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    Revista do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 10 - n. 2 - p. 355-369 - jul./dez. 2014

    Resumo

    Data de submisso: jul. 2014 Data de aceite: ago. 2014

    http://dx.doi.org/10.5335/rdes.v10i2.4138

    * Mestranda pelo Programa de Ps-Graduao em Letrasda Universidade Federal do Esprito Santo. Bolsista

    da Fundao de Amparo Pesquisa do Esprito Santo.

    Telefone: (27) 3029-7280. E-mail: emos.adriana@

    gmail.com** Professora da Universidade Federal do Esprito Santo,

    atuando na graduao e nos cursos de mestrado e dou-

    torado dos Programas de Ps-graduao em Educaoe em Letras. Telefone: (27) 3335-2535. E-mail: maria-

    [email protected] [email protected]

    O videogame como materialidade

    de texto em uma perspectivahistrico-culturalAdriana Falqueto Lemos*

    Maria Amlia Dalvi**

    Este artigo um recorte da pes-quisa intitulada Literatura, Videoga-mes e Leitura: intersemiose e multi-disciplinaridade, que comeou a serdesenvolvida em 2013 no plano daps-graduao em Letras, na Univer-sidade Federal do Esprito Santo. Nes-te texto, discutem-se, principalmente,as noes conceituais de apropriao,produo, materialidade e suporte dotexto escrito impresso, a partir de Ro-ger Chartier, estendendo-as aos estu-

    dos sobre videogame, entendido nestetrabalho como uma mdia eletrnicarelativamente nova, mas que consti-tui, simultaneamente, uma linguagem,textualidade e genericidade prprias,atravessadas pela histria das prti-cas de produo e apropriao cultu-ral. A metodologia aqui empreendida,bibliogrfico-documental, revela pon-tos de contato entre as concepes deChartier (1998) de texto eletrnico e ovideogame. Os resultados da pesquisasinalizam com a proposio de novasperspectivas terico-metodolgicas nombito dos game studies.

    Palavras-chave: Histria Cultural.Leitura. Multimdia. Videogame. Ro-ger Chartier.

    IntroduoPensar a proposta de estudar o vide-

    ogame1como objeto de leitura com o usode noes conceituais utilizadas no cam-po dos estudos literrios e da histria daleitura e da escrita parece, a princpio,um desafio. Primeiro, porque, conformeos artigos Games: desenvolvimento epesquisa no Brasil, de Lynn RosalinaGama Alves (2009), e Game StudiesBrasil: um panorama dos estudos brasi-leiros sobre jogos eletrnicos, de LetciaPerani (2008), existe uma carncia de

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    estudos na rea devideogamesno Brasil.Segundo, porque a rea de estudos devideogamecomo mdia sria ou seja,como objeto, tema e fonte de estudosacadmicos avanados que disponha de

    uma consistente tradio crtica aindano est consolidada internacional-mente, conforme visto em The Ethicsof Computer Games, de Miguel Sicart(2011), The Art of Videogames, de GrantTavinor (2009) ePersuasive Games: The

    Expressive Power of Videogames, de IanBogost (2011). Por meio de sistemticareviso bibliogrfica, purou-se que,

    apesar do trabalho conduzido principal-mente pela pesquisadora Lynn RosalinaGama Alves, da Universidade de Fe-deral da Bahia, as pesquisas no Brasilainda so perifricas e tm se tornadoespecializadas em processos didtico--pedaggicos, com a criao de jogos paraserem utilizados em aulas, como suporteno ensino-aprendizagem.

    Em nossa pesquisa, que est sendoconduzida no Programa de Ps-Gradua-o em Letras da Universidade Federaldo Esprito Santo, existe, porm, umapreocupao crtico-terica no que dizrespeito aos videogamesque fazem partedo mercado e aos quais a audincia emmassa tem acesso. O videogame umamdia que teve relevncia e influncia

    ampliadas ao longo dos ltimos 20 anos.Scott Rettberg (2008) declara que os

    jogos de computador ultrapassaram seto-res de entretenimento como os filmes deHollywood, e que por isso seu texto temimpacto e influncia na cultura contem-

    pornea. Teorias que tm sido aplicadasao estudo de textos literrios esto sendoutilizadas na investigao dos videoga-mes tambm. O autor declara que

    [...] jogos de computadores e simuladorestambm tm um espao na sala de aula deliteratura, da mesma maneira que outrostextos da cultura popular (filmes, televisoe letras de msica de rock), esto sendoestudadas lado a lado com textos literriostradicionais (RETTBERG, 2008, p. 116).

    A hiptese que formulamos ao iniciaros estudos do videogameno campo dascincias literrias est ancorada nasmesmas concepes que Freire (1981)

    tem do que a leitura e do que o objetoda leitura. Se antes de lermos o cdigoescrito lemos o mundo, significa que se lo videogame mesmo que seu texto no es-teja integralmente ou privilegiadamentetranscrito em palavras.

    Ao mesmo tempo, preocupa-nos com-

    preender que tipo de objeto o videoga-

    me e por meio de que estudos tericos

    ou aproximaes terico-metodolgicas

    poderemos apreend-lo. Desejando res-

    ponder a essas inquietaes e confirmar a

    hiptese feita (de que possvel estudar o

    videogame como objeto de leitura), imbri-

    cam-se em nosso trabalho contribuies

    terico-metodolgicas histrico-culturais,

    que atravessam os estudos literrios e a

    histria da escrita e da leitura.

    Histria cultural

    De acordo com Peter Burke (2006),a Histria Cultural uma corrente queganhou nova fora na dcada de 1960,

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    ficando conhecida como uma nova ver-tente de uma tradio bem mais antiga;essa nova vertente constitui-se comoum estudo da histria feito de maneiradiferenciada, com o uso de hermenutica

    e sensibilidade no processo de apreciaode documentos no oficiais. Essa visodiferenciada dos fatos no trabalho dohistoriador comeou a se tornar maisevidente, de acordo com Sandra JatahyPesavento (2004, p. 13), aproximada-mente no Sculo XX, com a queda deantigas metanarrativas (crise dos para-digmas). A mudana nas formas como os

    historiadores pesquisavam sobre os pro-cessos histricos se deu em um momentode questionamento a explicaes jestabelecidas sobre os fatos, como aque-las dadas pela corrente historiogrficado Marxismo e da escola dos Annales.De acordo com a autora (2004, p. 15),uma nova histria cultural trata-se depensar a cultura como um conjunto de

    significados partilhados e construdospelos homens para explicar o mundo.

    Para Peter Burke (2004, p. 20), a

    diferena dos pesquisadores filiados

    Histria Cultural aqui privilegiada em

    relao ao que se fazia em outras perspec-

    tivas que eles buscavam correlacionar

    s formas culturais entre si. Pesavento

    (2004) fala do caminho trilhado pelas

    cincias humanas, que se pautavamna busca de uma racionalidade que ex-

    plicasse e oferecesse certezas sobre os

    fenmenos do mundo, o que contrastava

    com uma viso do real que fosse apoiada

    na sensibilidade. Para a autora, a hist-

    ria feita de cultura e a cultura feita

    de representaes sociais produzidas

    pelo povo em sua relao com o modo de

    produo dominante. Por isso, a autora

    fala de representaes e de como a socie-

    dade construda e constituda dentro

    e por meio das prticas sociais. Nesse

    movimento pulsante, a sociedade se

    constitui historicamente, porque (2004,

    p. 39) Indivduos e grupos do sentido ao

    mundo por meio das representaes que

    constroem sobre a realidade. Conforme

    Chartier, em A Histria Cultural entre

    prticas e representaes(2002, p. 16-17):

    A historia cultural, tal como a entendemos,tem por principal objecto identificar o modocomo em diferentes lugares e momentosuma determinada realidade social e cons-truda, pensada, dada a ler.

    Para Burke, a cultura um conjuntode valores aprendidos por um homemdentro de uma sociedade. A ideia doautor muito ampla, visto que existem

    culturas diversas dentre as classes so-ciais, entre homens e mulheres e entrepessoas de geraes diferentes. A noode cultura fica assim, para Burke, para-doxal. Se por um lado, temos a concepode cultura como um conjunto de valores,habilidades e ferramentas que so pas-sadas de gerao em gerao de maneiraaglutinadora, por outro, temos elementos

    que desestruturam essa homogeneidade.Por isso, a ideia de tradio problem-tica. Burke ento prope que, dentrodas discusses sobre a heterogeneidadecultural, h o par formado por culturaerudita e popular cujas noes socomplexas e cambiantes.

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    No bojo desse contexto terico, uti-lizaremos as noes de apropriao eproduo, alm do estudo do livro e desua materialidade segundo a leituraque faremos de Roger Chartier, um dos

    representantes dessa tradio terico--metodolgica e ontolgico-epistmica deque lanamos mo.

    O livro como mdiatecnolgica

    Hoje normal que escutemos aspessoas se espantarem com a maneirarpida como a tecnologia mudou a vidado homem na era moderna, e a formacomo esse homem se comunica, usandoferramentas que o auxiliam e dinamizamos processos de intermediao e intera-o entre as pessoas. Esses novos meiosde comunicao, dos quais dispomos hojepara nos comunicar, tornam-se cada vezmais sofisticados a cada novo lanamen-to comercial das indstrias, e podemospensar que a sofisticao dos meios decomunicao algo recente. Esse pro-cesso de modernizao acontece, porm,desde que a lngua escrita foi criada e,por meio do tempo, foram e so criadoscada vez mais novos meios de comunica-o, em correlao com a proscrio oureinveno de outros.

    No incio desse processo, os humanosusavam pinturas nas cavernas paradeixar suas mensagens e, como dito porSteven Fisher (2006 apud PAIVA, 2006),em 1 a.C., Jlio Csar j estava usandopginas de pergaminho em rolo, feitas

    depapirus, para mandar ordens s suastropas. Vera Lcia Paiva (2006) quemassina o artigoO uso da tecnologia noensino de lnguas estrangeiras: breve re-trospectiva histrica, no qual se discorre

    sobre esse e outros fatos histricos e sedescrevem os caminhos percorridos pelosmeios de comunicao at alcanar essemomento que vivemos no Sculo XXI.

    As maneiras pelas quais Jlio Cesarutilizava opapiromudaram o modo comoele passou a ser usado; na sequncia,originou-se o cdice, um livro no for-mato dos livros modernos, que era feito

    de pginas longas de papiros, divididasem pergaminhos. Roger Chartier, emAordem dos livros: leitores, autores e bi-

    bliotecas na Europa entre os sculos XIV

    e XVIII(1994), explicou que esse cdicetinha um formato user friendly,2

    , enfim, inegvel que o cdex permita umalocalizao mais fcil e uma manipulaomais agradvel do texto: ele torna possvela paginao, o estabelecimento do ndex ede correspondncias, a comparao de umapassagem com outra, ou ainda o exame dolivro em sua integridade pelo leitor que ofolheia (CHARTIER, 1994, p.102).

    O cdicefornecia ao leitor, com o usodo ndice, mais mecanismos de busca,por exemplo. Sculos depois, Gutenbereginventaria uma ferramenta impressoraque, alm de mecnica, era mvel. Mas

    o acesso aos livros no foi fcil, como ar-gumenta Chartier (1994). De acordo comCilza Carla Bignotto (1998), no artigo OComputador e a Leitura Natural,

    O cdex, que substituiu os rolos, lembra emaparncia o livro atual; entretanto, suasfolhas eram de pergaminho, matria rara

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    e cara; no havia numerao de pginas,e nem ndice. Para economizar material,as palavras eram abreviadas; folhas eramraspadas para servir de suporte a um novotexto; as pginas eram grandes, e o livro,pesado. Alm disso, havia as diferentes ca-

    ligrafias dos copistas, e as ilustraes feitas mo, que tornavam cada exemplar nico(BIGNOTTO, 1998, p. 5).

    Enquanto existiam cdices, as cama-das populares ainda utilizavam o velhovolumenGrego. De acordo com Chartier,os novos leitores, ou seja, os leitores decdice, j liam textos que estavam forado cnone literrio que compreendiam

    matrias educacionais, tcnicas e nove-las populares.Bignotto argumenta que o livro foi

    mudando ao longo do tempo, pelo tipo dematria prima utilizada, padronizaode fonte, com a impressora e com o usode papis colados. O imaginrio popularcompreende que utilizar tecnologia sig-nifica usar o computador como suportepara o texto, quando, na realidade, olivro, em sua materialidade, j um su-porte aperfeioado pela tecnologia. Esseavano na tecnologia do livro tambmmudou a maneira como a recepo desselivro se d.

    Ler um rolo de papiro, que precisa ser segu-ro com as duas mos para se manter aberto, diferente de ler um cdex, que pode serapoiado em uma mesa, deixando as moslivres para anotar ou consultar outros li-vros; o que por sua vez diferente da leiturade um livro impresso de bolso, que pode sermanuseado em qualquer lugar e que sefor perdido, no causar grande prejuzo aodono (BIGNOTTO, 1998, p. 5).

    Observando esse percurso, no dif-cil entender por que as pessoas gostam

    tanto de tecnologia e, simultaneamen-te, porque ela nos assusta tanto. Elassempre se preocuparam com isso. Parase comunicar bem, muito j foi feito: depinturas nas rochas, gravao em pedra

    ou metal, seguido de linguagem escritae toda a tecnologia que foi inventadapara amparar as necessidades surgidasa partir disso. Da carta, comeamos ausar o telgrafo; ento o telefone foiinventado, o gramofone, o rdio, a te-leviso e finalmente os computadores evideogames. Os modos de armazenar edivulgar informao para nos comuni-

    carmos evoluram desde a lngua faladapara a escrita, culminando no uso deimagens e sons digitais. O papiro, acaneta e a tinta usados para escrever:todos esses materiais simples eram tec-nologias avanadas quando eles foramcriados. No entanto, cada uma dessasinovaes produziu, inicialmente, granderesistncia e, na sequncia, a necessida-

    de de constituio de tradio crtica eterica que desse conta de problematizare compreender os impactos dessas novastecnologias (dentre as quais, tambm, asmdias e suportes) na produo e apro-priao cultural.

    A tecnologia de udio e vdeo certa-mente produziu um dos maiores impac-tos no conceito de comunicao humana.

    Antes do gramofone, as pessoas preci-savam de performances em tempo realpara que fosse possvel escutar msica;por exemplo, um membro da famliatinha que tocar piano nas festas ou aspessoas tinham que ir a concertos. A

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    mudana que o avano tecnolgico pro-porcionou na vida social foi impactantetanto no campo dos relacionamentosprivados e pessoais tanto quanto naforma como os conhecimentos educacio-

    nais eram transmitidas e em como essatransmisso acontecia. Paiva (2006) afir-ma que essa tecnologia de som ajudouos institutos de idioma, os professorese os estudantes, de maneira que essespuderam ter acesso fala de nativos dalngua que estava sendo estudada emsala de aula. Ela diz que, infelizmente,esses meios de comunicao de alto im-

    pacto na sociedade como o cinema, ordio e a televiso no tm a mesmaaceitao ou uso significativo dentro deespaos educativos.

    Ainda sobre a leitura e a tecnologia,retornando ao pensamento de Chartier(1998) emA aventura do livro: do leitorao navegador, entendemos que no hou-ve uma ruptura e um fim da histria do

    cdicecom o advento de Gutenberg; aocontrrio, o cdicecontinuou a ser usadopor muito tempo e foi apropriado pelolivro impresso; e foi atravs da sua formamanuscrita que as cpias de publicaesproibidas puderam circular. Acreditamosque a barreira enfrentada pelas novasmdias eletrnicas como objeto de estudoem campos cientficos de materialidades

    tradicionais como a literatura tanto embasada nas representaes que temosdos livros, quanto na precariedade deleituras crticas e de discusses terico--metodolgicas especficas.

    Roger Chartier e osconceitos de

    representao e de livro

    As culturas nas quais estamos inse-ridos conjugam e tensionam representa-es do que seja o papel dos gneros, doque seja educao, do que seja um livro,do que seja um romance e da por diante,porque, como Pesavento (2004, p. 41) diz,A fora da representao se d pela suacapacidade de mobilizao e de produzirreconhecimento e legitimidade social. As

    representaes se inserem em regimesde verossimilhana e de credibilidade,e no de veracidade. Para que haja umconjunto de representaes, de noesdo que essas sejam, deve existir uma so-ciedade que corrobore e que se configurepor elas. Roger Chartier explica-nos afora das representaes, pelas quais asociedade se hierarquiza e se organiza,

    porque,[...] em primeiro lugar, as operaes declassificao e designao, mediante asquais um poder, um grupo ou um indivduopercebe, se representa e representa o mundosocial; em continuao, as prticas e os sig-nos que levam a reconhecer uma identidadesocial, a exibir uma maneira prpria de serno mundo, a significar simbolicamente umstatus, uma categoria, uma condio; e, porltimo, as formas institucionalizadas pelas

    quais alguns representantes (indivduossingulares ou instncias coletivas) encar-nam, de maneira visvel e durvel presen-tificam a coerncia de uma comunidade(CHARTIER, 2002, p. 33-34).

    Por isso, percebemos que atravs deum sistema de tensionamento e flutua-

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    es identitrias, de rejeio e aceitaode certas prticas que as representaessurgem e se estabilizam. neste sentidoque as representaes do mundo socialproduzem a realidade deste mundo

    (CHARTIER, 2002, p. 34). Para o autor:As percepes do social no so de forma al-guma discursos neutros: produzem estrat-gias e prticas (sociais, escolares, polticas)que tendem a impor uma autoridade custade outros, por elas menosprezados, a legiti-mar um projecto reformador ou a justificar,para os prprios indivduos, as suas esco-lhas e condutas (CHARTIER, 2002, p. 17).

    Em seu artigo A construo esttica

    da realidade (2004a), Chartier investigaa criao por meio das antigas descri-es de uma srie de expresses queajudaram a caracterizar, identificar esistematizar a camada popular que erapauprrima na Frana do Sculo XVI.Esse movimento tambm originou obrasque eram de cunho popular, marginais,como a novelaLAventurier Buscn.

    No artigo, Chartier se pergunta porque, dentre tantas obras de fico, popu-lares e muito similares, apenas oBuscnfaz parte de um cnone literrio francs.E por que parte do cnone, sendo umaliteratura carnavalesca e pardica? Parao autor, essa investigao o auxilia asinalizar os elementos que tornam umaobra literria estvel num cnone de

    uma nao, legitimando as represen-taes que nela esto contidas. Assim,como dito pelo autor (CHARTIER, 1999,p. 7), O progresso cultural da humani-dade ocorre em ciclos, com mudanasnos eixos de poder e de conhecimento.

    As nomec laturas cont idas noLAventurier Buscn, que estabeleciamuma ordem social entre os mendigose que estavam inseridas nessas novasmaneiras de representar o outro, signifi-

    cavam, para os grupos dominantes, umaordem necessria para fundamentar asociedade. Da mesma forma, a novela do

    Buscn trazia em si a diferena entre asduas classes e a representao de umaverdade que estava de acordo com a es-perada pelos grupos dominantes.

    A cultura marginal e, por conseguin-te, a literatura que advm desses espa-

    os, existe e se propaga porque, mesmoestigmatizadas, so experincias e vivn-cias reais e que se sustentam entre umpblico que se identifica com essa pro-duo. Se podia realiz-lo porque noera pura inveno, seno deslocamento erecomposio de fragmentos de realidadepercebidos por cada um (CHARTIER,2004a, p. 50).

    Essa estabilidade de uma obra dentroda literatura, segundo Chartier, advmde representaes do que seja legtimodentro do conceito de tradio literria a qual compreende um conjunto devalores que um texto deve ter, valor esseque toma por autor um criador artstico.Esse valor e essa legitimao, segundoChartier, no levam em conta os fatores

    que fazem parte do texto, alm do papelcriador do autor. Esses fatores pode-riam ser, por exemplo, a interpretao,a crtica, a publicao, a circulao ea apropriao da obra literria. O quecontribuiu pra essa noo de tradioamarrada ao autor, segundo ele, foi

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    [...] a permanncia neo-platnica da oposi-o entre a pureza da ideia e sua inevitvelcorrupo pela matria, a definio do co-pyright, que estabelece a propriedade doautor sobre um texto considerado sempreidntico a si mesmo, seja qual for a forma

    de sua publicao, e, at mesmo, o triunfode uma esttica ps-kantiana que julga asobras independentemente da materialidadede seu suporte (CHARTIER, 2012, p. 5).

    O processo pelo qual um texto sematerializa, isto , passa da condio deideias para finalmente se transformarem livro, segundo Chartier (2012), nose encerra somente no ato da escrita,quando o autor se pe a escrever todasas coisas que lhe vm mente, numacomposio artstica. Ao contrrio disso,a escrita se processa num conjunto deescolhas que estabelecem os parmetrossociais e histricos, dentre outros, quesero aproveitados no trabalho liter-rio (entendido como um sistema). Esseintercmbio de ordem simblica entreo escritor e o mundo no qual ele vive

    e acontece tambm, segundo Chatier(2012), no processo por meio do qual essetexto passa ao ser recepcionado, inter-pretado e tambm publicado. Por causada influncia de vrios atores, que mo-dificam a materialidade desse trabalho, intil querer distinguir a substnciaessencial da obra [...]. Porm,

    [...] essas mltiplas variaes no destro-

    em a ideia de que uma obra conserva umaidentidade perpetuada, imediatamentereconhecvel por seus leitores ou ouvintes(CHARTIER, 2012, p. 7).

    Os autores que tiveram a percepode que os escritores no so aqueles queescrevem os livros foram espanhis, na

    Castela do Sculo de Ouro, conformeexplica Chartier:

    Os livros, manuscritos ou impressos, sosempre resultado de mltiplas operaesque pressupem decises, tcnicas e compe-

    tncias bem diversas. [...] O que est em jogoaqui no somente a produo do livro, masa do prprio texto, em suas formas materiaise grficas (CHARTIER, 2012, p. 8).

    Partindo dessa noo de que o manus-crito dos escritores revisto, pontuado,corrigido e editado na grfica, Chartierdiz: Da uma pergunta fundamental: oque um livro? (CHARTIER, 2012, p.10). No entremos aqui na discusso so-

    bre o ineditismo material da obra de artee, portanto, de sua aura3, mas, Chartierdiscute que os direitos autorais, que as-seguram a legitimao das cpias que po-dem ser feitas do original de cada livro,devem seguir parmetros que certificama imutabilidade das ideias empregadaspelo autor. Mas, se as ideias so livres, aforma com as quais o autor as emprega

    em seu texto so prprias dele e, nessesentido, foi necessrio que elas fossemconceitualmente separadas de todamaterialidade particular (CHARTIER,2012, p. 14).

    O que afirmado por Chartier (2012) que o texto estvel j esteve amarrado grafia do autor, numa espcie de feti-chismo que levou, outrora, fabricao

    de supostos manuscritos autgrafos que,de fato, eram cpias passadas a limpode escritos previamente existentes(CHARTIER, 2012, p. 15). Essa buscapela estabilidade da obra literria sedeu, segundo Chartier, por meio de uma

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    busca pelo que fosse o seu original, o seuautor, formado por um conjunto de coe-rncias pertinentes entre os textos atri-budos a esse, num processo de seleoque objetivaria excluso e preferncias,

    por algum material ou por outro, quefosse mais legtimo, ou seja, comple-xo compreender o livro como uma obraartstica fruto de um pensamento nico,que foi escrita por apenas um autor, semintervenes que possam fazer com queseu senso de unidade seja desmantelado.

    O livro no um manuscrito amarrado

    pela caligrafia do autor, a materialidade

    do livro composta por seu suporte, seutexto, suas ideias, e elas no so fruto ni-

    co do trabalho do escritor. Esse produto

    cultural sofre influncia no momento em

    que escrito, porque o autor faz parte

    da sociedade e recebe influncia dessa; e

    tambm no momento em que editado,

    quando os profissionais grficos corrigem,

    alteram, escolhem o material de impres-

    so e o tamanho de letra, alm de inter-ferirem na unidade do projeto autoral.

    Na perspectiva de Chartier, o livrono , absolutamente, obra de produointelectual individual, dado que o seutexto j vem imbudo de exterioridadesque fazem parte de sua concepo, e nasua materialidade, pelo modo como ele feito editado, corrigido, alterado; fruto

    de vrias mos e atores que se conden-sam num trabalho que o prprio pro-cesso em que os sentidos so produzidos.

    Como dito anteriormente, a sociedadetambm seleciona o que deve servir parareforar e afirmar representaes que lhe

    so pertinentes sobre o modo de vida e omomento histrico.

    Literatura, materialidade

    e obraAt agora discutimos sobre a tecno-

    logia empregada no advento do livro,desde o papiroat a primeira prensamvel. Discutimos tambm como esselivro representado hoje, tambm nacomposio da sua materialidade, comoobra literria produzida por um autor.Chartier nos auxilia a desmistificar aideia de que as obras literrias tm umaconcepo pura, sendo essa pureza carac-terstica da escrita feita por um autor,com autoridade e legitimidade prviase inabalveis.

    A materialidade dos livros possvel

    apenas graas a um conjunto de fatores

    que compreendem o processo pelo qual

    o texto se torna vivel. Pelas mos do

    editor que, por exemplo, seleciona o

    material, que indica um gnero, que

    pede alteraes, que muda a letra e que

    diminui o texto, essa obra se torna cor-

    rente de acordo com as representaes

    j vigentes no meio em que o escritor

    vive. Ao mesmo tempo, essa tradio

    legitima certas obras e no outras, como

    parte de um cnone literrio, ou mesmo

    como editveis ou no. Essa discusso

    pertinente nessa pesquisa e importan-

    te pensarmos nisso para entendermos

    porque o campo de estudos de literatura

    ainda no abarca materialidades ficcio-

    nais como o videogamecomo rea de in-

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    teresse, linha de pesquisa ou como mdia

    sria. Talvez o processo que constituiu

    a histria da escrita e da leitura, em sua

    correlao com o estudo sociocultural

    do impresso, possa ser apropriado em

    analogia para se pensar a rea degame

    studies.Compreendemos que isso no

    apenas uma questo acadmica, mas tem

    relao com os modos como a sociedade

    v o videogame,como mdia, como objeto

    cultural e tambm, como v os processos

    de apropriao que se do por meio dele.

    O videogame comomaterialidade textual

    No texto Beyond Remediation: TheRole of Textual Studies in Implement-

    ing New Knowledge Environments,Alan Galey et al. (2011) discutem prin-cipalmente o paradoxo dos estudos dosobjetos culturais como novas tecnologiasdigitais. Se, por um lado, no h comopensar em artefatos fsicos que possamser transformados em digitalizaes econtinuar com os mesmos atributos, ouseja, oferecendo as mesmas apropria-es, por outro, a cultura passada degerao em gerao e o seu avano tecno-lgico vai, de uma maneira ou de outra,incorporar-se de forma diferente. Para oautor, em consonncia com as ideias de

    Chartier, no possvel estudar a leituraou o livro sem pensar em sua histria,e por isso o paradoxo: pensar no estudoda tecnologia e da leitura em relao sua representao mais fsica o livroou o manuscrito. Afinal, devemos pensar

    na leitura do videogame, que segundoAlan Galey j entra na categoria dedigital narrative, assim comoelectronicliterature e videogames (GAILEY, etal., 2011, p. 234), incorporando mtodos

    tradicionais de estudos de texto a novasformas multimiditicas. De acordo como autor, por meio do estudo textual (Tex-tual Studies) possvel fazer uma leiturada histria das prticas de produo eapropriao de textos, correlacionandopassado, presente e futuro, de maneira acompreender as implicaes tcnicas dasnovas culturas de textos digitais, unindo

    o tradicional e o inovador. As conclusesde Galey ao fim de seu texto so de queno possvel mais compreender a leitu-ra da histria como se essa fosse

    A narrativa na qual uma tecnologia fazcom que outra desaparea (pro bem ou maldessa) no mais se sustenta nos estudostextuais contemporneos; ao contrrio,historiadores de livros como Roger Chartier(1995), Peter Stallybrass (2002), e AdrianJohns (1998; e Apud Grafton, Eisenstein,e Johns 2002), e historiadores de mdiacomo Lisa Gitelman (2006), tm nos levadoa considerar como as tecnologias escritasse intercalam e se modificam, e como essastecnologias esto implicadas em prticasde leitura que tm suas prprias histrias(GAILEY et al., 2011, p. 395).

    Outra afirmao de Galey de quehoje no mais possvel, com a quan-tidade de dispositivos e de formas de

    mdias digitais, que os estudiosos semantenham em estudos superficiaissobre esse ou aquele formato. precisoespecificidade e profundidade na leituradessas novas tecnologias. Pensando almda questo existe um futuro para oslivros?, Galey argumenta que os estu-

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    diosos precisam fazer parte dessas novasformas digitais, as quais se configuramem muitos esquemas de leitura e que nopodem mais ser estudadas como foi feitono passado, seguindo a simples alcunha

    de estudo do objeto livro.Em artigo intitulado Languages,

    books and reading from the printed world

    to the digital text, Chartier (2004b) falasobre o texto digital e seu idioma, afinal,para ele, o ingls se tornou uma lnguafranca no universo digital, fazendo comque as produes tenham essa dimensouniversal. Ademais, o autor afirma que

    preciso entender a histria das publi-caes para entender como l-las. Com aquantidade de materialidades que temos nossa disposio hoje, do-se diferentesleituras:

    Em se tratando de ordem do discurso, omundo eletrnico cria uma tripla ruptura:ele prov uma nova tcnica pra inscrevere disseminar a palavra escrita, ele inspiraum novo relacionamento com os textos, e ele

    impe uma nova forma de organizao paraesses textos (CHARTIER, 2004b, p. 1426).

    Para Chartier, a leitura digital, pelaprimeira vez na histria,

    [] combina a revoluo do meio tecnolgicode reproduo da palavra escrita (como a in-veno da prensa mvel), a revoluo na m-dia da palavra escrita (como a revoluo docodex), e uma revoluo no uso e na percep-o do texto (como em vrias revolues naleitura) (CHARTIER, 2004b, pp. 142-1437).

    Ao pensar o trabalho de um autor deteatro e um tipgrafo, que alteraram amaneira como uma pea de teatro seriainterpretada, para ento reescrev-la ereimprimi-la, Chartier conclui que

    [] o papel que o autor pode ter, junto comoutros (editorao, grfica, tipgrafos, edi-tores) no processo sempre coletivo que d aotexto sua materialidade; em contraste comuma ausncia de leitores, nos lembra deque o significado do texto uma produo

    histrica, situada numa encruzilhada entrehabilidades e expectativas dos leitores edos designers, ambos grficos e discursivos,que organizam os objetos que so lidos. Aofirmar que novos leitores [] constroem no-vos textos, e que seus significados so umafuno de suas novas formas, McKenzienos leva a considerar a relao que conectaa variedade de formatos nos quais as pa-lavras escritas podem ser apresentadas, adefinio da audincia e de seus potenciaisleitores, e o significado que aqueles leitores

    atribuem aos textos que eles se apropriam(MCKENZIE,Bibliography and the Sociolo-gy of Texts, p. 20, Apud CHARTIER, 2004b,p. 148-1498).

    Reforamos que o livro um objetocultural tecnolgico; mas a capacidadede materializao de obras de ficoultrapassou esse aparato tecnolgico.Um livro no materializado por um sautor, na mesma medida em que um jogode videogame tambm no o . A ficodo jogo de videogameatravessa processosanlogos ao da produo de um livro.Um jogo de videogame, assim como umlivro, faz parte de uma rede de repre-sentaes, sem as quais a concepo desua materialidade no seria possvel. Ovideogame inserido numa comunidadeque criou uma srie de representaesapropriadas e ressignificadas, e a ficodo jogo de videogamesegue esses mes-mos parmetros de validao. O jogo devideogame um objeto cultural miditicode alta tecnologia que compreende umafico por meio de um jogo.

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    Entendemos que a materialidade dasnovas mdias tambm muda a maneiracomo o texto recebido e lido. Porque,se um texto no suporte material (livro) lido com o virar de pginas, com leitura

    de letras e palavras e pausas, com o pesoda encadernao e o uso de marca-textosou mesmo de consulta s notas de edio,um texto eletrnico lido numa outradinmica.

    O texto de um videogame lido aindanuma terceira dimenso, com o uso deimagens dinmicas, interpolada pelaleitura e escuta de dilogos ou leitura

    de textos escritos que fazem parte docontexto do jogo, alm da imerso espa-cial e sensorial produzida pela tela dateleviso em conjuno com o controleque vibra e com a trilha sonora ou efeitossonoros. Chartier (1998) argumenta quea falta da materialidade do suporte dolivro, que acontece na leitura de textoseletrnicos, faz com que o leitor se dis-

    tancie do prprio texto, porque o enxergamais recortado e livre das limitaeseditoriais, como se desmaterializassemo objeto, distanciando o leitor desse.Podemos compreender, ento, porque difcil a concepo inicial do videogamecomo objeto tambm textual, porque esseest ainda mais desmaterializado do queo texto digitalizado. Mas na anlise das

    palavras de Chartier que encontramosrazes para que o estudo dessa mdiaseja ainda mais validado. Um estudiosopreocupado em entender a histria desua cultura, segundo ele,

    [] no deve sustentar um discurso utpicoou nostlgico, mas mais cientfico, que apre-enda em conjunto, mas cada um em seu lu-gar, todos os atores e todos os processos quefazem com que um texto se torne um livro,seja qual for a sua forma. Esta encarnao

    do texto numa materialidade especficacarrega as diferentes interpretaes, com-preenses e usos de seus diferentes pbli-cos. Isto quer dizer que preciso ligar, unscom os outros, as perspectivas ou processostradicionalmente separados (CHARTIER,1998, p. 18-19).

    Ou seja, preciso olhar cientifica-mente para o objeto de estudo (texto)e enxerg-lo em qualquer que seja sua

    forma, mas, entendendo, principalmentee primordialmente, que essas diferentesmaterialidades produziro outras com-preenses e outros pblicos. Podemos di-zer que, segundo palavras de Chartier, oestudo de outras materialidades textuaispropiciar um alargamento das teoriastradicionais relacionadas ao estudo dahistria da escrita e, principalmente,

    da leitura:[...] deve-se considerar o conjunto dos con-dicionamentos que derivam das formasparticulares nas quais o texto posto diantedo olhar, da leitura ou da audio, ou dascompetncias, convenes, cdigos prprios comunidade qual pertence cada espec-tador ou cada leitor singular (CHARTIER,1998, p. 19).

    Como j havamos afirmado, novasleituras se originam de novos formatos,de novas configuraes e de novas ma-terialidades. Encerramos nossas consi-deraes retomando Chartier:

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    As telas do presente no so apenas repro-duo de imagens que precisam ser contras-tadas com a cultura da palavra escrita. Elas,de fato, so reproduo da palavra escrita.Por isso, elas significam imagens, fixas oumveis, sons, palavras ditas, e msica, mas

    acima de tudo, elas transmitem, multipla-mente, talvez em um incontrolvel excesso,a cultura escrita. E, mesmo assim, ns nosabemos como essas novas mdias oferecidasaos leitores transformam a maneira comoeles leem. [] Como ns podemos carac-terizar a leitura de um texto eletrnico?(CHARTIER, 2004b, p. 151).

    Algumas consideraes

    Pensamos que a hiptese levantadaao comeo do artigo, de que o videogamepode ser lido, vlida. Primeiramenteporque essa leitura considera o vide-ogame como um objeto cultural. Almdisso, importante considerar que tipode leitura um objeto cultural popularcomo o videogame permite, atravs epor meio de sua materialidade. ne-

    cessrio, sobretudo, o desenvolvimentode novas estratgias que proporcionemcondies de que esse objeto possa serapreendido em sua especificidade, masque, ao mesmo tempo, sejam estratgiasque no desvinculem este objeto culturale sua leitura das prticas de leitura jexistentes. Afinal, no h uma rupturaentre o antigo e o novo; as tecnologias

    no surgem de maneira sequencial, masem paralelo e em continuidade.

    Videogame as a textualmateriality in a

    historical-cultural perspective

    Abstract

    This article is an excerpt of a re-search project entitled Literatura,Videogames e Leitura: intersemiose emultidisciplinaridade that has beenconducted in a post-graduation coursein Literature at Universidade Federaldo Esprito Santo. In this text it isdiscussed the concepts of the CulturalHistory, historiographical wave of re-search, according to the ideas of rep-resentation, appropriation, materiality

    and text support in parallel with themateriality and support of the video-game, understood here, in this work,as an electronic medium that is, atthe same time represents a totallynew kind of language, textuality andgenerality that are part of the histo-ry of the practices of production andappropriation of culture. The meth-odology used here, bibliographical-documental, reveals contact pointsbetween the Chartiers (1998) concep-tions of electronic text and the vid-eogames. The results of the researchpoint to the proposal of new theoreti-cal and methodological practices inthe panorama of game studies.

    Keywords: Cultural History. Reading.Multimedia. Videogame. Roger Chartier.

    Notas1 Esse tipo de jogo pode ser chamado jogo digi-

    tal ou videogame. Para fins de nomeclatura,institui-se nesse estudo que, apesar das vriasnomeclaturas utilizadas por estudiosos doramo, a pesquisa se concentra nos jogos que sofeitos para serem jogados em consoles. Algunsdeles, no entanto, tm verses produzidas paracomputadores. Para Grant Tavinor (2009), o

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    termo videogame uma cunhagem que fazaluso a qualquer jogo digital, seja ele jogo decomputador ou jogo eletrnico. A nomeclaturatambm amplamente usada na srie de li-vros tericos de Mark Wolf e Bernard Perron(Video Game Theory Reader 1 e 2, 2003), ouso do termo vdeo game ocorre como palavras

    separadas, o que devidamente explicado nasobras mencionadas.

    2 Termo que denota uma ferramenta que seja defcil uso, para o portugus usabilidade.

    3 Conceito abordado no livroA obra de arte naera da reprodutibilidade tcnica, de 1935, deWalter Benjamin, tratando das questes doimpacto das tecnologias digitais na reproduoe acesso de obras de arte.

    4 [] digital narrative, such as electronic litera-ture and video games.

    5 The narrative in which one technology drivesout another (for better or worse) no longer holdsmuch force in contemporary textual studies; rath-er, book historians like Roger Chartier (1995),Peter Stallybrass (2002), and Adrian Johns(1998; and in Grafton, Eisenstein, and Johns2002), and media historians like Lisa Gitelman(2006), have prompted us to consider how writingtechnologies overlap and change each other, andhow those technologies are implicated in readingpractices that have their own histories.

    6 Regarding the order of discourse, the electronicworld thus creates a triple rupture: it providesa new technique for inscribing and disseminat-

    ing the written word, it inspires a new relation-ship with texts, and it imposes a new form oforganization on texts.

    7 [] combines a revolution in the technicalmeans for reproducing the written word (as didthe invention of the printing press), a revolu-tion in the medium of the written word (likethe revolution of the codex), and a revolutionin the use of and the perception of texts (as inthe various revolutions in reading).

    8 [] the role that the author can play, alongwith others (the publisher, the printer, thetypesetters, the editors) in the always collec-

    tive process that gives texts their materiality;in contrast to an absence of readers, it remindsus that the meaning given to a text is a histori-cal production, located at the crossroads of theabilities or expectations of the readers and ofthe designs, both graphic and discursive, thatorganize the objects being read. In statingthat new readers... make new texts, and thattheir new meanings are a function of their

    new forms, McKenzie leads us to consider therelationship that connects the varied forms inwhich written works are presented, the defini-tion of the audience of their potential readers,and the meaning that those readers attributeto the texts they appropriate.

    9 The screens of the present are not screens ofimages that are to be contrasted to the cultureof the written word. They are in fact screens ofthe written word. Granted, they convey images,both fixed and moving, sounds, spoken words,and music, but above all they transmit, mul-tiply, perhaps in an uncontrollable excess, thewritten culture. And yet we do not know howthis new medium offered to readers transformshow they read. [] How might we characterizethe reading of an electronic text?

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