o Tutu Mi Cristiane Hatsue Vital

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iii CRISTIANE HATSUE VITAL OTUTUMI PERCEPÇÃO MUSICAL: SITUAÇÃO ATUAL DA DISCIPLINA NOS CURSOS SUPERIORES DE MÚSICA Dissertação apresentada ao Departamento de Música da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP para a obtenção do Título de Mestre em Música. Orientador: Profº Drº Ricardo Goldemberg CAMPINAS – SP 2008

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    CRISTIANE HATSUE VITAL OTUTUMI

    PERCEPO MUSICAL: SITUAO ATUAL DA DISCIPLINA NOS CURSOS SUPERIORES DE MSICA

    Dissertao apresentada ao Departamento de Msica da Universidade Estadual de Campinas UNICAMP para a obteno do Ttulo de Mestre em Msica.

    Orientador: Prof Dr Ricardo Goldemberg

    CAMPINAS SP 2008

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP

    Ttulo em ingls: Musical Perception: situation of the discipline within undergraduate music courses in Brazil. Palavras-chave em ingls (Keywords): Musical Perception; Music and colleges; Music in education - Brazil.Titulao: Mestre em Msica. Banca examinadora: Prof Dr Ricardo Goldemberg. Prof Dr Maria Lcia Senna Machado Pascoal. Prof Dr Marcos Ribeiro de Moraes. Prof Dr Carlos Fernando Fiorini. Prof Dr Ilza Zenker Leme Joly. Data da Defesa: 14-03-2008 Programa de Ps-Graduao: Msica.

    Otutumi, Cristiane Hatsue Vital. Ot9p Percepo Musical: situao atual da disciplina nos cursos

    superiores de msica / Cristiane Hatsue Vital Otutumi. Campinas, SP: [s.n.], 2008.

    Orientador: Prof Dr Ricardo Goldemberg. Dissertao(mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

    1. Percepo Musical 2. Msica ensino superior 3. Msica e educao- Brasil. I. Goldemberg, Ricardo. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Ttulo.

    (em/ia)

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    AGRADECIMENTOS

    A toda comunidade da UFRN: funcionrios, alunos e especialmente os colegas professores. direo em nome do Prof Airton Guimares Filho e Prof Antonio Guilherme Rodrigues, pelo apoio e esforos sempre positivos para que esse estudo fosse realizado. Ao Prof Marcus Varela pelo incentivo e disposio.

    Ao Prof Dr Ricardo Goldemberg, pela contnua orientao e dilogo amigvel, franco e receptivo. Esse perodo me proporcionou realmente novos degraus. Obrigada.

    A Prof Dr Maria Lcia Pascoal, pelas consideraes sempre relevantes e pelo acompanhamento ao longo dessa pesquisa. A Prof Dr Ilza Leme Joly, pela disponibilidade e significativa contribuio. Ao Profo Dro. Marcos Moraes pela leitura cuidadosa no perodo de concluso.

    A todas as secretrias e coordenadores de curso das universidades brasileiras as quais mantive contato, pela prontido em oferecer as informaes necessrias.

    Aos 60 professores participantes dos questionrios, pelo retorno positivo, rpido e sincero nas respostas. Aos 5 professores entrevistados, pela recepo amiga e contribuio destacada nessa dissertao.

    queles que foram pontes importantes de contato: Mrio da Silva, Rocio Infante, Srgio Deslandes, ngela Trotta, Ana Louro, Andra Andour, Srgio Figueiredo, Sonia Albano, Fabio Scarduelli, Ricardo Freire, Sheila Alencar, Sheila Zagury, Luciana Requio, Glauber Santiago, Ricardo Bordini, Tarcsio Gomes, Renato Mor, Gilson Antunes, Heriberto Porto, Celso Ramalho e Geraldo Henrique.

    A todos os meus alunos, que me incentivaram com suas alegrias e suas dvidas.

    Aos meus primeiros professores de msica, grandes exemplos de carter e musicalidade, Rosely Okabe, Paulo Villaa e George Vidal.

    Aos amigos do corao, muitos, e, literalmente, de Norte a Sul.

    Aos grandes educadores, que muito me inspiram e me ensinaram bem viver: meus pais Leila e Shingiro, meus tios Mrio e Rosely, meus avs Zilda e Vital, meus queridos irmos Fernando, Mrcio e primo-irmo Francisco. Obrigada.

    Ao meu esposo Fabio por compartilhar musicalmente a la Almeida Prado, de todo esse perodo de escrita e estudo. Obrigada.

    fora suprema superior reverencio.

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    RESUMO

    O presente trabalho teve por finalidade investigar a situao atual em que se encontra a disciplina Percepo Musical no mbito dos cursos superiores de msica do Brasil. Atravs dos professores atuantes de todo pas, foi possvel observar a estrutura e o perfil da disciplina no programa curricular como, por exemplo, a quantidade de docentes, de horas de aula, de alunos nas classes, alm de opinies quanto a cuidados pedaggicos, ouvido absoluto e qualidades necessrias para um bom professor da matria. Para a conquista desses dados duas abordagens metodolgicas foram utilizadas: a pesquisa quantitativa, por meio de questionrios aplicados a sessenta docentes, representantes de 89,65% das Instituies de Ensino Superior (IES) que oferecem cursos de msica no pas, e a pesquisa qualitativa, pelas entrevistas realizadas com cinco professores. O processo de organizao, tratamento e interpretao das informaes foi duradouro, porm, criterioso e fundamentado na anlise de contedo segundo Bardin (2002). Ento, nesse estudo, percentuais e tabelas caminham lado a lado com reflexes sobre os resultados obtidos. Inicialmente, foi feita uma reviso bibliogrfica para contextualizar o meio em que se encaixa a disciplina bem como apresentar o que autores da rea j relataram sobre o assunto. Ao aprofundar tais buscas viu-se necessrio conhecer a quantidade de trabalhos acadmicos e materiais didticos relacionados, portanto, h um texto especfico no captulo um. Reunindo todas as vertentes de contedos foi possvel verificar que embora iniciativas isoladas tenham existido h muito tempo, uma maior movimentao sobre o tema vem acontecendo nos ltimos anos. Os ndices percentuais confirmam queixas e afirmaes cotidianas dos docentes, revelam fatos novos, e, alm disso, os depoimentos contriburam ricamente nos aspectos didticos da disciplina. Com isso, um panorama minucioso da Percepo Musical no Brasil apresentado nessa dissertao.

    Palavras-chave: Percepo Musical; Msica ensino superior; Msica e educao (Brasil).

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    ABSTRACT

    The main objective of the present work was to investigate the situation of the discipline Musical Perception, within undergraduate courses in Brazil nowadays. Amongst professors from all over the country, it became possible to observe both structures and profile of the discipline in the curricular program as, for example, the quantity of professors, class hours, students in classrooms, besides opinions about pedagogical concerns, absolute ear and necessary qualities a good teacher should have to teach the subject. Two methodological approaches were used in order to reach these results: quantitative research, in which questionnaires were applied among sixty professors, who represented 89.65% of the Colleges that offer music courses in the country; and qualitative research, through interviews with five professors. The process of organization and interpretation of their information took long, but was criterious and based on the analyses of content according to Bardin (2002). So, in this study, percentages and tables go along with reflections about the obtained results. Initially, a bibliographical review was conducted to contextualize about the discipline, and also show what authors of the field have already told about this subject. When this search became more profound, getting to know the amount of academic work and related didactic material turned into a necessity, thus, there is an specific text about it in the first chapter. Gathering all trends of contents made possible to verify that, although isolated initiatives have been taken for a long time, the most effervescence about the subject has only taken place in the last years. The percentage indexes confirm complaints, and professors daily assertations reveal new facts, and moreover, their testimonies have immensely contributed to didactical aspects of the discipline. This way, a meticulous overview of the Musical Perception is presented in this dissertation.

    Key words: Musical Perception; Music in colleges; Music and education (Brazil).

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    LISTA DE FIGURAS

    Fig.1 Dissertaes e teses em Percepo Musical no Brasil at 2004 31 Fig.2 Produo acadmica nas dcadas de 70 e 80 32 Fig.3 Produo acadmica na dcada de 90 32 Fig.4 Percentual de temas das dissertaes e teses em Percepo

    Musical 34

    Fig.5 Percentual de pblico das dissertaes e teses em Percepo Musical

    35

    Fig.6 Produo acadmica de 2000 a 2004 36 Fig.7 Produo acadmica das obras relacionadas Percepo 36 Fig.8 Artigos relevantes em Percepo Musical 39 Fig.9 Percentual de temas nos artigos em Percepo Musical 41 Fig.10 Percentual de pblico nos artigos em Percepo Musical 42 Fig.11 Materiais didticos em Percepo Musical 47 Fig.12 Propaganda da Irmos Vitale no Jornal da Msica de 1982 51 Fig.13 Quadro de IES participantes da pesquisa em nmeros reais e

    percentuais por regio 99

    Fig.14 Perfil acadmico dos docentes de Percepo Musical Brasil 101 Fig.15 Quadro percentual de titulao dos docentes por regio geogrfica

    Brasil 102

    Fig.16 Quadro de titulao dos docentes por regio em nmeros reais 103 Fig.17 Percentual de mestrados, doutorados e ps-doutorados no Brasil e

    exterior 103

    Fig.18 Percentual de mestrados e doutorados realizados no Brasil 103 Fig.19 Sntese interpretativa dos professores de IES por categorias e

    unidades de contexto 114

    Fig.20 Freqncia de aparecimento dos depoimentos por unidades de contexto na categoria 1

    115

    Fig.21 Freqncia de aparecimento dos depoimentos por unidades de contexto na categoria 2

    117

    Fig.22 Freqncia de aparecimento dos depoimentos por unidades de contexto na categoria 3

    118

    Fig.23 Freqncia de aparecimento dos depoimentos por unidades de contexto na categoria 4

    119

    Fig.24 Freqncia de aparecimento dos depoimentos por unidades de contexto na categoria 5

    120

    Fig.25 Freqncia de aparecimento dos depoimentos por unidades de contexto na categoria 6

    122

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    Fig.26 Quadro geral de UR em cada categoria e sua relao com os entrevistados

    122

    Fig.27 Sntese interpretativa de SE, professora de curso preparatrio para vestibular

    123

    Fig.28 Relao geral de UR em cada categoria, Sujeito E 124 Fig.29 Quadro-sntese do discurso de SA com categorias, unidades de

    contexto e registro 126

    Fig.30 Quadro-sntese do discurso de SB com categorias, unidades de contexto e registro

    130

    Fig.31 Quadro-sntese do discurso de SC com categorias, unidades de contexto e registro

    134

    Fig.32 Quadro-sntese do discurso de SD com categorias, unidades de contexto e registro

    138

    Fig.33 Quadro-sntese do discurso de SE com categorias, unidades de contexto e registro

    142

    Fig.34 Sntese das categorias e unidades de contexto (dos professores de IES) com temas associados em destaque

    146

    Fig.35 Quadro geral detalhado de dados colhidos por meio das entrevistas 159 Fig.36 Grfico dos nomes da disciplina nas IES brasileiras 161 Fig.37 Grfico da obrigatoriedade da disciplina 162 Fig.38 Grfico das frentes trabalhadas na disciplina 163 Fig.39 Grfico da quantidade de horas semanais de aula 164Fig.40 Outras duraes de aulas por semana em nmeros reais e

    percentuais 165

    Fig.41 Destaques de duas faixas de duraes de aulas semanais 165 Fig.42 Grfico da quantidade de docentes na rea por instituio 166 Fig.43 Grfico do nmero de alunos numa turma 167 Fig.44 Condies das turmas de Percepo Musical 168 Fig.45 Grfico do nmero de classes pelo qual o docente responsvel 168 Fig.46 Grfico do tempo de experincia dos docentes 169 Fig.47 ndices detalhados sobre a experincia dos docentes 170 Fig.48 Grfico da linha de trabalho utilizada 170 Fig.49 Tabela da linha de trabalho dos docentes em novos ndices 171 Fig.50 Grfico do instrumento referencial mais utilizado 172 Fig.51 Novo percentual dos instrumentos referenciais utilizados 173 Fig.52 Grfico dos materiais de apoio mais utilizados 173 Fig.53 Grfico da bibliografia utilizada 175 Fig.54 Grfico dos docentes e seus esforos extraclasse 176 Fig.55 Detalhamento da realizao de pesquisas 177 Fig.56 Detalhamento das atividades extraclasse dos docentes 177 Fig.57 Grfico do perfil dos alunos 180

  • xvii

    Fig.58 Grfico da maior dificuldade encontrada pelos docentes 181 Fig.59 Detalhamento das maiores dificuldades encontradas pelos docentes 182 Fig.60 Grfico do maior obstculo no rendimento dos alunos 183 Fig.61 Quadro geral detalhado de dados colhidos por meio dos

    questionrios 189

    Fig.62 Pontos comuns entre questionrios e entrevistas 195Fig.63 Quadro sntese de dados colhidos por meio das entrevistas 202 Fig.64 Quadro sntese de dados colhidos por meio dos questionrios

    destacando as respostas de maior ndice 203

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    SUMRIO

    INTRODUO 01

    1. O CONTEXTO DA PERCEPO MUSICAL 05 1.1. ABRANGNCIA E RELEVNCIA 06 1.1.1 Percepo Musical na graduao 08 1.1.2 O sentido auditivo e a importncia de seu desenvolvimento 12 1.1.2.1 Na educao musical de base 15 1.1.3 Treinamento e compreenso: dois aspectos de concepo na disciplina

    18

    1.2. A PRODUO BRASILEIRA EM PERCEPO MUSICAL 28 1.2.1 Produo acadmica: dissertaes e teses 29 1.2.2 Artigos 38 1.2.3 Materiais didticos 43

    2. DILOGO COM PROFESSORES DA DISCIPLINA: RELATOS E RESPOSTAS

    55

    2.1 ENTREVISTAS 57 2.1.1 Delineamento metodolgico das entrevistas 58 2.1.2 Apresentao dos sujeitos 60 2.1.3 Anlise de contedo 63 2.1.3.1 Professores vinculados a IES 68 2.1.3.1.1 Categorias 68 2.1.3.2 Professora de curso preparatrio para vestibular 88 2.1.3.2.1 Categorias 89 2.2 QUESTIONRIOS 95 2.2.1 Delineamento metodolgico dos questionrios 97 2.2.2 Instituies de Ensino Superior participantes da pesquisa 98

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    2.2.3 Perfil geral dos docentes consultados 101 2.2.4 Apresentao das perguntas do questionrio 104

    3. ANLISE E PERSPECTIVAS PARA A PERCEPO MUSICAL 1133.1 ENTREVISTAS: INTERPRETAO 114 3.1.1 Sntese interpretativa 114 3.1.1.1 Professores vinculados a IES 114 3.1.1.2 Professora de curso preparatrio para vestibular 123 3.1.2 Anlise individual do discurso 125 3.1.3 Anlise geral das entrevistas 145 3.1.3.1 Reflexo associativa entre as unidades de contexto (professores de IES)

    145

    3.1.3.2 As opinies de SA, SB, SC, SD e SE 150 3.1.4 Quadro geral das entrevistas 1583.2 QUESTIONRIOS: APRESENTAO DOS DADOS 161 3.2.1 Grficos e anlise das questes 161 3.2.2 Complementaridade das informaes 184 3.2.3 Quadro geral dos questionrios 1883.3 ENTREVISTAS VERSUS QUESTIONRIOS 191 3.3.1 Aspectos significativos e complementares 191 3.3.2 Quadros-sntese da disciplina no Brasil 201

    CONSIDERAES FINAIS 205

    REFERNCIAS 211BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 217ENDEREOS ELETRNICOS CONSULTADOS 223

    ANEXOS 227

  • 1INTRODUO

    A idia desse trabalho, logo no incio, foi investigar a disciplina Percepo Musical nos cursos superiores de msica do Estado de So Paulo, pelo fato desse Estado possuir o maior ndice de Instituies de Ensino Superior IES que oferecem cursos de msica, segundo o Ministrio da Educao MEC (apud HENTSCHKE, 2000). Assim, tinha abrangncia menor, mas que poderia ser representativa de um espectro maior, o Brasil. Naquele momento a tcnica metodolgica mais adequada ao caso nos parecia ser o survey, j que a inteno era de utilizarmos questionrios para o pblico de professores e de alunos da disciplina.

    Fomos ento buscar nos textos de livros, artigos em peridicos e mesmo em sites institucionais na Internet, informaes em torno do assunto percepo musical. E, medida que os avanos nessa reviso bibliogrfica tornavam-se mais consistentes, mais se configurava a idia de apresentarmos um panorama da Percepo Musical no Brasil.

    Na literatura nacional tambm em relatos presentes em livros didticos de msica e percepo observamos vrias afirmaes e insatisfaes quanto ao ensino da disciplina. Por exemplo, o desejo de mudanas no campo, como Barbosa (2005), que prope nova perspectiva terica, baseada em Vigotski, para a superao dos problemas em percepo; tambm crticas, s vezes, mais intensas, a respeito da conduo metodolgica e nfase no pensamento fragmentado, como em Grossi e Montandon (2005); comentrios gerais sobre os recursos materiais como Lacorte (2005) afirma restringirem-se ao piano, quadro-negro, toca fitas ou CD e Bhering (2003) citando a falta de material para atuantes da msica popular. Outros autores como Costa (2003), Campolina e Bernardes (2001), Bernardes (2000), Guimares (2000), Gerling (1995, 1993), Marques (2006), Otutumi (2006) tambm relatam sua experincia na rea. Entretanto, apesar de todas as consideraes serem vlidas e bem construdas, muitas delas exprimem uma tica particular, o que resulta um sentido pessoal. Portanto, vimos

  • 2nitidamente a necessidade de um amplo estudo que pudesse expor as reais condies da matria, atravs de dados precisos, mas que, simultaneamente, permitisse revelar caractersticas gerais e diferenas locais, numa tica mais factual.

    Assim, para promover esse novo foco, ou seja, da disciplina no Brasil, levantando aspectos que acreditamos importantes, definimos outro processo metodolgico, optando por duas linhas de pesquisa: a quantitativa e a qualitativa. A partir de duas ferramentas principais realizamos a coleta e o tratamento dos seus contedos, com igual cuidado e rigor, respeitando detalhadamente as etapas e os procedimentos exigidos na realizao de um trabalho acadmico.

    Dessa forma, mantivemos o uso e a aplicao dos questionrios que se fazem presentes na parte quantitativa dessa dissertao mas, com pblico de professores especificamente. Tambm convidamos alguns desses sujeitos para dar sua contribuio no campo qualitativo, atravs de depoimentos em entrevistas. Em nossa opinio, priorizando o dilogo com professores, lanamos olhar sobre as instituies, e, nesse sentido, alm de obter opinies sobre os fatos relativos ao universo pesquisado, nos aproximamos ainda mais da estrutura dos cursos de msica j que os docentes so os responsveis pelos programas de ensino e ementas, por exemplo. So eles que fazem movimentar a disciplina, so os agentes conectores entre universidade e aluno. Alm disso, outros aspectos tambm foram identificados, como particularidades do pblico de estudantes. Com essa escolha, acreditamos ter conseguido uma linha coerente entre instituio, professor e aluno no ambiente musical atual.

    No primeiro captulo, O contexto da Percepo Musical, reunimos informaes que resultam numa noo geral do meio em que a disciplina est inserida, destacando o nvel da graduao e trazendo citaes de autores e professores com experincia na rea. Seria ingnuo de nossa parte se resumssemos o tema educao superior, pois deixaramos de lado as razes e fundamentos desse estudo, cuja fase de iniciao musical j contempla de forma enftica. Por isso, tecemos brevemente sobre a importncia e o desenvolvimento

  • 3do sentido auditivo e, embora no seja nossa direo, mencionamos autores relevantes por sua atividade e trabalho na educao musical de base. Vimos concepes diferentes de atuao na disciplina, nomes, ementas e formas diferenciadas de ser oferecida e o que nos possibilitou um ponto de partida para a elaborao dos passos e captulos seguintes. Para que fosse possvel ter idia do quanto j houve de reflexo na rea, tambm fizemos uma pesquisa sobre a percepo, sua relao com os trabalhos acadmicos e o comrcio de materiais didticos no Brasil. Apesar de serem os primeiros dados sobre o assunto, pudemos verificar atravs dos quadros e percentuais que o campo tem se movimentado mais nos ltimos tempos.

    J no segundo captulo, Dilogo com professores da disciplina: relatos e respostas, com o objetivo de dar maior consistncia s afirmaes trazidas e buscar argumentos pautados na realidade da disciplina, observamos que os recursos da entrevista e do questionrio teriam resultado bem proveitoso. Ento, por conseqncia das duas linhas metodolgicas qualitativa e quantitativa h dois subitens principais, no qual apresentamos os benefcios e as desvantagens de cada tcnica, com detalhes de todas as etapas e procedimentos cumpridos na anlise dos dados. De incio, o que nos importou foi deixar clara a metodologia utilizada, e a transparncia na organizao dos contedos, para assim, oferecer as informaes sobre os assuntos e categorias encontradas; porm, sem deixar de fazer colocaes reflexivas ou tericas pertinentes.

    Uma diretriz fundamental durante esse perodo de processamento dos resultados foram as orientaes de Bardin (2002), com a anlise de contedo. Apesar de tecermos longas descries sobre esse tipo de anlise no momento da exposio das entrevistas, seguimos os mesmos passos de observao e classificao nas respostas obtidas pelos questionrios. Depois de verificar e conscientizarmo-nos de todos os aspectos levantados por Bardin no h como no aplic-los, mesmo na pesquisa quantitativa.

    No terceiro e ltimo captulo, Anlise e perspectiva para a Percepo Musical, analisamos os depoimentos dos entrevistados, primeiro individualmente

  • 4e depois de forma geral, trazendo tona os contedos mais significativos atravs de comentrios e tabelas, facilitando a absoro das informaes. Uma reflexo sobre as categorias encontradas traz conexo, e, por vezes, confirmao entre os relatos dos docentes. Note que h subdivises entre sujeitos vinculados a IES e aquele sem vnculo. Do mesmo modo, no texto seguinte apresentamos a anlise de cada pergunta contida no questionrio, expondo seus grficos correspondentes com os ndices percentuais de todas as opes de alternativas. Reflexes sobre esses ndices foram realizadas, bem como a especificao da resposta d) Outro ofereceu dados mais precisos, permitindo a construo de novos quadros-tabela com bastante detalhe. Pontuamos algumas interligaes possveis entre temas e percentuais e encerramos esse tpico com um quadro geral dos questionrios o que tambm ocorre na parte das entrevistas. Finalizando o captulo, entrelaamos os dados quantitativos e qualitativos, reconhecendo seus pontos comuns, seus diferenciais muitas vezes, resultantes da tcnica utilizada e outras observaes gerais.

    Pudemos, com isso, verificar a situao atual da Percepo Musical no Brasil, suas condies estruturais, direes de atuao pedaggica e diversas opinies sobre o seu ensino.

    Esse trabalho foi escrito com muito prazer e dedicao, os quais nos proporcionaram muitos conhecimentos, e, por isso, esperamos contribuir para a difuso deles no campo da msica, construindo um crculo positivo, de trocas enriquecedoras no meio acadmico.

  • 51. O CONTEXTO DA PERCEPO MUSICAL

    Tratar de Percepo Musical, inicialmente, nos leva a notar duas principais faces sobre o assunto. As idias da Psicologia, Psicofsica, Filosofia, e demais cincias cognitivas, relacionadas principalmente ao estudo da percepo de forma geral, e, a tica da Msica, que trabalha mais especificamente com aspectos tcnicos ligados educao e ao exerccio da profisso de msico.

    Apesar da amplitude do tema e, sendo nosso foco a msica, a finalidade nesta pesquisa buscar aspectos estruturais da Percepo Musical como disciplina tais como sua disposio curricular, horas de aula, nmero de alunos nas turmas etc. mas tambm metodologias, contedos, dificuldades encontradas pelos docentes e questes de ordem conceitual que possam contribuir para a reflexo e aprimoramento das aes no ambiente musical acadmico.

    Verificamos que o desenvolvimento do sentido auditivo ou da Percepo Musical considerado pela grande maioria dos educadores como de fundamental importncia, pois se bem encaminhada e aperfeioada, oferece significativo suporte para a carreira do msico em suas diversas modalidades, alm de anteceder sua formao profissional, participando ativamente no processo de educao musical de base.

    Portanto, cabe-nos trabalhar a partir do seguinte questionamento: o que se entende por Percepo Musical? Qual o seu papel e potencial de articulao com outras matrias? H um perfil para a disciplina? Como se encontra a produo acadmica na rea? E assim delineamos fundamentos essenciais para centralizar atenes no contexto universitrio bem como na realidade atual em que estamos inseridos.

  • 61.1 ABRANGNCIA E RELEVNCIA

    Com a finalidade de tornar precisas as nossas palavras, achamos necessrio esclarecer onde pensamos encaixar-se a Percepo Musical no mbito da Msica, sob quais acepes ela pode ser encontrada nesse texto, e como definimos e utilizamos o termo Educao Musical no presente trabalho. Esse cuidado existe j que lidamos com questes que esto nos limiares de reas complexas, as quais, muitas vezes, se interconectam e/ou se influenciam. Por isso, essa iniciativa no tem a pretenso de ser uma sugesto ou proposta, mas apenas cumprir o seu papel no escopo desta pesquisa.

    A Percepo Musical apresenta-se h muito tempo como item disciplinar da chamada Teoria da Msica TM ou Teoria Geral da Msica TGM (como tambm vemos em denominaes acadmicas), e isso nos parece comumente bem aceito j que na grande maioria dos cursos superiores, por exemplo, ela est estruturada entre as disciplinas de fundamentao terica1. Dessa forma, esquematicamente, Percepo Musical emparelha-se com Harmonia, Anlise, Linguagem e Estruturao Musical, Contraponto, etc., matrias que tm uma relao muito prxima com o contedo escrito, numa articulao enftica de partituras e procedimentos tcnico-musicais.

    Porm, em nossa opinio, o estudo de Percepo ou o que a disciplina se prope a desenvolver diferencia-se dessa natureza, sendo responsvel por fazer a ligao dos conhecimentos tericos com aqueles construdos a partir da prtica. Nas aulas de Percepo so repassados pontos de teoria, unidos aos exemplos audveis e s atividades de leitura, numa articulao contnua entre escrita, audio e execuo.

    Nesse sentido, acreditamos que a Percepo seja uma subrea da Msica com caractersticas prprias, propiciadora de ramificaes de diferentes ordens dentro do conhecimento humano, e por essa razo, talvez umas das mais

    1 Tambm em cursos tcnicos ou cursos livres mais sistematizados.

  • 7amplas, pois, encontra conexo com quase todas as outras subreas, seja de forma objetiva ou subjetiva.

    Desse modo, Percepo Musical, neste texto, pode compreender trs significaes bsicas: 1. a disciplina (em questo) dos cursos superiores de Msica; 2. o estudo de noes musicais que englobam vivncia, contedo musical e sentido auditivo, nos diversos nveis de aprendizado; 3. subrea da msica, suas temticas e desenvolvimento (sem obviamente desconsiderar sua estreita ligao com a Teoria da Msica).

    Como tratamos de pontos que permeiam e, muitas vezes, fazem parte do ensino e pesquisa em msica, inevitavelmente a terminologia Educao Musical torna-se presente. Aqui a consideramos em seu maior mbito, como acolhedora de muitos outros aspectos, ou seja, sob o qual se encaixam itens como a educao musical superior, a educao musical infantil, a educao musical informal, a educao musical especial, etc. Assim, o termo est vinculado expresso ensino de msica e no empregado de modo especial infncia. Contudo, fazemos especificaes de pblico ou demais diferenciaes quando por algum momento tecermos comentrios que fujam da esfera acadmica ou universitria, bem como em situaes em que acharmos necessrio, com vistas ajudar na transparncia das idias. Esse nosso transitar por distintas camadas do aprendizado musical acontece devido relevncia do tema, determinado claramente a partir de seu destaque e participao nos contedos de programas que vo desde a iniciao at o ensino profissionalizante.

    Neste captulo temos a inteno de apresentar o meio no qual a disciplina Percepo Musical est inserida, ou seja, nos cursos superiores, e isto significa expor as principais caractersticas dentro dessa estrutura, o perfil das turmas em sala de aula, alm das correntes que dividem a opinio e o modo de atuar dos professores. o que acompanhamos a seguir.

  • 81.1.1 Percepo Musical na graduao

    A Percepo Musical como disciplina sistematizada esteve atrelada ao desenvolvimento da graduao em Msica no Brasil, provavelmente desde os primeiros cursos reconhecidos, como da Faculdade de Msica Santa Marcelina FASM de So Paulo/SP, em 1938, segundo fonte do Ministrio da Educao MEC2.

    Os contedos para um bom desempenho musical voltam-se, desde ento, para a leitura e escrita da notao, atravs do solfejo e ditado respectivamente, como carros-chefe, alm da prtica auditiva de reconhecimento intervalar, acordes e encadeamentos harmnicos. No nos parece novidade alguma considerar tais elementos como pertencentes Percepo Musical que conhecemos hoje.

    Podemos verificar que ao longo desses anos, o que modificou de fato, foram suas nomenclaturas, a carga horria e a atividade mais acentuada dos aspectos sonoros. Relembremos o seguinte: o ensino de Teoria Musical, que, grosso modo, enfatizava o aprendizado de smbolos e frmulas, bastante deficiente de exemplos audveis, mostra-se agora mais interessado com a condio sonora. Ao passo que os cursos de Solfejo e Ditado que na dcada de 30 e 40 no se restringiam a tcnicas metodolgicas, mas, treinavam essas habilidades juntamente com a audio esto hoje praticamente extintos. Uma probabilidade, a qual achamos ser bem plausvel, que a disciplina Percepo tenha abrigado aspectos dessas duas vertentes tornando-se o que para ns no sc. XXI.

    tambm provvel que a Percepo Musical tenha se configurado no campo da rea terica por essa forte ligao com os contedos de teoria. Tanto que Guimares (2000, p.1) nos diz que hoje, a Teoria Musical tambm

    2 Consulta feita no arquivo Relao dos programas e/ou cursos de graduao e seqenciais oferecidos pelas

    instituies de Educao Superior Brasil, Cursos de Msica, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira INEP, do Ministrio da Educao, nos disponibilizado em 02/03/2007, via e-mail.

  • 9denominada de Percepo Musical, pois atravs desta disciplina que o aluno aprende a perceber o significado dos cdigos da linguagem dos sons.

    Dessa forma, embora haja um consenso razovel acerca do nome Percepo Musical3, interessante notar que em algumas instituies ainda encontramos, por exemplo, o ttulo Treinamento Auditivo, como tambm Teoria e Percepo Musical, Leitura e Escrita Musical LEM, Teoria Musical e Solfejo, Ritmo e Som, Linguagem Musical, segundo Bhering (2003). Vemos esse fato como resqucio da forma inicial de destinao da disciplina e como uma constatao da sua gradual afirmao.

    Outro aspecto importante de se observar na Percepo Musical a sua estruturao interna, ou seja, sua organizao geralmente em trs frentes meldica, rtmica e harmnica, nas quais contedos especficos de cada elemento da msica so minuciosamente desenvolvidos e praticados. Porm, isso no uma regra, pois algumas instituies destinam uma carga horria centrada especialmente na Rtmica, tendo-a no currculo alm da disciplina Percepo Musical ou Treinamento Auditivo. Observamos que, nesses casos, quando se fala no estudo da percepo musical, subentende-se desenvolvimento meldico-harmnico e, portanto, torna-se necessrio o auxlio de outra matria que contemple o ritmo, so os casos, por exemplo, da Universidade Estadual de Campinas UNICAMP e da Faculdade de Artes do Paran FAP.

    J sobre o perfil na grade curricular, trata-se de uma disciplina obrigatria em grande parte dos cursos superiores brasileiros (o que tambm vemos ocorrer nos cursos tcnicos), portanto, coletiva, com uma intensa demanda de turmas. Essa caracterstica faz absorver estudantes de diferentes modalidades, com nveis bastante heterogneos de conhecimento. Ingressantes de canto, percusso, regncia, composio, e demais instrumentos, que exigem habilidades e conhecimentos especficos, compem, assim, o grupo e saberes de uma turma.

    3 No captulo 3 apresentamos mais detalhes sobre as nomenclaturas existentes para a disciplina.

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    Tal diversidade um tanto lgica, mas, em nossa opinio, estritamente necessria de ser frisada, pois possvel constatar que boa parte desses ingressantes no estudaram Percepo Musical anteriormente, ou melhor, no tiveram experincias com esse modelo de estudo; o que faz surgir uma dificuldade prtica para o docente: mediar as orientaes das ementas s condies de conhecimento da classe, caminhando, entre o aperfeioar e o desenvolver bases, respectivamente.

    Uma possibilidade para essa ausncia de estudo, talvez seja dos alunos serem adeptos de um aprendizado terico tradicional (sem muita relao com a audio ou apreciao), ou mesmo do estudo autodidata que, muitas vezes, os tornam at bons instrumentistas. Em nossa opinio, o que se faz imprescindvel para um curso ser realmente positivo nesses casos, a metodologia utilizada pelo professor que, no nosso entender, deve proporcionar a troca de experincias e clareza no lidar com essa heterogeneidade.

    Gerling (1995, p.23), ento professora de Percepo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS, diz que muitos estudantes esto despreparados, pois entram no 3 grau com falhas e lacunas no seu aprendizado, cujo cerne, para ela, est no ensino antecessor: os alunos que entram no Curso de Graduao em Msica via de regra no tm uma leitura musical fluente e isto um forte indcio de uma educao musical deficitria em vrios aspectos perceptivos e conceituais.

    Sem dvida, esse tpico muito pertinente, pois se a base no est bem fundada no h como trabalhar sobre ela e obter um bom desempenho. Mas, e quando no se tem base instituda? Sabemos da crescente conscientizao sobre a educao musical, das iniciativas particulares e do movimento para a volta da msica nas escolas, mas resultados visveis e efetivos s podero mesmo ser discutidos aps uma transformao real dessa falta de tradio em msica.

    Num outro olhar sobre as dificuldades trazidas pelos alunos, tendo como norte nossa experincia como professora, verificamos que as mais extremas esto no campo da melodia, principalmente com os famosos ditados (a uma ou mais

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    vozes). Em contrapartida, o aspecto rtmico o mais equilibrado e de mais fcil desenvolvimento, tambm se comparado ao campo da harmonia. Dessa forma, estudantes, em sua maioria, sabem traduzir a escrita musical para seu instrumento, mas bem pouco praticam o processo inverso, da sonoridade para a escrita muitas vezes, salvo aqueles que vm da msica popular e conquistam agilidade e reflexo entre ouvir, ler e escrever.

    Poderamos detectar vrias alternativas ou hipteses para o porqu dessas dificuldades aprendizado voltado estritamente ao instrumento, falta de conexo entre teoria e prtica, metodologias inadequadas, etc. porm, essencial nos conscientizarmos do modelo de educao musical que recebemos e, naturalmente, passamos adiante.

    Quando a Percepo Musical prope trabalhar aspectos suporte da msica, proporciona o fixar das bases, estando diretamente relacionada com o educar (concordamos neste ponto com GERLING, 1995 e BERNARDES, 2000). E, a partir do momento em que recebemos uma educao tradicional (que tem como direo a boa leitura, a perfeita tcnica e o virtuosismo), tambm natural que concebamos assim o modelo ideal de percepo. Assim, pairam no ar: Poucos so os bons alunos!, Muitas so as dificuldades, Ouvido absoluto essencial, etc. Idias que costumamos pensar sobre a disciplina, e que traduzem apenas uma postura, e no uma nica e correta4 interpretao existente. Acreditamos que h outras maneiras de se pensar e agir na disciplina (alis, nosso dever question-las e busc-las), e ainda muito se pode contribuir na rea.

    Outro tpico comum encontrado a utilizao do piano como principal recurso em sala de aula. Convencionou-se, talvez por tradio, por amplas possibilidades (instrumento rico para melodia, harmonia e mesmo ritmo) ou simples comodidade, que a referncia sonora padro se daria atravs do som desse instrumento, deixando de lado outros timbres tambm interessantes. evidente que exemplos de acordes, de mudanas de alturas e registros,

    4 Conceito relativo.

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    acompanhamentos ao piano so facilmente abordados, mas o que nos chama ateno a aparente e quase restrio a demais fontes, que podem ser trabalhadas tambm como contedo, no somente como ferramenta.

    Certamente outros assuntos e problemticas esto envolvidos no ambiente de ensino da Percepo Musical, entretanto, nosso propsito agora centrarmo-nos nos aspectos que determinam sua enftica presena no estudo da msica.

    1.1.2 O sentido auditivo e a importncia de seu desenvolvimento

    Atravs de diferentes meios podemos manter contato com os sons, com a msica. Todavia, o sentido auditivo vem a ser o veculo central, do qual mais nos utilizamos para interagir e entender o ambiente sonoro. Da a Percepo Musical estar diretamente relacionada com o ouvido.

    Segundo Oliveira, Ranvaund e Tiedemann (2005), ser msico uma questo de aprender a ouvir, de forma correta, ou ter uma audio diferenciada, a qual significa mais que somente ouvir. Essa frase embora bem intencionada, sendo possvel compreend-la na essncia, no nos parece esclarecer as expresses utilizadas. preciso, em nossa opinio, substituir o ouvir corretamente, j que no h um nico caminho e ainda ideal ou correto percorrido pela audio. Trata-se de conceitos relativos tornando-se inapropriado fechar tal questo de forma simplista. Acreditamos que, neste caso, isso se traduza nada mais do que numa maneira tcnica de ateno durante a audio, pertencente ao metier do msico profissional. Essa audio tem uma acepo maior que apenas a captao fsica dos sons, uma compreenso sim, diferenciada, porm, com uma funo particularmente formadora. Assim, num sentido geral, o que se mostra positivo nesta afirmao, a evidncia do aprendizado do ouvir (que aqui consideramos o trabalho de refinamento auditivo) e tambm por demonstrarem preocupao em explicar o que seja o processo auditivo do msico.

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    interessante observar que ao falar de ouvir, ouvido musical ou escuta musical, to logo esto presentes opinies sobre seu desenvolvimento. Atualmente podemos verificar uma crescente considerao de que possvel educar o ouvido, trabalh-lo, diferentemente de tempos anteriores em que a idia do talento prevalecia fortemente. Pode-se dizer ento, que a existncia do ensino da msica construda sob o pressuposto de que ela pode ser aprendida e desenvolvida, deixando de lado a essencialidade do dom ou gnio. Assim, o mesmo vale para contedos da Percepo Musical, o que exclui algumas idias quanto a impossibilidades ou incapacidades, que erroneamente cultivamos no dia a dia. Entretanto, precisamos ressaltar que esse aprendizado varia de um indivduo para o outro, pois depende de suas experincias prvias, bem como das metodologias utilizadas, da estrutura sistematizada (como durao do curso, carga horria, infra-estrutura e recursos), o perfil do professor, entre outros aspectos importantes.

    Agora, no campo da definio h uma outra discusso existente, que gira em torno do que seja ouvir ou escutar. A polmica se ambas constituem-se distintas ou semelhantes em sua significao e, nesse sentido, alguns autores nos alertam sobre a ausncia de um consenso em sua utilizao.

    Vamos aqui considerar, juntamente com referncias importantes (WILLEMS 1985, FONTERRADA 2005, GRANJA 2006), a concepo do escutar como algo mais elaborado que o ouvir. Conforme a opinio de Granja (2006, p.65), ouvir est relacionado com a dimenso sensorial da percepo, a captao fsica do som. Escutar, por outro lado, dar significado ao que se ouve. Escutar estaria mais prximo da dimenso interpretativa da percepo [...]. Para o autor, a escuta musical vai alm da percepo de vibraes sonoras, pois a forma de estabelecer mltiplas relaes entre as sonoridades que atingem nosso ouvido e corpo. Assim, no nosso entender escutar estaria mais ligado aos contedos por ns assimilados, ou seja, na relao que criamos entre som e conhecimento.

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    Dada a importncia da audio, colher idias sobre a relevncia do estudo da Percepo Musical, seja entre docentes, estudantes ou msicos amadores, tarefa relativamente fcil. Discursam questes referentes ao j mencionado ouvir e escutar, mas tambm formao bsica e/ou profissional, execuo prtica, e competncia nas demais modalidades do campo musical, como por exemplo, na composio e na regncia.

    Segundo Salgado e Varela (2006, p.3): Uma das tarefas fundamentais de todo msico escutar. Esta uma habilidade que convm desenvolver desde as etapas mais iniciais da formao profissional, seja na que trata de um regente, de um compositor, um intrprete, um etnomusiclogo ou um crtico musical, e num amplo sentido, todo pblicoinformado deveria faz-lo. No possvel considerar-se competente em qualquer destas reas a menos que se tenha aperfeioado, na medida das capacidades de cada um, a audio discriminada e crtica do produto da atividade musical, qualquer que ele seja [traduo e grifos nossos].

    A Percepo Musical ocupa um lugar central seja na perspectiva do ouvinte ou na do msico intrprete e/ou compositor, e ainda, o conhecimento musical se define pelo refinamento de sua percepo, a opinio de Granja (2006, p. 47). Para ele, o conhecimento musical resultado de uma articulao contnua entre os processos perceptivos e os momentos de elaborao conceitual, pois ultrapassa a dimenso sensorial, aproximando-se dos processos de cognio.

    De modo similar, Campolina e Bernardes (2001) consideram o desenvolvimento da Percepo essencial e indispensvel na formao de qualquer msico. Porm, diferentemente dos autores anteriores, abordam-na como disciplina, a qual acreditam que pode ser entendida como bsica na formao dos msicos, j que ocupa um nmero importante de semestres na maioria dos currculos das escolas de msica, tornando-se um dos eixos dessa formao5.

    5 Frisamos aqui que as escolas de msica as quais os autores se referem so aquelas vinculadas ao ensino

    superior, j que o trabalho deles pautado em sua experincia nesse nvel e seus demais artigos e estudos acompanham esse pblico.

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    Sob outro enfoque, porm, continuando nessa perspectiva de disciplina, afirma Luz (apud BIAGIONI; LESSA, 2005, p.3):

    A Percepo, que deve desde o incio fazer parte de qualquer processo de formao de um eterno estudante de Msica, trata de uma disciplina que lida, entre outras questes, com a cognio, as experincias e os significados emocionais de cada um, e, portanto, tambm com questes abstratas e subjetivas do discente e de quem o orienta em seu mtodo de estudo [aspas do autor e grifo nosso].

    J aqui podemos verificar que o autor, apesar de sua abordagem educacional, no centraliza sua concepo em questes didticas, mas ao contrrio, lembra-nos daquelas pertencentes a nveis mais abstratos da aprendizagem, as quais se relacionam com a qualidade de envolvimento dos sujeitos, o processamento das experincias, e fatores emocionais na assimilao. Comenta tambm sobre sua importncia no estudo musical desde o incio da formao, alm das diferentes facetas da matria, que, Moreira e Pascoal (2005) corroboram, e observam pertencer a um campo que se liga s pesquisas das reas da Msica e Psicologia apresentando interesses tanto para estudos tcnicos, tericos e interpretativos, quanto para os filosficos e cientistas do campo do desenvolvimento cognitivo.

    Enriquecendo a afirmada importncia da Percepo Musical, veremos a seguir o que argumentam sobre esse assunto os professores ou estudiosos da fase inicial do aprendizado em msica.

    1.1.2.1 Na educao musical de base

    Alm da relevncia da Percepo Musical na formao de nvel superior, essa abordagem auditiva participa enfaticamente da prtica de educadores musicais do ensino bsico, no qual a finalidade musicalizar, proporcionar vivncias sonoras geralmente para pblico infantil. Nesse contexto, Fujiyoshi e Novaes Neto (2006) esto de acordo com a essencialidade desse

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    estudo, pois afirmam que o processo de musicalizao do indivduo est subordinado aos aspectos perceptivos, necessrios significao musical.

    Fonterrada (2005) comenta que no trabalho do belga Edgar Willems um dos mais expoentes educadores musicais do sc. XX h forte presena do fator auditivo em sua concepo de ensino. Segundo a autora, Willems acreditava que ainda no se compreendia a natureza profunda da musicalidade, alm de que toda criana poderia ser preparada auditivamente. Conforme nossa argumentao no item anterior.

    Mais que educar e interagir msica e a natureza humana, Willems aspirava dar status cientfico ao seu trabalho, portanto, foi muito cuidadoso em seus dois volume do Loreille Musicale no qual estudou a audio sob trs aspectos: sensorial, afetivo e mental, no qual denomina sensorialidade auditiva, sensibilidade afetiva auditiva e inteligncia auditiva. O primeiro deles, ainda de acordo com Fonterrada (2005), incentiva a escuta como entidade fsica, apresentando exerccios para a distino dos parmetros do som (altura, durao, intensidade, timbre); o segundo, se manifesta quando passamos do ato objetivo, sensorial, de ouir para o subjetivo couter 6, que, grosso modo, seria uma escuta sensvel, afetiva, a qual oferece abertura para expresso emotiva. Exemplo disso sua forma de ensino para intervalos meldicos, cujo emprego de adjetivos como paz, nervosismo e felicidade servem para explicitar o unssono, a 2 menor e o intervalo de 3 maior, respectivamente. Enfim, o terceiro e ltimo aspecto, comporta: comparao, julgamento, associao, anlise, sntese, memria, imaginao criativa e escuta interior, que, no nosso entender, voltam-se a questes cognitivas e ao desenvolvimento da Percepo.

    Porm, o que Fonterrada (2005) adverte, com razo, que tais instncias da audio muitas vezes no so interpretadas corretamente, pois se omite que Willems conceba esses fenmenos simultaneamente, e no de forma

    6 Fonterrada (2005, p.128-129) evidencia que os termos ouir, couter e entendre, originais em francs, no

    tm a mesma conotao em portugus, perdendo sua fora quando traduzidos para ouvir, escutar e entender.

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    isolada. A autora explicita que esse caminho artificial escolhido unicamente com objetivo didtico, para que cada uma das caractersticas mais importantes pudesse ser analisada.

    Outros educadores importantes como Kodly, Orff, dos contemporneos Schafer, Gainza, Swanwick, e ainda os princpios educacionais de Villa-Lobos7 pelo movimento do Canto Orfenico8 no Brasil da dcada de 40 do nfase para o aspecto auditivo, como uma das bases de suas metodologias. Isso pode ser visto pelas ferramentas com as quais difundiram suas idias, seja pelo canto, apreciao, composio, improvisao, entre outros (cuja conexo faz-se muito estreita com a audio), mas tambm pelos programas de ensino e contedos a serem trabalhados. Um fator de grande intensidade nessas propostas a alta valorizao humana, com focos na cidadania, na sensibilizao e afetividade o que indubitavelmente muito louvvel, mas que merecem todo cuidado, j que, em excesso, podem adentrar fronteiras de outras reas trazendo confuses desnecessrias.

    Assim, traando um paralelo entre a educao musical bsica e a universitria, Bernardes (2000) considera que o processo de musicalizao influi diretamente na qualidade e seqncia do aprendizado posterior, mais especificamente da Percepo Musical. Segundo ela, essa disciplina que tem o papel de continuidade e aprofundamento dos contedos vivenciados na primeira fase do aprendizado musical, porm, questiona a roupagem formal que recebe ao caracterizar-se no nvel superior, perdendo criatividade e interatividade, muito presentes na iniciao.

    7 Ver mais em GOLDEMBERG, Ricardo. Educao Musical: experincia do canto orfenico no Brasil.

    Disponvel em: . Acesso em fevereiro de 2007. 8 Na introduo de Solfejos originais e sobre temas de cantigas populares para ensino de canto orfenico.

    1 vol., dito que no Curso Especializado de Msica e Canto Orfenico destinado formao de professores, [...] a disciplina de Solfejo e Ditado era a que mais se praticava no currculo do S.E.M.A pela absoluta necessidade de apurao dos fenmenos de percepo do ritmo, altura do som e memria auditiva, fatores indispensveis a um professor de Canto Orfenico. Isso confirma a importncia do estudo da Percepo (auditiva e rtmica atravs da leitura e da escrita) no processo de ensino-aprendizagem musical do nosso pas.

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    Primeiramente imprescindvel considerar que os universos so bastante diferentes e requerem posturas adequadas para cada faixa etria. O carter formal existe, mas talvez no seja determinante ou mesmo prejudicial. Pensando no aspecto da perda de criatividade e interatividade acreditamos que h sim certa dificuldade em traz-las com coerncia para a educao profissional. No entanto, sabemos que esse terreno muito vasto, e desenvolv-lo agora seria falta de zelo j que o abordaramos de forma rpida.

    Ento, o que realmente interessa observar a presena de elementos fundadores ou alicerces da Percepo Musical na etapa inicial, co-relacionando seu desenvolvimento. Atividades de reconhecimento de timbres com brincadeiras sonoras para crianas, criao de pequenas trilhas de histrias, alm de outras experincias, podem ajudar muito na acuidade auditiva para um futuro estudo aprofundado. A grande problemtica, como j dito, que muitas vezes os alunos no foram sequer musicalizados e essa base acaba por acontecer no prprio curso de graduao, acarretando srias conseqncias no seu desempenho e andamento no programa acadmico.

    Essas e outras discusses colaboram na argumentao e possvel remodelao do perfil da disciplina, que tem como finalidade desenvolver o sentido auditivo de maneira satisfatria para o cotidiano profissional do msico. Notando que como bases das condutas na disciplina esto as correntes de pensamentos que as concebem, acompanhamos a seguir os pontos mais evidentes em Percepo.

    1.1.3 Treinamento e compreenso: dois aspectos de concepo na disciplina

    O fato de estarmos centrados no contexto musical, no nos exime de conhecer as profundas reflexes cientficas do estudo da percepo em Psicologia, ou seja, as incansveis experincias de noes de espao, intensidade, forma, cor, imagem, entre outros. H uma ampla literatura que aborda essas relaes com os diferentes sentidos: viso, audio, olfato, tato e paladar,

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    alm das discusses vinculadas cognio, nos processos mentais e neurolgicos.

    Todavia, foge do escopo desse trabalho tal aprofundamento, pois o que nos mobiliza o universo da graduao em que a Percepo Musical como disciplina est inserida. Nossa finalidade ao trazer essas informaes de extrair delas o que nos chama bastante ateno dentro desse campo: as correntes de pensamento que contriburam nas aes que educaram essas percepes.

    Neste caso, as metodologias utilizadas, os procedimentos avaliativos e as razes que os sustentam (num contexto de ensino-aprendizagem), so delineados por um fio condutor cujo determinante sua concepo, a idia filosfica, muitas vezes, subliminar. Na Percepo Musical isso no diferente.

    Verificamos, na bibliografia sobre o assunto, que o ensino dessa disciplina possui, pelo menos, duas9 acepes ou linhas mais evidentes: 1) a viso que a relaciona com Treinamento Auditivo, e de forma objetiva determina seus critrios de avaliao, competncia, habilidade e finalidade; e 2) a viso que a trata como ferramenta para compreenso da msica, estabelecendo o conhecimento global como prioridade, integrando a ele aspectos emocionais, resultando numa conduo mais subjetiva.

    Em geral, no primeiro grupo, a Percepo Musical a prtica que tem o objetivo de desenvolver as habilidades de elementos musicais como melodia, ritmo e harmonia, relacionando sons e teoria. Est mais ligada atividade repetida de exerccios que, na maioria das vezes, requer do estudante alto domnio da escrita e da audio discriminada principalmente da altura do som atravs de ditados meldicos sofisticados e solfejos em diferentes claves.

    Segundo Lacorte (2005, p. 138) a concepo de percepo musical nas escolas e conservatrios de msica relaciona-se freqentemente capacidade do aluno de representar a grafia sonora do discurso musical corretamente10, no qual

    9 importante frisar que essas duas maneiras de denominao foram retiradas dos prprios comentrios de professores da rea, no qual, de um lado, o termo treinamento sempre evidenciado, e de outro, o uso reiterado gira em torno de compreenso. 10

    Conceito relativo. J nos detivemos ao uso desse adjetivo no incio do presente texto.

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    os principais objetivos dessa sistematizao so o reconhecimento, discriminao e reproduo.

    Realmente esses aspectos fazem sentido para um bom treinamento. Mas, falar de treinamento em msica parece incomodar bastante. No coincidncia que toda vez que esse assunto vem tona ou mencionado (pelo menos por professores de nossa rea), muitas vezes surgem acaloradas crticas com opinies negativas a sua aplicao. Uma razo um tanto clara para esse tipo de postura, o modo como o resumimos na prtica diria, e o qual Gerling (1993, p.34) nos apresenta como sendo: [...] adquirir uma habilidade ou conjunto de habilidades sem o uso de iniciativa ou criatividade, portanto, sem modificao ou reflexo sobre a habilidade propriamente dita.

    Mas ser isso mesmo? Na linha de estudos da Psicologia do Treinamento, de acordo com

    Stammers e Patrick (1978, p.17) este tipo de abordagem ocorre em muitos contextos, apesar de ser muito utilizado no mbito ocupacional, cujos indivduos esto aprendendo a executar servios ou tarefas; porm, importante no se adotar uma concepo demasiado estreita de indstria (aspas dos autores). Assim, apresentam-nos como guia o que o Glossary of Training Terms (1971), da Gr-Bretanha diz sobre o assunto:

    Treinamento: O desenvolvimento sistemtico do padro de atitude/conhecimento /habilidade/conduta requerido para que um indivduo desempenhe de forma adequada uma determinada tarefa ou servio. Isso est freqentemente integrado ou associado com uma educao adicional. cada vez mais comum o uso da experincia de aprendizagem para integrar o conceito de treinamento e educao. (grifos nossos) (apud STAMMERS e PATRICK, 1978, p.14-15).

    Nesse sentido, Stammers e Patrick (1978, p.19) explicitam que em psicologia procura-se a aprendizagem em tarefas [ou situaes] que sejam reais ou que reflitam as caractersticas essenciais da realidade (grifo e colchetes nossos). certo que essencial no se traduz em isolado, por isso, [...] tambm so necessrios estudos de acompanhamento em conjunto com a aplicao de

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    resultados no campo [..], mas lembram que, infelizmente, tal aparato no acontece em muitos dos casos.

    Assim, perde sua fora o popular jargo de fragmentao no treinamento, associando-o agora a uma aplicao mais complexa e interativa. Trabalhar com aprendizagem, mesmo com as de natureza mais simples implica conhecer caminhos, meios, os quais o indivduo trilha no percurso at seu objetivo. E nessa linha de pensamento que encontramos o estudo de Paul Fitts e Michael Posner que, em 1967, desenvolveram um modelo de aprendizagem em trs estgios, que se constituiu referncia importante e base terica para o treinamento motor, as reflexes sobre a ateno e demais vertentes da cognio11.

    Segundo Magill (1987) as trs fases concebidas por Fitts e Posner quando da aprendizagem de uma habilidade so: 1. estgio cognitivo que se caracteriza por uma alta quantidade de erros no desempenho, sendo esses erros de natureza grosseira e, muitas vezes, de carter inconsciente. Embora o executante saiba que esteja fazendo algo errado, geralmente no sabe exatamente o que deve mudar para melhorar seu desempenho, necessitando de informao especfica para corrigi-lo; 2. estgio associativo nessa etapa os erros so menos freqentes e primrios, o aprendiz est agora concentrando e refinando sua habilidade. J consegue reconhecer alguns de seus erros, e tem alguma diretriz para continuar sua tarefa. Outro aspecto que sua variao no desempenho comea a decrescer, ou seja, torna-se pouco a pouco mais estvel; 3. estgio autnomo depois de ampla prtica, nesse ltimo estgio a habilidade torna-se quase automtica12. O aprendiz no precisa centrar-se em todo o processo de constituio da habilidade, mas consegue realiz-la transpondo esses pequenos procedimentos e, vertendo sua ateno para passagens mais difceis ou

    11 Veja o pensamento desses autores aplicado msica no artigo de: PERTZBORN, Florian. Developing the

    ability to perform: a context of relevant research and psychological theories with exemples on practicing the doublebass. Per Musi, Belo Horizonte, Vol 8, p. 137-151, jul-dez, 2003.12

    No texto de LADEWIG (2000) A importncia da ateno na aprendizagem de habilidades motoras, o autor diz que o tempo para o acontecimento desse automatismo depende da intensidade da prtica e da complexidade da tarefa a ser realizada.

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    as quais determina serem mais importantes13. Aqui, alm de detectar seus erros, o indivduo sabe como realizar ajustes para corrigi-los, sendo que sua variao no desempenho mnima.

    Verificamos ento, que a aprendizagem de uma habilidade, na forma de treinamento, se d no aprofundamento desses nveis ou plats, numa perspectiva de intensa prtica e de gradual conscincia do processo de assimilao. Aspectos pertinentes para a disciplina Percepo Musical. Portanto, talvez no seja mera coincidncia o fato de se ter, na grande maioria dos cursos superiores, uma alta carga horria para essa disciplina na graduao. Agora, nos resta saber se ela suficiente para possibilitar a transio dentre esses estgios considerando a realidade brasileira.

    O que nos vem mente nesse instante a sua necessidade e a obrigatoriedade na formao do msico e, agregado a ela, o aprendizado de competncias bem especficas (e nada rasas). Desenvolver o ouvido musical algo to particular e faz tanta referncia ao histrico do estudante com o contexto da msica, que nos perguntamos o porqu de ela no ser tambm uma disciplina individual como so as aulas de instrumento. Embora essa idia seja aqui mera provocao e parea assustadora de incio, importante lembrar que um processo de treinamento, como o que vimos, exige um programa de acompanhamento e um perodo de tempo (at automao da habilidade) que varia de indivduo para indivduo. Todavia, o que mais possvel perguntar se a maneira que estruturamos tal disciplina a mais vivel, se a mais eficiente e se estamos desejando coisas possveis de serem realizadas, observando nossa realidade em seus pontos positivos e negativos.

    Mas, no apenas sob a concepo de treinamento que a Percepo Musical desenvolvida. Uma segunda idia, a da sua utilizao como ferramenta

    13 Afirma ainda Ladewig (2000) que dentre as caractersticas de cada estgio h uma mudana relevante,

    resultante da prtica, que se estabelece nos processos de ateno. Segundo ele, inicialmente a ateno sobrecarregada pelo fato do aprendiz tentar compreender os objetivos da tarefa, porm, no decorrer e avano dos estgios e, medida que o sujeito vai conquistando uma performance mais estvel, as exigncias dos mecanismos de ateno vo diminuindo, possibilitando-lhe direcion-la para outros aspectos.

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    da compreenso em msica, tem sido muito movimentada nos trabalhos acadmicos e artigos dos ltimos anos. Porm, diferentemente do treino, no to simples de se apresentar j que possui uma gama maior, de diferentes abordagens.

    Em geral, esse segundo grupo tem a finalidade de ampliar e conscientizar os alunos das informaes pertencentes ao cotidiano da profisso. Dessa maneira, visam uma ao que vem significar um processo de discernir, distinguir, comparar e entender (BRITO, 2001, p. 47, grifos nossos) o universo musical. Pelos autores que a defendem, transparecem mais engajados com aspectos que consideram o desenvolvimento integral da percepo (e da aprendizagem musical), seja na preocupao com questes didtico-metodolgicas ou at a outras de cunho conceitual, por meio de comparaes e metforas.

    Segundo Stammers e Patrick (1978) no contexto de educao14 (no nosso caso, de compreenso), os objetivos so mais genricos e variados, quando comparados ao treinamento. No mesmo glossrio, da Gr-Bretanha, encontramos a seguinte definio de educao:

    Atividades que tm por objetivo desenvolver os conhecimentos, os valores morais e a compreenso requeridos em todos os caminhos da vida, em lugar de conhecimentos e habilidades relativos a to-somente um campo limitado de atividade. A finalidade da educao proporcionar as condies essenciaispara que jovens e adultos desenvolvam a compreenso das tradies e idias que influenciam a sociedade em que vivem, de sua prpria cultura e de culturas alheias, e das leis da natureza; e adquiram as habilidades lingsticas e outras que so bsicas para a aprendizagem, o desenvolvimento pessoal, a criatividade e a comunicao (grifos nossos) (GLOSSARY OF TRAINNIG TERMS 1971 apud STAMMERS e PATRICK 1978, p.16).

    De fato, confirma-se ento o sentido global pertencente a essa viso. Nesse universo, podemos encontrar focos em diferentes aspectos, musicais ou mesmo extramusicais, nos quais os autores pautam seus pensamentos e aes. Aqui se transparece que compreender a msica (ou em msica) bem mais do que se pode conceber; tem em si um sentido amplo, aberto a inmeras

    14 Os autores utilizam o termo educao como oponente ao treinamento.

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    significaes. Por isso, trazemos uma breve sntese do que observamos e acreditamos serem as mais evidentes propostas que se unem pelo fio condutor da compreenso e que permeiam sobre msica e linguagem, o conhecimento cultural de um povo e a interao de msica e corpo, por exemplo.

    Com grande intensidade de ressonncia, as analogias entre msica e linguagem (verbal ou escrita) oferecem exemplos prticos e cotidianos que reforam cada vez mais a imagem de ambas serem praticamente irms. Essa idia, muito presente em trabalhos e reflexes no meio musical, procura integrar um sentido sistmico analogia lingstica para contrapor-se especializao do treinamento.

    Campolina e Bernardes (2001) dizem conceber a Percepo Musical como a capacitao dos alunos para o aprendizado e compreenso da msica como linguagem, seja nos aspectos gramaticais, sintticos ou semnticos. Essa a base pela qual conduzem a disciplina, e que segundo eles, possibilita o afastamento das equivocadas metodologias ainda hoje facilmente encontradas a exemplo daquelas que tem como princpio a fragmentao do discurso musical, ou seja, pertencentes primeira concepo.

    Segue Bernardes (2000, p. 135 -136) expondo que:

    Essa forma de percepo, que integra e inter-relaciona as partes e o todo, evidenciando a estrutura da linguagem, permite ainda, que a msica seja compreendida como um objeto vivo, portador de tantos sentidos quantos forem os percebidos e articulados pelo ouvinte ou pelo intrprete. [...] Essa forma de percepo muito diferente da que separa, discrimina e fragmenta e lineariza a msica (grifos nossos).

    Ainda para a autora, essa abordagem traz uma significao de que a msica acessvel a todos aqueles que querem desvend-la ou compreend-la, e no somente destinada aos chamados iluminados ou dotados de talento15. Infelizmente acreditamos ser isso muito pertinente, j que ainda so sutis e implcitos os ares de superioridade e o pensamento da msica como Arte Maior,

    15 Essa uma preocupao antiga que esteve presente no pensamento de educadores como Edgar Willems,

    por exemplo.

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    entre msicos e no msicos apesar das aes importantes no mbito da educao musical que ajudam cada vez mais a abrandar a situao.

    Participante dessa mesma opinio, Breim (2001, p.26) destaca que se apropriar da arte como linguagem, alm de fazer oposio idia de arte para quem tem talento, afiniza-se com as pedagogias ativas que consideram o aluno como principal agente do seu processo de aprendizagem.

    Dessa forma, acrescenta ele:

    Ao improvisar, compor, interpretar, apreciar e refletir a respeito da linguagem artstica desde o incio do processo de aprendizagem, o aluno torna-se capaz de estabelecer diferentes relaes entre as simultaneidades percebidas, delimitar uma idia e escolher entre alternativas para express-la, identificar semelhanas entre segmentos, perceber diferenas como variaes e relacion-las aos efeitos de sentido, reconhecer tcnicas de desenvolvimento, qualificar os elementos responsveis por rupturas e as caractersticas relacionadas aos papis que desempenham, etc. (BREIM, 2001, p.26).

    J Goldemberg (2005) acredita que h mecanismos cognitivos comuns entre msica e linguagem pela grande plasticidade da mente humana mas isso no as torna similares. Para ele, cada uma dessas capacidades, sob anlise, envolve combinaes de processos mentais que tem uma funo mais genrica e vo se adaptando de acordo com as atividades s quais se propem. O ponto crtico dessa comparao que a sua busca pode transformar-se num fim em si mesma, sem reflexo das especificidades de cada uma delas. Assim, as usuais consideraes de que msicos tem algo a dizer, com vocabulrio ou estrutura gramatical, devem ser tratadas com cautela, respeitando as particularidades da msica e da linguagem verbal.

    Outra vertente da compreenso busca considerar como ponto fundamental a sabedoria cultural de um povo. Assim, a percepo sonora seria calcada sob esse aspecto, no mais priorizando qualquer regio ou tradio.

    Segundo Mello (2006), nos anos 60 os estudos sobre o tema tratavam de aspectos fsicos do som e da audio, tendo como referncia o ouvido musical

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    Ocidental (e seu repertrio) para encontrar leis para Percepo Musical16. Entretanto, de acordo com a autora, foram nas ltimas dcadas que se constatou ser o ouvido musical mais cultural que biolgico.

    Assim, a autora argumenta que:

    [...] a musicalidade no unicamente uma questo de talento musical, bem como a Percepo Musical no constitui apenas descries de como fazemos representaes mentais de estruturas sonoras: musicalidade o espao aberto na cultura para a msica, e a Percepo Musical uma capacidade que se constitui atravs dos significados das formas simblicas de uma cultura (MELLO, 2006, p.225 e 226).

    Nesta explanao a autora distancia-se da atitude comum dos msicos j que nos prope ampliar as concepes de musicalidade e Percepo Musical para a cultura, no sendo uma crtica aludida exclusivamente ao treinamento, como costumamos encontrar.

    Lacorte (2005, p.143) tambm discpula dessa opinio cultural, em sua proposta de ensino questiona a prioridade dada ao ouvido na aprendizagem musical. Para ela, a percepo musical, em seu aspecto mais global, naturalmente uma combinao dos diversos rgos do sentido que atuam simultaneamente durante a aprendizagem [...], que se pode traduzir numa concepo mutissensorial. Para ns, essa uma outra tica da compreenso; mesmo porque a autora deixa clara a necessidade de se repensar o ensino da disciplina que no seu entender resume-se hoje em ler e escrever msica na maioria das escolas especializadas.

    Voltando s referncias trazidas anteriormente17, lembrando que foram expostas aqui afirmaes importantes permitindo-nos concluir que as diferenas entre treinamento e compreenso so pequenas quando abordadas no mbito da aprendizagem, precisamos reconhecer que no campo musical, principalmente na literatura, ainda h uma forte rivalidade entre ambas. Infelizmente, isso pode ser

    16 o que discute MARQUES (2006) em Batalhas culturais: concepes de cultura e o popular na perspectiva das teorias crticas em educao.17

    Referncias essas que trouxemos da Psicologia (em educao), por ser uma rea mais prxima j que no nossa inteno ir alm dessas reflexes. Porm, recordamos que os ideais propulsores desse campo tm fundo na Filosofia.

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    bastante prejudicial prpria rea, j que cada corrente vai cultivando uma atitude de oposio outra, vedando, assim, as chances de comunicao entre ambas.

    Snelbecker (1974, p. 455) afirma a existncia de controvrsias entre treinamento e educao no sc. XX, sendo cada uma delas caracterizada de maneiras diferentes. Para ele (e para STAMMERS E PATRICK, 1978) na primeira, os objetivos so prontamente identificados e, na segunda, com sentido mais amplo, a finalidade diz respeito formao mais global do indivduo, para ser um bom cidado e uma pessoa produtiva na sociedade. Entretanto, o autor observa que nos ltimos tempos, essas duas correntes, esto reconhecendo cada vez mais a importncia e as vantagens de uma na outra, ou seja, do aspecto global no treinamento, bem como a de educadores delinearem seus objetivos de forma mensurada, onde possa ser possvel, e tornarem-se conscientes dos princpios de treinamento, as quais podem ser usados em situaes de educao (traduo nossa).

    Tambm nessa tica, Davidoff (2001, p.17) nos revela, por exemplo, que apesar das diferentes escolas de Psicologia existentes tais como Behaviorista, Cognitiva, Humanista, Psicanalista h uma tendncia atual para uma postura mais ecltica, pois [...] embora alguns psiclogos mantenham-se fiis a uma nica perspectiva, muitos formam um composto prprio de idias variadas [...], provocada pela liberdade jamais vista anteriormente.

    certo que essa abertura deve ser tomada como um alerta para que a utilizemos com cuidado. A finalidade no fugir de conceitos tradicionais, criando frmulas milagrosas de ensino. Estarmos abertos para uma reflexo consistente sobre questes envolvidas no cotidiano da Educao Musical, atravs de pesquisas, discusses, e outros meios tarefa de todo educador e, dessa forma, colaboramos para aes futuras.

    Interessante seria pensar o que aconteceria se ambas as linhas buscassem a interconexo e dilogos entre assuntos de interesses mtuos. Ainda seria necessrio optar por essa ou aquela concepo? Haveria maneiras de, no cotidiano da Percepo Musical, abrang-las de forma combinada? Quais as

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    mudanas cabveis para um aproveitamento melhor da fase de formao universitria, no que se refere a essa disciplina?

    So questes norteadoras de nosso trabalho, cujas respostas tentamos desvendar no decorrer de sua realizao. Por isso, aps a devida contextualizao da disciplina e, aprofundando ainda mais nossas informaes sobre a rea, vamos nos deter agora ao movimento das reflexes no mbito das publicaes de nosso pas.

    1.2 A PRODUO BRASILEIRA EM PERCEPO MUSICAL

    O presente texto visa apresentar um breve levantamento da produo acadmica em Percepo Musical desenvolvida em Programas de Ps-Graduao stricto senso brasileiros, realizada, principalmente, no campo da Msica e da Educao. Entretanto, no deixa de observar os trabalhos publicados em peridicos bem como a difuso de materiais didticos relacionados, oriundos da prpria academia, ou de autores que tomam como base uma vivncia pedaggica. Se o que pretendemos focar nesta dissertao o perfil da disciplina em cursos superiores de msica, e, a pesquisa est estritamente ligada ao universo acadmico como um todo, analisar essa produo de fundamental relevncia. Sobretudo, se lembrarmos do princpio de que a universidade sustentada pelo trip ensino-pesquisa-extenso, o que implica na presena intrnseca da didtica, da investigao e da propagao dos saberes caminhando lado a lado.

    preciso lembrar tambm da importncia que a atualizao bibliogrfica tem como alavanca de produo e divulgao dos conhecimentos. Atravs das reflexes trazidas pelos pesquisadores, as quais propiciam gradativamente novas aes educacionais, a literatura musical renova-se continuamente tendo alcances cada vez mais efetivos tambm no campo da Percepo.

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    Dessa forma, em reviso18 bibliogrfica a peridicos (impressos e eletrnicos), sites associados msica e educao musical, alm de portais digitais especficos de dissertaes e teses, verificamos que tal produtividade relativamente recente e demonstra estar em fase de ascenso, sendo ainda precoce apontar diretrizes futuras ou caracterizar seu desenvolvimento.

    1.2.1 Produo acadmica: dissertaes e teses

    Dentre as pesquisas realizadas, o registro mais antigo encontrado de 1975, com a dissertao de Leda Osrio Mrsico intitulada Treinamento especfico da percepo musical em estudantes de msica, seguida, em 1976, de Percepo auditiva musical e alfabetizao, de Vera Regina Pilla Cauduro, ambas defendidas na Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS.

    Na dcada de 80, Neiva Mutti Damas estudou a Aplicao da tcnica de tarefa dirigida em laboratrio como atividade complementar de aprendizagem de intervalos meldicos na disciplina Percepo e Expresso vocal do curso de Educao Artstica, tambm na rea de Educao, mas, da Universidade Federal de Santa Maria UFMS, em 1986.

    Nesse perodo nota-se um crescente movimento impulsionado pela implantao do primeiro Programa de Ps-Graduao em Msica no Brasil, em 1980, na Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ (SOARES, 1983; PEREIRA, 1985). Esse fato contribuiu para que novas e mais questes viessem tona, oportunizando aos msicos a participao efetiva na reflexo e construo de conhecimentos fundamentados na academia, alm de possibilitar uma

    18 Principais materiais consultados: Revistas Abem, Opus (ANPPOM), Em pauta (UFRGS), Per Musi (UFMG),

    Hodie (UFG), Msica (USP), Debates (UNIRIO), Revista eletrnica de musicologia (REM), Cadernos do Colquio (UNIRIO), Anais da ABEM, Anais da ANPPOM, Jornal da Msica, Biblioteca Digital de Teses e Dissertaes (BDTD) ltima atualizao em 13/09/2004 e Banco de teses da CAPES, com ltima atualizao em 01/12/2004.

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    discusso de aspectos da msica antes no abordados na Educao, como por exemplo, a performance.

    Outro fator importante foi o lanamento de peridicos, a fundao de associaes e a consolidao de grandes eventos acadmico-musicais no final da dcada de 80 e incio de 90. Destaque para a fundao da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica ANPPOM em 198819, que trouxe, em 1989, a revista Opus; a publicao da revista Em Pauta, do Programa de Ps-Graduao em Msica da UFRGS, em 1989; a fundao da Associao Brasileira de Educao Musical ABEM, em 1991, a realizao do I Encontro Anual da ABEM em 1992 (no Rio de Janeiro), e a primeira tiragem de sua revista no ano seguinte. Essas foram alavancas essenciais para o progresso das discusses no contexto musical.

    Entretanto, nesses atuais ltimos anos houve uma intensificao nessa produo, tanto na abertura e variedade de temas, como na quantidade de estudos. Comparando dados iniciais, encontramos as j citadas 03 dissertaes de 1975 a 1986, mais 03 trabalhos entre dissertaes e teses de 1990 a 1999, e 05 outros de 2000 a 2004, apresentando, este ltimo, quase o dobro do perodo anterior.

    Para otimizar o levantamento desses dados no meio digital, iniciamos as buscas prioritariamente com percepo musical e msica-percepo, seguidos de treinamento auditivo, leitura meldica, rtmica, solfejo e percepo auditiva. Posteriormente, foram criadas duas categorias para classificao das produes: 1. Obra direta: na qual o estudo tenha foco central em Percepo Musical, e 2. Obra relacionada: aquela que permeia e contribui para o desenvolvimento da rea.

    19Consideramos essa a data de fundao, divulgada no histrico do endereo eletrnico da associao:, pois compartilha detalhes do processo vivido pela equipe fundadora. Dessa forma, esclarece possveis equvocos como o que observamos em Oliveira (1995) quando se refere fundao da ANPPOM como 1987.

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    Durante a anlise, foram lidos resumos de dissertaes e teses, alm de captulos e artigos inteiros. As obras vinculadas a diferentes departamentos, mas combinados msica, tambm foram consideradas, porm, respeitando hierarquicamente a ordem das categorias.

    No quadro a seguir enumeramos as obras cronologicamente, com ano de defesa, ttulo, autor, nvel de titulao e instituio:

    OBRAS DIRETAS

    N Ano Ttulo Autor Nvel Instituio

    01 1975 Treinamento especfico da

    percepo musical em estudantes de msica

    MARSICO, Leda Osrio. Dissertao

    UFRGS Mestrado Educao

    02 1976 Percepo auditiva musical e alfabetizao

    CAUDURO, Vera Regina Pilla. Dissertao

    UFRGS Mestrado Educao

    03 1986

    Aplicao da tcnica de tarefa dirigida em laboratrio

    como atividade complementar de aprendizagem de

    intervalos meldicos na disciplina Percepo e

    Expresso vocal do curso de Educao Artstica

    DAMAS, Neiva Mutti. Dissertao

    UFSM Mestrado Educao

    04 1992

    O processamento de informao de alturas na

    leitura de exerccios meldicos no conhecidos:

    um estudo

    CARNEIRO, Lcia Helena. Dissertao

    UFRGS Mestrado Msica

    05 1995 A imagem aural e a memria

    do discurso meldico: processos de construo

    COSTA, Maria Cristina Lemes de

    Souza. Dissertao UFRGS Mestrado Msica

    06 1995

    Msica e Linguagem verbal: uma anlise comparativa

    entre leitura musical cantada e aspectos selecionados da

    leitura verbal

    GOLDEMBERG, Ricardo. Tese

    UNICAMP Doutorado Educao

    07 2000 A msica nas escolas de

    msica: a linguagem musical sob a tica da percepo

    BERNARDES, Virgnia. Dissertao

    UFMG Mestrado Educao

    08 2003 Avaliao de softwares na

    educao musical: modalidade percepo

    CONSANI, Marciel Aparecido. Dissertao

    UNESP Mestrado Msica

    09 2003 Anlise terico-interpretativa

    da proposta de desenvolvimento de leitura

    musical de Davidson e Scripp

    SANTOS, Regina Antunes Teixeira

    dos. Dissertao UFRGS Mestrado Msica

    10 2003

    Repensando a percepo musical: uma proposta

    atravs da msica popular brasileira

    BHERING, Maria Cristina Vieira. Dissertao

    UNIRIO Mestrado Msica

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    11 2004 Sistemas tutores inteligentes

    conexionistas aplicados Percepo Musical

    BORGES, Clvis de Carvalho. Dissertao

    UFG Mestrado Engenharia Eltrica

    e Computao Fig. 1 Dissertaes e teses em Percepo Musical no Brasil at 2004

    Referindo-se a trabalhos de Ps-Graduao, ao observarmos o quadro acima, podemos verificar que h uma quantidade equiparada de pesquisas defendidas nas reas da Educao20 e da Msica, considerando-se o total de obras. Porm, dividindo-se em perodos de tempo menores, a Educao que obtm os maiores ndices de defesa nas dcadas de 70 a 90, concentrados especialmente na regio Sul do pas, atravs da UFRGS:

    PRODUO DE DISSERTAES E TESES DCADA DE 70 e 80 Universidade rea Quantidade Nvel Total

    UFRGS Educao 2 Dissertao 2 UFSM Educao 1 Dissertao 1

    Fig. 2 Produo acadmica nas dcadas de 70 e 80

    PRODUO DE DISSERTAES E TESES DCADA DE 90 Universidade rea Quantidade Nvel Total

    UFRGS Educao Msica 2 2

    Dissertao Dissertao 4

    UFSM Educao 1 Dissertao 1 UNICAMP Educao 1 Tese 1

    Fig. 3 Produo acadmica na dcada de 90

    Inicialmente, um argumento forte, a inexistncia de Cursos de Ps-Graduao em Msica, enquanto os cursos da Educao, j consolidados, organizavam a fundao da Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao ANPED21, em 1976; outros motivos aparentes seriam as poucas vagas disponveis para discentes nos cursos de msica, alm da possvel preferncia dos pesquisadores por temticas voltadas metodologia, didtica e aplicao de contedos.

    20 Dentre a produo direta em Percepo Musical encontramos apenas uma nica tese, defendida na

    Faculdade de Educao da Unicamp, a de Goldemberg (1995). Porm, todas as nossas tabelas apresentam nos ttulos dissertaes e teses para que fique claro que quando no houver especificao que no h evento nessa categoria e que no deixamos de busc-lo. 21

    Dados obtidos no site da associao: , em 06 de fevereiro de 2007.

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    Segundo Fernandes (1999), dentre as dissertaes e teses sobre msica defendidas na rea da Educao, 43% delas encaixam-se na especialidade Processos Formais e No-Formais da Educao Musical, e afirma que isso se deve grande quantidade de pesquisadores envolvidos no campo de ensino-aprendizagem, alm de esta especialidade abrigar muitos aspectos nesse contexto. Esta afirmao torna-se ainda mais importante, quando sabemos que h grande incidncia de trabalhos sobre Percepo Musical na Educao, revelando assim, uma provvel igualdade de situao para nossa rea, se guardadas as devidas propores.

    Para se ter idia, as demais especialidades existentes no relatrio de Nogueira (1997 apud FERNANDES 1999) ao CNPq sobre Estrutura da rea de Msica, subrea Educao Musical, so as seguintes: (1) Filosofia e Fundamentos da Educao Musical; (2) Processos Formais e No-Formais da Educao Musical (1, 2 e 3 graus); (3) Processos Cognitivos na Educao Musical; (4) Administrao, Currculos e Programas em Educao Musical; (5) Educao Musical Instrumental (Bandas e Orquestras); (6) Educao Musical Coral; (7) Educao Musical Especial.

    Ainda em seu estudo, Fernandes (1999) apresenta uma listagem de 50 trabalhos em Educao Musical defendidos at 1997 nos Cursos de Ps-Graduao em Educao, nos quais 03 deles reapresentamos aqui por tratarem de temtica voltada Percepo Musical: o da pesquisadora Neiva Mutti Damas (de 1986), o do pesquisador Ricardo Goldemberg (de 1995) ambos classificados como obra direta neste texto e o de Zeny Oliveira de Moraes (de 1989), que trazemos como obra relacionada em quadro posterior. Porm, dentre as 50 listadas, no foram citadas 02 pesquisas em Percepo Musical defendidas da dcada de 70: a de Leda Osrio Marsico (de 1975) e Vera Regina Pilla Cauduro (de 1976), desenvolvidas na UFRGS e apresentadas por ns anteriormente.

    J em nosso trabalho, podemos dizer que na produo acadmica em Percepo Musical no apenas nas dcadas de 70 a 90 h uma certa facilidade em correlacionar temas, o que viabiliza interfaces entre subreas ou

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    linhas especficas. Assim, identificamos 3 tpicos de assuntos mais evidentes: 1. Percepo e tecnologia; 2. Percepo, metodologia e didtica; 3. Percepo e cognio.

    Considerando tais aspectos, e, fazendo um paralelo a partir das especialidades referidas, chegamos a esta distribuio:

    TEMTICAS DA PRODUO ACADMICA EM PERCEPO MUSICAL

    Percepo e cognio

    27%

    Percepo e tecnologia

    18%

    Percepo, metodologia e

    didtica55%

    Fig.4 Percentual de temas das dissertaes e teses em Percepo Musical

    De certo modo, pelo destaque e alto percentual de pesquisas no item Percepo, metodologia e didtica (55%), o campo da Percepo Musical acompanha o relato de Fernandes (1999), quando demonstra o elevado interesse pelo contexto ensino-aprendizagem. Porm, boa parte volta-se tambm para os processos cognitivos (27%), sua compreenso e relacionamento com a sensibilidade auditiva musical e, por ltimo, encontramos outra conexo, com a ascendncia das descobertas tecnolgicas (18%).

    Mas, tratando-se da anlise do pblico22, a maioria das pesquisas ou publicaes focalizam adultos ou estudantes de ensino superior, sendo pequena parcela destinada infncia. Esse resultado no surpreendente j que a realidade da disciplina, como conhecida e caracterizada, est nas universidades

    22 Anlise realizada sobre resumos e/ou leitura de obras. Sem pblico especfico foram os trabalhos que no

    caracterizaram explicitamente sua destinao de faixa etria.

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    ou em cursos tcnico profissionalizantes, ou seja, em ambiente de ensino musical formal.

    Dessa forma, a relao percentual do pblico fica disposta assim:

    PBLICO DA PRODUO ACADMICA EM PERCEPO MUSICAL

    Sem pblico especf ico

    27%

    Jovens9%

    Ensino Superior55%

    Crianas9%

    Fig. 5 Percentual de pblico das dissertaes e teses em Percepo Musical

    O Ensino Superior retm mais da metade do conjunto de obras (55%), e, se contarmos que no item Sem pblico especfico (27%) os trabalhos esto relacionados reflexo, anlise, e investigao terica da Percepo, aumentamos para 82% o envolvimento com a academia, restando apenas 18% para pblico jovem (9%) e infantil (9%).

    Tal ndice pode ser interpretado como uma certa valorizao do ensino universitrio sobre outros nveis de aprendizado; ou ainda se pode confirmar a oposio que Fuks (1995, p.29) critica e diz acontecer habitualmente entre os discursos acadmicos (de professores de 3 grau) e o de professores de 1 e 2 graus, no qual subentende-se que a proposta do primeiro refletir sobre as bases filosficas, polticas, metodolgicas, etc., [...] enquanto os professores, principalmente os que trabalham nos primeiros nveis, somente executariam prticas 23. A autora argumenta que prtica e teoria no podem seguir separadas e o que deve permitir a comunicao entre ambas o um novo discurso, o do pesquisador.

    23 Ler mais em FUKS, Rosa. O discurso do silncio. Rio de Janeiro: Enelivros, 1991.

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    Ao fazer novo recorte da produo em Percepo Musical, especialmente dos anos 2000, temos o seguinte:

    PRODUO DE DISSERTAES E TESES 2000 a 2004 Universidade rea Quantidade Nvel Total

    UFMG Educao 1 Dissertao 1 UNESP Msica 1 Dissertao 1 UNIRIO Msica 1 Dissertao 1 UFRGS Msica 1 Dissertao 1

    UFG Engenharia Eltrica e

    Computao 1 Dissertao 1

    Fig. 6 Produo acadmica de 2000 a 2004

    A quantidade de dissertaes em Msica demonstra agora um predomnio de atuao sobre a Educao, podendo-se notar um certo equilbrio de interesse, no mais havendo uma universidade apenas em destaque. Alm disso, outros Estados so representados: da regio Sudeste MG, SP e RJ; e do Centro-Oeste GO.

    Podemos salientar como possveis fatores o aumento elevado de Cursos de Graduao por todo o pas, e, em menor proporo, os de Ps-Graduao. H ainda a abertura de novas linhas de pesquisa como a da Educao Musical e o lanamento de novos peridicos, incentivados pela facilidade da divulgao eletrnica.

    Verifiquemos agora a segunda categoria, Obra relacionada, elaborada para abranger aqueles textos que circundam o estudo da Percepo Musical. Esto dispostos na mesma organizao:

    OBRAS RELACIONADAS N Ano Ttulo Autor Nvel Instituio

    01 1989 Psicognese do som e do

    ritmo luz da teoria do desenvolvimento de Jean Piaget: um estudo de caso

    MORAES, Zeny Oliveira de. Tese

    UFRGS Doutorado Educao

    02 1992

    Msica na escola de primeiro grau: repertrio, aprendizagem e interferncias na execuo

    cantada

    SOUZA, Cssia Virginia Coelho

    de. Dissertao UFRGS Mestrado Msica

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    03 1993 Processo de aquisio da

    leitura da notao do parmetro altura: um estudo

    LOPES, Cntia Thas Morato. Dissertao

    UFRGS Mestrado Msica

    04 1993 A hierarquia perceptiva de

    tons em msica tonal e atonal para ouvintes musicalmente experientes e inexperientes

    FERREIRA, Anise Abreu G.

    Dorange. Tese USP Doutorado Psicologia

    05 1993 Predisposio fsica e dimenso sonora CORTES, Telmo Geraldo de Abreu

    Teixeira. Dissertao UFRJ Mestrado Msica

    06 1998 De msica: contribuies para

    a elaborao de uma nova teoria musical

    TOMAS, Lia Vera. Tese

    PUC/SP Doutorado

    Comunicao e Semitica

    07 2001 O gesto pensante: a proposta

    rtmica polimtrica de Jos Eduardo Gramani

    RODRIGUES, Idioney Carneiro. Dissertao

    USP Mestrado Artes

    08 2001 Para uma aprendizagem musical integrada BREIM, Ricardo. Dissertao

    USP Mestrado Lingstica

    09 2001 Msica: entre o audvel e o visvel

    CAZNOK, Yara Borges. Tese

    USP Doutorado Psicologia

    10 2002

    Assimetria funcional dos hemisfrios cerebrais na

    percepo de timbre, intensidade ou altura em

    contexto musical

    OLIVEIRA, Jos Zula de. Tese

    USP Doutorado Psicologia

    11 2004 Efeito da prtica musical no reconhecimento da fala no

    silncio e no rudo SONCINI, Fabiana. Dissertao

    UFSM Mestrado Fonoaudiologia

    Fig. 7 Produo acadmica das obras relacionadas Percepo

    Em breve anlise do quadro acima, dentre os trabalhos de Ps-Graduao, possvel verificar: muitas reas contribuindo no contexto da Percepo. Alm da Msica, (que

    tem destaque de 1989 a 1998) ressaltamos a Educao, a Psicologia, a Comunicao e Semitica, as Artes, a Lingstica, e a Fonoaudiologia, que ganham maior espao nos anos 2000;

    o nmero de teses de doutorado est muito mais prxima ao das dissertaes, diferentemente do panorama anterior (Fig.1, p.31). Talvez isso se deva pela diversidade das reas de origem, gerando maiores probabilidades de estudos, alm de que, estes cursos tm maior quantidade de ps-graduandos bem como maior produo;

    das regies brasileiras, a pr