advérbio interrogativo com a nítida

idéia de tempo, juntamente com o verbo sum no futuro imperfeito do indicativo

(quando erit), introduzindo uma oração com a conjunção ut acompanhada do verbo

condo de 3ª conjugação no presente do subjuntivo (condas). E, ainda, confirma a

idéia da grandeza do reino de Dido a palavra arce, usada para indicar que, se

Enéias permanecesse junto da rainha, ele teria um lugar de onde pudesse ver essa

fortaleza que seria, obviamente, também sua.

Mas Dido apaixona-se e aí começa a explosão de seu mundo. Howard

Jacobson71 diz que se pode suspeitar do fato de a cidade estar crescentia em

Ovídio, devendo ser apenas um eco da Eneida, pois, no verso seguinte, é utilizada a

palavra facta que dá idéia de que a cidade já está pronta (Facta fugis, facienda petis:

(...) (Her., VII, 15 – Evitas as obras feitas, desejas as que devem ser feitas...).

Segundo o citado autor, isso é explicado como um argumento retórico, usado na

tentativa de mostrar a Enéias as vantagens de ficar ao lado da rainha. Utilizando

esta idéia, notamos que realmente parece que a retórica é que fundamenta essas

interrogações iniciais (v. 9-24) de Dido, especialmente as aqui analisadas, já que ela

está completamente apaixonada e preparando-se para o seu trágico fim, como se vê

no início da carta:

[Accipe, Dardanide, moriturae carmen Elissae; Quae legis, a nobis ultima uerba legis.] (VII, 1-2)

[Ouve, Enéias, o canto de Elisa que vai morrer; o que lês são minhas últimas palavras.]

71

JACOBSON, H., 1974, p. 78-79

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Tendo em vista este estado de espírito, ela não deveria estar preocupada

com as obras para o crescimento da cidade, a menos que a menção a esses fatos

fossem apenas para tentar convencer Enéias a ficar.

Ao longo do poema, vemos Dido completamente dominada pela situação

amorosa em que se encontra. Situação esta que culminará na explosão de seu

mundo pessoal, através de sua morte, e, conseqüentemente, na derrocada da

cidade em que reinava. Percebemos essa sujeição através da disposição de Dido

para estar de qualquer jeito ao lado de Enéias.

Si pudet uxoris, non nupta, sed hospita dicar; Dum tua sit, Dido quodlibet esse feret. (VII,167-168)

Se te envergonhas da esposa, não casada, mas que eu seja chamada forasteira; conquanto que seja tua, Dido suportará ser qualquer coisa.

Dido está pronta a aceitar qualquer coisa para ficar ao lado de seu amado.

Assim, ela é apresentada como uma simples mulher, frágil e humana ao extremo,

que vive o seu amor, não como uma heroína, mas sim como um ser humano que

sofre e se rebaixa no intuito de conseguir realizar seus desejos amorosos.

Essa sujeição já marca a derrocada da rainha, que fora prenunciada, no

momento em que ela menciona o acontecimento na gruta.

Illa dies nocuit, qua nos decliue sub antrum Caeruleus subitis cumpulit imber aquis. Audieram uocem; nymphas ululasse putaui; Eumenides fatis signa dedere meis. (VII, 93-96)

Funesto foi aquele dia, no qual uma tempestade cerúlea Com as águas repentinas nos impeliu para a caverna inclinada. Eu tinha ouvido uma voz; pensei que as ninfas tivessem chamado; As Eumênides deram presságios aos meus destinos.

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A passagem é muito significativa como prenúncio do desfecho trágico da

rainha, já que utiliza a antítese entre nymphas e Eumenides unidas ao verbo putaui

mostrando nitidamente o juízo errôneo que Dido tinha feito naquele dia (illa dies) em

que estava cega de amor (nocuit).

As ninfas, segundo Pierre Grimal,

“são “jovens mulheres” que povoam o campo, os bosques e as águas. São os espíritos dos campos e da natureza em geral, de que personificam a fecundidade e a graça. (...) Habitam grutas onde passam a vida a fiar e a cantar.”72

Elas são designadas como a personificação da fecundidade. O fato de suas

vozes serem ouvidas em uma união designava um bom presságio. Mas Dido apenas

tinha julgado (putaui) que as ouvira, talvez iludida pelo lugar onde estava que se

constitui a habitação de ninfas (antrum). A realidade mostrou a dialética, marcada

pela antítese. Não houve nem fecundidade, nem graça em sua união com Enéias,

por isso Dido percebe o engano: na verdade, eram as Eumênides que se faziam

presentes naquele momento. As Eumênides (as Benevolentes) que originalmente

eram designadas como Erínias, receberam esse nome, segundo Pierre Grimal73,

para que se sentissem lisonjeadas e, com isso, fosse aplacada a sua terrível cólera.

Junito Brandão relata que esse nome foi dado às Erínias por Palas Atena, quando

os deuses absolvem Orestes do crime de matricídio, indo contra a vontade dessas

deusas infernais, que, devido a isso, ameaçavam a cidade de Atenas com a

infertilidade da terra. Expõe Junito Brandão:

72

GRIMAL, P., 1997, p. 331. 73

Ibidem, p. 146-147.

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Eis aí o motivo por que a sábia deusa Atená procura a todo custo apaziguar as Erínias, entregando-lhes, até mesmo, como honraria suprema, a proteção de sua cidade, Atenas. Irremediavelmente derrotadas, mas ávidas de homenagens e de glórias, como se expressam elas próprias, as Erínias, agora Eumênides, as Benevolentes, tornar-se-ão a bênção e a dádiva suprema da cidade de Palas Atená.74

É muito interessante Dido chamá-las de Eumênides, não de Erínias, pois

também ela demonstra ter a esperança de apaziguar a cólera das deusas e receber

delas a proteção.

O medo, que configura a decadência da posição de esposa de Hércules a

uma mulher expulsa por ele e trocada por outra, é o drama de Dejanira.

Forsitan et pulsa Aetolide Deianira Nomine deposito paelicis uxor erit Eurytidosque Ioles atque insani Alcidae Turpia famosus corpora iunget Hymen. (IX, 131-134) E talvez expulsa a etólia Dejanira Deposto o nome de concubina, ela será sua esposa E um famoso Himeneu unirá os torpes corpos De Iole, filha de Eurito, e do insano Alcides.

Apesar de estar no campo da dúvida (forsitan), vemos o uso do ablativo

absoluto (pulsa Aetolide Deianira e deposito nomine), que nos remete a uma decisão

já tomada por Hércules, que deverá ser posta em prática logo (erit uxor), com o

auxílio do próprio deus do casamento (famosus Hymen). Na tentativa de dissuadi-lo,

a personagem remete ao fato de que a única união do herói que aconteceu sem que

ele tivesse de ter cometido um crime anterior (sine crimine) foi a sua, que seria,

portanto, a união legítima.

74

BRANDÃO, J. de S., 1999, p. 35.

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Me quoque cum multis, sed me sine crimine amasti; Ne pigeat, pugnae bis tibi causa fui. (IX, 137-138) Também me amaste e, ao mesmo tempo, a muitas mulheres, mas me amaste sem crime; Para que não te pese, duas vezes fui causa de luta para ti.

Além disso, ela pretende lembrar ao herói as vezes que ele teve de lutar

(pugnae) para permanecer ao lado dela (tibi). A primeira vez, contra o deus-rio

Aqueloo, que pretendia casar-se com ela, quando Hércules volta dos Infernos,

decidido a unir-se a Dejanira, irmã de Meleagro, e a segunda, contra o Centauro

Neso, que tentara violá-la. Mas ela recebe a notícia da morte do amado e sua vida

não tem mais razão de ser, a única solução possível é sua derrota total: a morte.

Impia quid dubitas Deianira mori? (IX, 146) Por que hesitas em morrer, ímpia Dejanira?

Ariadne, ao trair seu pai e sua pátria e fugir com Teseu, também cai do lugar

de princesa a uma mulher sem perspectivas de continuar vivendo.

Non ego te, Crete centum digesta per urbes, Aspiciam, puero cognita terra Ioui. A! pater et tellus iusto regnata parenti Prodita sunt facto, nomina cara, meo, (X, 67-70) Creta, distribuída por cem cidades, eu não te Verei, terra conhecida por Júpiter menino. Ah! meu pai e terra governada pelo parente justo, Caros nomes, foram traídos por mim.

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Page 115: O TRÁGICO NAS HEROIDES DE OVÍDIO

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A traição (prodita sunt) elimina sua condição de princesa cretense (non

auspiciam). Ela não tem mais para onde voltar, não tem uma terra (tellus) que a

abrigue, nem um pai (pater) para protegê-la, por isso ela torna-se cativa de sua

condição de abandono e desespero (haerentem scopulo).

Nunc quoque non oculis, sed, qua potes, adspice mente Haerentem scopulo, quem uaga pulsat aqua; Adspice demissos lugentis more capillos Et tunicas lacrimis sicut ab imbre grauis. Corpus, ut inpulsae segetes aquilonibus, horret, Litteraque articulo pressa tremente labat. (X, 135-140) Olha agora também não com os olhos, por que não podes, mas com a mente Aquela a quem, fixa ao penhasco, a onda errante fere; Olha meus cabelos revoltos segundo o costume de quem está de luto E as minhas túnicas cheias pelas lágrimas como se fosse pela chuva. O corpo estremece, como os campos movidos pelo Aquilão, E a carta desliza forçada pelo meu dedo trêmulo.

Como Ariadne, Medéia também trai sua pátria e foge com Jasão, que a

abandona por outra princesa. Ela tem consciência de que sua ruína deve-se ao fato

de ter se apaixonado pelo herói.

Tunc ego te uidi; tunc coepi scire quis esses; Illa fuit mentis prima ruina meae. Et uidi et perii nec notis ignibus arsi, Ardet ut ad magnos pinea taeda deos. (XII, 31-34) Então eu te vi; então comecei a saber quem serias; Aquela foi a primeira ruína de minha mente. E vi e pereci e não ardi em fogos conhecidos, Como a pinha cortada arde para os grandes deuses.

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Ela expressa bem a sua queda: vi (uidi) e pereci (perii), o princípio de sua

ruína (prima ruina), pois os fogos não eram os conhecidos (nec notis ignibus),

porque não eram as tochas do Himeneu, mas sim fogos que a consumiriam (ardet)

como madeira (pinea taeda). Sua vida estava destruída, como vemos nos versos

abaixo:

Non mihi grata dies; noctes uigilantur amarae, Et tener a misero pectore somnus abit; Quae me non possum, potui sopire draconem; Vtilior cuius quam mihi cura mea est. (XII, 169-172) O dia não é mais agradável para mim; noites amargas são passadas sem dormir, E o sono tranqüilo afasta-se do meu infeliz peito; Pude fazer dormir um dragão, a mim não posso; Meu cuidado é mais útil a outro do que a mim.

Medéia consegue demonstrar todo seu estado de desespero e angústia,

através da ligação entre dia (dies) e noites (noctes), como um único tempo

desagradável (non grata, amarae). Esses sentimentos negativos são gerados pelo

fato de Medéia descobrir que, mesmo com suas artes mágicas, não pode mudar o

destino, marcado pela oposição entre ela poder fazer o dragão dormir, mas não a

ela própria. Sua derrota consiste na conscientização de ter vivido apenas em função

de seu amor por Jasão (mea cura).

Vemos, pela análise das cartas, que a definição de Staiger de trágico faz no

campo da teoria do trágico uma síntese entre a teoria poética aristotélica de

hamartia e hybris, e a dialética de salvação e aniquilamento, buscada pelos

idealistas alemães na filosofia do trágico, já que é exatamente pelo erro e pela

paixão desmedida que as personagens acreditam que a salvação dos amados seria

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também a sua, mas o tempo mostra que a salvação tornou-se na verdade fonte do

aniquilamento, ou seja, a queda da personagem e a conseqüente destruição de sua

vida, analisada a partir de Staiger como a explosão do mundo da heroína, que

mostra a queda trágica aristotélica da felicidade ao infortúnio, como algo filosófico, já

que este infortúnio é, na verdade, a destruição total da personagem.

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5. CONCLUSÕES

Ovídio consegue transmitir os anseios de seu tempo e mostrar-nos sua visão

de mundo, através de sua obra, o que se pode observar também nas Heroides, a

partir da elocução de personagens lendárias que manifestam a dor e o sofrimento

dos amantes, provocados pela perda amorosa. Isso assemelha as personagens

ovidianas a pessoas comuns que demonstram sua dor, levada ao extremo com a

impossibilidade da reconciliação, e dá a elas um nítido delineamento trágico,

aspecto relevante não apenas com relação à escolha mas também à análise das

cinco cartas.

A classificação da elegia, em um gênero literário específico, já era difícil entre

os antigos. Estabelecemos, por isso, a relação entre a elegia e os gêneros líricos da

Antigüidade, pois segundo as definições hodiernas de lirismo, as Heroides não

seriam uma obra predominantemente lírica, mas estariam em consonância com os

padrões líricos determinados pelos antigos. Os poemas obedecem a uma estrutura

epistolar, que resguarda a noção de um emissor e um receptor, sendo que somente

o remetente se manifesta, através do solilóquio, enquanto o receptor é pressuposto

na visão subjetiva do emissor, que narra suas desventuras, relembrando seus

sofrimentos e o que os causou. Essa estrutura de uma epístola narrativa das dores

dos protagonistas contribui para a tragicidade.

As cartas podem parecer teatrais, em muitos aspectos, e, até mesmo,

apresentar algumas protagonistas como personagens de tragédias, mas falta-lhes o

essencial de uma tragédia: o desfecho. Concluímos que a ausência do desfecho

trágico prejudica, em parte, a catarse, a purgação dos sentimentos, tão importante

na tragédia. Isso acontece devido à própria estrutura epistolar do poema, que não

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permite a concretização do desfecho, o qual, nas cartas analisadas, seria a morte

das protagonistas, que estão escrevendo. Portanto, não há tragédia, embora exista,

como verificamos pelas análises das cartas, a presença de muitas características da

tragédia, estabelecidas por Aristóteles, na poética da tragédia, como os sentimentos

de terror e compaixão, bem como personagens que, por causa da paixão, cometem

a hamartia, um erro, por não conseguir discernir aquilo que seria melhor para si,

assim como a hybris, pois a paixão desmesurada as leva a querer mudar o próprio

destino e o do amado. Mas podemos concluir que há o trágico, que se prolifera no

desenrolar das cartas com uma intensidade muito grande, desde a escolha das

lendas trágicas, até às modificações feitas nelas pelo autor, para dar à elegia um

forte teor trágico. Contudo, apesar da obra em questão ser lírica, podemos

visualizá-la numa compreensão mais ampla da essência do trágico, num conceito

que não se limita à tragédia, desenvolvido pela filosofia do trágico, no Idealismo

alemão, levando a tragicidade a obras de outros gêneros. Nas cartas, a dialética

trágica se estabelece na oposição entre a paixão, erroneamente, interpretada pelas

personagens como salvação, mas que, posteriormente, mostra-se como o motivo do

seu aniquilamento.

Concluímos nossa visão trágica, na obra, demonstrando que, além das

características principais da tragédia, mencionadas acima, as cartas apresentam

também um conceito de trágico que supera a tragédia, endossado pela dialética

trágica, já que a paixão desmedida transforma-se de motivo de salvação à causa de

destruição, que denota a queda trágica das personagens da felicidade ao infortúnio,

sendo este a própria morte, ou seja, a derrota total. Assim, acontece, a união das

duas tendências, em relação ao trágico, a clássica e a posterior, não clássica, em

que ambas corroboram para demonstrar a tragicidade das cartas analisadas.

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