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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES O vídeo-ensaio: à procura de uma enteléquia projeto para a construção de um livro audiovisual Rosinda Manuela Ribeiro da Costa Dissertação Mestrado em Arte Multimédia Especialização em Audiovisuais Dissertação orientada pela Prof.ª Doutora Susana de Sousa Dias 2016 1

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES

!

O vídeo-ensaio: à procura de uma enteléquia

projeto para a construção de um livro audiovisual

Rosinda Manuela Ribeiro da Costa

Dissertação

Mestrado em Arte Multimédia

Especialização em Audiovisuais

Dissertação orientada pela Prof.ª Doutora Susana de Sousa Dias

2016

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DECLARAÇÃO DE AUTORIA

Eu, Rosinda Manuela Ribeiro da Costa, declaro que a presente dissertação de mestrado in-

titulada “O vídeo-ensaio: à procura de uma enteléquia”, é o resultado da minha investiga-

ção pessoal e independente. O conteúdo é original e todas as fontes consultadas estão de-

vidamente mencionadas na bibliografia ou outras listagens de fontes documentais, tal como

todas as citações diretas ou indiretas têm devida indicação ao longo do trabalho segundo as

normas académicas.

O Candidato

Lisboa, 19 de Dezembro de 2016

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RESUMO

A força que alimenta e impulsiona o trabalho de investigação aqui em análise, tem

como ponto primordial a problematização do conceito aristotélico enteléquia, defendendo

o virtual como componente da realidade e não como algo irreal. Partindo desta problema-

tização é proposta uma reflexão teórica sobre a experiência virtual — uma consequência da

expansão do ciberespaço (world wide web) e do consumo, permanente e exacerbado, de in-

formação digital. 

Esta problematização é transposta, através do projecto do livro À procura de uma enteléquia aqui apresentado, para a criação artística audiovisual, no domínio das narrativas

transmedia.

O género vídeo-ensaio é aqui defendido enquanto mediador de complexidades, as-

sumindo-se, simultaneamente, a sua capacidade de estabelecer uma enteléquia, através da

correlação de alguns dos aspetos fundamentais da montagem horizontal (identificada por

vários teóricos, tais como, Astruc, Bazin, Adorno, entre outros) e das características intrín-

secas ao próprio género.

PALAVRAS-CHAVE

Ciberespaço — Virtual — Experiência — Enteléquia — Vídeo-ensaio

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ABSTRACT

The strength that nurtures and impels the theoretical-practical research work he-

reby in analysis, relies on the problematic regarding the Aristotelian concept of entelechy,

as a starting point. Based on this problematic it is proposed a theoretical reflexion on the

virtual experience – a consequence of the expansion of cyberspace (world wide web) and

of the permanent and exacerbated consumption of digital data — and underlined that vir-

tual is a part of reality and not something unreal.

This problematic  is transposed to the audio-visual artistic creation in the transme-

dia storytelling domain, through the model for the book À procura de uma enteléquia hereby

presented.

The video-essay genre is considered as a complexity mediator, assuming its capacity

to establish an entelechy through the correlation of fundamental aspects of horizontal

montage (identified by several theoreticians such as Astruc, Bazin, Adorno, etc) and simul-

taneously the intrinsic characteristics of the genre itself.

KEY WORDS

Cyberspace — Virtual — Experience — Entelechy — Essay Film

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiríssimo lugar, ao ex-primeiro Ministro Pedro Passos Coe-

lho por, em 2013, ter lançado o repto de sugerir aos jovens de Portugal que saíssem do

país, pois vivíamos um momento económico demasiado insuportável para que os jovens

pudessem avançar, sonhar e produzir, estando assim, impossibilitados de contribuir para

a economia do lugar onde nasceram. Esta dissertação é a minha resposta a esse repto e

por isso não queria deixar de lhe agradecer, por me ter deixado de tal forma indignada e

frustrada, que decidi não sair do meu país e lançar-me nesta investigação.

Agradeço, cada dia mais um pouco, ao Teatro do Vestido e a toda a equipa que

me tem acompanhado diariamente ao longo destes três anos. É com imensa gratidão que

menciono todos eles: Joana Craveiro, Cláudia Teixeira, Tânia Guerreiro, Ainhoa Vidal,

Inês Rosado, Simon Frankel, Gustavo Vicente, Estêvão Antunes, Miguel Bonneville,

João Cachulo, João Paulo Serafim, João Tuna, Carlos Ramos e Igor de Brito, muito

obrigada pela paciência, apoio constante e voto de confiança.

Agradeço infinitamente aos meus amigos da SGI que me apoiaram carinhosa-

mente ao longo desta enorme temporada, de forma a que eu jamais retrocedesse na mi-

nha decisão de ir até ao fim. À Filipa Fernandes, Rita Jorge, Tito Mendes, Duarte Costa,

José Galinha, Liliana Afonso, João Frias, Sofia Soromenho, Joana Craveiro, Tânia

Guerreiro, Ana Calha, Etsuko Motoki, Claire Honigsbaum, Stephan Jurgens, Suzanne

Pritchard e Tae Takahashi, muito obrigada por me apoiarem incondicionalmente.

A presente dissertação é uma homenagem aos meus amigos mais longínquos,

que são o carvão da minha existência e a quem dedico todos os meus trabalhos de inves-

tigação e criação artística, são eles: Xana, Loisa, Sara, Tiaguinho, Bruninho, Kavilhas,

Valdir, Lois, Coas, Sarah, Rita, Babz, Inês, Pac e Micas Tricas.

Dedico esta dissertação à minha família, à Júlia, ao Joaquim, ao David e ao Si-

mão pelo apoio constante e por todo o amor que existe entre nós. Ao meu mestre de

vida, professor doutor Daisaku Ikeda, dedico esta dissertação por ser uma fonte inesgo-

tável de encorajamento e motor de decisão para que, aconteça o que acontecer, eu ja-

mais me deixe derrotar.

Por último e, absolutamente sem qualquer tipo de duvida, não menos importante

gostaria de dedicar esta dissertação à professora doutora Susana de Sousa Dias pois,

pura e simplesmente, sem ela, não teria sido possível chegar até aqui.

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ÍNDICE GERAL

Anexos

Anexo 1: Entrevista LAN em Fuga

Anexo 2: Fotos e Maquete da máquina de cena

Apêndice: Vídeo-ensaios complementares à investigação

RESUMO 3 ..........................................................................................................................

ABSTRACT 4 ......................................................................................................................

AGRADECIMENTOS 5 ......................................................................................................

Introdução 1 .........................................................................................................................

1. A EXPERIÊNCIA DO CIBERESPAÇO 4 .......................................................................

1.1 O Virtual na era digital 8...........................................................................................1.2 Potência e Ato 16..................................................................................................... 1.3 Experiência Virtual Emancipada 21........................................................................

2. A cine-escrita, uma montagem horizontal 28 ...................................................................

2.1 O ensaio como mediador de complexidades 29......................................................2.2 A origem do ensaio na teoria e na prática do cinema 33..........................................

3. À procura de uma enteléquia 42 .......................................................................................

3.1 Narrativa e Forma 43................................................................................................3.2 Estrutura Dramatúrgica 49.......................................................................................3.3 Vídeo-Ensaios 53....................................................................................................3.3.1 A Mãe 53................................................................................................................3.3.2 O Amigo 58............................................................................................................

Conclusão 63 ........................................................................................................................

Bibliografia 65.....................................................................................................................

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Introdução

Tudo começou quando de repente me apercebi que os telefones estavam a tor-

nar-se móveis, e depois vi o meu irmão David a ser o primeiro a adquirir um desses mi-

nicomputadores. A partir daí, passei a olhar com outros olhos para uma caixa de luz que

havia lá em casa, chamada computador, mas à qual nem ligava muito.

Depois, parece que foi tudo demasiado rápido: dei por mim a filmar coisas e a

editá-las; a colocar imensa informação em pen-drives cada vez mais pequenas; a ter

acesso a toda a informação que desejava, sem que ninguém me impedisse, e mais tarde,

a ficar extremamente perturbada com a aceleração do tempo e a fragmentação do espa-

ço.

Por fim, quando perdi um iPhone, comecei a imaginar uma pessoa que nessa cir-

cunstância caísse na mais profunda tristeza, como alguém que perde um caderno de in-

timidades. Foi com esse acidente que comecei a ensaiar sobre: o que é uma experiência?

Como é que eu utilizo realmente o meu tempo?… Estava exatamente na perseguição do

significado de ensaio e, lá ao lado, com o mesmo prefixo εν, ‘dentro’, estava o conceito

de enteléquia, revelando-me aquilo que, ansiosamente, andava a desejar dissecar e refle-

tir: O que é o virtual? O que é uma experiência? Como vivemos nesta era digital segun-

do uma causa interna?

A força que alimenta e impulsiona o trabalho de investigação, aqui em análise,

tem como ponto primordial a problematização filosófica do conceito aristotélico entelé-

quia, defendendo o virtual como componente da realidade e não como algo irreal.

O conceito de enteléquia defendido por Aristóteles revela que qualquer entidade

desenvolve-se a partir de uma causa final interna a ela mesma – em contraposição à

teoria platónica das ideias, que assenta na noção de que este fenómeno acontece por

razões ideais externas. Por outras palavras, podemos dizer que enteléquia é o completo,

o inteiro, é aquilo que já não pode ser mais do que é. No artigo, A Enteléquia de

Aristóteles: uma resposta a Daniel Graham, George Blair refere, “enteléquia significa o

‘estado completo do ser’, não no sentido do ‘estado preenchido do ser’ (tal como no

Latim, segundo o qual o termo ‘completo’ possa ser associado), mas no sentido de

‘conter o próprio fim’, pelo termo τελοσ (fim) na sua raiz.” (Blair, 1993:94). Na origem

do conceito de enteléquia, existe uma necessidade de Aristóteles transcrever o princípio

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que exprime a passagem da potência ao ato; como tal, por não existir uma palavra em

grego que significasse, conter o próprio fim, “Aristóteles uma vez mais teve que

inventar uma, cuja raiz etimológica significaria o seguinte: que é composta por, εν,

‘dentro’, por analogia com εν de energia, τελοσ, ‘fim’, εψηο, ‘ter’ ” (Blair, 1993:96).

Deste modo, uma enteléquia não se movimenta em direção a um fim, pelo

contrário, é aquilo que acontece depois do fim ou, por outras palavras, que tem uma

concretização resultante do fim. Aristóteles delimita o significado de enteléquia, como

sendo um processo de atualização de uma potência, cujo fim está na própria entidade

atualizada; não podendo, portanto, ser considerado um processo de geração.

Partindo desta problematização do conceito de enteléquia é proposta uma

reflexão teórica, enraizada no universo literário de Nicholas Carr e interligada a autores

como Pierre Lévy, Jorge Larrosa, Nora Alter, Laura Pascolli e Ursula Biemann, sobre a

experiência virtual — uma consequência da expansão do ciberespaço (world wide web)

e do consumo, permanente e exacerbado, de informação digital.

A vertente prática da presente dissertação tem na sua génese o espetáculo

transdisciplinar (teatro, música) LAN em Fuga (2011), com direção artística de Rosinda 1

Costa e cocriação de Simão Costa, como estímulo do ponto de vista da temática

abordada. LAN em Fuga levanta questões acerca da forma como os seres humanos se

relacionam entre si, e de como adquirem experiências mediadas pelos novos gadgets

tecnológicos através de duas personagens centrais: a mulher e o hacker. Numa viagem

partilhada em busca de um anel e de um telefone especial, a peça termina com uma

suspensão que deixa o problema por resolver. Este foi o gatilho para iniciar a presente

investigação de uma perspetiva artística com o projeto À procura de uma enteléquia.

Este projeto consiste na produção de um livro audiovisual no domínio das narrativas

transmedia, cuja narrativa não-linear entre-cruza o ensaio literário e o vídeo-ensaio,

apresentando-se atualmente enquanto projecto para a criação de uma aplicação

autónoma, acessível a qualquer sistema operacional móvel, como um iPad ou tablet.

É importante sublinhar que a componente prática do presente trabalho de

investigação consiste, em termos formais, na realização de dois guiões selecionados de

um conjunto de doze vídeo-ensaios que compõem o livro À procura de uma enteléquia.

Importa referir também que, embora os vídeo-ensaios sejam autónomos e possam ser

LAN Local Area Network.1

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avaliados independentemente, quando entrecruzados com os restantes domínios

artísticos que compõem o livro audiovisual, dialogam entre si e, nesse movimento,

tecem uma dramaturgia comum.

Assim, no primeiro capítulo, “A experiência do ciberespaço”, é contextualizada a

presente investigação no seio da expansão do ciberespaço, um termo inventado em 1984

por William Gibson no romance de ficção Neuromancer, e contemporaneamente,

desenvolvido pelo filósofo e pesquisador em ciência da informação, Pierre Lévy. São

enunciadas algumas das novas ferramentas de comunicação, consequentes do

desenvolvimento tecnológico; analisado o conceito virtual, de Pierre Lévy, bem como,

dissecado o Livro IX, da Metafísica de Aristóteles que nos esclarece sobre os conceitos

de acto, potência e enteléquia.

Agrupam-se deste modo várias premissas reflexivas, formando uma linguagem

transdisciplinar que não só permite analisar o contexto no qual À procura de uma ente-

léquia se insere, como contribui para analisar a experiência do utilizador transmedia 2

que é o destinatário deste tipo de objeto artístico.

No segundo capítulo “A cine-escrita, uma montagem horizontal” analisa-se o ca-

rácter técnico, narrativo e artístico dos aspetos audiovisuais do vídeo-ensaio. Assim,

primeiramente, será estudado o ensaio (desde a sua origem), como um mediador de

complexidades que, na correlação com algumas das obras de Chris Marker, se destaca

como premissa fundamental da componente artística da presente investigação; seguin-

do-se da articulação entre os aspetos fundamentais da montagem horizontal (identifica-

da por vários teóricos, tais como, Astruc, Bazin, Adorno, entre outros) e o processo de

uma enteléquia.

O terceiro e último capítulo “À procura de uma enteléquia” encerra esta investi-

gação e é composto por dois subcapítulos, “Narrativa e Forma”, correspondente ao con-

texto artístico das transmedia storytelling, no qual o projeto do livro À procura de uma

enteléquia se insere e “Vídeo-Ensaios”, uma reflexão sobre cada um dos componentes

audiovisuais aqui apresentados, a partir de dois guiões de dois vídeo-ensaios dos doze

que compõem o livro.

Entenda-se aqui por utilizador transmedia, aquele que, no seu dia-a-dia, se relaciona com vários gadgets 2

e media (textos, música, vídeo), baseado numa política transversal de utilização dos mesmos.�3

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1. A EXPERIÊNCIA DO CIBERESPAÇO

Se observarmos o movimento da expansão do ciberespaço, desde meados do

séc.XX até aos dias vigentes, compreenderemos melhor a análise sobre o virtual e a ex-

periência do utilizador transmedia, que esta dissertação pretende elaborar. O termo cibe-

respaço foi inventado em 1984 por William Gibson no romance de ficção

Neuromancer . Neste romance o autor materializa o ciberespaço num campo de dados 3

em constante transformação, onde alguns heróis conseguem entrar (“fisicamente”), es-

tabelecendo-se uma geografia visível da informação, que normalmente se encontrava

invisível. O crescimento do ciberespaço concretizou-se através da interligação dos com-

putadores a nível mundial. Na definição do filósofo Pierre Lévy, ciberespaço, compre-

ende a interligação mundial dos computadores e das memórias informáticas. É definido

como sendo a rede, “designa não só a infra-estrutura material da comunicação digital,

mas também o universo oceânico das informações que ele alberga bem como os seres

humanos que nele navegam e o alimentam.” (Lévy, 1997:17).

Este primeiro capítulo dedica-se à análise do ciberespaço: o que é?; como é que

se expande?; como é que funciona?; seguindo-se da reflexão sobre a experiência do uti-

lizador transmedia (aquele que é simultaneamente autor e espectador de um fluxo in-

terminável de informação e que, como ferramenta de tradução dessa informação, utiliza

variados media ao mesmo tempo).

Segundo a definição de Pierre Lévy (filósofo, sociólogo e pesquisador em ciên-

cia da informação), a rede determinada pelo ciberespaço implica, também, as pessoas

que nele navegam e as que o alimentam. Assim, o utilizador transmedia é um ser ativo,

ele não só consome a informação disponível, como também alimenta a fonte da rede.

Juntamente com a expansão dessa rede, o crescimento demográfico e o desen-

volvimento das comunicações e dos transportes também se expandiram. Em 1900, a

Terra tinha pouco mais de um bilião e meio de habitantes, hoje, somos sete biliões; se-

gundo as Nações Unidas seis biliões têm telemóveis. Agora, através de dispositivos vir-

tuais é possível fazer amigos, transferir saberes, trocar conhecimentos, descobrir dife-

renças, efetuar transações, etc. Esse tecido virtual, que se destaca como aberto e intera-

Gibson, William, Neuromancer, Canadá: Ace Books, 1 de Julho de 19843

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tivo, assume-se como uma realidade sem precedentes históricos e é consumido diaria-

mente pela maioria da população mundial. 4

A era do digital começou a dar os primeiros passos a partir de 1945 onde os

computadores serviam, exclusivamente, fins militares e onde “à excepção de alguns vi-

sionários ninguém podia prever, então, que um movimento generalizado de virtualiza-

ção da informação e da comunicação afectaria profundamente os dados elementares da

vida social”. (Lévy, 1997:33)

Existe algo de comum entre as máquinas dos anos 50 que, embora sem ecrã ou

teclado, apenas eram usadas para calcular informação, e as dos anos 80, que podiam ser

usadas por uma pessoa sem qualquer instrução técnica ou científica, sendo esta capaz de

escrever, desenhar, projetar orçamentos, músicas ou textos. O aperfeiçoamento das téc-

nicas, que comportaram a expansão do ciberespaço, prosseguiu a um ritmo aceleradís-

simo até do final dos anos 90 e com o desenvolvimento dos padrões de comunicação

multimodal, que nos permitiram a visualização tridimensional e o melhoramento táctil e

auditivo, surgiram novos interfaces capazes de mapear o fluxo de dados. Os sistemas

informáticos passam a explorar caminhos inéditos, na história da humanidade, transfe-

rindo para uma esfera privada a utilização de tais máquinas, exclusivamente dedicadas,

até então, a servir fins militares.

Um movimento social, Computers for the People, nascido na Califórnia, poten5 -

cializou as evoluções técnicas e deslocou o computador das suas funções estatais para

inventar o computador pessoal. A partir daí, o computador passa a ser uma máquina de

Ver, por exemplo, a reflexão de Carr (2010) “À medida que os computadores em rede diminuíram para o 4

tamanho de iPhones e Blackberrys, esse prazer tornou-se móvel, disponível a qualquer hora, em qualquer lugar. Está nas nossas casas, nos nossos locais de trabalho, nos nossos carros, na sala de aula, na carteira, no bolso. Até aqueles que manifestam preocupações relativamente à crescente influência da internet raramente deixam que essas preocupações interfiram no seu próprio usufruto da tecnologia. O crítico de cinema David Thomson observa que as “dúvidas dissipam-se dada a assertividade do meio.” Aquilo a que se refere é ao cinema e à forma como o cinema projeta as suas sensações e sensibilidades não só na tela como também em nós, o público entretido e submisso. O seu comentário é ainda mais aplicável à internet. O ecrã de computador destrói as nossas dúvidas com as suas conveniências e generosidade. É de tal forma o nosso servo que seria indelicado reparar que também é o nosso amo.”

A propósito disto, Lèvy (1997) refere, “o movimento social californiano Computers for the People tinha 5

querido pôr a capacidade de cálculo dos computadores nas mãos dos indivíduos, libertando-os da tutela dos especialistas de informática. Resultado prático deste movimento “utópico” desde o fim dos anos 70, o preço dos computadores ficou ao alcance dos privados e os neófitos podiam aprender a servir-se deles sem especialização técnica. O significado social da informática transformou-se radicalmente. Que a aspiração do movimento original foi recuperada e utilizada pela indústria realizou também, à sua maneira, os objetivos do movimento. Sublinhemos que a informática pessoal não foi decidida e menos ainda prevista por nenhum governo nem por esta ou por aquela poderosa multinacional. O seu inventor e principal motor foi um movimento social que visava a reapropriação, em benefício dos indivíduos, de uma capacidade técnica até então monopolizada por grandes instituições burocráticas.”

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“criação (textos, imagens, música), de organização (bases de dados, quadros), de simu-

lação (utensílios de ajuda às tomadas de decisão, softwares de investigação) e de diver-

são (jogos) nas mãos duma proporção crescente da população dos países

desenvolvidos.” (Lévy, 1997:34) Ainda assim, o desenvolvimento que se estabeleceu a

partir do ano 2000, em que a capacidade de memória e transmissão aumentou e os inter-

faces ganharam cada vez mais características do sistema cognitivo humano (como por

exemplo a Siri – aplicação de assistência pessoal), seria imprevisível para a maioria da

população mundial.

Quando se traduz o conteúdo dos antigos media (o telefone, a televisão, os jor-

nais, os livros, etc.) para o ciberespaço, os processos físicos, biológicos, psíquicos e

económicos passam a comunicar-se e a encadear-se retroativamente através do digital -

a capacidade de transmissão do fluxo de dados aumenta exponencialmente e com ela o

próprio fluxo torna-se inalcansável e incansável também. Nas palavras de Pierre Lèvy,

“a quantidade bruta dos dados disponíveis multiplica-se e

acelera-se. A densidade das ligações entre as informações aumenta vertiginosamente os bancos informáticos, os hiper textos e as redes. Os contactos transversais entre os indivíduos proliferam anarquica-mente. É a inundação caótica das informações, o fluxo de dados, as águas tumultuosas e os turbilhões da comunicação, a cacofonia e o psitacismo ensurdecedor dos media, a guerra das imagens. As propa-

gandas e contra propagandas, a confusão dos espíritos.” (Lévy, 1997:

13)

Antes das grandes indústrias e dos media terem criado um fluxo de informação

de alta velocidade, o ciberespaço era pensado como uma prática de comunicação comu-

nitária, de todos para todos, que sem ser totalizante é interativa, permitindo que todos

pudessem usufruir e contribuir para a heterogeneidade de um novo dispositivo de co-

municação.

O princípio de um coletivo inteligente foi sustentado por visionários dos anos

60, tais como, Engelbart (o inventor do rato e das janelas de interfaces reais), Licklider

(pioneiro das conferências eletrónicas), Nelson (inventor da palavra e do conceito de

hipertexto); sublinhado por visionários contemporâneos, como por exemplo, Tim Ber-

ners Lee (o inventor da World Wide Web), ou Marc Pesce (coordenador da norma

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VRML) e comentado por filósofos da cibercultura como Kevin Kelly ou Pierre Lévy. O

princípio da inteligência de um coletivo seria o objetivo último da cibercultura, ao fazer

do ciberespaço um lugar de sinergia — sinergia de saberes, de experiências, de gostos,

etc. Contudo, constitui igualmente um campo de problemas, pois dentro de uma enorme

liberdade de expressão como é que se pode definir qual a melhor perspetiva, ou segundo

que modelo se deve organizar o ciberespaço?

«Trata-se de constituir colmeias ou formigueiros humanos? Pretende-se que cada rede dê à luz um “grande animal” colectivo? Ou, pelo contrário, o que se visa é valorizar os bens pessoais de cada um e pôr os recursos do grupo ao serviço dos indivíduos? A inteligência colectiva é uma forma de coordena-ção eficaz na qual cada um se pode considerar um centro? Ou pretende-se su-bordinar os indivíduos a um organismo que os ultrapassa? O colectivo inteli-gente é dinâmico, autónomo, emergente, fragmentado? Ou bem definido e controlado por uma instância que se sobrepõe a ele? Transforma-se cada um de nós numa espécie de neurónio dum mega cérebro planetário ou queremos constituir uma multidão de comunidades virtuais nas quais se associam cére-bros nómadas para produzir e partilhar o sentido?» (Lévy, 1997:137)

Com o desenvolvimento do ciberespaço, a experiência do utilizador transmedia

estabelece-se na criação de realidades virtuais, que lhe possibilitam a fragmentação do

espaço e a aceleração do tempo, mediadas por novas possibilidades de comunicação; o

vício pela navegação on-line e pela experiência virtual tornou-se parte da realidade quo-

tidiana (hoje em dia, em frente ao Observatório Europeu da Droga e da Toxicodepen-

dência, no Cais do Sodré, a partir das 17h, podemos encontrar largas dezenas de pesso-

as, encostadas à parede do edifício, sentadas nos degraus ou simplesmente de pé, a caçar

Pókemons — um forte exemplo de uma narrativa transmedia); tal como Nicholas Carr 6

refere, “pedimos à internet para que continue a interromper-nos, de formas cada vez

mais variadas. Dispomo-nos a consentir uma perda de concentração e foco, a subdivisão

da nossa atenção e a fragmentação dos nossos pensamentos, em virtude de uma obses-

são de possuir a informação que recebemos ou pelo menos de retirar prazer sobre o seu

consumo. Para muitos de nós, alterar essa postura não é uma opção a considerar.” (Carr,

2010:134).

Este jogo insere-se no contexto das transmedia stroytelling, na medida em que partir do seu media 6

original (um jogo desenvolvido pela Game Freak e publicado pela Nintendo) estabelece-se mundialmente através da inclusão de outros media (livros, filmes, mangá, séries televisivas, jogos on-line) estabelece-se mundialmente.

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Ao analisar o desenvolvimento do ciberespaço, pretendo objetivamente encarar

a tecnologia como algo que não nos determina, mas condiciona, na realização de uma

experiência/enteléquia. Ou seja, a informação digitalizada é uma linguagem

condicionante da realização de experiências que se liguem a uma causa interna ao nosso

ser.

Tal como o filósofo e cientista esloveno Slavoj Zizek nos diz, “a máquina digital

gera a experiência “simulada” da realidade e tende a tornar-se indiscernível da realidade

“real”, minando consequentemente a própria noção desta última” (Zizek, 2006: 78)

É com base neste contexto de desenvolvimento de novas formas de comunica-

ção, que a problemática sobre a experiência do virtual se estabelece intrínseca à expan-

são do ciberespaço. Nesse sentido, o subcapítulo que se segue é dedicado à análise do

conceito virtual, como traço basilar da informação e comunicação contemporâneas.

1.1 O Virtual na era digital

Este subcapítulo parte da premissa de que o virtual contém vários significados

distintos. Em primeiro lugar aborda-se o sentido técnico de virtual, no qual se aprofunda

a linguagem digital e a exposição de novas formas de comunicação – nomeadamente, as

mensagens que proliferam nos nossos computadores como: os hipertextos, as simula-

ções interativas e os mundos virtuais. De seguida expõe-se o sentido filosófico, em que

convocarei a Metafísica de Aristóteles, para melhor compreendermos o virtual como

parte integrante da realidade e não somente como algo que, num sentido geral, pode ser

encarado como irreal.

A partir da criação da norma VRML passou a ser possível, através de um com7 -

putador com um ‘rato’, viajar na world wide web em qualquer máquina que esteja ligada

à rede e explorar as imagens tridimensionais interativas que existem nessa mesma rede.

O uso crescente da norma VRML leva a que o computador e os softwares existam ao

serviço de algo que se emancipou, o ciberespaço. A ligação mundial dos computadores

em rede provocou um meta-mundo navegável, de informação codificada e igualmente

transparente. A necessidade de constituir uma linguagem materializa-se em novas for-

Virtual Reality Modeling Language7

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mas de comunicação e possibilita aos consumidores uma experiência virtual emancipa-

da.

Estar ligado ao caos é uma característica do ser humano contemporâneo; a ne-

cessidade de criar um serviço universal de contacto, em que nos possamos sentir cida-

dãos do mundo; em que cada espaço onde nos encontramos está ligado a todo o mundo;

em que cada departamento da nossa vida está representado na rede, é uma questão que

vai para além da física da comunicação. É uma resposta à necessidade de nos sentirmos

enraizados, com uma causa interior que nos move; é uma resposta ao desejo de criar

uma civilização com uma inteligência coletiva. Esta interligação criada pelo ciberespaço

coloca “as pessoas e as coisas no mesmo banho de comunicação interactiva.” (Lévy,

1997:132)

No livro, O Espectador Emancipado, Jacques Rancière sublinha a necessidade

do ser humano dar significado, códigos, às coisas e de criar uma linguagem; tanto o ile-

trado como o intelectual aprendem da mesma forma, “observando e comparando uma

coisa com outra, um signo com um facto, um signo com outro signo.” (Rancière,

2010:18)

No que diz respeito às relações pessoais, será um erro pensar que as relações vir-

tuais tendem a substituir os antigos dispositivos de comunicação. A imagem do isola-

mento em frente ao ecrã não deixa de ser uma “imagem de marca” criada através de

uma fatia social desta nova era. Contudo, também é um facto que os assinantes da inter-

net se colocam nessa condição – em frente ao ecrã.

É justamente a partir desse potencial do computador — um operador capaz de

digitalizar informação, de criar códigos e descodificá-los — que os hiperdocumentos

conseguem devolver ao utilizador a dupla qualidade de espectador/autor. Através daqui-

lo que vai lendo e da forma como escolhe e interage com as possibilidades do hipertexto

o navegador torna-se simultaneamente autor e leitor — aquele que “actualiza um per-

curso, ou manifesta este ou aquele aspecto de reserva documental, contribui para a re-

dacção, conclui momentaneamente uma escrita interminável” (Lévy, 1997:63).

Hoje em dia, essa arte de edição proveniente do CD-ROM (Compact-Disc Read

Only Memory) dos anos 90, consegue uma relação muito mais rápida, sem suporte físico

porque se encontra em linha e onde cada leitor pode fazer as suas ligações, de hipertexto

a hipertexto, escolhendo as que para si fazem mais sentido. Duas são as obras de Chris

Marker, onde o mesmo modo de interligação se expressa de forma evidente: o CD-Rom

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Immemory One e a criação de um Avatar (persona virtual) no Second Life . Na primeira, 8

o autor cria um ciber museu a partir da noção de arquivo, em que estabelece uma pro-

posta de geografia da memória, ao criar vários separadores independentes, cuja relação

entre eles é estabelecida pela forma como o espectador/leitor os consome; e na segunda,

Chris Marker cria um Avatar a partir do pressuposto do projecto Second Life, um mun-

do virtual 3D, onde os participantes podem criar personas e socializar entre si. Neste

contexto, é possível criar, personalizar e alterar uma identidade sempre que se quiser.

Uma das características da digitalização é que, ao contrário do tratamento analó-

gico, a reconstituição da informação é incomparavelmente mais rápida e permite um

tratamento automático e em grande escala. A capacidade de traduzir informação sob a

forma de números, fez com que se conquistasse um controlo sobre as formas, as cores,

os sons, as palavras, os gráficos, que fora do tratamento digital não é possível alcançar.

Através dos softwares indicados conseguimos programar/virtualizar quase tudo, é pos-

sível dar ordens ao software para num texto de 300 páginas, alterar uma palavra no con-

junto dessas 300 páginas, e isso acontecerá em apenas alguns segundos; no caso do

som, é possível acelerar ou abrandar uma melodia padronizada sem que com isso se al-

tere a relação entre cada nota; no caso da imagem, é possível aumentar ou diminuir o

tamanho de uma fotografia digitalizada, sem perder a sua forma. No caso de um filme,

através do software indicado, é possível mudar a cor de um objeto em todas as cenas

desse filme padronizando-o em relação à cor original ou independentemente da luz a

que tenha estado exposto quando filmado. Mais uma vez, isto apenas é possível, através

da codificação da informação e da sua transformação em números, a partir dos quais um

computador pode fazer cálculos mais rápidos e precisos. Portanto, assim como os com-

putadores conseguem calcular a informação digitalizada, também se tornou possível a

construção de softwares que conseguem sintetizar essa informação natural e editar sons,

ou imagens, que se baseiam na padronização do seu modelo inicial, mas que são na sua

génese, sintetizados (virtuais). Sobre o interesse desta binarização, Pierre Lévy sublinha

que,

“dispositivos muito variados podem registar e transmitir números co-dificados em linguagem binária, de facto, os números binários podem

O Second Life é um mundo virtual 3D, que funciona num endereço em rede, gratuito, no qual os 8

usuários podem socializar e conectar-se, através de mensagens de voz e texto.�10

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ser representados fisicamente por uma grande variedade de dispositi-vos em duas situações (aberto ou fechado, liso ou côncavo, negativo ou positivo, etc.). É assim que os dígitos circulam através dos fios eléctricos, informam os circuitos electrónicos, polarizam as bandas magnéticas, traduzem-se por clarões nas fibras de vidro, por micro depressões nos discos ópticos, incarnam estruturas de moléculas bio-lógicas, etc.” (Lévy, 1997:55)

“O virtual é uma fonte indefinida de actualizações” (Lévy, 1997:52), pois existe

de um ponto de vista intangível até que se materializa em algo concreto. Por exemplo, a

informação digitalizada (traduzida em 0 e 1) não é legível até que possa ser processada e

materializada no ecrã dos nossos gadgets (computadores, tablet, smarphones, etc.). Um

programador possibilita o funcionamento da experiência virtual, entendida aqui como

ciberespaço, criando um depósito de mensagens num contexto dinâmico — acessível a

todos e alimentados por todos. Ele constrói uma memória coletiva em tempo real, pois

“providencia a virtualidade, arquitecta os espaços de comunicação e ordena os equipa-

mentos colectivos da cognição e da memória, estrutura a interacção sensoriomotor com

o universo dos dados.” (Lévy, 1997:153)

Esta rede transmedia destaca-se como sendo um meta-mundo, que possibilita o

pulsar de cada mundo virtual particular e cria passagens dinâmicas como se fossem ele-

vadores, túneis e caminhos de uma cidade real.

A experiência do utilizador transmedia levanta um conjunto de problemas sobre

os quais, o livro, À procura de uma enteléquia pretende reflectir. Sem a pretensão de 9

estabelecer uma resposta unívoca, algumas dessas questões são: quais as novas formas

de comunicação que emergem da realidade virtual? Se a experiência é aquilo que acon-

tece em nós e o virtual é aquilo que, tanto no sentido técnico como filosófico, compre-

ende em si ambos os contrários, ou seja, pode ser e não ser simultaneamente, então, de

que maneira o virtual condiciona a qualidade da nossa experiência? E ainda, se os hábi-

Sendo, À procura de uma enteléquia, uma transmedia storytelling, um conceito introduzido por Henry 9

Jenkins (2003), este livro audiovisual, enquadra-se na cultural digital contemporânea, na medida em que utiliza, como ponto de partida, a dramaturgia do espectáculo transdisciplinar Lan em Fuga, traduzindo-se numa nova experiência transmedia, tornando essa mesma narrativa mais completa.

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tos e as ferramentas que usamos estabelecem a forma como pensamos, lemos e criamos

a memória, que transformações cognitivas estão a ocorrer, neste início do séc.XXI? 10

Do ponto de vista de Pierre Lévy a comunidade coletiva do ciberespaço deveria

ser apelidada de “comunidade actual” por oposição a “comunidade virtual”, uma vez

que contribui para que o utilizador transmedia se consiga exprimir livremente, sem

constrangimentos territoriais, nem institucionais, nem de relações de poder, mas sim na

reunião de interesses comuns. Estas comunidades a que chamamos virtuais, também

têm o desejo de uma aprendizagem cooperativa, de processos abertos de colaboração,

que nos levam à construção de um universal por contacto e livre, por oposição a um

sentido totalizante. “Uma comunidade virtual não é irreal, imaginária ou ilusória, trata-

se simplesmente de um colectivo mais ou menos permanente que se organiza por meio

do novo correio electrónico mundial.” (Lévy, 1997:135).

Na sociedade contemporânea a relação do ser humano com o virtual é um dos

temas centrais. No que diz respeito à comunicação, a transmissão de informação digita-

lizada veio contribuir para um estreitamento dessa relação, ser humano/virtual, uma vez

que através de um computador, entenda-se aqui computador como uma “unidade de tra-

tamento, transmissão, memória e interfaces para a entrada e saída de

informações” (Lévy, 1997:47), cada pessoa pode aceder e alimentar um saber coletivo

inesgotável.

Uma das possíveis definições de virtual é “algo que é tão próximo da verdade

que para a maioria dos propósitos, pode ser considerado como tal”. (Souza, 2013: 2)

No âmbito da investigação desta dissertação pretendo defender que, nos tempos

contemporâneos, o virtual deve ser assumido como real — usamos ferramentas capazes

de decifrar o conteúdo virtual e, em “tempo real”, ele descodifica-se perante nós refleti-

do num ecrã. Um “computador não é um centro mas um nó, um terminal, um compo-

nente da rede calculadora universal. As suas funções pulverizadas impregnam cada ele-

mento do tecnocosmos. No limite, já não há senão um único computador, mas tornou-se

impossível estabelecer os seus limites, fixar os seus contornos. É um computador cujo

Ver, por exemplo, a reflexão de Carr (2010) “Nos últimos cinco séculos, desde que a prensa de 10

Gutenberg popularizou a leitura, o espírito literário e linear esteve no centro da arte, da ciência e da sociedade. Tão maleável como subtil, tem sido o espírito imaginativo da Renascença, a mente racional do Iluminismo, o espírito inovador da Revolução industrial e até mesmo o espírito subversivo do Modernismo. Em breve, será talvez considerado o espírito de ontem.”

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centro está em toda a parte e cuja circunferência não existe, um computador hipertextu-

al, disperso, vivo, pululante, inacabado: o próprio ciberespaço.” (Lévy, 1997: 47)

A virtualidade é uma característica inseparável da comunicação entre os seres

humanos contemporâneos, uma vez que a informação digitalizada alimenta a possibili-

dade de transcender limitações de espaço e tempo, sendo a sua ação imediata e em

grande escala.

Segundo o quadro proposto por Pierre Lévy, no seu livro “O que é o 11

virtual?” (Lévy, 1996), as relações entre virtual, potencial (possível), real e atual são, na

minha interpretação, um espelho dos processos de geração que o ser humano leva a

cabo, na aquisição de algumas das suas experiências.

Lévy, Pierre, O que é o virtual , p.132, São Paulo: Editora 34, 1996 11

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A partir da minha interpretação do quadro proposto por Lévy e criando uma ana-

logia ao princípio da passagem da potência ao ato (enteléquia) de Aristóteles, os proces-

sos de criação de algo são, maioritariamente, estabelecidos a partir do aqui e agora (ato/

atual); os desejos (virtual) levam-nos, quase sempre, a querer construir alguma coisa.

Essa vontade de construir provém da necessidade de alimentarmos uma sensação de fu-

turo — é um processo contínuo entre o que está latente em nós e a forma como o conse-

guimos manifestar; é nesses desejos latentes que baseamos o nosso futuro e a partir daí,

começa-se a criar um nó de tendências, uma teia de problemas, que apenas existe em

potência e que não é formalmente reconhecida ou admitida como real; contudo, quando

esquematizamos esse nó de tendências e o institucionalizamos, estamos a insistir para

que essas tendências se realizem. E se, desse conjunto de possibilidades predetermina-

das pelo nó de tendências institucionalizado, selecionarmos uma e persistirmos, essa

possibilidade, ao subsistir, tornar-se-á real. Ainda assim, já depois de se transformar em

realidade só deixará de ser subjetiva se, na resistência da sua subjetividade se transfor-

mar num particular objetivo. Só então, podemos dizer que chegámos ao aqui e agora, ao

que acontece dentro de nós, sendo, novamente na minha interpretação, o atual a fase

posterior do real. Renato Pedro Souza refere que, em Cibercultura, Lévy

“amplia sua concepção de virtualidade, admitindo para esta, no míni-mo, três sentidos: um sentido técnico, ligado à informática, um segun-do de uso corrente e senso comum, e um terceiro, filosófico. Na acep-ção filosófica, virtual é o que existe em potência e não em acto (…). Neste sentido, Levy reconhece ser que o virtual é dimensão muito im-portante da realidade. O segundo significado, corrente, pode ser asso-ciado à irrealidade, em oposição a uma realidade que supõe uma pre-sença tangível (o que também pode ser questionado). A realidade vir-tual fascina porque, ao mesmo tempo, reúne a tecnologia, o intangível e o potencial, que se manifestam na experiência de imersão.” (Souza, 2003: 4)

Assim sendo, estrutura-se uma contracorrente ao pensamento de que uma coisa

só pode ser ou real ou virtual. Pelo contrário, o virtual está associado à realidade uma

vez que esta o potencializa e, sendo assim, tem o seu oposto no atual. “Em termos de

rigor filosófico, o virtual não se opõe ao real mas ao actual: virtualidade e actualidade

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são duas formas diferentes de realidade. Se é da essência da semente produzir uma árvo-

re, a virtualidade da árvore é bem real (sem ser ainda actual).” (Lévy, 1997: 51)

Lévy identifica que os “dois traços distintos do mundo virtual, são a imersão e a

navegação por proximidade. Os indivíduos ou grupos participantes são imersos num

mundo virtual, isto é eles têm uma imagem de si próprios e da sua situação. Cada acto

do indivíduo ou do grupo modifica o mundo virtual e a sua imagem no mundo

virtual.” (Levy, 1997: 76). Assim, “o virtual não “substitui” o “real”, multiplica as opor-

tunidades de actualizar.” (Lévy, 1997: 92)

Partindo deste processo da passagem do virtual para o atual, Aristóteles afirma

que embora a potência (virtual), em comparação ao ato (atual), seja indicada como algo

que não existe, isso não quer dizer que a consideremos impossível. Do ponto de vista de

Aristóteles a potência é a causa externa que, através de um movimento, pode chegar a

transformar-se em ato. Desse ponto de vista, será errado pensar que algo que é possível

em potência é falso. Aristóteles destaca a diferença entre o impossível e o falso

afirmando que:

“sendo possível a existência de A, não haveria nenhuma impossibilidade de afirmarmos a existência de A; então também B deveria necessariamente existir. Mas também tínhamos suposto que B fosse impossível. Suponhamos então que também A seja impossível. Mas, afirmamos que o primeiro era possível, portanto, deve sê-lo também o segundo. (...) De facto, que B seja necessariamente possível se A é possível significa o seguinte: posto que A é possível em determinado tempo e de determinado modo, também B é possível necessariamente no mesmo tempo e do mesmo modo” (Aristóteles, 2001:

1047b 15-31)

A potência não é falsa, mas poderá ser impossível se encontrar algo que impeça

o encontro de determinadas condições que a levem ao seu fim. Sobre este lado contradi-

tório da potência, Aristóteles elabora,

“se alguém quisesse ou desejasse fazer, ao mesmo tempo, duas coisas diferentes, ou duas coisas contrárias, não poderia fazê-las; de facto, não é desse modo que ele possui a potência para fazer aquelas coisas, e não existe potência de fazer coisas opostas ao mesmo tempo: por

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isso ele fará as coisas das quais tem potência do modo como tem a potência.” (Aristóteles, 2001: 1048a 21-24)

Portanto, uma potência racional agirá, não apenas quando se desejar, mas quan-

do estiverem reunidas as condições para a sua concretização. E aqui, estabelece-se o

conceito enteléquia, pois existe contendo o fim em si mesmo — como aquilo que está

em ato — e, igualmente, as condições necessárias para se concretizar. Não podemos di-

zer que no domínio do virtual, não existe ou é impossível, a concretização daquilo que é

potencial; contudo, podemos dizer que o virtual existe na interdependência de circuns-

tâncias pré-estabelecidas à sua concretização. E são essas mesmas circunstâncias, que

irão estabelecer a enteléquia de terminada atividade. Aqui a enteléquia, aproxima-se da

teorização que Aristóteles faz do prazer, determinando-o como algo que complementa

uma atividade:

“se toda a percepção acciona a sua actividade na sua relação com o seu perceptível [específico], o que acontece na perfeição quando a capacidade perceptiva se encontra em boas condições e se relaciona com o que de mais excelente pode cair no seu campo específico (…), então, a actividade mais excelente, de acordo com cada campo per-ceptivo particular, é a que se verifica quando o órgão que se encontra em boa condição se relaciona com o objecto mais excelente dos que caem sob seu campo perceptivo. O accionamento desta actividade é o mais completo que existe e o que dá um prazer extremo.” (Aristóteles,

2004 : 235)

Para uma melhor compreensão do conceito de enteléquia, irei analisar, primei-

ramente, os seus compostos — potência e ato.

1.2 Potência e Ato

A ideia de que as coisas deixam de ser o que são quando mudam é excluída por

Aristóteles, uma vez que na sua conceção o movimento da mudança das coisas é a pas-

sagem de um modo de ser (potência) para outro modo de ser (ato). Essa passagem de

um modo de ser para outro modo de ser pertence às características inerentes a determi-

nada coisa. Para Aristóteles o ser pode existir como potência e/ou como ato.

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No que diz respeito ao ato e à potência, Aristóteles divide a existência do ser em

três formas: o ser pode existir enquanto ato, mas não enquanto potência; o ser pode

existir enquanto ato e enquanto potência; o ser pode existir apenas enquanto potência e

não enquanto ato. Estas três formas traduzem-se do seguinte modo: ao existir em ato,

mas não em potência, o ser existe sem finalidade de se transformar noutra coisa, ou seja,

não pode ser diferente daquilo que é; ao existir em ato e em potência, o ser existe por si

só, mas tem a capacidade de se tornar noutra coisa diferente daquilo que é, em relação à

sua forma atual; ao existir como potência, mas não em ato, o ser existe enquanto possi-

bilidade e sendo assim, não existe por si só de forma necessária.

“(...) é evidente que a potência e o ato são diferentes um do

outro; ao contrário, esses raciocínios reduzem a potência e o ato à mesma coisa e, por isso, tentam eliminar uma diferença que não é de pouca importância. Portanto pode ocorrer que uma substância seja em potência para ser e que, todavia, não exista, e também que uma substância seja em potência para não ser e que, todavia exista. O mesmo vale para as outras categorias: pode ocorrer que quem tem a capacidade de caminhar não caminhe, e que seja capaz de caminhar quem não está caminhando. Algo é em potência se o traduzir-se em ato daquilo que se diz ser ele em potência não implica nenhuma im-possibilidade.” (Aristóteles, 2001: 1047a 16-25)

Segundo Aristóteles, o que existe em ato não possui simultaneamente a proprie-

dade de se tornar em potência, enquanto, o que existe em potência pode simultaneamen-

te concretizar-se em ato. Aprofundando um pouco mais esta questão, podemos dizer que

a potência pode comportar o seu oposto, ou seja, aquilo que tem a potência para existir

também tem a potência de não existir.

“Dado que das acções que têm como realidade separada, fim por si, mas todas tendem a alcançar o fim como, por exemplo, o emagrecimento tem por fim a magreza; e, claro que os corpos, quan-do emagrecem, estão em movimento, segue-se que estas não são ac-ções, pelo menos não são acções perfeitas, justamente porque não são fins. Ao contrário, o movimento no qual já está contido o fim é uma acção. Por exemplo, ao mesmo tempo alguém vê e viu, conhece e conheceu, pensa e pensou, enquanto não pode estar aprendendo e ter aprendido, nem estar se curando e ter-se curado. Alguém vive bem

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quando já tenha vivido bem, é feliz quando já tenha sido feliz. Se não fosse assim, seria preciso existir um termo final, como ocorre quando alguém ao mesmo tempo se vive e se viveu. Dentre esses processos, os primeiros serão chamados movimentos, enquanto os segundos serão chamados actividades. De facto, todo movimento é imperfeito: não é possível que alguém caminhe e já tenha caminhado no mesmo momento, nem que, no mesmo momento, construa e já tenha cons-truído, advenha e já tenha advindo, receba movimento e já o tenha recebido, pois essas coisas são diferentes. Ao contrário, alguém viu e vê ao mesmo tempo, e também, pensa e pensou. Chamamos, portan-to, actividade esse último tipo de processo e movimento o outro. Dessas e de semelhantes considerações deve ficar claro o que é o acto e quais as suas propriedades.” (Aristóteles, 2001: 1048b 18-36)

Para Aristóteles o conceito da existência em ato implica movimento. A denomi-

nação de movimento, neste contexto, sublinha a ação da existência em ato. Ao contrário,

algo que tem a potência de ser mas não é, não implica movimento porque não se traduz

numa atividade ou ação, mas sim, tal como explica Aristóteles, é apenas projetado en-

quanto possível. E sendo apenas possível, não se assume como consequência de uma

causa interna, ao contrário do conceito de enteléquia.

Ao analisar o desenvolvimento de Aristóteles sobre ato e potência, verifico que

algo em potência é aquilo que tem a capacidade de mover ou que pode ser movido por

alguma coisa. Por oposição, o ato é o existir de algo que se movimenta por si só. Aristó-

teles faz uma espécie de equação dizendo que o ato está para a potência assim como,

por exemplo, “quem constrói está para quem pode construir, quem está desperto para

quem está dormindo, quem vê para quem está de olhos fechados mas tem a

visão.” (Aristóteles, 2001: 1048a 39-b2)

Podemos dizer que o ato é o movimento relativo à potência e assim podemos

dizer que o movimento no qual está já contido um fim é uma ação. Por isso, podemos

dizer que alguém, ao mesmo tempo, “vê e viu, conhece e conheceu, pensa e pensou, en-

quanto não pode estar aprendendo e ter aprendido, nem estar se curando e ter-se

curado.” (Aristóteles, 2001: 1048b 23-25)

Devemos ainda definir quando é que uma coisa é uma potência e quando é que

não. Por exemplo, uma semente já é em potência a flor ou a árvore? E se sim, é em po-

tência antes de se colocar na terra e regar, ou não? Sobre esta questão Aristóteles apre-

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senta a seguinte explicação, “quanto às coisas que dependem da razão, a questão pode

ser definida assim: elas passam do ser em potência ao ser em ato quando são queridas e

quando não intervêm obstáculos exteriores; no caso de quem deve ser curado, quando

não existam impedimentos internos.” (Aristóteles, 2001: 1049a 5-8)

E no caso da semente também. A semente será sempre um potencial por si só

porque tem a capacidade de gerar, e por isso, se não houver impedimentos exteriores ela

irá sempre ser uma potência sobre aquilo que se lhe segue imediatamente. Mas se existe

algo que é originário e que não pode ser denominado como feito de qualquer outra coisa

que se lhe antecedeu, então esse elemento é em ato e não em potência. “Por exemplo, se

a terra é feita de ar e se o ar não é fogo, mas feito de fogo, o fogo será a matéria-prima,

que não é alguma coisa determinada.” (Aristóteles, 2001: 1049a 26-27)

Em relação à prioridade do ato sobre a potência, Aristóteles sublinha a evidência

de que o ato é anterior à potência, no que toca à noção e à essência. Ou seja, do ponto de

vista de Aristóteles a noção de ato é anterior à potência, muito embora a potência tenha

a capacidade de se transformar em ato. Contudo, a noção de um potencial baseia-se exa-

tamente no seu original, ou seja no ato que tem movimento por si próprio e não no po-

tencial que através de alguma coisa adquire movimento. Tal como afirma Aristóteles,

“tudo o que vem a ser algo deriva de algo, torna-se algo por obra de algo” (Aristóteles,

2001: 1049b 28), evidenciando que o único sentido em que a potência pode ser anterior e

igualmente posterior ao ato é através da questão do tempo. Por exemplo, é impossível

que alguém seja construtor antes de construir alguma coisa ou que seja pianista antes de

tocar piano.

Em relação ao ponto de vista do ato desde a essência, Aristóteles fala da impor-

tância de um movimento que tem em vista um fim, e por isso não segue na imperma-

nência dos contrários de que pode ser ou não ser, que é algo que permeia a qualidade da

potência. O ato sendo algo que advém de outra coisa movimenta-se numa direção fixa;

“o fim constitui um princípio e o devir ocorre em função do fim. E o fim é o acto e gra-

ças a ele se adquire também a potência” (Aristóteles, 2001: 1050a 8-9). Contudo, a potên-

cia é sempre corruptível, porque é sempre potência de ambos os contrários, tem igual-

mente potência para ser e obrigatoriamente para não ser. Para os seres incorruptíveis

como o mar, a terra ou o vento, não existe este tipo de movimento e por isso eles são

sempre em ato, porque têm o movimento em si e por si.

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“E nem mesmo o movimento eterno, se existe movimento eterno, é em potência. E se existe algo eternamente movido, nem mesmo este pode ser movido segundo a potência, mas só de um lugar ao outro. E nada impede que exista uma matéria própria desse tipo de movimen-to. Por isso, o sol, os astros, e todo o céu são sempre em ato: e não se deve temer que eles em certo momento se detenham, como temem os físicos. Eles também não se cansam de cumprir o seu curso, porque seu movimento não é, como o das coisas corruptíveis, ligado com a potência dos contrários, o que tornaria fatigante a continuidade do movimento. E a causa dessa fadiga está no fato de que a substância das coisas corruptíveis é a matéria e potência e não ato.” (Aristóteles, 2001: 1050a 20-28)

Sendo assim, podemos dizer que o movimento teorizado por Aristóteles sobre a

mudança do ser, na passagem da potência ao ato, assemelha-se à passagem do virtual

para o atual, segundo a minha interpretação do quadro proposto por Lévy. Virtual será

aquilo que, ao encontrar as condições necessárias, pode atualizar-se e chegar ao seu

próprio fim.

No que diz respeito à enteléquia, Aristóteles entende que uma enteléquia não se

movimenta em direção a um fim, pelo contrário, é composta pelo adjetivo que significa

completo e do verbo εψηο, “ter” — no contexto da terminologia em análise, que tem em

si o próprio fim.

No Dicionário de Filosofia, dos autores G. Durázio e A. Roussef (2000), encon-

tramos a definição “a ação perfeita, que tem seu fim em si mesma é chamada por Aristó-

teles A. final ou enteléquia (v.). Enquanto o movimento é o processo que leva gradual-

mente ao A. o que antes estava em potência, a enteléquia é o termo final (telos) do mo-

vimento, a sua perfeita realização. Como tal é também a realização completa, portanto,

a forma perfeita do que vem a ser, a espécie e a substância. O A. precede a potência tan-

to em relação ao tempo quanto em relação à substância, pois, embora a semente venha

antes da planta, na realidade ela só pode provir de uma planta.”

Criando uma analogia, podemos dizer que a enteléquia existe como

consequência do movimento do virtual para o atual, ou seja, a passagem de um ser em

potência para um ser em ato. Por outras palavras, é a atualização de todas as

possibilidades/potencialidades de ser de uma substância. Aristóteles delimita o

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significado de enteléquia dizendo que se trata do processo de atualização de uma

potência, cujo fim está na própria entidade atualizada:

“o termo ato, que se liga estreitamente ao termo enteléquia, mesmo que se estenda a outros casos, deriva sobretudo dos movimentos: parece que o ato é, principalmente, movimento. Por essa razão não se atribui os outros predicados: por exemplo pode-se dizer que as coisas que não existem são pensáveis e desejáveis, mas não que são um movimento. E isso, porque, mesmo não sendo em ato, deveriam ser em ato. De fato, entre as coisas que não são, algumas são em potência, mas não existem de fato, justamente porque não são em ato.” (Aristóteles, 2001: 1047a 30-

b3)

Contudo, se traduzirmos enteléquia como plenitude ou perfeição, o significado

da função do verbo εψηο (ter), não mantém a contribuição mais justa do seu significado.

Provavelmente, Aristóteles usa o verbo εψηο (ter), para manter o sentido de permanecer

ou manter as condições específicas já atribuídas. Por outras palavras, o verbo εψηο (ter),

existe na palavra enteléquia com o propósito de significar que existe algo que é e que

vai continuar a ser. Uma enteléquia, pode ainda traduzir-se como um “ser que realiza em

si o estado de perfeição compatível com a sua natureza.” (Durázio e outros, 2000)

No ensaio “Notas sobre a experiência e o saber da experiência”, Jorge Larrosa

(2002) expõe vários pontos de vista sobre o que é a experiência, analisando a sua

definição. Tal como a enteléquia, a experiência é aquilo que acontece em nós, depois da

atualização e da concretização de determinada atividade. O subcapítulo que se segue

analisará o ensaio de Larrosa sobre a experiência e o sujeito da experiência, criando

uma analogia com o conceito aristotélico, enteléquia.

1.3 Experiência Virtual Emancipada

Segundo o filósofo Jorge Larrosa, a experiência é sempre irrepetível, singular.

Logo no início da sua tentativa de definição, Larrosa recorre à terminologia para definir

que experiência é aquilo que se passa em nós, ou que nos toca ou que acontece connos-

co. Tal como diz Larrosa, “a cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo,

quase nada nos acontece.” (Larrosa, 2002:21)

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O primeiro fator que, segundo Larrosa, anula a experiência é o excesso de in-

formação. Inclusivamente, Larrosa denuncia a informação como uma quase anti experi-

ência — “a ênfase contemporânea na informação, em estar informados, e toda a retórica

destinada a constituir-nos como sujeitos informantes e informados; a informação não

faz outra coisa que cancelar as nossas possibilidades de experiência.” (Larrosa, 2002: 21-

22)

No ensaio referido anteriormente, sobre o conceito de experiência, a primeira

observação que o autor esclarece é que a experiência deve ser separada da informação.

No seguimento desta afirmação, Larrosa esclarece também, que o saber da experiência

deve ser separado do saber das coisas. Depois de lermos um livro, fazermos uma via-

gem, assistirmos a um filme, a uma aula ou a uma conferência, podemos dizer que sa-

bemos mais coisas, mas sabemo-las do ponto de vista da informação que adquirimos.

Contudo, podemos não ter experienciado se nada nos aconteceu, se nada nos tocou, com

tudo o que sucedeu em cada uma dessas atividades. Sobre o excesso de informação na

sociedade vigente, Larrosa critica o facto de limitarmos o nosso conhecimento ao baseá-

lo apenas na informação que adquirimos, como se aprender “não fosse outra coisa que

não adquirir e processar informação.” (Larrosa, 2002: 22) E termina dizendo que “uma

sociedade constituída sob o signo da informação é uma sociedade na qual a experiência

é impossível.” (Larrosa, 2002: 22)

O segundo fator que condiciona o sujeito moderno à realização da experiência é,

segundo Larrosa, o excesso de opinião. Uma vez que este utilizador transmedia está

sempre na obsessão de estar informado, e cada vez melhor informado, ele tende a querer

opinar sobre toda a informação que recolhe. Essas opiniões almejam ser subjetivas, su-

postamente individuais e dele mesmo, mas o que acontece é que, nessa obsessão pela

opinião e no estar convicto sobre o que é que acha daquilo que acabou de saber, irreme-

diavelmente, sentirá um vazio — como se lhe faltasse algo essencial na sua opinião. O

sujeito moderno tem tendência a anular as suas possibilidades de experiência, porque

não permite que algo lhe aconteça verdadeiramente.

O terceiro fator que contribui, segundo Larrosa, para “tornar impossível que al-

guma coisa nos aconteça” (Larrosa, 2002: 23) é a falta de tempo. Vivemos numa era onde

as coisas se passam cada vez mais depressa, e para que possamos acompanhar essa ve-

locidade, substituímos um estímulo por outro estímulo, contribuindo assim para que os

acontecimentos sejam vividos de forma fugaz, fragmentada, pontual. Outra consequên-

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cia da velocidade é que não temos tempo para realizar uma ligação de significados entre

acontecimentos, e portanto, a velocidade impede a atuação da memória, no sentido em

que passamos de um excitamento a outro, sem conseguirmos deixar rasto. Tudo se passa

à nossa volta mas nada acontece realmente em nós. Dormimos cada vez menos, passa-

mos cada vez mais tempo na escola, no trabalho e em vários lugares ao mesmo tempo.

Esta aceleração da fragmentação do tempo, caracteriza o sujeito moderno, torna-o pas-

sivo e não o responsabiliza pela sua atividade. Tomando como exemplo, sublinho esta

experiência que um amigo me contou:

“Há uns dias pensei em ir ao cinema, já não ia ao cinema há muito tempo e nesse instante tive uma vontade enorme de ir ao cinema, uma vontade tão grande que não consegui resistir. Esqueci tudo o que achei que queria fazer naquele dia e dirigi-me ao cinema, escolhi o fil-me, a sessão, esperei pela minha vez na fila da bilheteira, sempre muito excitado porque ia ver um filme, e já não fazia isso há muito tempo. Mas no momento em que comprei o bilhete essa vontade desapareceu. Senti um vazio. Já não me apetecia assim tanto ir ao cinema. Foi como se o facto de ter comprado o bilhete, fizesse com que já tivesse ido ao cinema, mas como ainda não tinha visto o filme realmente, senti esse vazio e só pensava noutras coisas que desejava fazer.”

O vazio que este sujeito moderno registou, porque se passou dentro dele, foi a

sua experiência.

Segundo Larrosa, “somos sujeitos ultra-informados, transbordantes de opiniões

e superestimulados, mas também sujeitos cheios de vontade e hiperactivos. E por isso,

porque estamos querendo o que não é, porque estamos sempre em actividade, porque

estamos sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não podermos parar, nada nos

acontece.” (Larrosa, 2002: 24)

A velocidade encaminha-nos para o quarto fator apresentado por Larrosa como

impeditivo da experiência, o excesso de trabalho. Para que o sujeito possa acompanhar a

velocidade a que corre a informação e sobre isso opinar e agir, conforme a sua opinião,

tem que trabalhar. O trabalho é o “lugar” onde o sujeito moderno pretende confinar todo

o seu ambiente interior e exterior, segundo a sua vontade. O facto de a possibilidade de

experienciar ser quase impossível nos tempos que correm afasta o sujeito moderno do

sujeito da experiência. O sujeito da experiência, do ponto de vista de Larrosa, é alguém

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que pára para que lhe aconteça alguma coisa. Mas, para falarmos do sujeito da experi-

ência voltemos ao significado da palavra experiência; em francês, por exemplo, ce que

nous arrive. Esse sujeito será sempre um “território de passagem”, ou seja, alguém que

se permite parar, criar espaço para que algo chegue e aconteça em si. Aqui, a passivida-

de deve ser entendida, não como algo inerte mas, como algo que ao se tornar passivo

cria a possibilidade de algo acontecer realmente. Podemos concluir, portanto, que o su-

jeito da experiência não se impõe nem opõe, nem é alguém que propõe, pelo contrário,

expõe-se ao que ainda está por vir.

A raiz da palavra experiência também nos ensina, algumas coisas, que vão ao

encontro dessa capacidade de exposição do sujeito da experiência. Larrosa, analisa o

termo realçando a raiz indo-europeia per, que se relaciona com a ideia de travessia, per-

curso. Encontramos também no per (grego), outra palavra que se acumula à ideia de

travessia: a palavra peiratês, pirata. E do latim, a ideia de perigo, periculum. Este legado

de alguém que procura na travessia o perigo da ocasião, como os piratas, está presente

no significado de experiência. Também, em alemão, a palavra experiência está associa-

da ao perigo, gefåhrden, pôr em perigo. Larrosa, ainda adiciona o significado do ex, “de

exílio, de estranho e também o ex de existência”, para concluir que “tanto nas línguas

germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimen-

são de travessia e perigo.” (Larrosa, 2002: 25)

Assim, a forma de adquirir uma experiência, uma vez que ela se coloca apenas

no sujeito - esse território de passagem - é através, segundo Larrosa, de uma lógica de

paixão por oposição a uma lógica de ação. E é aqui que o conceito experiência se rela-

ciona com o de enteléquia, teorizado por Aristóteles. Larrosa esclarece que a lógica da

paixão não implica que o sujeito não se envolva no acto da experiência, é exactamente

porque a paixão pela experiência é arrebatadora, que o sujeito fica impedido de agir -

mas não de assistir ao seu modo de operar em si mesmo. Larrosa define que a lógica da

paixão “não é incompatível com a liberdade ou a autonomia do sujeito” (Larrosa, 2002:

25), contudo, porque a paixão prende o sujeito a determinada experiência, ele fica refém

porque se expõe. É uma decisão sua, no sentido em que ele sabe que não pode possuir

autocontrolo sobre a força arrebatadora daquilo que se passa dentro dele. É nessa ten-

são, entre sentir-se livre porque a experiência o faz renascer e sentir-se dominado por-

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que a experiência o coloca fora de si, que reside a lógica da paixão que, segundo Larro-

sa, é a única lógica que pode compreender o domínio da experiência. 12

O sujeito da experiência não é incapaz de agir ou responsabilizar-se, muito pelo

contrário, ele precisa de experienciar para relacionar o seu saber com a vida humana. O

conhecimento que adquirimos das nossas experiências, não é um saber que nos protege

da pressão da informação que nos obriga a ter uma opinião sobre tudo. O conhecimento

da experiência, tal como diz Larrosa, não se trata “da verdade do que são as coisas, mas

do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece.” (Larrosa, 2002: 27) Por isso, esse

saber é subjetivo, porque está “ligado à existência de um indivíduo ou de uma comuni-

dade humana particular; ou, de um modo ainda mais explícito, trata-se de um saber que

revela ao homem concreto e singular, entendido individual ou colectivamente, o sentido

ou o sem-sentido de sua própria existência, de sua própria finitude.” (Larrosa, 2002: 27)

Através da forma como Larrosa analisa o saber da experiência podemos, rapi-

damente, compreender, que o saber da experiência é singular e único, tal como quando

duas pessoas experienciam o mesmo acontecimento e isso acontece de forma diferente

com essas duas pessoas. Porque o saber da experiência está relacionado com a nossa

existência, é que podemos comprovar o quão raro é conseguirmos experienciar na sua

totalidade, uma vez que “a experiência já não é o que acontece, ou o modo como lhe

atribuímos ou não um sentido, mas o modo como o mundo nos mostra sua cara legível,

a série de regularidades a partir das quais podemos conhecer a verdade do que são as

coisas e dominá-las.” (Larrosa, 2002: 28). O sujeito moderno tende a querer dominar para

se sentir seguro e, por isso, experienciar tornou-se uma “acumulação progressiva de

verdades objectivas que, no entanto, permanecerão externas ao homem”. (Larrosa, 2002:

28)

“Vários estudos mostraram que alternar entre apenas duas tarefas pode sobrecarregar substancialmente a nossa carga cognitiva,

A propósito disto, Carr (2010) refere, “Comecei a perceber que o computador era mais do que uma 12

simples ferramenta que fazia aquilo que lhe era pedido que fizesse. Era uma máquina que, de formas subtis mas inquestionáveis, exercia uma influência sobre o utilizador. Quanto mais o usava, mais a forma como eu trabalhava se alterava. No início era para mim impossível editar texto usando um ecrã. Imprimia um documento, fazia anotações com um lápis e depois transferia as revisões para a versão digital. Depois, imprimia o documento de novo e voltava a rever com lápis. Por vezes repetia este ciclo dúzias de vezes ao dia. Mas a dada altura – e abruptamente – a minha rotina de edição mudou. Descobri que já não conseguia rever e editar nada em papel. Sentia-me perdido sem a tecla de “delete”, sem a barra de navegação, sem as funções de copiar e colar, sem o comando de “Anular”. Eu tinha que fazer toda a minha edição em ecrã. Ao usar a função de processador de texto, eu próprio me havia tornado numa espécie de processador de texto."

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obstruindo o nosso pensamento e aumentando a probabilidade de omissão ou má interpretação da informação que nos é dada. Numa experiência simples, foram mostradas uma série de formas coloridas a um grupo de adultos e foi-lhes pedido que fizessem previsões base-adas no que viram. Essa tarefa tinha que ser executada enquanto usa-vam auscultadores através dos quais eram transmitidos uma série de apitos. Num dos ensaios, foi-lhes pedido que ignorassem os apitos e que se concentrassem exclusivamente nas formas. Num segundo en-saio, usando uma série de pistas visuais, foi-lhes pedido que contas-sem o número de apitos. Após cada um dos ensaios foi-lhes pedido que interpretassem o que tinham acabado de fazer. Em ambos ensai-os, os indivíduos fizeram previsões com níveis de sucesso compará-veis. Mas quando o ensaio envolveu múltiplas tarefas, os sujeitos manifestaram mais dificuldade a tirar conclusões acerca dos seus tes-tes. A alternância de tarefas causou um curto-circuito no seu enten-dimento; cumpriram de facto o que lhes foi pedido, mas o significado do pedido perdeu-se. (…) Na internet, onde frequentemente execu-tamos não duas mas várias tarefas mentais simultâneas, a alternância pode ter custos ainda mais elevados” (Carr, 2010:133).

O uso crescente do virtual mediado pelo ciberespaço, embora contemporâneo,

acompanha outros movimentos, já em curso, independentes do movimento da informa-

ção. “A comunicação prossegue com o digital um movimento de virtualização iniciado

há muito tempo por meio de técnicas mais antigas tais como a escrita, o registo do som

e da imagem, o rádio, a televisão e o telefone. O ciberespaço encoraja um estilo de rela-

ção quase independente dos lugares geográficos (telecomunicação, telepresença) e da

coincidência do tempo (comunicação assíncrona).” (Lévy, 1997:53)

Segundo a minha análise e reflexão, o sentido totalizante, livre e colaborativo do

ciberespaço, é um movimento imparável, que nos coloca constrangimentos mas, que

através do qual é possível renovar o sentido das relações humanas e caminhar para um

coletivo inteligente – um princípio da cibercultura já apontado por Lévy.

“Uma técnica não é boa nem má (isso depende dos contextos, dos usos e dos pontos de vista), nem neutra (visto que ela é condicionante ou constrangedora, dado que tanto abre o leque das possibilidades aqui como o fecha mais adiante). Não se trata de avaliar os seus “impactos” mas de assinalar as irreversibilidades a que nos comprometeríamos através da sua utilização, as ocasiões em que ela

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nos permitiria aproveitar, formular os projectos que explorariam as virtualidades de que ela é mensageira e decidir o que fazer deles.” (Lévy, 1999: 27)

Assim, em relação à experiência virtual ser ou não ser uma experiência, partindo

da problematização do conceito de enteléquia, tal com a enteléquia não é um

movimento, pois não existe em direção a um fim, também a experiência só acontece

quando nos expomos ao seu perigo; nesse sentido, tanto o atual com o virtual são

domínios operacionais da experiência, pois não se pode dizer que a mesma exista

apenas num domínio ou no outro, quando o saber da experiência é o que acontece

dentro de nós.

“Daqui resulta, pois, evidente também que não se pode dizer correctamente que o prazer é uma mudança ou um processo de geração. Pois estes fenómenos só podem ser predicados do que é divisível em partes e não existe como um todo, porque também não há processo de geração do acto de visão nem de um ponto matemático nem de uma unidade. Não se pode, portanto, também aqui falar de mudança ou de processo de geração. Portanto, não há nenhuma mudança nem qualquer processo de geração do prazer, porque se trata de um todo.” (Aristóteles, 2004 : 235)

Assim como, para Aristóteles, o prazer se liga à enteléquia, para Larrosa, a

lógica da paixão é a única capaz de compreender o domínio da experiência, pois não se

trata de um processo de geração de algo — como no caso da passagem do virtual para o

atual — que transcorre no tempo, mas sim de algo que existe na sua totalidade e

perfeitamente dotado do seu completo.

Assim, a enteléquia da experiência virtual existirá quando o órgão percetivo (por

exemplo, visual, auditivo, intelectual) se encontrar em condições de se relacionar com o

objeto que o segue, igualmente, excelente. Nesse princípio de transformação do virtual

para o atual, poderá então construir-se o lugar da experiência ou da enteléquia, um lugar

que existe como um todo, separado do tempo em que transcorre a mudança.

O facto de o prazer surgir da completude de uma atividade define, igualmente,

que o prazer não completa uma atividade, assim como a enteléquia não existe enquanto

o movimento da passagem do virtual ao atual, mas provém daí completando a activida-

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de da existência em acto. Nesse particular, Aristóteles esclarece que “o prazer não com-

pleta a actividade do mesmo modo que [a completam] o objecto perceptivo e a percep-

ção, no caso de serem bons, tal como a saúde e o médico não são do mesmo modo os

fundamentos responsáveis pelo estabelecimento da saúde.” (Aristóteles, 2004 : 235-36)

Portanto, podemos dizer que o virtual condiciona o saber da experiência mas não

o determina como impossível de chegar à sua enteléquia, se aquele que experiencia con-

seguir reunir as condições necessárias para que o objeto percetível se complete através

da perceção.

2. A cine-escrita, uma montagem horizontal

Na sua origem, o vídeo-ensaio, enraíza-se no género literário, cujo possível sig-

nificado é uma “tentativa, experiência, que alguém faz sobre um domínio, para analisar

a sua capacidade, a sua aptidão.” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, 2001)

Como tal, para analisar a capacidade de um domínio, o ensaio faz-se valer de algumas

regras que o caracterizam como um mediador.

Segundo Nora Alter, Professora de Cinema e Belas-Artes da Universidade de

Temple:

“ ‘Ensaiar’ significa ‘pôr à prova’, ‘examinar’, ‘fazer uma tentativa’, sugerindo um processo em aberto, uma investiga-ção em progresso. Contudo, esse objectivo da pesquisa é perseguido e colocado em constrangimento pela individuali-dade da presença subjectiva. (..) O uso corrente da palavra ensaio enquanto género, tem a sua origem no séc.XVI atra-vés do filósofo e sociólogo Michael de Montaigne, cujo Es-sais (1580) exerceu uma profunda influência nos filósofos do Iluminismo, e em inúmeros críticos seus sucessores, des-de Marquês de Sade, Giacomo Leopardi e Ralph Waldo Emerson, a Georg Lukács, Theodor Adorno, Walter Benja-min e Roland Barthes.” (Alter, 2007: 45)

Nesse sentido, este capítulo procura dissecar, as características do género vídeo-

ensaio na era digital, uma vez que as mesmas consolidam a narrativa inerente ao proces-

so de montagem audiovisual no projeto, À procura de uma enteléquia.

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Assim, no subcapítulo seguinte, dedicar-me-ei à análise do ensaio desde a sua

origem, complementando a problematização do género à luz do conceito de enteléquia,

defendo-o como um mediador de questões teóricas, que se faz representar através de

uma linguagem visual.

2.1 O ensaio como mediador de complexidades

No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia de Ciências

de Lisboa, podemos ler que o ensaio é proveniente do latim tardio exagium (peso). Nos

exames, experiências, provas e testes da Ciência, o ensaio é uma “operação feita para

comprovar as qualidades ou propriedades de alguma coisa ou para verificar se algo con-

vém ou não a determinado fim;” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, 2001)

A origem do ensaio remonta à antiga oratória greco-romana, partilhando das

mesmas características, tais como: o tema livre, um estilo simples e natural, a subjetivi-

dade na escolha de diversos elementos (citações, sabedoria pessoal, factos e memórias)

e a mescla não sistematizada em que apresenta a sua reflexão. Tem como referência o

rigor racional da organização da linguagem e introduz uma nova forma de pensar, que

vai sendo construída através de tentativas (uma das definições da palavra essai, em

francês).

É no âmbito da Literatura que o ensaio se destaca, apresentando-se como um

texto literário breve, situado entre o poético e o didático, que expõe ideias, críticas, re-

flexões éticas e filosóficas a respeito de um certo tema. Trata-se de uma correlação de

significados, um teste de ideias, um jogo entre factos e ficções. É uma “composição lite-

rária breve, sobre determinado tema ou assunto, geralmente em prosa, de carácter analí-

tico, especulativo ou interpretativo.” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea,

2001)

Em comparação com outros géneros literários, o ensaio não implica uma ordem

previamente estabelecida, como é o caso do texto informativo, o artigo de imprensa, a

dissertação ou o tratado. Consiste na exposição lógica e reflexiva de um ponto de vista

pessoal e subjetivo em que, através de uma argumentação rigorosa, se defende determi-

nado tema (humanístico, filosófico, político, social, cultural, moral, literário, religioso,

etc.).

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Em todos estes exemplos, desde a literatura à utilização popular, o ensaio é uma

ruptura, uma fissura na ordem natural do quotidiano. Tendo em conta as relações que se

estabelecem com os diferentes domínios, o ensaio pode apresentar, segundo Paviani,

entre outras, as seguintes características:

“ a) É um estudo, uma investigação, uma reflexão, etc. Pode ter como condição a provisoriedade de alguma coisa que não possui a pretensão de estar acabada. b) É um estudo formalmente desenvolvido, dentro de padrões mais ou menos formais; mais flexível que um tratado, por exemplo. Mesmo que seu estilo se aproxime do literário, o ensaio é elaborado, isto é, não é o espontâneo nem o caótico, mas formalmente apresentado a partir de determinados padrões; c) O ensaio, como texto, pode ser de natureza literária, científica e filo-sófica. Entre todos os gêneros textuais é aquele que melhor possui trân-sito entre a filosofia, a ciência e a crítica; d) Deve a exposição do assunto ser lógica, mesmo adotando o estilo livre, isto é, sem seguir os passos de uma análise detalhada ou uma de-monstração exaustiva, o ensaio expõe a matéria com racionalidade, mesmo quando utiliza a linguagem poética; e) Tem, apesar da diversidade de modos de apresentação, algo em co-mum a todos eles que é o rigor de argumentação, de demonstração. O rigor, que não se confunde com a exatidão, é característica indispensá-vel do verdadeiro ensaio; f) O rigor típico do ensaio aparece aliado, quase sempre, ao estilo de interpretação e de julgamento pessoal. Sem ser subjetivo, o ensaio não abole o espaço da subjetividade como pretende fazer o tratado ou o ar-tigo científico. g) O rigor, a interpretação e o julgamento pessoal do autor pressupõem que haja maior liberdade de expressão, liberdade que a maioria dos gê-neros não possuem. A liberdade consiste em poder defender uma posi-ção sem o apoio empírico, documentos ou outros recursos metodológi-cos; h) Requer o ensaio, tendo em vista esse conjunto de características, que o autor tenha informação cultural e maturidade intelectual. Nesse senti-do, é um gênero difícil de elaborar, pois, a liberdade de estilo, de ritmo, de expressão exige sutileza e equilíbrio.” (Paviani, 2009: 4)

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Um dos mais importantes autores deste género, Michel de Montaigne

(1533-1592), quando se recolheu para escrever os Essais em 1580, tinha como objetivo

primordial, permitir ao pensamento uma nova forma de abordar o real. Para Montaigne,

a verdade absoluta deixa de estar ao alcance do ser humano, sendo apenas possível ex-

por uma verdade por aproximações.

Montaigne era um pensador ético, um político, filósofo, pedagogo e escritor,

considerado como o fundador do ensaio pessoal. Nas suas obras analisou as instituições,

as opiniões e os costumes, debruçando-se sobre os dogmas da sua época e tomando a

generalidade da humanidade como objeto de estudo. Faz parte daquele grupo de pensa-

dores que perguntam em vez de responder, e porque acreditava que a educação tem

como objetivo primordial a formação de indivíduos aptos ao julgamento, à análise críti-

ca e à vida prática, criticou ferozmente a educação formal dos conteúdos e das mnemó-

nicas. Foi o primeiro a falar numa “cabeça bem-feita” (expressão que Egdar Morin, filó-

sofo e sociólogo, escolheu para título de um de seus livros), em detrimento de uma “ca-

beça cheia”. Procurar, duvidar, investigar e exercitar o pensamento, são ferramentas que

o ensaio utiliza para problematizar as suas questões e que estão, igualmente, no cerne

das preocupações de Montaigne.

Esse posicionamento de Montaigne identifica o ensaio como um texto livre, que

coordena ideias com uma forma aberta de expor o pensamento, e mesmo quando expõe

teorias, não o faz de forma dogmática ou normativa; não tem como finalidade fechar

ideias ou apresentar soluções; é um género que permite ao leitor transitar do filosófico

para o artístico, para o científico ou, ao contrário, sem diminuir o rigor da exposição.

Embora se determine a origem do género textual do ensaio com os Essais de

Montaigne, não poderemos negar as inúmeras referências, como Aristóteles, Plutarco,

que já antes de Montaigne, escreveram diversos textos ensaístas. Ainda assim, se qui-

sermos assumir um posicionamento cultural e histórico existe um conjunto de referenci-

ais teóricos e sistemáticos que o definem enquanto género. “Locke, em Ensaio acerca

do entendimento humano, mais de um século depois de Montaigne ter apresentado seus

escritos, afirma que seu texto foi elaborado com liberdade de pensamento e como passa-

tempo de horas ociosas e difíceis. Afirma ainda que a matéria é tratada de modo descon-

tínuo.” (Paviani, 2009: 2). Pela flexibilidade de estilo, o ensaio serve tanto os empiristas

ingleses, que se alimentam da liberdade de pensamento nas horas ociosas, como a Kant

e a outros racionalistas de pensamento sistemático. �31

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Se no caso da escrita, os domínios que o ensaio utiliza para a experiência do seu

estudo, são a literatura e a filosofia, no caso do vídeo-ensaio são a ficção e o documen-

tário. Temas como a representação da história estão quase sempre presentes no género

do vídeo-ensaio porque, mais uma vez, o seu objetivo é a eloquência do pensamento em

profundidade sobre determinado tema.

No vídeo-ensaio, o vídeo é a representação de um pensamento, uma experiência

ensaísta que se dedica a estudar e a levantar problemas – é um processo de traduzir dis-

positivos retóricos para uma linguagem audiovisual, através de um conjunto de camadas

(som, imagem, texto, títulos, anamorfoses, quiasmos), ampliando e produzindo novos

significados. Habitualmente os vídeo-ensaios são acompanhados por uma voz off, em

que a camada de texto contradiz diretamente a camada visual, gerando uma colisão de

opostos e traduções que devem ser completados, de forma única, por quem os recebe. A

mudança de perspetiva (anamorfose) e a contradição da própria narrativa (quiasmos)

são algumas das ferramentas utilizadas no vídeo-ensaio.

Assim, o ensaio literário e o vídeo-ensaio definem-se como algo que muda fa-

cilmente de forma e que, usualmente, utiliza muitas formas. No que diz respeito ao mo-

delo do vídeo-ensaio, Nora Alter defini-o do seguinte modo:

“o ensaio audio-visual é um produto com várias camadas – uma ca-mada de imagem, uma camada de som, e também uma componente sob a forma de sub-capítulos e títulos e até escrita directamente sobre o celulóide – muitas vezes acompanhada de locução. A camada de texto por vezes contradiz directamente a camada de imagem, criando no texto fílmico total uma colisão de opostos e complexos níveis de significado que o público deve co-produzir. Este modelo de tradução, que galvaniza o observador para tomar o papel de participante activo na construção do significado, fornece o ensaio audiovisual com metá-foras de relacionamento e participação num meio que é tradicional-mente associado com alguma passividade.” (Alter, 2007: 48)

Ursula Biemann, editora da coletânea Stuff it, diz que “é indispensável olhar para

o vídeo no contexto mais abrangente do desenvolvimento de novos media, da Internet e

da produção de imagem visual e entender como estas tecnologias enfatizam ou alteram

as características do ensaio enquanto abrem novas possibilidades de engajamento crítico

com ele.” (Biemann, 2003: 8) Assim, este género híbrido que unifica dois géneros cine-

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matográficos há mais tempo estabelecidos (o documentário e a ficção), contribui para a

expansão do cinema enquanto arte e, ao enraizar-se na produção teórica e artística (cuja

sua fundação remonta a França, entre os anos 50 a 70), evolui para as vídeo instalações

nos museus de arte contemporânea, a partir da segunda metade do séc. XX.

Na sequência desta exposição, o subcapítulo que se segue, pretende analisar o

percurso do ensaio audiovisual, de forma a compreendermos melhor como é que o ví-

deo-ensaio se foi constituindo, enquanto género, na prática do cinema até aos dias de

hoje.

2.2 A origem do ensaio na teoria e na prática do cinema

Embora a genealogia do vídeo-ensaio remonte para autores e filmes tais como,

Man with a Movie Câmera (1929), de Dziga Vertov; Rain (1927), de Joris Ivens; Berlin,

Symphony of a Great City (1927), de Walter Ruttmann's, foi em 1940 que, pela primeira

vez, Hans Richter, um cineasta alemão vanguardista, pretendeu validar o termo ensaio

enquanto género cinematográfico, ao publicar o artigo Der Filmessay, Eine neue Forma

des Dokumentarfilms (O vídeo-ensaio: uma nova forma de documentário). Nesse mes-

mo artigo, destaca o vídeo-ensaio como um novo tipo de cinema intelectual e emocio-

nal. Em comparação com o cinema documental, Richter diz que, “neste esforço de dar

corpo ao mundo invisível da imaginação, dos pensamentos e das ideias, o vídeo-ensaio

pode usar um reservatório incomparavelmente maior de meios expressivos do que um

filme puramente documental” (Richter, 1964: 31) Segundo Richter, este género de filme

não está subjugado às regras clássicas do documentário, como por exemplo, a sequência

cronológica dos factos que o realizador quer mostrar mas, pelo contrário, expande o po-

tencial artístico do mundo da imaginação.

Em 1948, Alexandre Astruc, um crítico e realizador da Nouvelle Vague, publica

na L´Ecran Français um artigo, traduzido para inglês como The Birth of a New Avant-

Garde: La Caméra-Stylo, em que, tal como Richter, destaca o vídeo-ensaio como per-

cursor de um novo cinema de autor, que acompanha a evolução tecnológica e as lógicas

da sociedade. Nesse mesmo artigo Astruc diz que,

“por linguagem refiro-me a uma forma na qual e através da qual um artista possa expressar os seus pensamentos, sejam estes quais forem, ou traduzir as

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suas obsessões exactamente como o faria no ensaio contemporâneo ou num romance. É por isso que gostaria de apelidar a esta nova forma de cinema a era da caméra-stylo (câmara-caneta). Esta metáfora tem um significado preci-so. Com ela quero dizer que o cinema irá gradualmente libertar-se da tirania do visual, da imagem por ela própria, do imediato e dos requisitos imediatos e concretos da narrativa, para se tornar um meio de escrita, tão flexível e subtil como a linguagem escrita.” (Corrigan, 1999:159)

Esta ideia de que o realizador escreve através da câmara convoca o sentido de

autor da literatura, em que o escritor, apenas com uma caneta e uma folha de papel, con-

segue tecer um mundo vasto de pensamento, emoção e ação. Assim, o cinema renova a

sua própria linguagem, criando mais espaço para que uma série de discursos e novos

estilos nasçam.

Em 1958, André Bazin, um crítico cinematográfico e cofundador da revista

Cahiers du cinéma (1951), publica, pela primeira vez, um artigo onde reflete sobre o ví-

deo-ensaio enquanto género. Nesse artigo, Bazin afirma que o filme Lettre de Sibérie

(FR, 1957), de Chris Marker, é um ensaio documentado por um filme e realça a utiliza-

ção de legendas por cima das imagens. No seu comentário, Bazin diz, “o termo impor-

tante aqui é “ensaio”, interpretado com o mesmo significado que tem na literatura – um

ensaio ao mesmo tempo histórico e político, escrito da mesma forma por um(a)

poeta.” (Bazin, 2003: 44)

Referindo-se à literatura, Bazin refere que a composição de montagem realizada

por Chris Marker, um dos percursores do vídeo-ensaio, é inédita e, simultaneamente,

similar à literatura – apelidando-a de “horizontal”, por oposição à relação duracional

entre frames. O conceito de ensaio relacionado com os audiovisuais permite que o autor

sobreponha imagens, sem predeterminar um significado fechado ao conjunto da monta-

gem; é do ponto de vista de quem vê que se consubstancia a totalidade da expressão das

imagens e dos seus significados; um plano, não diz apenas respeito ao plano que o ante-

cedeu nem àquele que o precederá. Na sua complexidade horizontal e rizomática, esta

nova forma de montar relaciona um plano/frame com aquilo que o autor quer transmitir.

A montagem horizontal que Bazin realça é igualmente referida por Adorno, que

a caracteriza como uma carpete, onde “ ‘o pensamento não avança numa direcção única’

e na qual ‘os diferentes aspectos da discussão (argumento) se entrelaçam’ para permitir

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que a beleza e a inteligência das palavras se transfiram para o componente visual: ‘a

montagem foi forjada do ouvido para o olho’ ” (Bazin, 2003: 44).

Para Bazin, o realizador ensaísta é aquele que utiliza todo o material vídeo como

matéria-prima para produzir significado sem o compromisso de se assumir direto ou

linear. Similarmente, Richter define o vídeo-ensaio como sendo livre de gravar, numa

sequência simples, os fenómenos que captura, podendo recolher a matéria-prima de

todo o lado – “o seu espaço e tempo são condições somente na medida em que existe a

necessidade de explicar e mostrar uma ideia.” (Richter, 1964: 31).

Ainda em relação à comparação entre o vídeo-ensaio e a literatura, Timothy Cor-

rigan, sublinha algumas das características dominantes do género cinematográfico aqui

em análise:

“(1) normalmente – mas não necessariamente – um pequeno documen-tário (2) onde não existe uma narrativa organizacional dominante (em-bora a narrativa possa fornecer um ou mais padrões no filme), e (3) a interacção de uma voz ou visão pessoais, por vezes sob a forma de lo-cução/voz-off. No filme-ensaio, a interacção dessa perspectiva subjec-tiva e a realidade ante ela torna-se um teste ou uma interrogação de ambas, e a estrutura do filme, como no ensaio literário, segue o movi-mento indeterminado desse diálogo.” (Corrigan, 1999 : 58)

É a partir do contexto do cinema Europeu, num ambiente pós-guerra, e das ten-

tativas antecedentes para qualificar o vídeo-ensaio como género cinematográfico que,

nos anos 50 e 60, emerge a Nouvelle Vague, um grupo/movimento de cineastas franceses

que estabeleceram o vídeo-ensaio como uma nova forma do cinema de autor; esbateram

as fronteiras entre o documentário e a ficção; assumiram o género ensaísta como um

meio de expressão das suas convicções políticas e utilizaram-no para fazer uma reflexão

sobre o mundo. Tal como refere Nora Alter,

“Embora os vídeo-ensaios tenham sido produzidos esporadicamente

há pelo menos 80 anos, este género só foi verdadeiramente teorizado na década final do século 20. Desde então a produção de ensaios áu-dio-visuais tem aumentado de tal forma que estes foram aceites como um terceiro género cinematográfico.” (Alter, 2007:45)

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Autores como Jean-luc Godard, François Truffaut, Alain Resnais, Agnés Varda e

Chris Marker, foram pioneiros desse movimento que nunca se pretendeu fechado, mas

que se dividia entre os críticos e os cineastas mais próximos da Cahiers do Cinema,

onde se situavam Godard e Truffaut, e um outro grupo apelidado The Left Bank, ou Rive

Gauche, onde se situavam os restantes, que se destacaram pela construção de um cine-

ma experimental que se aproxima muito mais da literatura e das artes plásticas, em

comparação ao outro grupo de realizadores, embora igualmente ensaístas.

A exponencial proliferação de documentários de cariz pessoal e reflexivo, que

cruzaram as fronteiras da ficção e da não-ficção, fez com que o movimento de teoriza-

ção sobre o vídeo-ensaio enquanto género se desenvolvesse também. De acordo com

Theodor Adorno, um dos teóricos fundamentais no estudo da forma de ensaio, “a lei

formal nuclear do ensaio é a heresia.” (Adorno, 1991:23) Mais do que garantir uma

sequência de factos ou uma narrativa ficcional linear, o ensaio pretende procurar, duvi-

dar, investigar e exercitar o pensamento. A transgressão, que transita da literatura para o

vídeo-ensaio, está presente na liberdade de expressão subjetiva com que o autor pro-

blematiza as suas questões.

Georg Lukács, outro teórico contemporâneo a Adorno, também considerou que

o ensaio era algo indefinível, e complementa-o dizendo que, o mesmo “deve criar de

dentro de si mesmo todas as pré-condições para a sua eficácia e para a solidez da sua

visão.” (Lukács, 1974: 11)

Aldous Huxley, escritor inglês, refere três polos possíveis dessa dialética ensaís-

ta, entre o factual e o ficcional, dizendo que, “existe o pólo do pessoal e autobiográfico;

o pólo do objectivo, factual, do concreto-específico; e existe o pólo do abstracto-univer-

sal” (Rascaroli, 2008: 25-26)

Paralelamente, Nora Alter, estudiosa da obra de Chris Marker, teoriza sobre o

ensaio dizendo, que o mesmo, não é “heresia no ensaio literário de Adorno, o vídeo-en-

saio desrespeita as fronteiras tradicionais, é transgressivo estruturalmente e conceptual-

mente, auto-reflector e auto-reflexivo.” (Alter, 1996: 171)

Jean-Luc Godard, um cineasta reconhecido como ensaísta, sugere-nos em His-

toire(s) du cinéma (FR, 1997-98) que o cinema é a “forma que pensa e o pensamento

que forma” (Godard, 1972: 171) Similarmente, Adorno fala sobre a descontinuidade na li-

nha de pensamento do ensaio e no entrelaçar de significados e Lukács comenta que os

ensaístas devem tornar-se conscientes de si mesmos e construir a partir daí. �36

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Dois dos exemplos propostos por Laura Rascaroli no artigo Essay Film: Pro-

blems, definitions, textual commitments, como sendo de difícil atribuição de categoria

são, Sans Soleil (Chris Marker, FR, 1983), e Fahrenheit 9/11 (Michael Moore, US, 2004),

que acabam inseridos no mesmo género (vídeo-ensaio) por apenas terem em comum, a

utilização de uma voz off e a dificuldade em classificá-los – não obstante, do ponto de

vista autoral, serem completamente diferentes.

Embora o termo vídeo-ensaio continue a servir para qualificar filmes que se en-

contram entre a ficção e a não-ficção, existe já um trabalho teórico, especialmente desde

a última década no séc. XX, que, devido à grande afluência da forma, tenta definir e

problematizar o ensaio, enquanto género cinematográfico. E ainda, na comparação dos

dois géneros, uma vez que o aparecimento do vídeo-ensaio, no contexto cinematográfi-

co, deriva do género do documentário, Nora Alter, compara-os dizendo que “ao contrá-

rio do documentário que apresenta factos e informação, o ensaio produz pensamento

complexo que por vezes não assenta na realidade mas que pode ser contraditório, irraci-

onal e fantástico.” (Alter, 2002: 7).

Assim, a prática ensaísta contamina a prática cinematográfica com uma forte agi-

lidade para refletir, responder e expressar o momento presente, a partir da lógica arqui-

vista do documentário. Existe, inclusive, uma avaliação de Paul Arthur, um crítico de

cinema vanguardista, que sobre as características do vídeo-ensaio, sublinha que “a utili-

zação de imagens pré-existentes e colagens faz com que exista uma tensão, na sobrepo-

sição entre o passado das imagens de arquivo e o presente daquele que as comenta, e na

qual, tal como numa miscelânea, o ênfase estabelece-se mais na investigação, do que na

nostalgia.” (Rascaroli, 2008: 34).

Duas são as obras de Chris Marker (com o mesmo pendor de colagem, arquivo e

crítica subjetiva) onde tal afirmação se expressa de forma evidente: Zapping Zone: Pro-

posals for an Imaginary Television (1991) e Immemory (1998). Na primeira, existe a in-

tenção de colocar o espectador em contacto com múltiplas fontes de informação (vários

monitores de diferentes tamanhos a emitir, em simultâneo, diferentes narrativas); numa

perspetiva contrária à do cinema, em relação à cronologia das imagens, o espectador

efetua a sua montagem in loco, as imagens funcionam em loop e é o espectador quem

escolhe quanto tempo dedica à observação e interação das mesmas. Por fim, contraria-

mente a uma sala de cinema ou teatro (onde o espectador é colocado, na sua generalida-

de, sentado e no escuro), na instalação Zapping Zone o espaço do espectador é uma área �37

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sem assentos disponíveis. Na segunda, Marker desenvolve o conceito iniciado em Zap-

ping Zone, continuando a sua investigação sobre a forma como a memória arquiva, que

é em tudo semelhante à forma como os softwares se organizam. Immemory, produzido

em colaboração com o Centre Pompidou, é exibido em vários museus e amplamente

adquirido para uso pessoal. Será desnecessário referir que, no formato de instalação

num museu, o CD-ROM Immemory é mais cinematográfico do que em casa num compu-

tador pessoal; embora no museu convoque a interatividade, encontra-se num local pú-

blico, com acesso limitado e em casa, o espectador viaja amplamente pelo arquivo de

memórias do autor, com outra disponibilidade de tempo e em condições mais confortá-

veis. Sobre a questão do arquivo e do trabalho sobre a memória, Marker apresenta em

Immemory, uma proposta ensaísta cujo espectador é coprodutor do autor. Trata-se de um

jogo entre o autor e o espectador, uma vez que o autor propõe uma organização de me-

mórias por temas, lugares, momentos da História, personalidades,

“Por exemplo o primeiro menu no ecrã apresenta oito possibi-lidades: Guerra, Filme, Museus, Fotografia, Poesia, Viagens e Xplugs. Se se escolher Fotografia, várias outras opções são dadas: China, Coreia, Vietnam, Cuba, Bósnia, Segunda Guerra Mundial. Cada uma destas janelas abre para uma multiplicida-de de imagens algumas das quais são novas, outras antigas, e muitas reconhecíveis de anteriores ensaios fotográficos ou fil-mes fotográficos de Marker.” (Alter, 2006: 121-122)

E assim, o espectador, ao escolher a associação entre as várias imagens, textos,

extratos sonoros, etc. torna-se cocriador, através da leitura que faz, do arquivo que o au-

tor propõe.

Com Imemmory, Chris Marker eleva o ensaio no domínio dos audiovisuais; uti-

liza-o como ferramenta mediática, na interligação de vários conteúdos, reforçando as

suas raízes no género literário; encontrando assim, uma expressão contemporânea da

sua forma clássica, para a investigação e o desenvolvimento de uma memória coletiva,

política e social.

Ao refletir sobre qualquer assunto, o ensaio constrói a sua posição a partir de

uma visão crítica, introspetiva e, por isso, subjetiva do autor; é o resultado de uma pro-

cura que acaba por encontrar a sua forma; é uma ferramenta de reflexão que, ao não

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obedecer a nenhuma regra, se tece através de uma dialética entre o factual e o ficcional.

É, portanto, um mediador de questões teóricas, uma vez que para problematizar, utiliza

ferramentas da linguagem visual, com as quais o espectador coproduz, em sintonia com

a proposta do autor.

Podemos facilmente estabelecer uma relação inequívoca entre o vídeo-ensaio e o

conceito de enteléquia, uma vez que tanto um, como outro, operam segundo uma causa

interna, contendo em si o seu próprio fim – “a prática ensaísta é altamente auto refletiva

no sentido em que reconsidera constantemente o ato de fazer imagens e o desejo de pro-

duzir significado. Está entrelaçado conscientemente na atividade da própria representa-

ção” (Biemann, 2003: 10) Aqui, reside um ponto-chave de associação entre o vídeo-en-

saio e o processo de uma enteléquia, uma vez que a última se estabelece depois de uma

ação chegar ao fim, pois apenas nesse momento consegue existir em consciência da sua

própria representação. A fusão dos contrários, no género do vídeo-ensaio, assemelha-se

à atualização de todas as possibilidades de uma enteléquia, uma vez que o seu objetivo é

o completo, o que não pode ser mais do que é.

Encontramos em Sans Soleil (Chris Marker, FR, 1983), um outro forte exemplo

em como essa aparente passividade (intrínseca ao ensaio) é uma expressão resultante da

mediação entre várias complexidades. Filmado em Cabo Verde, Guiné-Bissau, Islândia

e Japão, o filme apresenta a narrativa de uma mulher que, sem se apresentar, “lê — e às

vezes comenta subtilmente — cartas enviadas para a Europa por um ficcional Sandor

Krasna, que poderá ser alguém que filma, um realizador ou simplesmente um

viajante.” (Corrigan, 1999: 113). Ao situar o espaço da narrativa de Sans Soleil em ilhas,

Marker, sublinha o isolamento associado às mesmas pois, embora lugares isolados, as

ilhas funcionam, paralelamente, em concordância com os continentes. Assim, o autor

cria a primeira premissa de reflexão ensaísta sobre as questões do tempo e do espaço,

para analisar a forma como o ser humano cria e realiza a manutenção da memória.

«No início do filme, a comentadora anuncia que a sua corresponden-te, Krasna, em tempos referiu que “no século XIX a Humanidade reconciliou-se com a noção de espaço, e a grande questão do século XX foi a coexistência de vários conceitos de tempo.” Ao explorar a relação entre as questões do tempo e do espaço através de vários cor-tes para a frente e para trás de um local para outro, o filme cria uma

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montagem desarticulada que leva o espectador a recordar-se de uma série de narrativas ao mesmo tempo.» (Alter, 2006: 104)

Além do carácter epistemológico que acompanha a narrativa, as questões que

problematizam a memória e a impermanência das imagens e dos lugares apresentam-se,

tal como referencia Nora Alter, através dos cortes e das colagens de um lugar a outro,

formando assim uma montagem horizontal que contribui para relação de intimidade que

o ensaio estabelece. Entre um olhar de Cabo Verde, que olha de frente para a câmara, os

habitantes anónimos de Tóquio, enraizados nos barulhos eletrónicos que compõem a

atmosfera da cidade e a imagem da felicidade, que aparece vinda da Islândia como uma

imagem difícil de se interligar, Chris Marker apresenta-nos uma ‘longa carpete’ (utili-

zando a expressão de Bazin), que nos leva à reflexão sobre os mecanismos da memória.

Se por um lado, Krasna confessa que, depois de tanto viajar, já só lhe interessam as ba-

nalidades do quotidiano, por outro, reflete sobre as incongruências da História (os mas-

sacres entre Portugueses e Africanos e em como a antevisão de Amílcar Cabral o con-

duziria inevitavelmente à morte), nas suas palavras: “quem é que se lembrará de tudo

isso? A História atira para fora da janela as suas garrafas vazias” (Alter, 2006:109).

Outro aspeto fundamental na reflexão de Marker sobre a questão da memória,

mais concretamente sobre a tradução de emoções em sistemas de representação, é a in-

terligação do modo como a tecnologia media a nossa noção da História. Em Sans Soleil,

por exemplo, Krasna refere o suicídio coletivo de 200 jovens mulheres que, para não

serem capturadas vivas pelas tropas americanas, se mataram com granadas, em Junho

de 1945, em Okinawa. Agora, podemos encontrar isqueiros em forma de granadas, que

se vendem como souvenirs. Um símbolo de guerra transformou-se num símbolo vazio,

mediado pelo turismo, o marketing e o dia-a-dia. Ao inscrever este acontecimento na

narrativa do ensaio, Marker, dá-nos a testemunhar o quanto efémeras são as imagens e

as memórias.

Existe, na montagem que se movimenta do ouvido para o olhar, a qual denomino

de montagem horizontal, os mesmos componentes que produzem a enteléquia pois, na

narrativa reflexiva de Sans Soleil, os argumentos não seguem uma só direção, é na atua-

lização das possibilidades, que a problematização intrínseca ao filme sobre a memória e

o tempo se expressa.

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Nesse sentido, o vídeo-ensaio é uma ferramenta capaz de conseguir tecer uma

narrativa que reflita sobre as ramificações da interligação de mensagens e ideias que,

por vezes, convergem mas que nunca se tornam estáticas. Tal como o estado de

enteléquia, o vídeo-ensaio é também uma experiência, uma tentativa de esquematizar

possibilidades, sem a necessidade de chegar a um fim. A reflexão per si é o próprio fim.

Assim, podemos concluir que tanto a fragmentação narrativa, como a articulação

entre o subjetivo e o universal, formam os componentes da montagem horizontal, de

uma escrita cinematográfica, que se movimenta segundo uma causa interna ou, por

outras palavras, segundo aquilo sobre o qual a escrita pretende ensaiar.

Ao defender, nesta dissertação, o vídeo-ensaio como ferramenta que acompanha

a passagem do virtual para o atual, pretendo que a obra À procura de uma enteléquia,

através da fusão ensaísta escrita/vídeo, possa ser um motor de reflexão sobre o tempo

presente, a tecnologia e o fluxo da informação digitalizada.

No próximo e último capítulo, analiso a obra à luz dos conceitos já desenvolvi-

dos nos capítulos anteriores, começando pela contextualização da obra no domínio das

transmedia storytelling e progredindo para a análise de cada um dos componentes prati-

co-artísticos aqui apresentados.

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3. À procura de uma enteléquia

A obra, À procura de uma enteléquia, pretende refletir as idiossincrasias da dia-

lética entre a expansão do ciberespaço/características da cibercultura e a forma como,

através dessa nova linguagem, estabelecemos as nossas experiências na vida diária. In-

trínsecas a essas idiossincrasias estão a relação do ser humano com o virtual – a forma

como o ser humano realiza as suas experiências, e o condicionamento que o virtual as-

sume nas suas decisões quotidianas.

Inserida no contexto das transmedia storytelling, a obra — livro audiovisual, À

procura de uma enteléquia — tem a sua origem no espetáculo transdisciplinar, LAN 13

em Fuga, com direção artística de Rosinda Costa e cocriação de Simão Costa, subsidia-

do pela dgArtes , apresentado no âmbito do Festival Internacional de Vídeo, Perfor14 -

mance e Tecnologias, InShadow, no Teatro Municipal São Luíz, em Dezembro de

2011 . 15

Transmedia storytelling é um termo introduzido por Henry Jenkins (2003), pes-

quisador na área da comunicação e dos novos média. Num artigo online na MIT Techno-

logy Review, Jenkins refere,

“Na forma ideal da transmedia storytelling, cada meio cuida

daquilo que faz melhor – de modo que uma história pode ser apresen-tada num filme, alargada através da televisão, dos romances e da banda desenhada, e que o seu mundo pode ser explorado e vivido através dos jogos. Cada formato franchise precisa de ser suficiente-mente independente de modo a permitir um consumo autónomo. Isto é, não temos de ter visto o filme para desfrutarmos do jogo e vice-versa. Como o Pokemon tão bem faz, um dado produto é um ponto de entrada para o franchise no seu todo.” (Jenkins, 2003)

Neste capítulo dedicar-me-ei à exposição da dramaturgia do livro, À procura de

uma enteléquia, no contexto das transmedia storytelling. Assim, o primeiro subcapítulo

“Narrativa e Forma”, será direcionado para a reflexão sobre o processo de transforma-

ção da narrativa do espetáculo, LAN em Fuga, que evoluiu para o livro audiovisual aqui

Local Area Network13

dgArtes – Direção-Geral das Artes, Governo de Portugal | Ministério da Cultura.14

Ver anexo 115

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em análise; seguindo-se da articulação da obra com as características das transmedia

storytelling.

O último subcapítulo desta dissertação teórico-prática, “Vídeo-ensaios”, estabe-

lece uma análise detalhada sobre dois guiões, aqui apresentados, dos doze vídeo-ensaios

que compõem o livro.

3.1 Narrativa e Forma

O espetáculo LAN em Fuga começa com a protagonista da história (Rosinda

Costa) a relatar a perda do seu telemóvel e a de um anel, oferecido pela sua mãe, perto

de um caixote de lixo, numa noite de Natal. Depois de ter revirado o lixo, não encontra

nem uma coisa, nem outra. Então, decide pedir ajuda a um hacker amigo (Simão Costa).

Enquanto troca mensagens encriptadas com esse amigo, o qual denomina de maquinista,

vai percorrendo uma viagem desde a feira da ladra, passando pelo deserto Atacama, até

à ilha de lixo (Midway), no Oceano Pacífico Norte.

LAN em Fuga cruza várias áreas de conhecimento artístico tais como a música, a

eletrónica e o teatro, com o objetivo de, em conjunto, produzirem uma reflexão sobre

como funciona o movimento gerado pela informação — o movimento do conhecimento

contemporâneo. No espetáculo, a composição musical constitui-se em tempo real a par-

tir da dialética entre a palavra/som, o gesto/som e a máquina/som, em que o piano, ins-

trumento presente em cena, assume também ele o papel de máquina sonora; a máquina

de cena dialoga com a parafernália informática e tecnológica que em simbiose constitui

o espaço cenográfico para a ação do som, do movimento e da palavra. A dramaturgia e o

movimento procuram refletir sobre as consequências do mundo virtual e da perceção de

como esse mundo virtual se objetiva no quotidiano . 16

O processo de criação propõe uma pesquisa sobre as distâncias de proximidade

existentes nas relações humanas, advindas dos gadgets informáticos do nosso quotidia-

no e tem como objetivo a análise sobre as consequências dessas redes de contacto. A

descrição das condições discursivas que, Guattari e Deleuze, propõem a partir do con-

ceito de rizoma, apresenta uma possibilidade válida para a exposição dos objetivos artís-

ticos de LAN em Fuga.

Ver anexo 216

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O rizoma conecta-se de um ponto qualquer a outro ponto qualquer. Não deriva

de forma alguma do Uno, nem ao Uno se acrescenta de forma nenhuma. Não se consti-

tui de unidades mas sim de dimensões. O rizoma é feito de linhas: tanto linhas de conti-

nuidade quanto linhas de fuga como dimensão máxima. O rizoma é o que já foi. Em

contraponto aos sistemas centrados, que privilegiam o centro, são apresentados os a-

centrados, em que o enfoque recai sobre os meios, os intervalos, as ervas-daninhas entre

as plantações. O rizoma é classificado como a-centrado, é uma rede de autómatos fini-

tos. A condição deste tipo de sistema é a de complexidade, em que não há um decalque,

uma cópia de uma ordem central, mas sim múltiplas conexões que são estabelecidas a

todo o momento, num fluxo constante de desterritorialização e territorialização.

LAN em fuga [cujo título traduz em si mesmo uma contrariedade, ou seja, por

princípio uma rede local (LAN) não se encontra em fuga], pretende refletir sobre que

experiências fazemos de nós próprios na era do Google? Que pactos estabelecemos com

os outros ao estarmos ligados a plataformas como o facebook, twitter, youtube, hi-5? Do

famoso pianista canadiano Glenn Gould - essencial, como ponto de partida, no processo

de criação de LAN em Fuga - retive o seguinte pensamento: “por cada hora que passa-

mos com outro ser humano precisamos de x número de horas sozinhos”.

Na relação com o espetáculo LAN em fuga, À procura de uma enteléquia preten-

de dar continuidade a essa reflexão, evoluindo agora para o formato de livro audiovisu-

al. Aquilo que o formato da narrativa, através dos vídeo-ensaios, pretende comunicar é

que na atualização do virtual, chegamos a um lugar onde a experiência acontece. É na

vertigem de não sabermos como reagir, sem a velocidade do tempo moderno, que reali-

zamos a nossa enteléquia.

A personagem protagonista da história, À procura de uma enteléquia, consegue

parar o movimento da virtualização, uma vez que a perda do iPhone demonstra-lhe que

o mesmo existia apenas como potência, ao desaparecer do seu tempo presente. Esse

movimento provocado pelo estado de enteléquia está presente na forma como a narrati-

va é organizada, através da interligação dos clipes de texto com os vídeo-ensaios. Cada

clipe de texto apresenta um problema, sobre o qual o leitor tem que escolher um cami-

nho e a sua escolha aciona um vídeo-ensaio que continua essa mesma narrativa. Relaci-

onando a passagem do atual ao virtual e em como esse movimento está estritamente re-

lacionado com a passagem da potência ao ato, teci uma narrativa fragmentada em que,

desde início, o problema é apresentado como uma potência e por isso encontra, inequi-�44

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vocamente, dois caminhos possíveis para o leitor. A cada avanço da narrativa existe uma

tendência para o caminho se fragmentar, quase sempre uma bifurcação que antecede o

momento em que se escolhe o caminho.

A fragmentação da narrativa simboliza o caos provocado pelo movimento do

virtual e a inevitabilidade do fim representa o lugar onde a experiência acontece (cada

escolha do leitor aproxima-o de um fim, embora ele tenha a ilusão que está a ampliar o

seu caminho, de facto, está a torná-lo mais estreito).

O livro é composto por doze clipes vídeo e sete clipes de texto gráfico (todos

acompanhados por uma textura sonora e voz off). O projeto contém todos os elementos

necessários para a construção de uma aplicação acessível a qualquer sistema operacio-

nal móvel, como um ipad ou tablet. Cada percurso acionará trinta minutos de video-en-

saios e uma das regras inalteráveis do livro é: só é possível recomeçar a história a partir

do mesmo ponto, desde a última utilização, não sendo possível voltar atrás a meio da

viagem.

O termo transmedia storytelling introduzido por Jenkins foi criado para conse-

guir traduzir as narrativas particulares, cuja estrutura se estabelece no uso transversal de

linguagens (poética, irónica, crítica, absurda, etc.) e médias (web, televisão, jogos,

cinema, etc.). Carlos Scolari publicou, no International Journal of Comunication 3

(2009), a propósito da definição de transmedia storytelling, que “não é somente uma

adaptação de um média a outro. A história contada na banda desenhada não é igual à

que é contada na televisão ou no cinema; os diferentes média e linguagens participam e

contribuem para a construção de um mundo com uma narrativa transmedia” (Scolari,

2009)

Existe, nessa figura contemporânea a quem chamo utilizador transmédia, uma

cultura participativa na construção dessas narrativas que se alimentam de diversos mé-

dias. Nas palavras de Henry Jenkins esta aceção é objetiva:

“A verdade é que entrámos numa era de convergência dos média que faz com que o fluxo dos conteúdos através de múltiplos canais média seja quase inevitável. A evolução dos efeitos da qualidade dos gráfi-cos dos jogos de vídeo significam que é cada vez mais realista que sejam reduzidos os custos de produção através da partilha de recursos entre os média. Todos os elementos da estrutura de uma indústria moderna do entretenimento foram concebidos com este princípio em

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mente - a construção e melhoria de franchisings de

entretenimento.” (Jenkins, 2003)

As histórias transmédia visam um alcance alargado nos espectadores, pois ao

criarem um universo ficcionado podem, a partir daí, difundir-se através de múltiplos

canais de comunicação, conquistando um número maior de utilizadores. Regra geral,

um utilizador, embora tenha a tendência para preferir um dos canais de comunicação,

reconhece e consome os múltiplos dispositivos que determinada narrativa tem para

oferecer. O facto de haver um universo ou personagem central faz com que o enredo

tenha capacidade de se estabelecer através de vários média, estimulando o interesse do

utilizador.

“Em muitos casos, as histórias transmédia são baseadas não em

personagens individuais ou enredos específicos mas sim em

mundos fictícios complexos que conseguem suster múltiplas

personagens interligadas bem como as suas histórias. Este

processo de construção de mundos encoraja um impulso

enciclopédico tanto nos leitores como nos escritores.” (Jenkins,

2007)

Uma outra característica identificada por Henry Jenkins sobre as narrativas

transmédia, é a enorme capacidade de resposta económica que o uso transversal dos

média consegue gerar. “Um conglomerado de média tem incentivo para espalhar a sua

marca ou expandir os seus franchisings por tantas plataformas de média quanto

possível.” (Jenkins, 2007).

Assim, a obra, aqui apresentada, pretende contribuir como expressão da

“ascensão de um novo universal” (Lévy, 1997:16). Segundo, Pierre Lévy esse “novo

universal” já não é “um universal totalizante”. Deixou de depender da fixação dos

textos e da informação que circula no mundo inteiro, para se posicionar de uma forma

aberta, interativa, sujeito à contribuição de cada pessoa que, ao mesmo tempo que nele

navega, alimenta a sua expansão. Perante esta mudança de transmissão de saber, a

denominação, novo universal, refere-se a uma nova forma cultural, diferente da que

vivemos até agora, no sentido em que já não existe um sentido global sobre o qual este

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“novo universal se constrói” (Lévy, 1997:16). Ou seja, nas civilizações orais, as

mensagens que se trocavam eram recebidas segundo o próprio contexto, para evitar a

probabilidade de más interpretações, uma vez que se uma mensagem mudar de contexto

pode ganhar um novo significado. Contudo, a evolução das civilizações foram criando

uma mesma linguagem que se fixa independentemente do tempo e do espaço. O

ciberespaço é um símbolo desse novo universal, ele desenvolve-se e “difunde-se pela

interligação das mensagens, pela sua ramificação permanente no meio de comunidades

virtuais em transformação que lhes instilam sentidos diversificados em permanente

renovação” (Lévy, 1997:16).

À semelhança das Aventuras Fantásticas — uma conceção de Steve Jackson e

Ian Livingstone — neste livro, À Procura de uma enteléquia, o leitor também determina

o seu próprio caminho, encontrando várias bifurcações na narrativa, entre seguir as

instruções do detetive privado (que constantemente se apresenta por intermédio de

outros) ou seguir o seu próprio instinto, na interpretação das pistas que vai recolhendo.

Essa escolha é determinada pelo leitor e provocada deliberadamente pela obra. No fim

da viagem, a protagonista do livro vê-se sozinha num lugar isolado (uma ilha de lixo,

perto do Hawai) e aí, finalmente, consegue parar. É nesse momento de ruptura, de

paragem, que encontra, de forma inesperada, o ímpeto da sua missão e realiza a sua

enteléquia.

Os dois exemplos de perdas (a de um smartphone e a de um anel) que a narrati-

va da obra nos apresenta, destacam-se como símbolos de como nos relacionamos con-

nosco e com o meio que nos rodeia. A forma como usamos um smartphone, nos tempos

modernos, é algo que nunca antes foi vivido pela humanidade. A inteligência artificial

tem gerado um fascínio por parte do sujeito moderno que, agora, consegue realizar vári-

as tarefas simultaneamente, rentabilizando o tempo a uma velocidade à qual não estava

habituado. Existe a tendência para se pensar que ser mais rápido é ser melhor, exata-

mente pela questão do tempo. O tempo é algo convencionado pelo ser humano tendo em

conta a sua finitude — uma vez que sabemos que temos em média 80/85 anos de vida,

surge, muito rapidamente, na nossa existência a sensação de que não podemos desperdi-

çar tempo.

É uma realidade atual que, através de um gadget como um smartphone, pode-

mos socializar, comprar, interagir com quase todos os serviços disponíveis na socieda-

de. Contudo, o processo de virtualização dos nossos desejos deve ser atualizado, sendo �47

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necessário encontrar esse espaço de atualização, de reafirmação de uma causa interna

que nos guie na concretização dos nossos desejos. Caso contrário, nada acontece em

nós, e assim, como diz Larrosa, torna-se impossível realizarmos experiências. A perda

de algo que nos permite obter uma certa velocidade pode influenciar a forma como nos

posicionamos perante os outros e aquilo que nos rodeia.

O smartphone representado na narrativa da obra simboliza a velocidade de inte-

ração constante entre o ser humano e o virtual e também a ideia de que o virtual pode

substituir o real, impossibilitando-o de chegar ao atual. Tal como já referi no subcapítu-

lo “O virtual na era digital” da presente dissertação, o real existe, não como contrário

do virtual, mas como um estágio entre o virtual e o atual. Quando alguém que baseia o

seu dia-a-dia num plano virtual perde o gadget que lhe permite essa interação, perde

também a noção de como interagir com os outros e com o meio que o rodeia.

A perda do anel simboliza o apego à matéria e é equivalente à perda do

smartphone. Ambas as perdas existem na narrativa da obra, para refletir sobre como o

ser humano se relaciona com objetos, lugares ou pessoas. As questões que a obra

levanta sobre como o ser humano desenvolve as suas experiências, demonstram que o

movimento da passagem do virtual para o atual não diz, apenas, respeito à relação do

ser humano com a inteligência artificial, mas acontece mesmo sem interação com a

tecnologia. Segundo a minha análise, todas as pessoas têm a tendência, desde os nossos

antepassados, para criarem signos e símbolos que possam materializar o que sentem.

Criamos memória para reconhecermos a nossa própria existência. Fazemo-lo como

quem constrói um fio narrativo desde que nascemos até morrermos. Essa tendência

existe para sentirmos que há algo que nos pertence, que até o sem-sentido da nossa vida

faz sentido. A perda do anel simboliza, na narrativa da obra, a perda de alguém, a perda

de um fio condutor capaz de impedir a conexão com a realidade.

Nessas duas perdas, a primeira tem um laço afetivo baseado na utilidade e a

segunda baseada no apego. Ambas as perdas têm o mesmo peso, ambas condicionam a

experiência do virtual/atual, uma vez que sem o smartphone a personagem vê-se

incapaz de experienciar o real, e sem o anel oferecido pela mãe, ela fica desnorteada

dentro de si ou, por outras palavras, torna-se incapaz de atualizar que vive.

Quanto às questões formais sobre a organização dos clipes que compõem o

livro, À procura de uma enteléquia, os clipes de texto gráfico têm como objetivo

conduzir o leitor a uma atualização da experiência da narrativa proposta e, por contraste, �48

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os vídeo-ensaios ampliam o universo ficcional proposto, através das múltiplas camadas

que os constituem.

No subcapítulo que se segue irei expor a dramaturgia do livro À procura de uma

enteléquia a partir de um esquema figurativo. Este esquema é um esboço da totalidade

do livro audiovisual que permite visualizar o funcionamento do mesmo, bem como

compreender melhor a narrativa.

3.2 Estrutura Dramatúrgica

Para uma melhor compreensão da análise dramatúrgica que irá ser exposta neste

subcapítulo, apresento o esquema da dramaturgia do livro audiovisual À procura de uma

enteléquia:

�49

A PERDA - Texto Gráfico TLM e anel da mãe. Encontra papel de

detective privado das coisas queridas dos

outros. Faz ficha de inscrição. Recebe

em casa uns ténis com GPS. Fica pertur-

bada.

Vai ter com a mãe ou com um grande

amigo.

FEIRA DA LADRA - Texto-GráficoMotor de busca tipo google.

O sr. João. Ela conta-lhe a história das

perdas, mas ele não viu o anel, contudo o

amigo do sr. João viu. Feira da Ladra

passa a Palavra. Vai ao café na feira da

ladra… aparece o amigo do sr. João a

dizer que viram uma senhora marroquina

a comprar o tal anel, e que ouviram dizer

que ela está a caminho de uma Marina,

no Algarve. Entretanto o detective liga

para esse mesmo café com novas coorde-

nadas, apontando na mesma direcção.

MÃE #1 - Vídeo-ensaioTexto sobre a perda da mãe. O

efémero da vida. Não existe

tempo, só existe experiência.

AMIGO #2 - Vídeo-ensaioO tempo da experiência. Sem o

gadget como faço?

Como acompanho a velocidade?

ABELHAS #1 - Vídeo-ensaioAvô. Memórias. Raízes. Tempo.

ABELHAS #2 - Vídeo-ensaioA importância das abelhas no

nosso planeta.

continua na página seguinte

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FUZETA - Texto-GráficoChega a um café, e encontra a marroqui-

na. Entretanto o detective envia novas

coordenadas: deve dirigir-se à Marina e

procurar o Capitão Gabriel, que tem um

veleiro vermelho chamado corcovado, e

seguir viagem com ele. Fica de novo em

duvida se deve seguir a marroquina ou o

detective privado das coisas queridas dos

outros.

VELEIRO #1 - Video-ensaioViagem clandestina.

VELEIRO #2 - Vídeo-ensaioAs propriedades da água. Nós

somos feitos de água.

ÍNDIA - Vídeo-ensaio Ritual dos Elefantes. Aquela hora e

meia sem tempo nem espaço.

LIGA PARA O NELITO - Texto-GráficoVai para Cabo Verde.

ABELHAS #2 - Vídeo-ensaioA importância das abelhas no

nosso planeta.

MIDWAY ILHA DE LIXO - Vídeo-ensaioOuve um telefone tocar. É o seu,

atende:

“Estou, filha, estou farta de te ligar. Era

só para te dizer que deixaste o anel cá

em casa, na noite de Natal.

NOVAS COORDENADAS #2 - Vídeo-ensaioVai para Cabo Verde.

Cabo Verde - Texto-GráficoI die but memory lives on.

NOVAS COORDENADAS #2 - Vídeo-ensaioVai para a América Latina

EPÍLOGO - Texto GráficoO regresso

VIAGEM COM O NELITO #1 - Vídeo-ensaio

A MALA, O NELITO E A RITA - Vídeo-ensaio

FIM - Texto Gráfico

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Na estrutura acima referida podemos observar que a história começa com duas

perdas que levam à inscrição e ativação dos serviços de um detetive privado. Perante

isso a mulher tem que escolher se quer ir falar com a mãe ou com um grande amigo.

Aqui, tanto a mãe como o amigo são sinónimos de segurança, e quer num caso quer

noutro, convergem para a feira da ladra, um lugar que será associado a um google ao

vivo, e onde a mulher encontrará os próximos passos da investigação. Na Feira da Ladra

novamente é confrontada com duas opções possíveis: ou segue o seu instinto e persegue

a marroquina; ou segue as coordenadas que o detetive envia. Ambas indicam o próximo

destino: a Fuzeta no Algarve.

Se seguiu as coordenadas do detetive, vai refletir acerca da importância das

abelhas no nosso planeta; se seguiu a marroquina, o encontro com as abelhas, reaviva-

lhe memórias que renovam a sua identidade. Chegada à Fuzeta (Algarve), a mulher fica

novamente em dúvida sobre o caminho a seguir. Ao chegar a um café, encontra a

marroquina, mas imediatamente o detetive privado liga para esse mesmo café,

enviando-lhe novas coordenadas.

Nesta fase da narrativa, ambas as opções têm um carácter reflexivo. Aqui, a

mulher escolhe embarcar numa viagem clandestina, seguindo a Marroquina e tentando

perceber se ela leva ou não o anel da sua mãe, ou segue as coordenadas do detetive e

embarca num veleiro com o capitão Gabriel em busca do anel pelo oceano Atlântico.

Uma forte corrente, numa opção ou noutra, leva-a até à Índia.

Depois de assistir a um ritual de homenagem aos elefantes, num templo em

Kochin, na Índia, a mulher recebe novas coordenadas do detetive privado, ou no caso de

não querer seguir as indicações do detetive, lembra-se de um outro amigo que vive

exatamente no destino final, da senhora Marroquina, e continua a acompanha-la

clandestinamente – seguindo até Cabo Verde em ambos os casos.

Em Cabo Verde, a mulher encontra numa aldeia, no Tarrafal, várias famílias que

partilham conhecimento e memórias através de diários gráficos. À semelhança do

trabalho de Henning Mankell, cujo livro I die but memory lives on (2004) ilustra a

realidade de uma aldeia parecida a essa onde a mulher chega, onde ao estar a

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comunidade adulta que se encontra devastada pelo vírus do HIV , começa a preparar 17

diários gráficos como forma de alertar as gerações futuras do mesmo problema.

Na parte final da narrativa, a mulher acaba por se encaminhar para a ilha de lixo

(Midway), no Oceano Pacífico Norte, onde encontra o telemóvel e atinge a sua

enteléquia. De volta a casa é contactada pelo detetive secreto e convidada a ser sua

representante, uma vez que ele encontrou uma mala que estava a ser procurada há

bastante tempo e que finalmente poderá regressar ao seu dono. A mulher desta história

compromete-se então a fazer chegar essa mala à pessoa que a procurava encerrando

assim, não só o seu ciclo de busca, como o de outro também.

No subcapítulo que se segue irei expor o tratamento audiovisual dos vídeo-

ensaios, através de dois exemplos.

Human Immunodeficiency Virus17

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3.3 Vídeo-Ensaios

Do conjunto dos doze vídeo-ensaios que compõem o livro audio visual À procu-

ra de uma enteléquia, apresentamos aqui os guiões de “A Mãe” e “O Amigo”, repre-

sentativos das duas primeiras opções de percurso que o livro oferece.

Analisamos, assim, o tratamento audiovisual desses dois vídeo-ensaios iniciais.

3.3.1 A Mãe

Neste primeiro guião, sublinho a importância da voz off que é, assumidamente,

interpretada pela autora, aproximando assim o leitor à acção. As imagens constituem

uma exemplificação dos planos, não apenas em termos gráficos, mas sobretudo em rela-

ção à sua dinâmica, daí a variação das dimensões.

Texto Imagem

�53

Saí de casa, nervosa, numa viagem que me

parecia obscura, para encontrar a minha

mãe.

Enquanto ía a caminho, sentia-me como um

pintainho assustado, daqueles que desejam

de repente e ardentemente, voltar para den-

tro do ovo e ficar aí, debaixo da mãe.

Chorava sozinha agarrada ao meu plexo

solar. Não tinha sido só o anel e o telefone

que havia perdido. Perdera, igualmente,

bússolas da minha vida.

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Olhava para o chão com um olhar perdi-

do, como se tocasse o viscoso do meu

cordão umbilical e ele se desfizesse por

causa disso.

A perda do anel empurrou-me para o

meio de um túnel ou, melhor dizendo,

para um lugar sem início nem fim. Já não

andava em direcção a lado algum, mas

infinitamente dentro de mim.

Pensava no anel e no telefone e sentia-

me como se tivesse perdido a noção do

tempo. Perder o telefone era como se um

conjunto de raízes se soltassem e subis-

sem aos céus e a perda do anel era como

se algo debaixo dos pés se esfumasse e

desse lugar a um eterno aqui e agora -

transformando o anel em mais do que um

objecto, em mais do que a minha mãe.

Uma perda que era quase a sua ausência

e que me provocou uma total alienação.

Dei por mim a pensar que, em todos os

momentos de consciencialização, deixa-

mos de compreender a noção do tempo,

tal como a percepcionamos na rotina do

nosso dia-a-dia.

O movimento do quotidiano das

nossas vidas está acostumado a fazer de-

terminadas acções a determinadas horas

do dia.

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Existem as refeições, a hora de acordar, a

hora de ir para a escola, de ir pra cama,

de ir para o emprego - de ir produzir, de

certa forma - a hora de ir às compras, de

ir ao ioga, à massagem, ao reiki, ao giná-

sio, ao café, à tasca, ao pub.

Temos a hora pra fazer xixi e pra fazer

cocó, para tomar banho, pra escovar os

dentes, a hora para ficarmos selvagens,

loucos, bêbados e a hora em que, maiori-

tariamente, gostamos de ficar a sós.

Mas, quando vivemos momentos traumá-

ticos ou de pura iluminação, não existem

horas, não existe a noção do tempo.

As horas das nossas vidas concentram-se

num eterno aqui e agora que compreende

simultaneamente o que lhe antecede e o

que ainda está por vir.

Enquanto ía a caminho da casa da minha

mãe, pensava nessa ideia de perda como

um acesso directo à minha humanidade.

Uma experiência pura. E como que num

sonho, imaginei-me a voltar àquele dia,

àquele em que cheguei a casa dela e em

vez de a encontrar, como de costume, a

fazer pequenas tarefas domésticas, en-

contrei-a deitada,

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de barriga para cima, com o olhar posto

no tecto, em profunda meditação.

Ela disse-me:

Sabes, eu tenho um relógio que faz tic

tac, no lugar do coração. Às vezes, o re-

lógio transforma-se em comboio e faz

tictactictactictac… O tempo não existe

da forma como os seres humanos o divi-

dem, filha. O tempo é um complexo fixo,

tudo acontece ao mesmo tempo, em to-

dos os lugares.

O tempo…

Comecei a reflectir sobre a minha rela-

ção com o tempo. Pensava agora, em to-

dos os caminhos que se abriam à minha

frente. Mesmo sendo um objecto, o anel

mediava a relação entre mim e a minha

mãe, relembrava-me a força de se viver

com esperança. E esse simples lembrete

maternal colidia, batendo de frente, com

o que o que dentro da minha cabeça se

passava:

Em 2030 talvez não haja assim tanta

água pra se beber, tanta terra pra se culti-

var, tanto ar possível de se respirar.

Voltando àquele dia, ao olhar a minha

mãe, com os olhos postos no tecto tive

vontade de lhe dizer:

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Sabes, às vezes tenho a sensação de que

preciso de mais tempo.

Tempo para estar comigo, tempo para

contemplar.

Assim não precisava de uma aplicação

no telefone para me lembrar de beber

água. Ia perceber.

Há coisas em que a gente evoluiu, mas

há outras em que talvez continuemos

exactamente iguais aquilo que éramos há

milhares de anos atrás.

A questão é a mesma. Não sei de onde

venho, não sei para onde é que vou. Es-

tou aqui perante este mistério e o vazio

que sinto preencho-o com o que tenho à

mão.

Há de facto esta ideia de aceleração do

tempo, e há quem diga que nas grandes

cidades perdemos a relação com a natu-

reza.

Não vejo o dia nascer, não vejo o pôr do

sol, não vejo a flor a crescer, nem dou

conta dos frutos quando começam a apa-

recer.

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3.3.2 O Amigo

Neste segundo guião sublinho, uma vez mais, a importância da voz off que é in-

terpretada novamente pela autora mas, em comparação ao vídeo-ensaio anterior, a voz

off existe para acentuar o carácter psicológico e reflexivo no qual a personagem se en-

contra.

Neste caso podemos observar pelas imagens que existe um encontro físico com

o amigo e no vídeo-ensaio anterior, o encontro com a mãe é remetido para segundo pla-

no, sendo que o caminho até chegar a casa da mãe é que detém a densidade psicológica

e reflexiva da narrativa proposta.

�58

Eu queixava-me do tempo, das coisas, de

não ter o telemóvel, de já não conseguir

encaixar-me no caos, e quando, final-

mente, ia a chegar a casa da minha mãe,

tive a estranha sensação de me apetecer,

bruscamente, fugir dali.

Mas não fugi.

Entrei, sentámo-nos, tomámos um chá,

descansei com o meu olhar pousado no

olhar dela, e depois contei-lhe esta histó-

ria, timtim por timtim sobre estas perdas

e encontros itech.

E ela, com a delicadeza que lhe é conhe-

cida, virou-se pra mim e disse:

Mas, porque é que não vais ver à Feira

da Ladra?

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Texto Imagem

�59

Fui ter com ele ao cyber-café.

No caminho, ouviam-se as crianças por

entre as famílias dos turistas. Os olhos

das pessoas variavam nervosos entre a

comida, os filhos e o smartphone ou o

tablet que as conectava com um mundo,

do aqui e agora, diferente do meu.

Ele chega para me cumprimentar e rapi-

damente percebe que estou noutra.

Desta vez não me dá os dois beijinhos

do costume e senta-se ao meu lado, dis-

posto a ouvir o que está atravessado na

minha mente. De forma perspicaz, o

meu amigo percebeu que eu não estava

apta a verbalizar fosse o que fosse e

precisava de um écran para o realizar.

Assim que me vejo nessa intimidade

luminosa, disparo num só vómito o que

estou a pensar:

Sabes, às vezes tenho a sensação de que

preciso de mais tempo. Tempo para estar

comigo, tempo para contemplar.

Assim, não pensaria em fugir. Há dias

em que precisas de alguém que fale con-

tigo, que te hipnotize e embale dentro do

seu tempo e há outros dias em que preci-

sas de alguém para que seja o teu caixote

de lixo emocional, alguém

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que te oiça sem pretender chegar a con-

clusão alguma ou acção específica a to-

mar.

Claro, disse-me ele, a nossa mente con-

segue percepcionar o movimento de to-

das as coisas com vida e as máquinas e

os objectos também são vida. O telefone

mesmo sendo um objecto está operacio-

nal e relacionado contigo, com a tua ex-

periência, tem lá dentro os teus segredos

mais íntimos - o extracto da tua conta, a

tua lista de compras, as contas da água,

da luz, do gás, as cartas de amor, os con-

tratos, as separações, os chats colectivos,

os sites pornográficos, um par de ofen-

sas, pequenos recados que ficam por

mandar…

Enquanto ele me ía apaziguando o cora-

ção, a minha mente não conseguia deixar

de questionar a forma como eu estava a

realizar as minhas experiências, desde

que passara a estar rodeadas por televi-

sões, telegramas, telefones, telemóveis,

computadores, código morse, física

quântica, teletransporte…

A propósito desta história toda de perdas

e encontros itech, comecei a contar men-

talmente quantos telefones já tive até

agora e quantas memórias encerro dentro

mim mediadas por esses telefones.

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Na minha vida já tive: cinco telefones de

casa, um especial, um computador.

Telefonei desde: a cama, a cozinha, o

jardim, a casa-de-banho, o duche, o

guarda-roupa, a fazer amor.

Com roupa e sem roupa, com uma más-

cara de argila, numa cabine às duas da

manhã, em locutórios, na casa da avó,

em casa de pessoas que não conhecia, na

Índia, no Japão, no Tibet, na China, no

Brasil, no Pakistão, em Viena, Paris.

Telefonei com outro a pagar, com moe-

das, com factura e com cartão. Telefonei

a dizer que estava bem, que estou viva,

para dar os parabéns, para dizer: amo-te,

para perguntar: onde é que vocês estão?

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Para dizer onde estou, para pedir dinhei-

ro, para perguntar: como é que se faz o

arroz? Telefonei mil vezes para que não

se preocupassem, para dizer: estou com

saudades, quero voltar.

A gente que conhecia e a gente que não

conhecia. Por pensamento e por fio eléc-

trico.

Com os pés no ar, deitada no sofá, em pé

numa cabine de vidro, sentada em cadei-

ras dentro de cubículos de madeira,

numa telefonista de uma aldeia ao lado

da sua lareira, de um mosteiro zen, a

olhar um vulcão, sentada numa bicicleta

a comer uns noodles chineses feitos por

um indiano, numa discoteca aos berros:

Tou, tás-me ouvir?! Vem cá ter!

E agora, que cheguei aqui e que vejo to-

das estas pessoas agarradas a um tempo

do aqui e agora diferente do meu, já não

sei se quero ou não recuperar o meu tele-

fone especial.

Seja como for, esta história do detective

é super sinistra e por outro lado sei lá eu

por onde é que poderei começar…

E ele veio atrás de mim e disse: mas por-

que é que não vais ver à feira da ladra?

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Conclusão

Ao defender, nesta dissertação, o vídeo-ensaio enquanto mediador de complexi-

dades, assumindo-se, simultaneamente, a sua capacidade de estabelecer uma enteléquia,

pretendo que o projecto do livro audiovisual À procura de uma enteléquia, através da

fusão ensaísta escrita/vídeo, possa ser um motor de reflexão sobre o tempo presente, a

tecnologia e o fluxo da informação digitalizada.

Tendo como ponto primordial a problematização do conceito aristotélico entelé-

quia, defende-se o virtual como componente da realidade e não como algo irreal.

O conceito de enteléquia defendido por Aristóteles revela que qualquer entidade

se desenvolve a partir de uma causa final interna a ela mesma – em contraposição à teo-

ria platónica das ideias, que assenta na noção de que este fenómeno acontece por razões

ideais externas. Por outras palavras, podemos dizer que enteléquia é o completo, o intei-

ro, é aquilo que já não pode ser mais do que é. No artigo, A Enteléquia de Aristóteles:

uma resposta a Daniel Graham, George Blair refere, “enteléquia significa o ‘estado

completo do ser’, não no sentido do ‘estado preenchido do ser’ (tal como no Latim, se-

gundo o qual o termo ‘completo’ possa ser associado), mas no sentido de ‘conter o pró-

prio fim’, pelo termo τελοσ (fim) na sua raiz.” (Blair, 1993:94). Na origem do conceito de

enteléquia, existe uma necessidade de Aristóteles transcrever o princípio que exprime a

passagem da potência ao ato; como tal, por não existir uma palavra em grego que signi-

ficasse, conter o próprio fim, “Aristóteles uma vez mais teve que inventar uma, cuja raiz

etimológica significaria o seguinte: que é composta por, εν, ‘dentro’, por analogia com

εν de energia, τελοσ, ‘fim’, εψηο, ‘ter’ ” (Blair, 1993:96). Deste modo, uma enteléquia

não se movimenta em direção a um fim, pelo contrário, é aquilo que acontece depois do

fim ou, por outras palavras, que tem uma concretização resultante do fim. Aristóteles

delimita o significado de enteléquia, como sendo um processo de atualização de uma

potência, cujo fim está na própria entidade atualizada; não podendo, portanto, ser consi-

derado um processo de geração.

Assim, na tentativa de transpor esta questão teórica para o domínio dos audiovisu-

ais, este projeto traduz-se na produção de um livro audiovisual no domínio das trans-

media storytelling.

Considerando a prática ensaísta como a melhor ferramenta de expressão de uma

enteléquia, com uma forte agilidade para refletir, responder e expressar o momento pre-

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sente, a partir da lógica arquivista do documentário, a narrativa não-linear deste livro

entrelaça o ensaio literário e o vídeo-ensaio.

Conclui-se, deste modo que, tendo em conta o sujeito moderno e a sua dificuldade

em estabelecer experiências, o vídeo-ensaio permite ao autor uma maior liberdade de

expressão, pois não obedece a regras de linearidade ou de obrigatoriedade de exclusão

de partes.

Importa ainda referir que, tal como a enteléquia tem em si, não só o seu próprio

fim mas as condições necessárias a esse fim, o vídeo-ensaio comprova ser igualmente

completo ao se expor reflexivo e reflectindo, simultaneamente, sobre determinado tema,

permitindo uma sobreposição de camadas e acentuando a montagem horizontal (já refe-

renciada por Bazin e Adorno).

Numa sociedade onde até os parâmetros de concentração estão em mudança, im-

porta ainda mencionar que este mecanismo de montagem audiovisual comprova que

existe uma correlação entre o sujeito moderno (fragmentado, exposto a um excesso de

informação e de esforço de opinião) e a montagem horizontal, apelidada de

“horizontal”, por oposição à relação duracional entre frames e pela capacidade de mudar

de perspetiva (anamorfose) ou contradizer a própria narrativa (quiasmos).

A vertente prática da presente dissertação, teve na sua génese o espetáculo trans-

disciplinar (teatro, música) LAN em Fuga (2011). Este foi o gatilho para iniciar a pre18 -

sente investigação de uma perspetiva prática, apresentando-se atualmente enquanto pro-

jeto para a criação de uma aplicação autónoma, acessível a qualquer sistema operacional

móvel, como um iPad ou tablet.

Futuramente, pretende-se continuar a desenvolver e aprofundar a relação compa-

rativa entre a enteléquia e o vídeo-ensaio, uma vez que considero que existe um lato

percurso a ser desenvolvido. Nesse sentido, existe uma forte motivação para que no se-

guimento desta investigação, se organize uma equipa mais especializada nas várias ma-

térias aqui expostas, de forma a desenvolver o livro audiovisual a partir deste contexto.

LAN Local Area Network.18

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