O Urbanismo Como Modo de Vida Louis Wirth

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o URBANISMO COMO MODO DE VIDA * LoUIS WIRTH Tradução de MARINA CORRÊA TREUHERZ I.. A CIDADE E A CIVILIZAÇÃOCONTEMPORÂNEAS Da mesma forma como o início da civilização ocidental é assinalado pela fixação permanente de povos anteriormente 'nômades na bacia do Mediterrâneo, assim também o início do que pode ser considerado marcante~ente moderno em n?ssa civilização é caracterizado pelo crescimento das grandes CIda- des. Em nenhum lugar do mundo a humanidade se afastou mais da natureza orgânica do que sob as condições de vida características das grandes c.dades. O mundo contemporâneo já não mais apresenta o quadro de pequeno~ ,~upos humanos isolados, espalhados através de u~. vasto terntor:o, ~o~o Sum- ner descreveu a sociedade primitiva. 1 A caractenstlc~ mar- cante do modo de vida do homem na idade moderna e a sua concentração em agregados s' gantescos em torno dos q~ais ~stá aglomerado um número menor de centros e. ~e. on~e irradiam as idéias e as práticas que chamamos de civilização. , O grau em que o mundo contemporâneopo.derá ser cha- mado de "urbano" não é medido inteira ou pre~lsamente ~la proporção da população total que habita. as c:~ades. As In- fluências que as cidades exercem sobre a VIda social do home,:n são maiores do que poderia indicar a proporção da populaçao "Urbanism as Way of Life", The American Journal of, Soc~o- .Iogy, vol. XLIV, n? 1, Julho de 1938. Copyrigth © by The Universíty -of Chicago Press. 1 William Graham Sumner, Folkways (Boston, 1906). p. 12. O URBANISMO COMO MODO DE VIDA 91 urbana, pois a cidade não somente é, em graus sempre cres- centes, a moradia e o local de trabalho do homem moderno, como é o centro in.ciador e controlador da VIda econômica, política e cultural que atraiu as localidades mais remotas do mundo para dentro' de sua órbita e interligou as diversas áreas. os diversos povos e as diversas atividades num universo, O crescimento das cidades e a urbanização do mundo é um dos fatos mais notáveis dos tempos modernos. Apesar de ser impossível precisar-se qual a proporção do total estimado da população mundial de aproximadamente 1.80J.000.000 que é urbana, 69,2% do total da população dos países que fazem distinção entre áreas urbanas e rurais são urbanos, 2 Além disso, considerando o fato da população mundial não ser dis- tribuída uniformemente e do crescimento das cidades não ser mu'to desenvolvido em alguns dos países que só recentemente foram alcançados pela industrialização, essa média superestima a extensão à qual chegou a concentração urbana nos países onde o impacto da revolução industrial foi mais forte e de data menos recente. Essa mudança de uma sociedade rural para uma predominantemente urbana que se verificou no espaço de tempo de uma só geração em áreas industrializadas como n05 EUA e no Japão foi acompanhada por alterações profundas e em praticamente todas as fases da vida social. São essas modificações e suas ramificações que sol.citam a atenção do sociólogo pará o estudo das diferenças entre o modo de vida rural e urbano. O exame dessa questão é um pré-requisito indispensável para a compreensão e o possível domínio de al- guns dos problemas contemporâneos ma's cruciais da vida social, pois provavelmente fornecerá uma das perspectivas mais reveladoras para a compreensão das alterações que se pro- cessam na natureza humana e na ordem social. g - Já que a cidade é o produto do crescimento e não da criação instantânea, deve-se esperar que as influências a~e. ela exerce sobre os modos de vida não sejam capazes de eliminar completamente os modos de associação humana que predo- 2 S, V. Pearson, The Growth and Distribution of Population (Nova York, 1935), p. 211. a Embora a vida rural nos EUA tivesse por um longo período de tempo sido sujeita a considerável interesse por parte dos órgão~ governamentais, o caso mais notável de um relatório gl~balizante foi aquele submetido pela Country Lije Commission ao presidente Theo- dore Roosevelt em 1909, valendo a pena notar que nenhuma consulta oficial igualmente ampla sobre a vida urbana foi iniciada até o esta- belecimento do Research Committee on Urbanism of the National Resources Committee. (Cf. Our Cities: Their Role in the National Economy; Washington, Government Printing Office, 1937.)

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o URBANISMO COMO MODO DE VIDA *

LoUIS WIRTH

Tradução de MARINA CORRÊA TREUHERZ

I.. A CIDADE E A CIVILIZAÇÃOCONTEMPORÂNEAS

Da mesma forma como o início da civilização ocidentalé assinalado pela fixação permanente de povos anteriormente'nômades na bacia do Mediterrâneo, assim também o início doque pode ser considerado marcante~ente moderno em n?ssacivilização é caracterizado pelo crescimento das grandes CIda-des. Em nenhum lugar do mundo a humanidade se afastoumais da natureza orgânica do que sob as condições de vidacaracterísticas das grandes c.dades. O mundo contemporâneojá não mais apresenta o quadro de pequeno~ ,~upos humanosisolados, espalhados através de u~. vasto terntor:o, ~o~o Sum-ner descreveu a sociedade primitiva. 1 A caractenstlc~ mar-cante do modo de vida do homem na idade moderna e a suaconcentração em agregados s'gantescos em torno dos q~ais ~stáaglomerado um número menor de centros e. ~e. on~e irradiamas idéias e as práticas que chamamos de civilização. ,

O grau em que o mundo contemporâneopo.derá ser cha-mado de "urbano" não é medido inteira ou pre~lsamente ~laproporção da população total que habita. as c:~ades. As In-fluências que as cidades exercem sobre a VIda social do home,:nsão maiores do que poderia indicar a proporção da populaçao

• "Urbanism as Way of Life", The American Journal of, Soc~o-.Iogy, vol. XLIV, n? 1, Julho de 1938. Copyrigth © by The Universíty-of Chicago Press.

1 William Graham Sumner, Folkways (Boston, 1906). p. 12.

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urbana, pois a cidade não somente é, em graus sempre cres-centes, a moradia e o local de trabalho do homem moderno,como é o centro in.ciador e controlador da VIda econômica,política e cultural que atraiu as localidades mais remotas domundo para dentro' de sua órbita e interligou as diversas áreas.os diversos povos e as diversas atividades num universo,

O crescimento das cidades e a urbanização do mundo éum dos fatos mais notáveis dos tempos modernos. Apesar deser impossível precisar-se qual a proporção do total estimadoda população mundial de aproximadamente 1.80J.000.000 queé urbana, 69,2% do total da população dos países que fazemdistinção entre áreas urbanas e rurais são urbanos, 2 Alémdisso, considerando o fato da população mundial não ser dis-tribuída uniformemente e do crescimento das cidades não sermu'to desenvolvido em alguns dos países que só recentementeforam alcançados pela industrialização, essa média superestimaa extensão à qual chegou a concentração urbana nos paísesonde o impacto da revolução industrial foi mais forte e de datamenos recente. Essa mudança de uma sociedade rural parauma predominantemente urbana que se verificou no espaço detempo de uma só geração em áreas industrializadas como n05EUA e no Japão foi acompanhada por alterações profundase em praticamente todas as fases da vida social. São essasmodificações e suas ramificações que sol.citam a atenção dosociólogo pará o estudo das diferenças entre o modo de vidarural e urbano. O exame dessa questão é um pré-requisitoindispensável para a compreensão e o possível domínio de al-guns dos problemas contemporâneos ma's cruciais da vidasocial, pois provavelmente fornecerá uma das perspectivas maisreveladoras para a compreensão das alterações que se pro-cessam na natureza humana e na ordem social. g

- Já que a cidade é o produto do crescimento e não dacriação instantânea, deve-se esperar que as influências a~e. elaexerce sobre os modos de vida não sejam capazes de eliminarcompletamente os modos de associação humana que predo-

2 S, V. Pearson, The Growth and Distribution of Population(Nova York, 1935), p. 211.

a Embora a vida rural nos EUA tivesse por um longo períodode tempo sido sujeita a considerável interesse por parte dos órgão~governamentais, o caso mais notável de um relatório gl~balizante foiaquele submetido pela Country Lije Commission ao presidente Theo-dore Roosevelt em 1909, valendo a pena notar que nenhuma consultaoficial igualmente ampla sobre a vida urbana foi iniciada até o esta-belecimento do Research Committee on Urbanism of the NationalResources Committee. (Cf. Our Cities: Their Role in the NationalEconomy; Washington, Government Printing Office, 1937.)

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o URBANISMO COMO MODO DE VIDA 9392 o FENÔMENO URBANQ

minavam anteriormente. Em maior ou menor escala, portanto,a nossa vida social tem a marca de uma sociedade anterior,de iolk, possuindo os modos característicos da fazenda, ?aherdade e da vila. A influência histórica é reforçada pela cir-cunstância da população da cidade em si ser recrutada, emlarga escala, do campo, onde persiste um modo de vida remi-niscente dessa forma anterior de existência. Conseqüentementenão devemos esperar encontrar variação abrupta e descontínuaentre tipos de personalidades urbana e rural. A cidade e ocampo podem ser encarados como dois pólos em. relação. aos,quais todos os aglomerados humanos tendem a se dispor. Visua-lizando-se a sociedade urbano-industrial e a rural de [olk comotipos ideais de comunidades, poderemos obter uma perspectivapara análise de modelos básicos de associação humana con-forme aparecem na civilização contemporânea.

11. UMA DEFINIÇÃO SOCIOLÓGICA DA CIDADE

corno único critério. Além do mais, não é difícil demonstrar-seque comunidades cujo número de habitantes se acha abaixodaquele arbitrariamente estabelecido, compreendido dentro daesfera de influência de centros metropolitanos, poderão reivin- 'dicar o reconhecimento como comunidades urbanas com muito.mais razão do que outras maiores, com existência rna.s isolada,numa área predominantemente rural. Finalmente, deveria serreconhecido que as definições do recenseamento são indevida-mente influenciadas pelo fato de que a c.dade, em termos-estatísticos, é sempre um conceito administrativo no qual oslimites legais desempenham um papel decisivo no delineamentoda área urbana. Em nenhum lugar nota-se mais claramente essefato do que nas concentrações de população nas periferias degrandes centros metropolitanos que cruzam limites administra--tivos arbitrários da cidade, do município, do estado e da nação.

Enquanto identificarmos o urbanismo com a entidade fí--sica da cidade, encarando-o meramente como rigidamente deli-mitado no -espaço, e procedermos como se as características'urbanas cessassem abruptamente de se manifestarem além dalinha fronteiriça arbitrária, provavelmente não chegaremos anenhum conceito adequado de urbanismo como um modo dev.da. Os desenvolvimentos tecnológicos no transporte e na co-municação, que virtualmente assinalam uma nova época na his-'tória humana, acentuaram o papel das cidades como elementos,dominantes na nossa civilização e estenderam ,enormemente omodo de vida urbano para além dos limites da própria cidade.

A predominância da cidade, especialmente da grande ci--dade, poderá ser encarada como uma conseqüência da con--centração, em cidades, de instalações e atividades industriais e-comerciais, financeiras e administrativas, de linhas de trans-porte e comuncação e de equipamento cultural e recreativo-como a imprensa, estações de rádio, teatros, bibliotecas, museus,-salas de concerto, óperas, -hospitais, instituições educacionaissuperiores, centros de pesquisa e publicação, organizações pro-fissionais e instituições religiosas, e beneficentes. Não fossepela atração e pelas sugestões que a cidade exerce sobre a~ulação rural através desses instrumentos, as diferenças entreos modos de vida rural e urbano seriam ainda maiores do que-são. A urbanização já não denota' meramente o processo pelo, qual as pessoas são atraídas a uma localidade intitulada cidadee incorporadas em seu sistema de vida.' Ela se refere também

jàquela acentuação cumulativa da,s características oue distinguemo modo de vida associado com o crescimento das c'dades e,finalmente, com a,> mudanças de sentido dos modos de vida

. reconhecidos como urbanos que são aparentes entre os povos,

Apesar da importância preponderante da c'dade em nossacivilização, nosso conhecimento da natureza do urbanismo edo processo de urbanização é insuficiente. Várias tentativasforam na verdade feitas para isolar as características que dis-tinguem a vida urbana. Geógrafos, historiadores, cientistas, eco-nomistas e cientistas políticos incorporaram os pontos de vistadas suas respectivas disc'plínas em definições diferentes dacidade. Embora de nenhum modo se pretenda superá-Ias, li!

elaboração SOCiológica de uma abordagem da cidade poderácasualmente servir para chamar a atenção para as inter-re-lações entre elas existentes, por meio da ênfase dada às carac-terísticas peculiares da cidade como uma determinada formada associação humana. Uma definição sociologicamente signi-ficativa do que seja cidade procura selecionar aoueles e'ementosdo urban'smo que a marcam como um modo distinto de vidados agrupamentos humanos.

Caracterizar uma comunidade como sendo urbana, ape-nas tomando como base o tamanho" é obviamente arbitrário.]j difícil defender a presente definição do recenseamento quedesigna como urbana uma comunidade de 2.500 ou mais ha-bitantes e todas as outras como rurais. A situação seria idên-tica se o critério fosse de uma população de 4.000, 8.000,10.000, 25.0800 ou 100.000, pois apesar de nesse último casapodermos sentir que estávamos mais proximamente lidando comum agregado urbano do que seria o caso em comunidades detamanho menor, nenhuma def'nição de urbanismo poderá serconsiderada. satisfatória apenas se considerando os números.

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ejam eles quais forem, que tenham ficado sob o encantamentodas influências que a cidade exerce por meio do poder de suasinstituições e personalidades, através dos meios de comunica-ção e transporte.

As deficiências que dizem respeito ao número de habi-tantes como critério de urbanismo se aplicam na sua maioriatambém à densidade de população. Quer aceitemos a densidadede 10.000 pessoas por milha quadrada, conforme propôs MarkJefferson,4 ou 1.000 que Wilcox 5 preferiu encarar como cri-tério de grupamentos urbanos, está claro que, a não ser que adensidade seja correlacionada com <t'faracterísticas sociais ex-pressivas, ela poderá servir somente como uma base arbitráriana diferenciação entre comunidades urbanas e rurais. Consi-derando que o nosso recenseamento enumera a população no-turna em vez da população diurna de uma área, o local devida urbana mais intensa - o centro da cidade - geralmenteapresenta baixa densidade de população, e as áreas industriaise comerciais da cidade, que contêm as atividades econômicasmais características da sociedade urbana, dificilmente seriamverdade.ramente urbanas em qualquer parte, se a densidadefosse interpretada literalmente como um símbolo de urbanismo,Entretanto, o .fato de que a comunidade urbana se' distinguepor um grande agregado e uma concentração de população re-lativamente densa, dificilmente poderá ser ignorado ao se de-finir a cidade. Mas esses critérios devem ser encarados comorelativos ao contexto cultural geral no qual as cidades surgeme existem, e somente são sociologicamente relevantes até o pontoem que operam como fatores condicionantes da vida social.

As mesmas críticas se aplicam a tais critérios como aprofissão dos habitantes, a existência de certas instalações, ins-tituições e formas. de organização política. A questão não resideem se saber se as 'cidades na nossa civilização ou em outraspossuem esses traços característicos, e sim em apurar sua ca-pacidade de moldar o caráter da vida social à sua forma espe-cificamente urbana. Além disso, não poderemos formular umadefinição fértil se esquecermos as grandes variações entre ascidades. Por meio de uma tipologia de cidades baseada notamanho, localização, idade e função, tal como tentamos esta-belecer em nosso recente relatório para o National Research

• 4 "The Anthropogeography of Some Great Cities", Bull. Ame-rtcan Geographical Society, XLI (1909), 537-66.

5 Walter F. Wilcox, "A Definition of City in Terins of Density",em E. W, Burgess, The Urban Community (Chicago, 1926), p. 119.

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Committee, 6 achamos possível delinear e classificar comuni-dades urbanas variando de pequenas cidades 'que lutam parase manter até os prósperos centros metropolitanos mundiais;de pequenas localidades comerciais isoladas, situadas no meiode regiões agrícolas, a prósperos portos mundiais de movimentoc~)!?ercial e industrial. Diferenças como essas parecem ser cru-ciais porque as características e influências sociais dessas dife-rentes "cidades" variam grandemente.

Uma definição útil de urbanismo não deveria somentedenotar as características essenciais que todas as cidades -pelo menos as de nossas cultura - têm em comum mas de-yeria ~[estar-se à descoberta das suas variações. U~a cidadeindustrial .diferirá signi~icativamente, em seus aspectos sociais,de ~ma clda?e c?~~rcIaI, de mineração, pesqueira, de estaçãode aguas~.umversítána ou de uma capital. Uma cidade de umasó indúsfda apresentará séries ,diferentes de características deuma que possua uma multiplicidade de indústrias, assim como?correr.á entre uma cidade industrialmente' equilibrada e umamdustnalmente desequilibrada; um subúrbio e uma cidade-saté-lite; um subúrbio residencial e um subúrbio industrial' umacidade dentro de uma região metropolitana e uma situada foradela; uma cidade velha e uma nova; uma cidade sulina e umada Nova Inglaterra; uma cidade do Centro-Oeste e uma dacosta do Pacífico; uma cidade em crescimento uma estável eoutra em extinção. '

Uma definição sociológica deve, obviamente, ser suficien-temente inclusiva para conter quaisquer características essen-ciais que estes diferentes tipos de cidades têm em comum comoentidades sociais, mas, obviamente, não poderá ser tão deta-lhada a ponto de considerar todas as variáveis implícitas nasmúltiplas classes delineadas acima. Presumivelmente algumasdas características das cidades são mais expressivas do queoutras no condicionamento da natureza da vida urbana, e po-demos esperar que os fatores predominantes da cena urbano-social variem de acordo com o tamanho, densidade e diferençasno tipo funcional das cidades. Além do mais, podemos inferirque a vida rural levará a marca do urbanismo, à medida quesofre a influência das cidades através de contato e comun'cação,Poderá servir de contribuição para o esclarecimento das decla-rações que se seguem"..repetirmos que, embora o local do urba-nismo como um modo de vida deva, evidentemente, sei achadocaracteristicamente em localidades que preenchem os recu'sitosque estabeleceremos para a definição de cidade, o urbanismo

~ Op. cit., p. 8.

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não está confinado a tais localidades, mas manifesta-se em grausvariáveis onde que; que cheguem as influências das cidades.

Embora o urbanismo, ou aquele complexo de caracteresque formam o modo de vida peculiar das cidades, e a urba-nização, que denota o desenvolvimento e as extensões dessesfatores, não sejam encontrados exclusivamente em grupamentosconsiderados como cidades no seu senso físico e demográfico,encontram, não obstante, sua expressão mais pronunciadanessas áreas, especialmente nas CIdades metropolitanas. Naformulação da definição de cidade, é necessário sermos cau-telosos, a fim de evitarmos que identifiquemos o urbanismocomo modo de vida com quaisquer influências culturais localou historicamente condicionadas, as quais, embora possam afe-ta; expressivamente o caráter específico da comunidade, nãosão os determinantes essenciais do seu caráter como cidade.

f: de capital importância chamar-se a atenção para o pe-rigo de se confundir urbanismo com industrialismo e capita-.lismo moderno. O surgimento de cidades no mundo moderno \1

sem dúvida não é independente do aparecimento da tecnología J

moderna da máquina automotriz, da produção em massa e da;empresa capitalista. Todavia, por diferentes que possam ter!sid.o as c!dad~ de épocas antc:nores pré-industrial e pré-capí-jtalista, nao deixavam de ser CIdades. .

t Para fins sociológicos, uma cidade pode ser definida comoi um núcleo relativamente grande, denso e permanente, de indi-~ víduos socialmente heterogêneos. Com base nos postulados que

essa definição tão pequena sugere, poderá ser formulada umateoria sob.e urbanismo à luz das conhecimentos existentes,relativos a grupos sociais.

IH. UMA TEORIA SOBRE URBANISMO

Dentre a rica literatura sobre a cidade, procuramos emvão uma teoria sobre urbanismo' a qual apresente de formasistemática o conhecimento disponível referente à cidade comoentidade social. Temos, na verdade, excelentes formulações deteorias sobre problemas especiais, como por exemplo o cresci-mento da cidade encarado como uma tendência h'stôrica ecomo um processo recorrente," dispomos de farta literaturaque apresenta insights de importância sociológica e estudos em-

7 . Vide Robert E; Park, Emest W. Burgess et al., The City(Chicago, 1925), esp. caps. 11 e lU; Wemer Sombart, "StadtíscheSiedlung, Stadt", Hand wbrterbuch der Soziologie, ed. Alfred Vierkandt(Stuttgart, 1931); vide também bibliografia.

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píricos oferecendo informações detalhadas sobre uma variedadede aspectos particulares da v.da urbana. Entretanto, apesar damultiplicação da pesquisa e dos livros de texto sobre a cidadenão temos até agora um corpo extenso de hipóteses sucintasq~e. possam ser ~erivadas de um conjunto de postulados im-plicitamente contidos numa definição sociológica da cidade ede nosso conhecimento sociológico geral, que possa ser com-pro.Yado atrav~s da pesquisa científica. As obras que temos quemais se aproximam de uma teoria sistemática sobre urbanismopoderão ser achadas num penetrante ensaio intitulado "DieStadt", por Max Weber, x e num memorável folheto por RobertE. Park sobre The City; Suggestions for lhe Investigation oi Hu-man Behavior in the Urban Environment. 9 Porém, mesmo essasvaliosas contribuições estão longe de constituírem um arcabouçoordenado e coerente-de teoria sobre a qual possa ser desenvol-vida eficazmente a pesquisa.

Nas páginas que se seguem, tentaremos expor um númerolimitado de características que identifiquem a cidade. Dadasessas características, tentaremos indicar que conseqüências ououtras características delas se originam à luz da teoria socio-lógica geral e da pesquisa empírica. Dessa maneira esperamoschegar às proposições essenciais de uma teoria sobre urbanismo.Algumas dessas proposições podem ser apoiadas por um con-siderável corpo de materiais de pesquisa já existente; , outraspoderão ser aceitas como hipóteses para as quais existe certaquantidade de provas presumíveis, porém para as quais serianecessária ainda uma verificação mais ampla e exata. Pelomenos, tal procedimento, espera-se, mostrará que conheci-~e~tos sistemáticos temos agora sobre a cidade e quais ashipóteses cruciais e frutíferas para pesquisa futura.

O problema central do sociólogo da cidade é descobriras formas de ação e organização social que emergem em gru-pamentos compactos, relativamente permanentes, de grandenúmero de indivíduos heterogêneos. Devemos também inferirque o u.banismo assumirá a sua forma mais característica eextrema à medida que estiverem presentes as condições Que lhesão congruentes. Assim, quanto mais densamente habitada,quanto mais heterogênea for a comunidade, tanto mais acen-tuadas serão as características associadas ao urbanismo. De-ve-se reconhecer, contudo, que no mundo social as práticas einstitu.ções poderão ser aceitas e continuadas por razões dife-

8 Wirtschait und Gesellscliajt (Tübingen, 1925), Parte lI, capoVIII, pp. 514-601.

9 Park, Burgess, et ai., op. cit., capo I.

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rentes daquelas que inicialmente lhes deram origem e que, con-seqüentemente, o modo de vida u.bano poderá ser perpetuadosob condições bem diferentes daquelas necessárias para a suaorigem.

Devemos a esta altura apresentar alguma justificativa paraa escolha dos termos principais que formam a nossa definiçãode cidade. Foi feita a tentativa de fazê-Ia a mais inclusiva eao mesmo tempo a mais significativa possível, sem, no entanto,sobrecarregá-Ia com suposições desnecessárias. D'zer que sãonecessários grandes números para constituir uma cidade, sig-nifica, evidentemente, grandes números em relação a uma áreade ocupação restrita ou de alta densidade. Não obstante, háboas razões para se tratar grandes números e densidade comofatores separados, po's cada um deles pode estar ligado a con-seqüências sociais signíf'cativamente diferentes. Do mesmoI~odo, a necessidade de se acrescentar homogeneidade à quan-tidade de população, como um critério necessário e distinto dourban'smo, poderia ser posta em dúvida, porque é de se espe-rar que a amplitude de diferenças cresça proporcionalmente àquantidade. Em sua defesa, poderíamos dizer que a cidadeapresenta uma espécie de grau de heterogeneidade de popula-ção que não pode ser de responsabilidade exclusiva da lei dosgrandes números ou não pode ser representada adequadamentepor meio da curva normal de d'stribuição. Como a populaçãoda cidade não se reproduz a si mesma, ela tem que recrutarseusm'grantes de outras cidades, do interior e - até recen-temente nos Estados Unidos - de outros países. A cidade temsido, dessa forma, o 'cadinhú das raças. dos povos e das cul- 'turas e o mais favorável campo de Criação de novos híbridosbiológicos e culturais. Ela não só tolerou como recompensoudiferenças individuais. Reuniu povos dos confins da terra porqueeles são diferentes e, por isso, úteis uns aos outros e não porquesejam homogêneos e de mesma mentalidade. 10

Há uma. quantidade de proposições sociológicas referentesà relação entre: a) quantidade de população; b) densidadeda população; c) heterogeneidade de habitantes e vida grupal,que podem ser formuladas com base na observação e pesquisa.

10 Poderá parecer necessário justificar a inclusão do termo "per-"manente" na definição. Nossa falha em dar uma justificação extensivapara esta característica do urbano reside no fato óbvio de que, a nãoser que os grupamento humanos se fixem mais ou menos permanen-temente numa localidade, as características da vida urbana não podemsurgir, e, concomitantemente, a vida de grandes números de indivíduosheterogêneos reunidos sob condições densas não é possível sem o de-senvolvimento de uma estrutura tecnológica.

o URBANISMO COMO MODO DE VIDA 99Tamanho do Agregado Populacional

Desde a Política de Aristóteles, 11 tem-se reconhecido queo aumento do número de habitantes de uma comunidade aci-ma de certo limite afetará as relações entre eles e o caráterda cidade. Grandes números envolvem, como já foi dito, umaquantidade maior de variações individuais. Além disso, quanto~aior o número de indivíduos participando de um processo deinteração, tanto maior a diferenciação potencial entre eles. Éde se esperar que os traços pessoais, as ocupações, a v.da cul-tural e as idéias dos membros de uma comunidade urbanapoderão, por isso, variar entre pólos mais amplamente sepa-rados do que aqueles de habitantes rurais.

Pode-se inferir, facilmente, que tais variações dão origemà separação espacial de indivíduos de acordo com a cor' he-rança étnica, status econômico e social, gostos e preferências,Os vínculos de parentesco, de urbanidade e os sentimentos ca-racteríst.cos da vida em conjunto durante gerações sob umatradição de folk comum tenderão a desaparecer e, no melhordos casos, tenderão a ser fracos num agregado cujos membros

11 Vide esp. VII. 4. 4-14. Traduzido por B. Jowet, do qual a se-guinte passagem pode ser citada:

"Existe um limite para o tamanho dos Estados, assim como háum limite para outras coisas, plantas, animais, implementos; pois ne-nhum destes conserva seu poder natural quando são demasiadamentegrandes ou demasiadamente pequenos, mas ou e.es perdem totalmentesua natureza ou são estragados... (Um) Estado, quando compostode muito poucos, não é como um Estado deveria ser, auto-suficiente;quando composto de demais, apesar de auto-suficiente em todas asmeras necessidades, é uma nação e não um Estado, sendo praticamenteincapaz de Governo constitucional. Pois quem pode ser o general deuma tão vasta multiplicidade, ou quem o arauto, a não ser que eletenha a voz de um Estentor?

"Um Estado somente' começa a existir quando alcança uma po-pulação que seja suficiente para uma boa vida na comunidade política:poderá, na verdade, exceder esse número. Mas como eu dizia, devehaver um limite. O que deve ser o limite poderá facilmente s~r deter-minado através da experiência. Porque tanto governantes como gover-nados têm deveres a cumprir; as funções especiais de um governantesão comandar e julgar. Mas se são os cidadãos de uma comunidadeque devem julgar e distribuir cargos conforme os méritos, então devemconhecer os caracteres uns dos outros; enquanto não possuírem esseconhecimento, tanto a eleição aos cargos como as decisões nas causaslegais falharão. Quando a população é muito grande, ter-se-á estabe-lecido manifestamente ao acaso, o que não deveria ocorrer. Alémdisso, num Estado excessivamente popu.oso, os estrangeiros e os foras-teiros logo adquirirão os direitos de cidadania, pois quem os desco-brirá? Claramente, então, o melhor limite para uma população de umEstado é o maior número suficiente para os propósitos da vida e podeser verificado num relance. E basta no que concerne ao tamanho dacidade."

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apresentam origens e formação tão diversas. Sob tais circuns--tâncias, a concorrência e os mecanismos formais de controlefornecem os substantivos para os vínculos de solidariedadenos qua.s se confia para se manter unida uma sociedade .defolk.

O aumento do número de habitantes de uma comunidadepara mais de algumas centenas obrigatoriamente limitará a pos-sibilidade de cada um dos membros da comunidade conhecerpessoalmente todos os outros. Max Weber, reconhecend~ osign.ficado social desse fato, salientou que, do ponto de vistasociológico, os grandes números de habitantes e a densidadedo agrupamento significam que as relações de conhecimentopessoal mútuo entre os habitantes, inerentes a uma viz.nhança,estão faltando. 1~ O aumento do número, pois, envolve umamodificação no caráter das relações sociais.

Conforme salienta Simmel:"(Se) o incessante contato externo de uma quantidade de

pessoas na cidade devesse ser correspondido pelo ~esmo númerode reações interiores como numa pequena vila, na qual conhe-cemos quase todas as pessoas que encontramos e com cadauma das quais temos uma relação positiva, estaríamos comple-tamente atomizados internamente e cairíamos numa condiçãomental indescritível". 13 A multiplicação de pessoas num estadode interação sob condições que tornam impossível seu contatocomo personalidades completas produz aquela segmentação derelações humanas que tem sido utilizada às vezes por estudiososda vida mental das cidades como uma explicação do caráter"esquizóide" da personalidade urbana. Isso não quer dizer queos habitantes. urbanos têm menor numero de conhecimentosdo que os habitantes rurais, pois o inverso pode ser realmenteverdadeiro; quer dizer, na verdade, que, em relação ao númerode pessoas que eles vêem e com quem se encontram sistema-tícamente no transcurso da vida diária, eles conhecem umaproporção menor e com estes mantêm relações menos inten-sivas.

Caracteristicamente, os cidadãos encontram-se uns aosoutros em papéis bastante segmentários. Dependem, certamente,de ma's pessoas para as satisfações de suas necessidades davida do que a população rural e por isso são associados a umnúmero maior de grupos organizados, mas dependem menosde pessoas determinadas, e sua dependência de outros confi-

:l2 Op. cit., p. 514.18 Georg Simmel, "Die Grosstãdte und das Geisteslehen". Die

Grosstãdt, ed. Theodor Petermann (Dresden, 1903), pp. 187-206.

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na-se a um aspecto altamente fracionado da esfera de ativi-dades dos outros. Isso é essencialmente o que se quer dizerquando se afirma que a cidade se caracteriza mais por contatossecundários do que primários. Os contatos da cidade podemna verdade ser face a face, mas são, não obstante, impessoais,supe.fic.ais, transitórios e segmentá rios. A reserva, a indife-rença e o ar blasé que os habitantes da cidade manifestamem suas relações podem, pois, ser encarados como instrumen-tos para se imunizarem contra exigências pessoais e expecta-tivas de outros.

O superf.cialismo, o anonimato, e o caráter transitório dasrelações urbano-sociais explicam, também, a sotisticação e aracíonalidade geralmente atribuídas ao habitante da cidade.Nossos conhecidos têm a tendência de manter uma relação deutilidade para nós, no sentido de que o papel que cada umdesempenha em nossa vida é sobejamente encarado com ummeio para alcançar os fins desejados. Embora, portanto, o in- \divíduo ganhe, por um lado, certo grau de emancipação ouliberdade de controles pessoais e emocionais de grupos íntimos,perde, por outro lado, a espontânea auto-expressão, a moral,e o senso de partic.pação, implícitos na vida numa sociedadeintegrada. Isso constitui essencialmente o estado de ano mia oude vazio social a que se refere Durkheim ao tentar explicar asvárias formas de desorganização em soc.edade tecnológica.

O caráter segmentário e as feições utilitaristas das rela-ções interpessoais na cidade encontram sua expressão instítu-cional na proliferação de trabalhos especializados que vemosna sua forma mais desenvolvida entre as profissões.

As operações do nexo pecunlário conduzem a relaçõespredatórias, que tendem a obstruir o funcionamento eficienteda ordem social a não ser que sejam fiscalizadas por códigosprofissiona.s e ética ocupacional. O estímulo à utilidade e efi-ciência sugere a adaptabilidade do mecanismo associativo paraa organização de empresas nas quais os indivíduos só se podemengajar em grupos. A vantagem que a companhia tem sobreo empresário individual e a empresa composta de dois sóciosno mundo urbano-industrial deriva não só da possibilidade queela oferece de centralizar os recursos de milhares de indivíduosou do privilégio legal da responsabilidade limitada e sucessãoperpétua, mas do fato de que a companhia é uma entidadeideal.

A especialização dos indivíduos especialmente em suasocupações só pode continuar, como salientou Adam Smith, combase num mercado ampliado, o que, por sua vez, acentua adivisão do trabalho. Esse mercado ampliado é, somente em

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parte, suprido pelo interior; em grande parte ele é encontradoentre os grandes números que _a própria cidade contém. A do-minância da cidade, sobre o interior que a cerca, torna-seexplicável em termos da divisão do trabalho promovida e oca-sionada pela cidade. O extremo grau de interdependência e oequilíbrio instável da vida urbana estão intimamente associadoscom a divisão do trabalho e a especialização das ocupações.Essa interdependência e instabilidade é aumentada pela tendên-cia de-cada cidade em se especializar naquelas funções que lhesão mais vantajosas.

Numa comunidade composta de grande número de indi-víduos que não se conhecem intimamente e cujo número éexcessivo para se reunirem num só lugar, torna-se necessárioefetuar a comunicação por meios indiretos e articular interessesindiv.duais por um processo de delegação. Especificamente nacidade, os interesses são efetivados através de representação.O indivíduo pouco conta, mas a voz do representante é ouvidacom uma deferência proporcional ao número de indivíduosem nome dos qua's ele fala. Embora essa caracterização deurbanismo na medida em que deriva de grandes números nãoexaure de forma alguma as inferências sociológicas que pode-riam ser tiradas do nosso conhecimento das relações do ta-manho de um grupo com o comportamento característico dosmembros, para não nos alongarmos, as afirmações feitas po-derão servir para exemplificar a espécie de proposições quepoderão ser desenvolvidas.

Densidade

Como no caso dos números, assim também no caso daconcentração num espaco limitado. emergem certas conseqüên-cias relevantes na análise sociológica das cidades. Destas, s6podem ser indicadas algumas.

Conforme Darwín salientou para a flora e a fauna e con-forme Durkheim 14 notou no caso das sociedades humanas, umaumento numérico para uma área constante (isto é, um cres-cimento da densidade) tende a produzir d'ferenciação e espe-cialização, pois somente dessa forma é que a área poderá su-portar o aumento numérico. A densidade. pois, reforça o efeitoque os números exercem sobre a divers'ficação dos homens ede suas atividades e sobre o aumento da complexidade daestrutura social.

14 E. Dnrkheim, De Ia Division du Travail Social (Paris, 1932),p. 248.

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Do lado subjetivo, conforme sugeriu Simmel, o contatofísico estreito de numerosos ind.víduos produz necessariamentea mudança nos rne'os através dos quais nos orientamos emrelação ao meio urbano, especialmente em relação aos nossosconcidadãos, Tipicamente, nossos contatos fís'cos são estreitos,mas nossos contatos sociais são distantes. O mundo urbanotem em alta conta o reconhecimento visual, Vemos o uniformeque denota o papel dos funcionários e esquecemos as excen-tr.cídades pessoais que se acham ocultas por trás do uniforme.Temos a tendência de adquirir e desenvolver uma sensib'lidadea um mundo de artefatos e somos progressivamente distancia-dos, cada vez mais, do mundo da natureza.

Estamos expostos a vivos contrastes entre esplendor e mi-séria, entre riqueza e pobreza, inteligência e ignorânc'a, ordeme caos. A concorrência pelo espaço é grande, de tal forma quecada área geralmente tende a se ded'car à atividade que pro-duza melhor retorno econômico. O local de trabalho tende ase dissociar do local de moradia, pois a proximidade de esta-belecimentos industriais e comere.ais torna uma área indese-jável, econômica e socialmente, para fins residenciais.

A densidade, os valores da terra, os aluguéis, a acessibi-lidade, a salubridade, o prestígio, considerações estéticas, aausência de inconvenientes tais como barulho, fumaça e su-jeira\ determ'nam a atratividade de várias áreas da cidade comolocais para o estabelecimento de diferentes camadas da popu-lação. O local e a natureza do trabalho, a renda, as caracte-rísticas raciais, étnicas, o status social, os costumes, hábitos,gostos, preferências e preconceitos estão entre os fatores sig-nificantes de acordo com os quais a população urbana é sele-cionada e distribuída em locais mais ou menos distintos. Ele-mentos populacionais diversos, habitando localidade compacta,tendem portanto a se separar uns dos outros na medida emque suas· necessidades e modos de vida são incompatíveis unscom os· outros e na medida em que sejam antagônicos. Domesmo modo, pessoas de status e necessidades homogêneos,consciente ou inconscientemente, se dirigem ou são forçadaspara a mesma área.

As diferentes partes da cidade, portanto, adquirem fun-ções especializadas, A cidade, conseqüentemente, tende a pa-.recer um mosaico de mundos soe.ais nos quais é abrup~a.,atranscrição de um para o outro. A justificação de petSOiJal1-:.dades e modos de vida divergentes tende a produzir uma pers-pectiva relativista e um senso de tolerância de diferenças que

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poderão ser encaradas como pré-requisitos para a racionalidadee que conduzem à secularização da vida. 15

A vida em contato estreito e o trabalho em comum, deindivíduos sem laços sentimentais ou emocionais, desenvolvemum espírito de concorrência, engrandecimento e exploraçãomútua. Para neutralizar a responsabilidade e a desordem empotencial, surge a tendência de se utilizarem controles formais.Sem a aderência rígida a rotinas previsíveis, uma grande so-ciedade compacta dificilmente seria capaz de sustentar a simesma. Q_relógio e o sinal de trânsito simbolizam a base danossa ordem soc:aIIlOmumlouroano. Contato físico estreitofreqüente,· aHádo a grande distância social, acentua a reservade indivíduos não-ligados entre si e, a não set que seja com-'Pensada por outras oportunidades de reação; dá origem àsolidão.

O necessário movimento freqüente de um grande númerode indivíduos num habitat congestionado ocasiona atrito e irri-tação. As tensões nervosas que derivam dessas frustrações sãoacentuadas pelo ritmo acelerado e pela complicada tecnologiasob os quais a vida em áreas densas tem de ser vivida.

H eterogeneidnde

A interação social entre uma tamanha variedade de tiposde personalidades num ambiente urbano tende a quebrar arigidez das castas e a complicar a estrutura das classes e por-tanto induz a um arcabouço mais ramificado e diferenciado deestratificação social do que em sociedades mais integradas.A crescida mobilidade do indivíduo, que o coloca dentro docampo de estímulos recebidos de um grande número de indi-víduos d.ferentes e o sujeita a um status flutuante no seio degrupos sociais diferenciados que compõem a estrutura socialda cidade, tende para a aceitação da instabilidade e insegu-rança no mundo como norma geral. Esse fato contribui, tam-bém, para a sofisticação e o cosmopolitismo do hab'tante daCidade. Nenhum grupo isolado é possuidor da fidelidade exclu-siva do indivíduo. Os grupos aos quais ele se acha filiadonão se prestam rapidamente a um simples arranjo hierárquico.

15 É difícil determinar-se a extensão na qual a separação dapopulação em áreas culturais e ecológicas distintas e a resultante ati-tude social de tolerânci I, raciona.idade e mentalidade secular são funçãoda densidade em contrnposiçao à heterogeneidade. Muito provavelmenteestamos aqui lidando com fenômenos que são conseqüência das ope-rações simultâneas de ambos os fatores.

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Devido aos seus diferentes interesses emanados de diferentesaspectos da v.da social, o indivíduo se torna membro de gru-pos bastante divergentes, cada um dos quais funciona somentecom refe.ência a um segmento da sua personalidade. Nem essesgrupos permitem, facilmente, que seja feito um arranjo con-cêntrico de modo a fazer com que o mais estreito se incluana c.rcuníerência dos mais inclusivos, como é o que se verificanas comunidades rurais ou em sociedades primitivas. Na ver-dade, os grupos aos quais a pessoa está tipicamente filiada sãotangenciais uns aos outros ou se entrecortam de forma alta-mente variável.

A substituição dos membros do grupo é, geralmente, rá-pida, em parte como resultado da liberdade de circulação dapopulação e em parte como resultado de sua mobilidade social.O local de residência, o local e a característica do emprego,a renda e a receita, flutuam, e o trabalho de manter juntas asorganizações e de promover relações de amizade íntimas e du-radouras entre os membros é difícil. Isso se aplica notavel-mente às áreas situadas dentro da cidade, nas qua.s as pessoasse segregam mais em virtude de diferença de raça, língua, rendae status social do que através de escolha ou atração positivaa pessoas como elas mesmas. Em geral, o habitante da cidadenão é o proprietário da sua própria casa e, considerando queuma permanência transitória não gera tradições e sentimentosde união, só raramente ele é um vizinho na verdadeira expres-são da palavra. Há poucas oportunidades para o indivíduoconseguir um conceito do que seja cidade como um todo oupara examinar o seu lugar no esquema geral. Conseqüente-mente, é difícil para ele determinar o que lhe seja "mais con-veniente" e decid.r entre os assuntos e os líderes que lhe sãoapresentados pelas agências de sugestão das massas. Os indi-víduos que integram a sociedade compõem as massas fluidasque tornam tão imprevisível e, portanto, tão problemático ocomportamento coletivo na comunidade urbana.

Apesar da cidade, através do recrutamento de tipos va-riados para executar seus diversos trabalhos, e da acentuaçãode seu caráter sui generis através da concorrência e do prêmiopela excentricidade, novidade, desempenho efic'ente e inventi-vidade, produz.r uma população altamente diferenciada, elatambém exerce uma influência niveladora. Onde quer que es-tejam concentradas grandes quantidades de indivíduos de cons-tituições diferentes, entra também o processo de despersonali-zação. Essa tendência niveladora é interente, em parte, à baseeconômica da cidade. O desenvolvimento das grandes cidades,pelo menos na era moderna, repousa em larga escala sobre a

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força concentradora do vapor. O crescimento -da fábrica pos-sibilitou a produção em massa para um mercado impessoal.A máxima exploração das poss.bilidades da divisão do trabalhoe da produção em massa só é possível, porém, com a padro-nização de processos e produtos. Uma economia monetáriacaminha lado a lado com esse sistema de produção. Progressi-vamente, à medida que as cidades se desenvolveram baseadasnesse sistema de produção, o nexo pecuniário que implica apossibilidade de aquisição de bens e serviços deslocou as re-lações pessoais como base de associação. Nessas circunstâncias,a individualidade deve ser substituída por categorias. Quandograndes números de indivíduos têm de fazer uso comum defacilidades e instituições, deve ser feito um arranjo a fim deajustar as facilidades e instituições às necessidades da médiadas pessoas e não às de determinados indivíduos. Os serviçosde unidade pública, das instituições recreativas, educacionais eculturais devem ser ajustados às necessidades coletivas. Domesmo modo, as instituições culturais, tais como as escolas, os -I

cinemas, o rádio e os jornais, em virtude de sua clientelaoriunda das massas, devem necessariamente operar como in-fluências niveladoras. O processo político conforme aparecena vida urbana não poderia ser entendido sem levarmos emconta os apelos à massa por meio das modernas técnicas depropaganda. Se o indivíduo participar de qualquer forma navida social, política e econômica da cidade, deverá subordinarum pouco de sua individualidade às exigências da comun'dademaior e nessa medida fazer parte de movimentos coletivos.

IV. A RELAÇÃO ENTRE A TEORIA DO URBANISMO E A PESQUISASOCIOLÓGICA

Por meio de um corpo teórico como o delineado ac'mapara fins ilustrativos, o complicado e multilateral fenômeno dourbanismo poderá ser analisado em termos de um número li-mitado de categorias básicas. A abordagem sociológica da ci-dade adquire, portanto, uma unidade essencial e coerência,possibilitando ao investigador empírico não somente focalizarmais distintamente os problemas e processos que pertencemapropriadamente ao seu campo, mas também tratar o seu as-sunto de maneira mais integrada e sistemática. Algumas dasverificações típicas da pesquisa empírica no campo do urba-nismo, com especial referência aos EUA, poderão ser indi-cadas para provar as proposições teóricas estabelecidas nas pá-ginas anteriores, podendo-se esboçar alguns dos problemascruciais para posterior estudo.

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Com base nas três variáveis, número, densidade do agru-pamento e grau de heterogeneidade da população urbana, pa-rece possível explanarem-se as características da vida urbanae explicarem-se as -diferenças entre cidades de vários tamanhose tipos.

O urbanismo como um modo de vida característico podeser abordado empiricamente de três perspectivas inter-relacio-nadas: 1) como uma estrutura física consistindo uma base depopulação, uma tecnologia e uma ordem ecológica; 2) comoum sistema de organização social envolvendo uma estruturasoc.al característica, uma série de instituições sociais e ummodelo 'típico de relações sociais; 3) como um conjunto deatitudes de idéias e uma constelação de personalidades dedi-cadas a formas típicas' do comportamento coletivo e sujeitasa mecanismos característicos de controle social.

o Urbanismo na Perspectiva Ecológica

Considerando que, no caso da estrutura física e dos pro-cessos ecológicos, somos capazes de operar com índices bas-tante objetivos, é possível chegarmos a resultados bem precisose geralmente quantitativos, A "dominância" da cidade sobreo hinterland torna-se explicável através das características fun-cionais da cidade que derivam em grande parte do efeito dosnúmeros e da densidade. Muitas das instalações técnicas e dasespecializações e organizações que surgem da vida urbana sópoderão crescer e prosperar em cidades onde a procura sejasuficientemente grande. A natureza e âmbito dos serviços pres-tados por essas organizações e instituições e as vantagens deque elas gozam sobre as instalações menos desenvolvidas decidades menores dão margem à dominância das cidades e àdependência de regiões cada vez mais vastas em relação àmetrópole central.

A composição da população urbana mostra a atuação defatores seletivos e diferenciadores. As cidades contêm uma pro-porção maior de pessoas jovens do que as áreas rurais, ondese nota uma predominância de pessoas de idade e de crianças.Nesse aspecto, como em muitos outros, quanto maior a cidade,tanto mais aparente é essa característica específica do urba-nismo. Com exceção das maiores cidades, que atraíram grandenúmero de estrangeiros homens, e em alguns tipos especiaisde cidades, há uma predominância numérica de mulheres sobreos homens. A heterogeneidade da população urbana é tambémassinalada por linhas raciais e étnicas. Os estrangeiros e seusfilhos constituem aproximadamente dois terços de todos os ha-

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bitantes de cidades com um milhão ou mais de habitantes. Suaproporção na população urbana =v= à m~da que d.:~inuio tamanho da cidade, até que nas areas rurais eles participamsomente com um sexto. do total da população. *

Da mesma forma, as cidades maiores atraíram mais ne-gros e outros grupos raciais do que as comunidade~ peq~en~s.Considerando que a idade, o sexo, a raça e a or:gem etn:case acham associados com outros fatores como ocupação e inte-resse, verifica-se claramente que uma das características prin-cipais do habitante urbano é a sua dessemelhança d~s seusconcidadãos. Nunca dantes tantos povos de traços diversos,como é o caso das nossas c.dades, foram aglomerados em con-tato físico tão estreito como nas grandes cidades da América.As cidades, em geral, e as americanas em particular, são for-madas de uma gama heterogênea de povos e culturas, de ~o-dos de vida altamente diferenciados entre os quais muitasvezes há apenas um mínimo de comun.cação, a maior dasindiferenças e a maior tolerância, por vezes árdua luta, massempre o contraste mais marcante.

A falha da população urbana em se reproduzir parece seruma conseqüência biológica de uma ~0':Ilbinação d: fatores nocomplexo da vida urbana, e o declínio da natal:dade pode.geralmente, ser encarado como um dos sinais mais mar~antesda urbanização do mundo ocidental. Embora a proporçao deóbitos nas cidades se apresente ligeiramente maior do que nocampo, a diferença fundamental entre a falha das cidades dosnossos dias e das cidades do passado em manterem a sua po-pulação é que no passado o motivo. est~ya na alta. taxa demortalidade nas cidades, enquanto hoje, ja que as Cidades setornaram mais habitáveis do ponto de vista de saúde, o fatose deve à baixa natalidade, Essas características biológicas dapopulação urbana são sociologicamente significantes, não s0-mente porque refletem o modo urbano de existência, m~s .taII.t-bém porque condicionam o crescimento e a futura dom:nanc:adas cidades e sua organização social básica. Considerando queas cidades são consumidoras e não produtoras de homens, ovalor da vida humana e a avaliação social da personalidadenão deixarão de ser afetados pelo saldo entre nascimentos eóbitos. O padrão de aproveitamento da terra, de valor da terra.aluguéis e propriedade, a natureza e o funcionamento das estru-turas físicas, da habitação, dos meios de transporte e comu-nicação, das utilidades públicas - essas e muitas outras fases

* N. do' Org. - ~ preciso não esquecer que essas observações SC)referem aos Estados Unidos na década de 30.

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O URBANISMO COMO MODO DE VIDA 109

do mecanismo físico das cidades não são fenômenos isoladossem relação com as cidades como entidade social, porém sãoafetadas e afetam o modo de v.da urbano.

o Urbanismo como Forma de Organização Social

Os traços característicos do modo de vida urbano têmsido descritos sociologicamente como consistindo na substitui-ção de contatos pr.mários por secundários, no enfraquecimentodos laços de parentesco e no declínio do significado social dafamília, no desaparecimento da vizinhança e na corrosão dabase tradicional da solidariedade soc.al. Todos esses fenômenospodem ser verificados substancialmente através de índices obje-tivos. Assim, por exemplo, as baixas e declinantes taxas dereprodução urbana sugerem que a cidade não conduz ao tipotradicional de vida familiar, inclusive a educação de criançase a manutenção do lar como local em tomo do qual giram asatividades vitais. A transferência de atividades industriais, edu-cacionaise de recreação, para instituições especializadas forado lar, privou a família de algumas das suas funções históricasma's características. Nas cidades, é mais provável que as mãesestejam empregadas, mais freqüentemente há inquilinos nascasas de família, os casamentos tendem a ser retardados e aproporção de pessoas solteiras e não-comprometidas é maior.As famílias são menores e mais freqüentemente sem filhos doque as famílias do campo. A família como unidade social estáemancipada do grupo de parentesco maior, característico docampo, e os membros individuais seguem os seus próprios inte-resses divergentes na sua vida vocac.onal, educacional, religiosa,recreativa e política.

Funções tais como a preservação da saúde, os métodos dealiv'ar os sofrimentos associados com a insegurança pessoal esocial, provisões para melhoria da educação, da recreação eda cultura, deram or.gem a instituições altamente especializadasnum âmbito comunitário, estadual e mesmo nacional. Os mes-mos fatores que trouxeram maior insegurança pessoal tambémsão responsáveis pelos contrastes cada vez maiores entre indi-víduos, existentes no mundo urbano. Embora a cidade tenhaderrubado as rígidas l.nhas de casta da sociedade pré-indus-trial, aguçou e diferenciou grupos de rendas e status. Geral-mente, há uma proporção maior de adultos da populaçãourbana ~em empregados do que adultos da população rural.A classe dos "trabalhadores de gravata", comprendendo-secomo tais os empregados comerciais, bancários e burocratas,

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é proporcionalmente mais numerosa nas gr.andes cidades, noscentros metropolitanos e nas pequenas c:dades do que nocampo.

Como um todo, a cidade desencoraja uma. vida econômicana qual o indivíduo, numa época de cris~, tenha uma ba~ede subsistência à qual recorrer, e desencoraja o e~prego a~to-nomo. Se bem aue as rendas dos habitantes das cidades sejammaiores, em média, do que as do interior, parece,q~e o custode vida é maior nas cidades maiores. A casa propna envolvemaiores ônus e é mais rara. Os aluguéis são maiores e absor-vem uma proporção maior da receita. Ap:sar do habi~ante dacidade se ve: beneficiado com muitos serviços comunais, gasta

. uma grande proporção da sua renda com itens como recreaçãoe aperfeiçoamento da educação e uma propo~ção me_nor comalimentos. Aquilo que os serviços da comun:dade nao of~re-cem, o habitante urbano é obrigado a comprar, e pode-se dizerque praticamente não existe nenhuma necessidade humana quedeixou de ser explorada pelo comercialismo. Fornecer emo-ções e meios de escapar ao tédio, à monotonia e ~ rotina tor-na-se, pois, uma das principais funções da recreaçao urbana, aqual, na melhor das hipóteses, fornece meIOS para a auto-ex-pressão criadora e a associação espontânea dos grupos, masque, mais tipicamente no mundo urba~o, !esulta em ~o,nt.em-plação passiva, por um lado, ou sensac.onais façanhas inéditas,por outro. . .

Reduzido a um estágio de virtual impotência como indi-víduo, o habitante urbano esforça-se para fazer parte de ~u-pos organizados de interesses s~~elh~ntes para o~ter _seus ~ms.Isso resulta numa enorme multíplícação de orgamzaçoes vo.un-tárias com um número de objetivos tão variados quanto asnecessidades e interesses humanos. Embora de um lado os laçosde associação humana estejam enfraquecidos, a existência ur-bana envolve um grau de interdependên~i~ maior ,e~tre o~ ho-mens e uma forma ma's complicada; frágil e volátil de ínter-relações mútuas sobre muitas fases das quais o indivíduo .~omotal não consegue exercer quase .nen~um controle. F~e~uente-mente há apenas uma relação muito tenue entre a poSIÇ~OA ec<;nômica ou outros fatores básicos que determinam a ~x~stencIado indivíduo no mundo urbano e os grupos. voluntar:?s . ~osquais ele se acha filiado. Enquanto numa sociedade primitivae rural é geralmente possível, com base em alguns fatores. co-nhecidos. prever quem pertencerá ao que! e quem. se ass~c·aráa quem em quase todas as relacões da ":lda, ~~ c~dade so po-demos projetar o padrão geral de formaçao e filiação do ~~po,e esse padrão mostrará muitas incongruências e contradições

O URBANISMO COMO MODO DE VIDA

A Personalidade Urbana e o Comportamento Coletivo

É em grande parte por meio de atividades de grupos vo-luntários, sejam seus objetivos econômicos, poiíticos, educac.o-nais, religiosos, recreativos ou culturais, que o habitante da c:-dade exprime e desenvolve sua persona.icade, allllU H: StUlUS

e consegue desempenhar a quantidade de atividades que cons-titui sua carreira na vida. Podemos facilmente infenr, entre-tanto, que o arcabouço organizac.onal que essas funções alta-mente diierenciadas fazem surgir não assegura por si só aconsistência e integridade das personalidades cujos interessesengloba. A desorgan.zação pessoal, o esgotamento nervoso, osuicídio, a· delinqüência, o crime, a corrupção e a desordempoderão, nessas circunstâncias, prevalecer mais na comunidadeurbana do que na rural. Isso tem-se confirmado na medida dadisponib.lidade de índices comparáveis; mas os mecanismossubjacentes a esses fenômenos necessitam mais análise.

Considerando que, para os propósitos da maioria dos gru-pos, é impossível, na cidade, atrair individualmente o grandenúmero de indivíduos isolados e diferenciados, e, considerandoque, somente através de organizações às quais os homens per-tencem, seus interesses e recursos podem ser recrutados parauma causa coletiva, pode-se inferir que o controle social nacidade deve tipicamente processar-se por meio de grupos for-malmente organizados. Segue-se, também, que as massas dehomens na cidade estão sujeitas à manipulação por símbolose estereótipos comandados por indivíduos operando de longe,ou invisivelmente por trás dos bastidores, através do controledos meios de comunicação. O auto governo, quer seja no reinoeconômico, político ou cultural, está nessas circunstâncias re-duzido a uma simples figura de retórica, ou na melhor dashipóteses está sujeito ao equilíbrio instável de grupos de pressão.

Em virtude da ineficácia de laços reais de parentesco, cria-mos grupos fictícios de parentesco, Em face do des~par~ci-mento da unidade territorial como base de solidariedade SOCIal,criamos unidades de interesse. Enquanto isso, a cidade comocomunidade decompõe-se numa' sér.e de relações segmentáriastênues, sobrepostas a uma base territorial com um centro de-finido, mas sem uma periferia definida, e a uma div.são dotrabalho que transcende bastante a localidade contígua, e éuniversal em extensão. Quanto maior o número de pessoas numestado de inte.ação' umas com as outras, tanto menor é o nívelde comunicação e tanto maior é a tendênc.a da comunicaçãoproceder num nível elementar, isto é, na base daquelas coisasque. se supõem serem comuns ou de interesse de todos.

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Obviamente, portanto, é nas tendências emergentes nosistema de comunicação e na tecnologia de produção e dis-tribu.ção surgida na civilização moderna que devemos procuraros sintomas que irão indicar o provável desenvolvimento futurodo u.banismo como modo de vida. O sentido das atuais modi-ficações no urbanismo transformarão, para o bem ou para .0mal, não somente as cidades, mas o mundo. Alguns dos maisbásicos desses fatores ou processos e as possibilidades de dire-ção e controle deles são um convite para estudo mais deta-lhado.

Somente na medida em que o sociológo tiver uma com-preensão clara do que seja a cidade como entidade social epossuir uma teoria razoável sobre urbanismo, podei'~ e'e ~e-senvolver um corpo unificado de conhecimentos, POiS aqu:loque passa por "Sociologia Urbana" certamente não o é atual-mente. Se se tomar como ponto de partida uma teoria sobreurbanismo como a delineada nas páginas anteriores, a serelaborada, testada e revista' à luz de mais análises e pesquisaempírica, pode-se esperar que seja determinado o critério derelevância e validade de dados concretos. Esse sortimento he-terogêneo de informações separadas que foram incorporadasem tratados de Sociologia sobre a cidade poderá, ass'm, serfiltrado e incorporado num corpo coerente de conhecimentos,A propósito, somente por meio de uma teoria desse tipo, osociólogo escapará da fútil prát'ca de enunciar, em nome daciênc'a sociológica, uma variedade de julgamentos, às vezesinsuscítáveis, relativos a problemas tais como pobreza, habi-tação, planejamento urbano, higiene; administração municipal,polic'amento, mercadologia, transporte e outros itens técnicos.Embora o sociolólogo não possa solucionar qualquer dessesproblemas práticos - pelo menos não por si só - ele poderá,se descobrir sua função apropriada, constribuir para a suacompreensão e solução. As perspectivas de. fazê-lo são maisclaras através de uma abordagem geral, teórica, do que poruma abordagem ad hoc.

SUMÁRIO

A urbanização do mundo, que é um dos fatos mais notá-veis dos tempos modernos, trouxe modif'cações profundas empraticamente todas as fases da vi~a social. A recente e rápidaurbanização nos Estados Unidos é responsável pela a~de~ados nossos problemas urbanos e pela nossa falta de consciencradeles. Apesar do predomínio do urbanismo no mundo ~odern?,ainda sentimos falta de uma definição sociológica do que seja

o URBANISMO ~OMO MODO DE VIDA

cidade, a qual levaria em conta, adequadamente, o fato de que,enquanto a cidade é o local característico do urbanismo, omodo de vida urbano não se confina às cidades. Para finali-dades sociológicas, uma cidade é uma fixação relativamentegrande, densa e permanente de indivíduos heterogêneos. Osgrandes números são responsáveis pela variabilidade indivi-dual, pela relativa ausência de conhecimento pessoal íntimo,pela segmentação das relações humanas as quais são em grandeparte anônimas, superficiais e transitórias e por característicascorreia tas. A densidade envolve diversificação e especialização,a coincidência de contato físico estreito e relações sociais dis-tantes, contrastes berrantes, um padrão complexo de segregação,a predominância do controle social formal, e atrito acentuado,entre outros fenômenos. A heterogeneidade tende a quebrarestruturas sociais rígidas e a produzir maior mobilidade, insta-bilidade e insegurança, e a filiação de indivíduos a uma varie-dade de grupos sociais opostos e tangenciais com um alto graude renovação dos seus componentes. O nexo pecuniário tendea deslocar as relações pessoais, e as instituições tendem aatender às necessidades das massas em vez do indivíduo. Oindivíduo, portanto, somente se torna eficaz através de gruposorganizados. O complexo fenômeno do urbanismo poderá apre-sentar unidade e coerência se a análise sociológica se fizer àluz de tal corpo teórico. A evidência empírica referente àEcologia, à Organização Social e à Psicologia Social do modode vida urbano confirma a eficácia dessa abordagem.

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