O vocábulo “medieval” e “moderno”, além de ... · “fim” da Idade Média e o...

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1 As raízes do imaginário: o Diabo na sociedade católica europeia no século XV 1 . Crislayne Fátima dos Anjos 2 O vocábulo “medieval” e “moderno”, além de expressarem dois distintos momentos da História, simbolizava uma significativa dicotomia: a definição de medieval apresentava-se como um longo período de estagnação e obscuridade; o “moderno” visualizava-se o progresso, o renascer do conhecimento, a luz depois das trevas. Essa oposta visão de mundo, preceituada pelos humanistas no século XVI e reafirmada no século XVIII, apresentava uma ideia de que, ao vivenciarem a Idade Média, deixando seus princípios e suas convicções, as sociedades ascendiam ao amanhã de um modo mais democrático, adentrando a um novo momento histórico que seria intitulado de Idade Moderna. A necessidade dessa explicação se refere à proposta do recorte cronológico desta pesquisa. A História não conhece barreiras, portanto as mentalidades e o imaginário não se modificam instantaneamente com o “fim” da Idade Média e o “inicio” da Idade Moderna. Esta discussão tem como objetivo principal analisar a construção do imaginário acerca da figura do Diabo na sociedade europeia do século XV. A obra escolhida para o desenvolvimento desta pesquisa foi o Malleus Maleficarum- Martelo das Feiticeiras, escrito, originalmente em latim, e publicado em 1487, pelos dominicanos Heinrinch Kramer (1430-1505), reitor da Universidade de Colônia, e Jacob Sprenger (1436/8-1495), inquisidor-geral da Alemanha, que haviam conduzido “incansavelmente” a caça as bruxas nas regiões da Alemanha e Áustria. O Malleus Maleficarum trata-se de um compêndio que tinha por objetivo edificar-se como um suporte normativo para todas as ordens religiosas e para os oficiais seculares nos tratamentos das heresias. Argumentando que, qualquer indivíduo que não 1 Pesquisa vinculada ao Trabalho de Conclusão de Curso da Graduação em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) defendida em março de 2016, sob orientação do Prof. Dr. Marco Antônio Neves Soares. 2 Pós – graduanda de Especialização em Religiões e Religiosidades pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), sob orientação do Prof. Dr. Marco Antônio Neves Soares. E-mail: [email protected]

Transcript of O vocábulo “medieval” e “moderno”, além de ... · “fim” da Idade Média e o...

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As raízes do imaginário: o Diabo na sociedade católica europeia no século XV1.

Crislayne Fátima dos Anjos2

O vocábulo “medieval” e “moderno”, além de expressarem dois distintos

momentos da História, simbolizava uma significativa dicotomia: a definição de

medieval apresentava-se como um longo período de estagnação e obscuridade; o

“moderno” visualizava-se o progresso, o renascer do conhecimento, a luz depois das

trevas. Essa oposta visão de mundo, preceituada pelos humanistas no século XVI e

reafirmada no século XVIII, apresentava uma ideia de que, ao vivenciarem a Idade

Média, deixando seus princípios e suas convicções, as sociedades ascendiam ao

amanhã de um modo mais democrático, adentrando a um novo momento histórico

que seria intitulado de Idade Moderna. A necessidade dessa explicação se refere à

proposta do recorte cronológico desta pesquisa. A História não conhece barreiras,

portanto as mentalidades e o imaginário não se modificam instantaneamente com o

“fim” da Idade Média e o “inicio” da Idade Moderna.

Esta discussão tem como objetivo principal analisar a construção do imaginário

acerca da figura do Diabo na sociedade europeia do século XV. A obra escolhida

para o desenvolvimento desta pesquisa foi o Malleus Maleficarum- Martelo das

Feiticeiras, escrito, originalmente em latim, e publicado em 1487, pelos dominicanos

Heinrinch Kramer (1430-1505), reitor da Universidade de Colônia, e Jacob Sprenger

(1436/8-1495), inquisidor-geral da Alemanha, que haviam conduzido

“incansavelmente” a caça as bruxas nas regiões da Alemanha e Áustria. O Malleus

Maleficarum trata-se de um compêndio que tinha por objetivo edificar-se como um

suporte normativo para todas as ordens religiosas e para os oficiais seculares nos

tratamentos das heresias. Argumentando que, qualquer indivíduo que não

1 Pesquisa vinculada ao Trabalho de Conclusão de Curso da Graduação em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) defendida em março de 2016, sob orientação do Prof. Dr. Marco Antônio Neves Soares. 2 Pós – graduanda de Especialização em Religiões e Religiosidades pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), sob orientação do Prof. Dr. Marco Antônio Neves Soares. E-mail: [email protected]

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acreditasse em de bruxos adoradores do Diabo e na solidificada existência de

ambos e afirmassem que tal era fruto da imaginação, deveria ser culpado por

heresia. O documento especificava e caracterizava os males religiosos que afligia o

reino da cristandade naquele período. Discorrer sobre o quebra-cabeça teológico

que circunda o mal, esmiuçando todas as particularidades no âmbito cultural é

fundamental para a compreensão da história do pensamento.

I. Um outono ensolarado3: o imaginário de uma época.

As sociedades que presenciaram a formação e publicação do Malleus

Maleficarum eram sociedades que acreditava no sobrenatural, nas ações e no poder

do Diabo e de seus agentes. Não que essa característica seja apenas das

sociedades do “fim” do período medieval, entretanto, em 1500, a Europa cristã já

estava dividida entre católicos e ortodoxos, e não tardaria a se dividir mais com o

surgimento do protestantismo. O fato é que, a sociedade que recepcionou a obra de

Kramer e Sprenger vivenciou transformações profundas que atingiram precisamente

seu imaginário social e, sem uma cultura voltada para a construção dos poderes de

Satã, as incidências do medo não tomariam proporções consideráveis como ocorreu

na Europa. Dentre as grandes teses do Malleus Maleficarum, em primeiro lugar

consta a propriedade do Diabo em, com a permissão de Deus, provocar o mal aos

homens a fim de apropriar-se de suas almas. O imaginário deixa de ser abstrato e se

materializa; o Diabo é real e consistente a partir de seus agentes, não sendo fruto

meramente do ilusório.

3 Em entrevista para Hilário Franco Junior, ao jornal Estadão, o historiador francês Jacques Le Goff se refere ao período abordado no livro do historiador holandês Johan Huizinga como um outono ensolarado, pois “[...] é preciso dizer que o período ao qual o livro se dedica, digamos um longo século XV, talvez também seja um dos mais mal estudados na Europa, e por isso ainda há novas descobertas e novas interpretações. [...]. Eu creio que este seja o caso de uma virada histórica que não se parece com nenhum outro, porque se trata de um belo outono. A tradução francesa antiga era uma tradução estúpida ao se referir ao declínio da Idade Média” (Estadão. São Paulo, 30 abr. 2010).

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Enganem-se portanto os que afirmam não existirem coisas como bruxaria ou

feitiçaria, ou os que professam tais coisas serem imaginárias ou existirem demônios

só na imaginação de ignorantes e de populares, e também os que declaram ser

equivoco atribuir a demônios certos fenômenos naturais que acontecem aos

homens. (KRAMER & SPRENGER, 1993, p.51).

A partir desta perspectiva, as feiticeiras e o Diabo tornam-se um mecanismo

de interpretação do mundo, identificando o principio do mal, ou seja, o Diabo, e as

causas de todas as disfunções da ordem natural e social.

[...] a feitiçaria oferece toda uma explicação dos acontecimentos e dos meios de

agir sobre eles configuram como inteiramente “simbólicos”, isto é, relacionam-se a

influência dos poderes sobrenaturais e ao poder oculto que “feiticeiros” ou

“feiticeiras” possuiriam e usariam contra seu próximo [...]. (SCHMITT, 2002, p.423).

Os escritos de Kramer e Sprenger remetem a sua posição estabelecida

enquanto representantes da Igreja Católica e, portanto, indicadora da formação

ideológica predominante, transformando-se no apogeu ideológico e pragmático da

Inquisição contra a bruxaria, atingindo principalmente as mulheres.

Ademais, é inútil argumentar que todo o efeito das bruxarias é fantástico ou irreal,

pois não poderia ser realizado sem que se recorresse aos poderes do diabo: é

necessário, para tal, que se faça um pacto com ele, pelo qual a bruxa de fato e

verdadeiramente se torna sua serva e a ele se devota – o que não é feito em

estado onírico ou ilusório, mas sim concretamente: a bruxa passa a cooperar com o

diabo e a ele se une. Pois que aí reside toda a finalidade da bruxaria; se os

malefícios são infligidos por mau-olhado, por fórmulas mágicas ou por algum outro

4

encantamento, tudo se faz através do diabo, [...] (KRAMER & SPRENGER, 1993,

p.57).

O Diabo tem poderes extraordinários sobre as consciências, pois é capaz de

produzir um imaginário que lhes aconteça concretamente. É interessante notar-se

que, ao longo de toda a obra, os autores reforçam a argumentação da presença real

de feiticeiros e bruxas, entretanto, ao longo das linhas, Kramer e Sprenger dão maior

notoriedade aos perigos da bruxaria, pois identificam a bruxaria frontalmente aos

impulsos carnais, alegando que “toda bruxaria tem origem na cobiça carnal,

insaciável nas mulheres” (KRAMER & SPRENGER, 1993, p.121). O fato primordial é

que este pensamento não é incomum para a época, tratando-se da visão “oficial” do

gênero feminino e a ideia de inferioridade perpetuada consequentemente pelo

Pecado Original e de Eva, a proposta dos autores concerne em vincular essa

inerente fraqueza feminina com os males que permeiam o seu cotidiano, “é um fato

que o maior número de praticantes de bruxaria é encontrado no sexo feminino”

(KRAMER & SPRENGER, 1993, p.112).

É preciso observar especialmente que essa heresia – a da bruxaria – difere de

todas as demais porque nela não se faz apenas um pacto tácito com diabo, e sim

um pacto perfeitamente definido e explicito que ultraja o Criador e que tem por meta

profana-lo ao extremo e atingir suas criaturas. (KRAMER & SPRENGER, 1993,

p.77).

Este consentimento por parte do indivíduo para o usufruir do Diabo, reflete a

desconfiança frente às mulheres como parte integrante da cultura. Os exercícios das

bruxas que, pelo intermédio do diabo, provocam malefícios para com o próximo,

exercem a violência física, como a castração, por exemplo, “são consequências

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daquilo que na origem nada mais é do que na realidade imaginário” (SCHMITT,

2002, p.424).

Sob suas diversas denominações, o Diabo é sem duvida um das figuras mais

intrigantes do cristianismo. Os homens dos séculos XIV – XVI são dominados por

sua existência e vivem subjugados por sua presença constante no cotidiano.

Enquanto espirito, não possui aspecto corpóreo, submergido nas culturas e

mentalidades especificas de cada momento, que o delineiam com estas ou aquelas

cores.

Não se deve considerar o Diabo de modo isolado; é preciso, ao contrário, levar em

conta seu lugar no sistema religioso global e, portanto, descrever as redes de

relações às quais está integrado. Além disso, é preciso explorar o âmago da

consciência, onde a angústia do Diabo e suas múltiplas manifestações mergulham

suas raízes e, por outro lado, relacionar a figura do Diabo com o conjunto das

realidades sociais e politicas, em particular com os conflitos que agitam as

sociedades medievais e nos quais o Diabo desempenha seu papel. (BASCHET,

2002, p.320).

De um lado as instituições, primeiramente a Igreja e depois o Estado, do outro

os personagens do Diabo e da feiticeira constituem o encontro primordial do

fenômeno de caça as bruxas que se desencadeou na Europa entre os séculos XV

até meados do século XVIII.

A propaganda contínua sobre o perigo, enraizada como estava em imagens e

ideias que podiam ser reconhecidas, penetrou na consciência popular até gerar

frutos pavorosos nas caças as bruxas dos séculos XVI e XVII, quando grande

massa das comunidades aceitava e incentivava as caças aos servos de Satã.

(RICHARDS, 1993, p.94).

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Alguns elementos daquilo que se tornara o estereótipo da bruxaria, somam-se

quatro importantes requisitos para a realização desta prática; renunciar a fé cristã,

dedicar-se de corpo e alma as práticas do mal, oferecer ao Diabo uma criança não

batizada (fig.02) e se prostrar a todos os atos carnais e todos os prazeres obscenos.

Nota-se o aspecto central ocupado pelo sexo, onde as orgias sexuais eram partes

indispensáveis dos rituais.

Numa de suas modalidades é feito em cerimonia solene. Na outra é feito ao diabo

em qualquer hora em sigilo. A cerimonia solene é realizada em conclave, com data

marcada. Nela o diabo aparece às bruxas em forma de homem, reclamando-lhes a

fidelidade que será firmada em voto solene. Em troca, promete-lhes a prosperidade

mundana e longevidade. Depois, as feiticeiras recomendam-lhes uma iniciante –

uma noviça – para seu acolhimento e aprovação, a quem o diabo então pergunta:

- Juras repudiar a Fé e renunciar a santa religião Cristã e a adoração da Mulher

Anômala? – porque assim chama a Santíssima Virgem Maria. – Juras nunca mais

venerar os Sacramentos?

Se então parece-lhes que a nova discípula está disposta a assentir com o que lhe é

pedido, estende-lhe a mão, ao que ela responde fazendo o mesmo e, de braço

estendido, firma o juramento e sela o próprio destino. Feito isso o diabo prossegue:

- Ainda não basta.

- E o que mais há para ser feito? – indaga a discípula.

- É preciso que te entregues a mim de corpo e alma, para todo o sempre, e que te

esforces ao extremo para trazer-me outros discípulos, homens e mulheres. – E

assim prossegue na preleção, explicando – lhes como fazer pomada especial dos

ossos e dos membros de crianças, sobretudo de crianças batizadas; [...].

Nos inquisidores sabemos de um caso verossímil dessa cerimonia na cidade de

Breisach, da dioecese da Basiléia. A história nos foi contada por uma jovem bruxa

que acabou de converter-se, e cuja tia fora queimada na diocese de Strasburg.

Confessou-nos que se tornara bruxa atraída pela tia. (KRAMER & SPRENGER,

1993, p.215-216).

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De acordo com este “verossímil” relato, a bruxaria satânica apresenta-se

como fé alternativa, como uma imagem refletida, inversa do cristianismo, onde se

venera a carne acima do espirito. Nas primeiras décadas do século XV, teólogos e

inquisidores assumiram perante as confissões dos seguidores da seita de feitiçaria

uma atitude autoritária: o sabá era um evento real, portanto, um crime passível de

punição na fogueira4. Esta angustia frente ao mal, não produziria uma extraordinária

efervescência no imaginário coletivo sem a vigorosa ação dos pregadores.

É assim que, no final do século XV, no momento do triunfo humanismo, [...], graças

a todo um esforço pedagógico da Igreja, produz-se na Europa um reforço e uma

maior difusão da crença no final dos tempos. Nesse clima de pessimismo

generalizado com relação ao futuro – físico e moral - da humanidade é que se

explica o “Salve-se quem puder” lançado pelo pregador Geiler em 1508, na

Catedral de Estrasburgo: [...]. (NOGUEIRA, 2000, p.90).

A crença nas bruxas pode ser considerada um exemplo extraordinário de

interação entre a tradição erudita e a popular. Como cita Peter Burke (1989),

pesquisas recentes sugerem que a imagem da bruxa que se estabeleceu nos

séculos XVI e XVII envolvia elementos populares, como a crença de que pessoas

tinham o poder de voar ou de imputar o mal para o próximo através de poderes

sobrenaturais, e os elementos eruditos se fundiam a esta construção, agregando a

ideia de um pacto com o diabo. Tais crenças de voos noturnos foram muito bem

4 A investida das realizações de processos judiciais deu impulso à ideia de um culto organizado realizado por bruxas. Entretanto, poucos julgamentos por feitiçaria foram realizados antes de 1300, em parte, devido a natureza do sistema legal. Tratava-se de um processo acusatório, onde uma pessoa acusava a outra, fornecendo provas e buscando mecanismos para convencer o juiz. Se isso fracassasse, métodos como fogo e agua poderiam ser requisitados, todavia, se o acusador não conseguisse, por fim, encontrar sustentabilidade para suas alegações, poderia ser submetido a pena que tentara imputar ao acusado. Isso se modificou consideravelmente após a revitalização do Direito Romano no século XII, introduzindo um sistema de inquirição no processo judicial.

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explanadas por Carlo Ginzburg em Histórias Noturnas, documentando que as raízes

desse imaginário são antigas e profundas, anteriores a cristianização.

O cristianismo há muito tempo vinha convertendo a cultura5 europeia num

conjunto unitário. Identificavam todas às práticas mágicas com o paganismo e as

condenavam. Neste caldeirão cultural, as expressões folclóricas foram inseridas na

satanização progressiva, transformadas num processo de distorções intrínsecas e

má compreensão. O processo foi lento, mas a partir de quatro pilares distintos;

folclore, bruxaria, magia ritual e adoração ao Diabo, ergueu-se o estereótipo

sustentáculo da caça as bruxas.

Desde os tempos romanos, já existiam histórias de mulheres que eram capazes de

voar, bruxas noturnas (strigae), que eram capazes de se transformar em pássaros e

se dedicavam ao sexo, canibalismo e assassinatos. Havia uma crença popular há

muito estabelecida nas “damas da noite”, espíritos femininos protetores e benéficos,

para quem os camponeses deixavam comida e bebida. Formavam um grupo

organizado, uma hoste com uma líder sobrenatural, conhecidas sob nomes

variados de Diana, Herodias e Holda. Até o século XIII, a elite educada considerava

esses fenômenos como ilusões. Mas, no final da Idade Média, os intelectuais

passaram a acreditar que as histórias eram literalmente verdadeiras, e Kramer e

Sprenger atacaram a ideia de que elas poderiam ser ilusões. Estas histórias, então,

foram misturadas à bruxaria, magia ritual e ao ingrediente inteiramente mítico da

adoração do Diabo para criar o novo estereótipo familiar da bruxa. (RICHARDS,

1993, p. 97).

5 Para definição de cultura, utiliza- se os conceitos de Peter Burke, onde o mesmo diz que “[...] cultura com ênfase na mentalidade como “um sistema de significados, atitudes e valores compartilhados, e as formas simbólicas (apresentações, artefatos) nas quais eles se expressam ou se incorporam.” (BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.21.

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A presença real e continua em todos os instantes da existência humana,

articulam de maneira eficaz o imaginado e a realidade6, estabelecendo o Diabo em

um personagem concreto e familiar em um mundo de desiquilíbrio, onde o homem é

o personagem principal da trágica dicotomia entre o representado e o vivido.

Porém, quis a Divina Providencia que pelo exemplo de Jó os poderes do diabo se

manifestassem, mesmo sobre os bons homens, de sorte a aprendermos a nos

guardar contra Satã, e que, pelo exemplo desse santo patriarca, a glória de Deus

se manifestasse em seu esplendor, porquanto nada acontece sem a permissão do

Todo-Poderoso. (KRAMER & SPRENGER 1993, p.68).

Necessita-se reconhecer e identificar o inimigo na luta entre a matéria e o

espírito na imaginação popular. “E assim, neste crepúsculo sombrio da civilização,

quando se vê o pecado florescer por todos os lado e por todos os cantos, e a

caridade desaparecer, é que se percebe o prosperar da perversidade das bruxas e

suas iniquidades” (KRAMER & SPRENGER, 1993, p.69).

Nesta aguçada sensibilidade psicológica, a mentalidade tende a enxergar de

maneira globalizante as “realidades” que criam e adotam. Segundo Hilário Franco

Junior:

As manifestações imaginárias que se constroem com material da mentalidade, da

psicologia coletiva mais profunda, não são meros reflexos da realidade material. As

duas instâncias interagem. [...]. Os homens são produto de seu tempo, e só se

“inventa” ou se “acredita” no que é possível para a época inventar ou acreditar.

(FRANCO JUNIOR, 2010, p.92).

6 Nesta perspectiva, cabe ressaltar o conceito de realidade discutido pelo historiador Hilário Franco Junior, onde o mesmo articula que “aquilo que cada época considera “realidade” nada mais é do que produto de sua percepção cultural.” FRANCO JUNIOR, Hilário. A Eva Barbada: Ensaios de Mitologia Medieval. 2ªedição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010, p.23.

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Distorções intrínsecas a parte, a historia da cultura inclui agora a história das

ações ou noções subjacente à vida cotidiana, uma cultura construída socialmente. “A

segunda grande objeção à cultura popular tradicional era moral. As festas eram

denunciadas como ocasiões de pecado, mais particularmente de embriaguez,

glutoneria e luxúria, estimulando a submissão ao mundo, à carne e ao demônio –

especialmente a carne.” (BURKE, 1989, p.236). Mais um capítulo da separação

entre o sagrado e o profano, entretanto, um questionamento se faz presente: a

cultura popular tem o mesmo significado para as elites que participavam e para as

classes populares? Primeiramente, como já foi elencada, a cultura popular,

predominantemente oral, chega-nos através de intermediadores, tornando-se uma

documentação quase sempre indireta.

Outras atividades populares estão documentadas simplesmente porque as

autoridades da Igreja ou do Estado estavam tentando elimina-las. A maior parte do

que sabemos sobre as rebeliões, heresias e feitiçaria do período foi registrada

porque rebeldes, hereges e bruxas foram levados a julgamentos e interrogados.

(BURKE, 1989, p.92).

Pode-se dizer que os valores das classes populares só eram documentados

quando as classes altas letradas se interessavam por eles? Torna-se possível, a

partir de um ponto - chave, o desenvolvimento desses questionamentos: a

alfabetização.

É de conhecimento que existia uma estratificação cultural e social na maioria

dos lugares, onde havia uma minoria letrada, e dentro desta minoria, havia quem

tinha conhecimento sobre o latim, e uma maioria analfabeta. Engana-se pensar que

a elite e o clero eram alfabetizados em um todo: “[...] é preciso lembrar que muitos

nobres e clérigos não sabiam ler nem escrever, ou só conseguiam com dificuldade,

da mesma forma que os camponeses; na área da Cracóvia, por volta de 1565, mais

de 80% dos nobres sem fortuna eram analfabetos.” (BURKE, 1989, p.54).

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É de conhecimento também que, as cidades abrigavam em seus seios

minorias étnicas, que ao partilharem de uma cultura os excluía para as margens

socioculturais, no âmago do funcionamento das tênues relações sociais em uma

micro sociedade. A apropriação do sabá judaico para designar as reuniões dos

servos do Diabo é um exemplo dos mecanismos utilizados em relação à cultura do

outro, “a emergência do sabá pressupõe a crise da sociedade europeia no século

XIV e as carestias, a peste, a segregação ou expulsão dos grupos marginais que

acompanharam.” (GINZBURG, 2012, p.103). As sobrevivências dos estrados

profundos das crenças populares deram molde a interpretações religiosas

desenfreadas.

De posse da pomada voadora, que, como dissemos, tem fórmula definida pelas

instruções do diabo e é feita dos membros das crianças, sobretudo daquelas

mortas antes do batismo, ungem com ela uma cadeira ou um cabo de vassoura;

depois do que são imediatamente elevadas aos ares, de dia ou de noite, na

visibilidade ou, se desejarem, na invisibilidade; pois o diabo é capaz de ocultar um

corpo pela interposição de alguma outra substância, [...]. E não obstante o diabo

realize tal prodígio em grande parte através da pomada – para que as crianças se

vejam privadas da graça do batismo e da salvação -, [...]. Já que, vez ou outra,

transporta as bruxas em animais, que não são de fato animais, mas demônios

naquela forma; e noutras ocasiões, mesmo sem qualquer auxílio exterior, elas são

visivelmente transportadas exclusivamente para força dos demônios. (KRAMER &

SPRENGER, 1993, p.228).

Além disso;

A mulher da cidade de Breisach, a quem perguntamos se só eram transportadas na

imaginação ou só em corpo físico, ajudou a esclarecer a questão. Disse-nos que

são das duas maneiras. Contou-nos, ademais, que, quando não querem ser

transportadas corporeamente, mas desejam saber o que está se passando num

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encontro de bruxas, observam o seguinte procedimento. Em nome de todos os

demônios, deitam-se sobre o lado esquerdo e põem-se a dormir. Começa a sair por

sua boca, então, uma espécie de vapor azulado através do qual conseguem ver

exatamente o que está acontecendo. Quando, porém, querem ser até lá

transportadas, precisam observar o método a que já nos referimos. (KRAMER &

SPRENGER, 1993, p.230).

É passível de interpretação que, tais fenômenos aéreos podem remeter ao

milenar folclore camponês de crenças populares e sobrevivências míticas de

espíritos benéficos que sobrevoavam as colheitas para a proteção das mesmas, que

se transformou em um discurso fantasioso desenfreado por parte dos teólogos.

[...], o nome Diana é, às vezes, substituído pelos nomes de algumas divindades

populares germânicas, como Holda, dotadas de atributos que, por um contraste

aliás muito frequente, dizem respeito tanto à vida quanto à morte. Holda, com

efeito, analogamente à sua coirmã da Alemanha meridional, Perchta, é ao mesmo

tempo deusa da vegetação, e portanto da fertilidade, e guia do “exército furioso” ou

da “caça selvagem” (Wütischend Heer, Wilde Fagd, Mesnie Sauvage) – isto é, do

bando dos que morreram prematuramente, que percorre à noite, implacável e

terrível, as ruas da aldeias, enquanto os habitantes trancam as portas em busca

das mulheres adeptas de Diana são uma variante da “caça selvagem”; e explica-se

assim a espantosa presença de Diana, “deusa dos pagãos”, entre esses mitos

populares – identificação erudita, na realidade, de inquisidores, teólogos,

pregadores, facilitada por algumas analogias objetivas. Diana – Hécate, com efeito,

também é seguida nas suas peregrinações noturnas por um grupo de mortos que

não encontram paz: os mortos prematuros, as crianças roubadas cedo demais à

vida, às vítimas de morte violenta. (GINZBURG, 2010, p.65-66).

Este testemunho elencado pelos inquisidores dominicanos “é apenas um

dentre inúmeros testemunhos da lenta demonização, levada adiante durante

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séculos, de um estrato de crenças que chegou até nós de maneira fragmentária, por

intermédio de textos produzidos por canonistas, inquisidores e juízes” (GINZBURG,

2012, p.119). Todos os esforços em reduzir, por parte do cristianismo, tais

divindades à condição de crenças deformadas, consequentemente resultaram na

sobrevivência das tradições e crenças do mundo antigo.

As incrustações diabólicas que envolvem esses substratos culturais foram

difundidas com a contribuição da circulação dos tratados de demonologia pela

Europa. A invenção da imprensa consolidou a difusão de publicações de novos

tratados, ampliando as áreas de debates em torno dos processos de feitiçaria dos

tormentos de consciência provocados pelo Diabo. As obras demonológicas

carregam a atmosfera mental com inesgotáveis descrições dos inumeráveis

mecanismos que o Diabo oferece a fim de levar-nos a perdição. Esta, no entanto, é

a verdadeira identidade do maligno nas premissas religiosas. Segundo Nogueira:

Contudo, duas imagens de Satã coexistem: uma popular e outra erudita, esta, de

longe, a representação mais trágica, pois o Demônio, nas condições populares, é

uma entre outras tantas sobrevivências míticas que uma conversão imposta não

conseguiu exterminar. O Diabo popular é um personagem familiar, às vezes

benfazeja, muito menos terrível do que afirma a Igreja, e pode ser inclusive,

facilmente enganado. A mentalidade popular defendia-se, desse modo, da teologia

aterrorizante – e muitas vezes incompreensível – da cultura erudita. (NOGUEIRA,

2000, p.99).

Edward Thompson (apud BURKE, 1989) aponta um questionamento ao

considerar que os camponeses cristãos só aceitam os dogmas doutrinários da

Igreja, a partir do ponto em que possam assimila-la com suas experiências. O

folclore funcionava como um mecanismo de resistência cultural aos valores

eclesiásticos. A presença do Diabo era extremamente necessária, a partir do

momento em que sua existência servia de substrato ideológico para justificar os

intensos esforços missionários e suas medidas repressivas e violentas

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administradas na luta contra o mal e suas articulações. O verdadeiro medo está no

que não se vê ou no que pensa em ter se visto.

E notar que, se confessar sob tortura, deverá ser então levada para outro local e

interrogada novamente, para que não confesse tão somente sob pressão da tortura.

Se após a devida sessão de tortura a acusada se recusar a confessar a verdade,

caberá ao Juiz colocar diante dela outros aparelhos de tortura e dizer-lhe que terá

de suporta-los se não confessar. Se então não for induzida pelo terror a confessor,

a tortura deverá prosseguir no segundo ou no terceiro dia, mas não naquele mesmo

momento, salvo boas indicações de seu provável êxito. (KRAMER & SPRENGER,

1993, p.433).

Figura 01: A imersão de Mary Sutton suspeita de ser bruxa, em 1612. Aqueles que sobreviviam ao julgamento eram reconhecidos como bruxos. Folha de rosto de um folheto de título Witches

apprehended, examined and executed, Londres, 1613. RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e Danação: As minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed; 1993, p.89.

A Inquisição medieval não permitia a repetição da tortura (fig.01), contudo,

havia tribunais, como por exemplo, Espanha e Portugal, que se aplicava o numero

de torturas necessárias para a obtenção das confissões. Os julgamentos por heresia

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e feitiçaria eram caracterizados por um conjunto padronizado de perguntas, em que

a ideia do vinculo entre a heresia, bruxaria e obscenidades tornaram-se quase que

indistinguíveis entre si. Estas particularidades do discurso cristão eram pautadas

substancialmente nas mesmas alegações que os escritores pagãos proferiam contra

os cristãos dos primórdios. Essa prática de censurar as religiões dissidentes com os

crimes mais repugnantes, como infanticídio, era frequente. As parteiras também

foram alvo da perspectiva clerical, segundo Kramer & Sprenger;

[...] contou-nos ainda que os piores males eram infligidos pelas bruxas parteiras,

porque eram obrigadas a matar ou a oferecer aos demônios o maior número

possível de recém-nascidos; e que certa vez fora espancada pela tia porque abrira

um pote secreto onde estavam guardadas as cabeças de muitas crianças. E muito

mais nos contou, tendo o primeiro, como de praxe, feito o juramento de só dizer a

verdade. (KRAMER & SPRENGER, 1993, p.216).

Observa-se que a medicina popular, praticada pela mulher local, conhecedora

das ervas e das habilidades do parto era estimulo para indicações de bruxaria7 e era

um fenômeno comunitário, partilhado entre as classes mais baixas. Apropriar-se do

cotidiano também forneceu embasamento para as concepções de práticas de

feitiçaria.

Convencidos de que a sociedade cristã é alvo de uma ofensiva sem precedentes

lançada por Satã, os poderes eclesiásticos e estatais desencadeiam, a partir do

século XV, uma vasta perseguição, em escala inédita, contra os que considera seus

inimigos mortais. Satã aparece como Adversário contra o qual se funda o poder das

7 O historiador inglês Jeffrey Richards argumenta que, a bruxaria era essencialmente a magia inferior, ou seja, a medicina popular, em contraponto a magia superior, praticada por instruídos. A distinção entre as duas era que, a magia inferior era realizada pela mulher sábia, aquele que detinha o conhecimento com ervas (venenos e abortíferos também) e que era versada na arte do parto. Essas mulheres eram presentes nas comunidades de classes sociais mais baixas e tais praticas eram realizada pelos indivíduos, não em cultos. No extremo oposto, encontrava- se a magia superior, a ciência praticada pelo intelectualizado, rituais formais e livros de sabedoria. Ver: RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média; tradução Marco Antônio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed; 1993, p. 87.

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instituições, antes de todas o da Igreja, principalmente na luta contra as heresias, e

também o dos Estados, engajados na caça às feiticeiras. (BASCHET, 2002, p.329).

Espalhando na atmosfera do período, a diversidade e as peculiaridades

aterrorizantes dos tormentos que prenunciam sobre os indivíduos, o teatro religioso

e os sermões difundiram e implantaram o discurso teológico8 que, acarretou em uma

condição dicotômica fomentando uma comoção na sensibilidade e na imaginação

coletiva, não podendo se pensar o Bem sem pensar no Mal, “[...], o diabo prefere

operar por intermédio de bruxas e realizar tais prodígios em seu próprio proveito, ou

seja, visando a perda das almas” (KRAMER & SPRENGER, 1993, p.54).

Em Ratisbon, um homem vinha sendo tentado pelo demônio em forma de mulher a

copular, e começou a ficar desesperado quando viu que o demônio não desistia.

Veio-lhe, porém, a ideia de comer Sal Consagrado para se defender, conforme já

ouvira num sermão. E assim fez: ao entrar no banheiro, comeu do Sal, e a mulher,

olhando-o ameaçadoramente, amaldiçoou-o com todas as imprecações que o diabo

lhe ensinara e, subitamente, desapareceu. (KRAMER & SPRENGER, 1993, p.201-

202).

A caça as bruxas foi um dos episódios mais impressionante da história do

Diabo, e o sermão era o difusor substancial para aproximar a elite com a cultura

popular, em uma sociedade onde “os camponeses compunham de 80% a 90% da

população da Europa” (BURKE, 1989, p.56). Portanto, podemos explorar, partindo

destes pressupostos, o conceito de “circularidade cultural”, abarcado por Carlo

Ginzburg.

No prefácio à edição inglesa de O queijo e os vermes, Ginzburg rememora a

Mikhail Bakhtin, e partindo dele, empreende uma discussão crítica sobre o termo

8 O teatro religioso mobilizava um numero importante de espectadores, enquanto os sermões difundiam o medo desmesurado do Diabo, causando grande comoção na mentalidade popular, que atingindo proporções significativas, foi proibido em um concilio em 1516.

17

“circularidade”, para delinear a comunicabilidade que havia entre a cultura das

classes dominantes e a das classes subalternas na Europa pré-industrial. Essa

comunicação se dava de forma dialógica, “entre a cultura das classes dominantes e

das classes subalternas existiu, na Europa pré – industrial, um relacionamento

circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como

de cima para baixo” (GINZURG, 2012, p. 10).

Assim, partindo da história de Domenico Scandella (conhecido por

Menocchio) tendo como fonte os autos dos processos inquisitoriais ao que o

protagonista foi submetido na região do Friul durante o século XVI, Ginzburg formula

um quadro mais amplo dos valores da cultura popular da Europa pré-industrial. Mais

do que um procedimento jurídico, os discursos entre Menocchio e o inquisidor

transparecem duas tradições culturais que dialogam entre si, uma com raízes

profundas na cultura popular, predominantemente oral, e outra herdeira da cultura

da elite. As percepções de Menocchio evidenciam a descontinuidade em relação ao

discurso elitizado do inquisidor, em contrapartida, trazem claras referências a essa

mesma cultura. Ginzburg revaloriza o conceito de cultura popular neste trabalho.

[...] as imagens, estórias ou ideias, [...] são modificadas ou transformadas, num

processo que, de cima, parece ser distorção ou má compressão, e, de baixo,

parece adaptação a necessidades especificas. As mentes das pessoas comuns não

são como folha de papel branco, mas estão abastecidas de ideias e imagens; [...].

(BURKE, 1989, p.86).

Um fator decisivo é a ignorância. Kramer & Sprenger argumentam que

existem três tipos de heresias: os indivíduos que pregam abertamente doutrinas

heréticas, os que são comprovados por testemunhas e por fim, os que se confessam

por sua livre e espontânea confissão. Existem também certas especificidades, como

os que não possuem conhecimento das leis canônicas ou são mal – informados por

insuficientes leituras, entretanto:

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Para uma pessoa ser acusada de heresia não basta vê-la defender simplesmente

uma ideia: é preciso que a leve adiante, que a defenda obstinada e abertamente.

[...]. Mas que nenhum homem pense poder escapar alegando ignorância. [...].

Porque, embora existam vários graus de ignorância, os responsáveis pela cura das

almas não podem pleitear ignorância absoluta, [...]. O que há de ser censurado

nessas pessoas é a ignorância Universal, ou seja, a ignorância da lei divina, a qual,

conforme determinou o Papa Nicolau V, devem e deveriam conhecer. (KRAMER &

SPRENGER, 1993, p.60).

A ignorância religiosa no século XV era uma grande heresia, no sentido que,

os acusados de cometê-la, não compreendiam com clareza as regras da Igreja,

portanto, é tangível considerar que a minoria era efetivamente capaz de ler na

aurora da Europa moderna; os homens mais que as mulheres, os artesãos mais que

os camponeses.

Essas crenças constituíam-se, de resto, somente a versão “negra” de uma

concepção global do mundo: na sociedade cristã tradicional, dominada pela Igreja e

por seu clero, pode-se observar que o culto dos santos e a crença no milagre, os

exorcismos, a perspectiva da Presença real na hóstia, não se embasam em uma

lógica diferente daquela feitiçaria, elas participam do mesmo pensamento simbólico,

do qual são a versão considerada legitima. (SCHMITT, 2002, p.423).

No decorrer desta discussão, levantamos um questionamento sobre as

consequências que decorreram do crescente fluxo de alfabetização no transcorrer

da Idade Moderna. O resultado do aumento da alfabetização e das facilidades

educacionais associados à difusão do livro impresso atenuou a relação entre a

cultura erudita e a cultura popular. Um exemplo dessa crescente divisão é o caso

das bruxas. Os séculos XVI e XVII foram marcados como o apogeu da caça as

bruxas, com um aumento no numero de processos e de execuções de pessoas

19

acusadas, contudo, a partir de meados do século XVII inicia-se o declínio desses

processos, no que tange a Europa Ocidental. Isso não significa que a população

deixara de aceitar a existência de historias de bruxas e espíritos femininos,

entretanto a elite deixara de acreditar nela, deixara no sentido de, se não abjuraram

totalmente da ideia, ao menos se tornaram mais céticos frente a ela. “No final do

século XVII, os cultos estavam começando a julgar a crença em bruxas como uma

característica de “gente que tem discernimento e a razão mais fraca, como

mulheres, crianças e pessoas ignorantes e supersticiosas.” (BURKE, 1989, p.298)”.

O mal domina consciências. O homem moderno sente-se inseguro, insegurança

baseada na crença de um Satã todo-poderoso, identificando a todas as desgraças

e azares que ocorriam o mundo. Crença que serve de suporte a toda série de

violências que ensanguentam a Europa moderna, transformadas em lutas contra o

Diabo, seus agentes e seus estrategemas. [...]. Em outras palavras, as Reformas

conferiram ao Inimigo o direito de existir em toda sua potencia, em toda a sua

nobreza. (NOGUERIA, 2000, p.101).

Fora, portanto, na aurora dos tempos modernos que concepções do Inferno,

do Diabo e dos seus agentes povoaram de modo substancial a imaginação do

Ocidente. A caça as bruxas não foi um evento medieval, do período das “trevas”,

desencadeou-se paralelamente a difusão do livro impresso, do Renascimento

cultural, das grandes navegações. Obra após obra, as experiências dos eclesiásticos

e inquisidores foi se estendendo por diferentes países, acrescentando a cada

publicação explicações minuciosas de particularidades que um imaginário sem

barreiras fomentou sobre a personificação, a personalidade e os poderes do inimigo

cristão.

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Considerações Finais.

Fruto de uma tradição secular, elaborado a partir do substrato cultural

herdado do mundo judaico, e consequentemente, influenciado por outras culturas, o

imaginário do Diabo não é alheio às transformações efetuadas com o advento do

cristianismo, que o insere em uma posição central da reflexão teológica

empreendida sobre a existência do mal e sobre o pecado. Diferentemente do que se

é encontrado na maioria dos trabalhos acadêmicos que se utilizam do Malleus

Maleficarum como fonte, está pesquisa centrou-se no caráter cultural da obra, uma

vez que seu caráter religioso já foi amplamente debatido anteriormente.

Como já elencado, este trabalho preocupou-se em discutir as consequências do

convívio entre a cultura erudita e popular, e como este vínculo foi sumariamente

importante para a fomentação do imaginário durante o recorte cronológico

explicitado. Os mecanismos empregados pelo cristianismo param se solidificar em

um espaço onde as antigas crenças estavam arraigadas no seio da população,

resultaram na redução do poder das divindades pagãs à condição de crenças

deformadas, em contrapartida, tais esforços colaboraram para sua sobrevivência em

meio às tradições da “verdadeira fé”. É preciso enxergar que a cultura erudita e a

cultura popular não podem ser compreendidas como elementos opostos e

impermeáveis. O folclore funcionava na Idade Média como uma forma de resistência

cultural aos valores eclesiásticos. Cada cultura deve ser analisada como parte de um

conjunto articulado, que funciona como um sistema de interpretação do mundo e da

comunicação afetiva com ele, isto é, a cultura necessita ser enxergada com parte,

não de um, mas de vários conjuntos.

Referências

Fonte:

KRAMER, Heinrich, SPRENGER, James. Malleus Maleficarum: o martelo das

feiticeiras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993.

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Bibliografia:

BASCHET, J. “Diabo”. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J. C. Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2002.

BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Média. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. BURKE, Peter. O que é historia cultural? Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2005. FRANCO JUNIOR, Hilário. A Eva Barbada: Ensaios de Mitologia Medieval, 2ª edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010. GINZBURG, Carlo. Histórias Noturnas: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição; tradução Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII/ Carlo Ginzburg: tradução Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão. Bauru; São Paulo: Edusc, 2000. RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média; tradução Marco Antônio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed; 1993.