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3 O trânsito como ele é Pedestres e telefones celulares Atualmente, quando caminha- mos numa área urbana, tornou-se comum observar pedestres conver- sando ao celular, e ouvindo aparelhos musicais portáteis, enquanto cruzam ruas congestionadas de pessoas e veí- culos. Também, em vias e rodovias, pessoas, mesmo no volante, conver- sam ao celular, inconscientes de que atenção dividida pode provocar aci- dentes fatais. Preocupados com o elevado número de acidentes provo- cados por isto, governos, instituições e corporações têm restringido o uso do celular-manual enquanto dirigin- do. Todavia, há base empírica para a legislação limitar telefones celulares enquanto dirigindo? Sim, vejamos as razões. Uma meta-análise dos efeitos dos celulares no trânsito considerou o tempo de reação (TR), controle lateral do veículo, distância, velocidade e ti- po de telefone, bem como o ambiente de trânsito (laboratório, simulador ou na rodovia), alvo da conversação (pas- sageiro ou alguém no telefone), tipo de conversação (tarefa cognitiva ou naturalística) e idade dos motoristas (jovens ou idosos). O TR para eventos e estímulos, enquanto conversando, produziu as maiores quedas no de- sempenho de dirigir, sendo similares para o uso manual do celular ou viva- voz. No geral, um aumento médio de 0,25s foi encontrado para todos os tipos de tarefa, indicando tempo de reação mais lento para atender aos eventos e aos estímulos enquanto fa- lando ao telefone celular e dirigindo, concomitantemente. Jovens foram menos afetados pelo uso dos celulares que os mais idosos. O uso de uma tarefa cognitiva equivalente a uma conversação no ce- lular teve um TR mais elevado que uma conversação naturalística. Tarefas de fazer uma ligação ou teclar tiveram TR mais elevados. Com exceção de frear para evitar colisão, outras condições produziram o mesmo aumento no TR. Os motoristas não compensam a lenti- dão em responder mantendo distância ou reduzindo a velocidade e, além disso, o tipo de ambiente não afetou diferencialmente o TR e a velocida- de. Estes resultados têm importantes implicações, tanto para as restrições legislativas quanto para as montado- ras de sistemas viva-voz nos veículos. Por quê? Porque a vida não tem replay. Escolares e seus celulares A influência dos celulares no ca- minhar seguro de pedestres escolares tornou-se preocupante devido ao fato de tais aparelhos, antes, apenas privi- légio de alguns, ter se tornado um bem de consumo de fácil aquisição. Num período em que, aproximadamente, 55% de jovens, entre 8 e 12 anos, en- contrarem-se vulneráveis a todos os Por Dr. José Aparecido da Silva Naturale agosto/setembro - 2014

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O trânsito como ele é

Pedestres e telefones celulares

Atualmente, quando caminha-mos numa área urbana, tornou-se comum observar pedestres conver-sando ao celular, e ouvindo aparelhos musicais portáteis, enquanto cruzam ruas congestionadas de pessoas e veí- culos. Também, em vias e rodovias, pessoas, mesmo no volante, conver-sam ao celular, inconscientes de que atenção dividida pode provocar aci-dentes fatais. Preocupados com o elevado número de acidentes provo-cados por isto, governos, instituições e corporações têm restringido o uso do celular-manual enquanto dirigin-do. Todavia, há base empírica para a legislação limitar telefones celulares enquanto dirigindo? Sim, vejamos as razões.

Uma meta-análise dos efeitos dos celulares no trânsito considerou o tempo de reação (TR), controle lateral do veículo, distância, velocidade e ti-po de telefone, bem como o ambiente de trânsito (laboratório, simulador ou na rodovia), alvo da conversação (pas-sageiro ou alguém no telefone), tipo de conversação (tarefa cognitiva ou naturalística) e idade dos motoristas (jovens ou idosos). O TR para eventos e estímulos, enquanto conversando, produziu as maiores quedas no de-sempenho de dirigir, sendo similares para o uso manual do celular ou viva- voz. No geral, um aumento médio de 0,25s foi encontrado para todos os

tipos de tarefa, indicando tempo de reação mais lento para atender aos eventos e aos estímulos enquanto fa-lando ao telefone celular e dirigindo, concomitantemente.

Jovens foram menos afetados pelo uso dos celulares que os mais idosos. O uso de uma tarefa cognitiva equivalente a uma conversação no ce-lular teve um TR mais elevado que uma conversação naturalística. Tarefas de fazer uma ligação ou teclar tiveram TR mais elevados. Com exceção de frear para evitar colisão, outras condições produziram o mesmo aumento no TR. Os motoristas não compensam a lenti-dão em responder mantendo distância ou reduzindo a velocidade e, além

disso, o tipo de ambiente não afetou diferencialmente o TR e a velocida-de. Estes resultados têm importantes implicações, tanto para as restrições legislativas quanto para as montado-ras de sistemas viva-voz nos veículos. Por quê? Porque a vida não tem replay.

Escolares e seus celulares

A influência dos celulares no ca-minhar seguro de pedestres escolares tornou-se preocupante devido ao fato de tais aparelhos, antes, apenas privi-légio de alguns, ter se tornado um bem de consumo de fácil aquisição. Num período em que, aproximadamente, 55% de jovens, entre 8 e 12 anos, en-contrarem-se vulneráveis a todos os

Por Dr. José Aparecido da Silva

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“problemas” que eles causam e podem vir a causar, a principal razão para se preocupar com o uso de celulares por escolares é a exposição a acidentes, quando são utilizados ao atravessar ruas, atividade cognitiva já altamente complexa, concorrendo com a aten-ção perceptual e motora do escolar, e dificultando-a. Estudiosos do assunto defendem a ideia de que estes esco-lares não têm ainda desenvolvidas as habilidades perceptuais e cognitivas necessárias para, simultaneamente, perceber e processar distância, veloci-dade e padrões de aceleração de, pelo menos, dois veículos, assim como a largura de um lado ao outro da rua e a velocidade de que necessitariam para cobrir tal percurso.

Partindo destas suposições, pes- quisadores hipotetizaram que os pré- escolares comportar-se-iam de ma-neira mais arriscada quando cruzando ruas, envolvidos em conversação tele-fônica, do que quando atentivos, sem uso de celular. Para investigar, expe-rimentalmente, tal hipótese, quatro indicadores de cruzar uma rua em se-gurança foram analisados: (1º) tempo inicial do cruzar a largura da rua, (2º) tempo requerido para cruzar toda a largura da rua em total segurança, (3º) esbarramento e advertência sonora e (4°) atenção ao tráfego, com olhadelas à direita e à esquerda antes de cruzar a largura da rua.

Os resultados sugerem que ce-lulares distraem escolares enquanto cruzando ruas, pois, em todos os qua-tro indicadores, estes tenderam a se comportar de maneira mais arriscada enquanto falando ao telefone, do que quando não falando. Há, também, in-dicação de que escolares mais jovens

tenham, de algum modo, taxas mais altas de distração do que as crianças mais velhas. Ademais, é importante reconhecer que o comportamento de um pedestre é multifacetado, ou seja, um caminhar seguro envolve um con-junto de tarefas motoras, perceptuais e cognitivas, as quais foram, substan-cialmente, alteradas pela distração provocada pelo celular. Tal padrão de resultados sugere que, assim como ocorre com os motoristas em geral, que devem limitar o uso do celular, enquanto dirigindo, os pedestres, es- pecialmente os escolares, devem limi-tar o uso do telefone celular enquanto cruzando ruas.

Ao focalizar excessivamente ado- lescentes como potenciais consumi- dores de suas tecnologias, as com-panhias de marketing deveriam ser orientadas a incluir, em seus manuais, modos do “uso seguro” do celular.

O uso do capacete reduz mortes dos motociclistas?

Traumatismo craniano é uma das principais causas de morte provo-cadas por colisões de motociclistas, explicando 70% das mortes. O uso do capacete é o fator mais importan-te na prevenção destas ocorrências, uma vez que os capacetes absorvem energia, prevenindo o traumatismo craniano. Não obstante, alguns con-dutores ainda hesitam em utilizá-lo, acreditando que os mesmos não são confortáveis, bem como, seu uso, ad-versamente, afeta a segurança. Um exemplo? Estudo chinês revelou que, aproximadamente, 70% dos motoci-clistas acham que capacetes não são confortáveis; quase 40% acham que o uso do capacete impede a boa vi-sualização que o motociclista tem do ambiente e 75% usam-nos, exatamen-te, para evitar as multas de trânsito.

Outros estudos examinaram mais detalhadamente os efeitos do uso do capacete sobre a visão e a audição no trânsito, concluindo que, os conduto-res acomodam o efeito do capacete girando suas cabeças para aumentar o campo visual, de modo que, seja simi-lar ao dos condutores sem capacetes.

O limiar auditivo não foi significativa-mente afetado pelo uso do capacete.

Estudo recente analisou dados de motociclistas obtidos em 70 países. As variáveis analisadas foram taxas de mortes dos motociclistas por 100 mil habitantes, porcentagem de mo-tociclistas que não usam capacete, renda per capita, a eficácia de leis de trânsito; a eficácia de leis de trânsito e diretrizes para uso de capacete ou não. Projeções, a partir dos dados ob-tidos, indicam que, para cada 10% de aumento no uso do capacete, uma vi-da por 1 milhão de habitantes pode ser salva. Elevando o uso do capacete de 0 a 100%, salvar-se-ia 10 vidas por 100 mil habitantes por ano. Ademais, usar capacetes que satisfaçam padrões de segurança pode reduzir a morbidade (hospitalização) e mortalidade (morte) em colisões envolvendo motociclista. Globalmente, o não uso de capacete foi o fator mais significativo afetando a taxa de morte entre motociclistas. Tais dados claramente mostram que, a eficácia de uma lei é fator importante para a prevenção de acidentes.

Problemas de trânsito insolúveis

Em países motorizados a segu-rança viária tem sido substancialmente melhorada, embora a redução das fa-talidades varie de 50% a 80%, alguns problemas de segurança persistem di-fíceis de solucionar:

(1) alta taxa de envolvimento de jo-vens do sexo masculino em acidentes de trânsito. A taxa de lesões nos jo-vens, entre 18-19 anos, é de 5 a 10 vezes maior que a taxa do grupo mais seguro. Ao longo da última década, esta diferença não se tornou menor, indicando crescimento contínuo. Si-milarmente, motoristas de 20-24 anos têm taxa mais alta de lesões que o grupo mais seguro, as diferenças não parecem diminuir e os homens têm mais acidentes que as mulheres;

(2) as taxas de lesões para usuários não protegidos, como pedestres, ciclistas e usuários de mobiletes e motos, as quais continuam sendo mais eleva-das que as dos ocupantes de carros.

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Pedestres sofrem 4 a 5 vezes mais le-sões por km/viajado que os ocupantes de carros. A taxa para ciclistas é maior que a de pedestres, os usuários de mo-biletes têm quase a mesma taxa que a de ciclistas e os motociclistas têm a maior dos grupos;

(3) são os diferentes tipos de rodovias e ambientes de tráfego diferindo nas demandas das tarefas de dirigir. Uma rodovia livre impõe demandas leves, a via urbana congestionada impõe pesadas demandas sobre a atenção e uma estrada rural, multiuso, requer demandas moderadas dos usuários. Neste caso, motos envolvem-se em mais acidentes que os demais tipos de veículos e em diferentes tipos de vias. Vias urbanas apresentam os maiores riscos e as rodovias livres são as mais seguras;

(4) a incompatibilidade entre peque-nos e grandes veículos denotada pelas diferentes quantidades de energia ci- nética que produzem quando se mo-vem. Quanto mais pesado o veículo, tanto maior a quantidade de energia cinética produzida. Quanto mais pe-sado tanto maior o número de feridos externos. Para cada caminhão envolvi-do em acidente, 3,5 pessoas externas são feridas. Estas razões são estáveis, ainda que as vias e os ambientes de trânsito tenham melhorado;

(5) é o excesso de velocidade, in-questionavelmente um dos maiores problemas em todas as nações mo-torizadas, e um dos mais resistentes à mudança. O excesso de velocidade é resultante da adaptação comporta-mental à melhoria das rodovias e dos carros. Estima-se que as fatalidades reduzir-se-iam em 25%, os seriamente lesionados em 18% e os feridos leves em 10%, se o excesso de velocidade fosse eliminado.

Razões alegadas são: elevada tolerância ao problema; necessidade de medidas impopulares; fatores bio-lógicos e/ou psicológicos difíceis de influenciar; e dificuldade de entender a física da energia cinética envolvida nos acidentes.

Implicações para a prevenção

Os estudos comentados sugerem que a distração tem um impacto sig-nificativo sobre o comportamento de segurança dos pedestres, escolares ou adultos. O comportamento dos pedes-

tres e dos motoristas requer habili- dades cognitivas complexas, incluindo processos atentivos, processos per- ceptuais visuais e auditivos, bem co-mo, processamento de informação, tomada de decisão e iniciação motora. Nesse contexto, campanhas educativas no trânsito, em especial, onde com-portamentos dos pedestres são mais comuns, por exemplos, em escolas e nas áreas urbanas, deveriam ser im-plementadas e poderiam, certamente, serem bem sucedidas. Ademais, mo- dificações ambientais, como passa-gens de pedestres, escolares, idosos, etc., poderiam ser efetuadas visando preservar tanto a segurança dos pe-destres quanto dos motoristas.

Finalmente, leis proibindo dirigir enquanto usando quaisquer equipa-mentos multimídia poderiam, também, reduzir os acidentes de trânsito provo-cados pelos mesmos.Dr. José Aparecido da Silva, Doutor em Psicologia e Pós-doutor em Percepção e Psicofísica, Professor do Departamento de Psicologia da USP - Ribeirão Preto.Im

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