OBRA-PRIMA DE CHICO XAVIER FOI DEFORMADA E …

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OBRA-PRIMA DE CHICO XAVIER FOI DEFORMADA E (DULTERADA PELA FEB! PESQUISA DE PROF DIREITO, JUIZ FEDERAL, PHD LINGUÍSTICA PAULO E ESTÊVÃO: O DESACERTO EDITORIAL NO RELANÇAMENTO DO CLÁSSICO ESPÍRITA Carta aberta de João Batista Júnior - Professor do Curso de Direito da Universidade do Estado da Bahia, Juiz Federal da Subseção Judiciária de Vitória da Conquista- Ba. Mestre em Linguística Histórica e Doutor em Linguística e Cultura pela Universidade Federal da Bahia Senhor Presidente da Federação Espírita Brasileira. Dirijo-me a Vossa Senhoria para, no propósito de cooperar com a missão institucional da Federação Espírita Brasileira de conservar a integridade literária, bem como doutrinária, das obras por ela publicadas em nome da difusão do Espiritismo Cristão, dar-lhe conhecimento de alguns dos acentuados desacertos gráficos nas recentes edições e tiragens da obra Paulo e Estêvão, de Francisco Cândido Xavier/Emmanuel. De logo, apresento-lhe o plano metodológico da exposição, composto fundamentalmente pelo confronto de duas edições: a 17ª (do 127º ao 136º milheiro), de 1981 – que reproduz rigorosamente a 1ª edição, de 1941 –, e a 45ª (7ª impressão), de 2014. Convém deixar em destaque que os senões adiante antepostos aos mais novos relançamentos, em formato 160x230 mm, não se fundam na má observação dos trânsitos ortográficos que têm se operado na comunidade lusofônica. Em todo caso, não é inoportuno relembrar, para fins de esclarecimento prévio, que, como se sabe, o primeiro Acordo Ortográfico entre Brasil e Portugal se deu em 1931, a que se seguiriam dificuldades de aprovação legal. Enquanto isso, o Vocabulário Ortográfico da Língua

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OBRA-PRIMA DE CHICO XAVIER FOI DEFORMADA E (DULTERADA PELA

FEB! PESQUISA DE PROF DIREITO, JUIZ FEDERAL, PHD LINGUÍSTICA

PAULO E ESTÊVÃO: O DESACERTO EDITORIAL NO RELANÇAMENTO DO

CLÁSSICO ESPÍRITA

Carta aberta de João Batista Júnior - Professor do Curso de Direito da Universidade do

Estado da Bahia, Juiz Federal da Subseção Judiciária de Vitória da Conquista-

Ba. Mestre em Linguística Histórica e Doutor em Linguística e Cultura pela

Universidade Federal da Bahia

Senhor Presidente da Federação Espírita Brasileira.

Dirijo-me a Vossa Senhoria para, no propósito de cooperar com a missão institucional da

Federação Espírita Brasileira de conservar a integridade literária, bem

como doutrinária, das obras por ela publicadas em nome da difusão do Espiritismo

Cristão, dar-lhe conhecimento de alguns dos acentuados desacertos gráficos nas

recentes edições e tiragens da obra Paulo e Estêvão, de Francisco Cândido

Xavier/Emmanuel.

De logo, apresento-lhe o plano metodológico da exposição, composto fundamentalmente

pelo confronto de duas edições: a 17ª (do 127º ao 136º milheiro), de 1981 – que reproduz

rigorosamente a 1ª edição, de 1941 –, e a 45ª (7ª impressão), de 2014.

Convém deixar em destaque que os senões adiante antepostos aos mais novos

relançamentos, em formato 160x230 mm, não se fundam na má observação dos

trânsitos ortográficos que têm se operado na comunidade lusofônica. Em todo caso, não

é inoportuno relembrar, para fins de esclarecimento prévio, que, como se sabe, o

primeiro Acordo Ortográfico entre Brasil e Portugal se deu em 1931, a que se seguiriam

dificuldades de aprovação legal. Enquanto isso, o Vocabulário Ortográfico da Língua

Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, edição de 1940, era ratificado

unanimemente pela Academia Brasileira de Letras em 29 de janeiro de 1942, antes,

portanto, de ser por aqui tornado oficial o Formulário Ortográfico, de 1943. Entre este e

o Acordo de 1931 levantaram-se algumas divergências que a Convenção Ortográfica, de

1945, tentou suprimir, mas que terminou sendo aprovada somente em Portugal, ficando

a ortografia no Brasil vinculada ao Formulário de 1943.

Não passa despercebido a qualquer leitor atento que a 1ª edição da obra Paulo e

Estêvão, de 1941, se filiou claramente ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa,

da Academia das Ciências de Lisboa. Posteriores revisões respeitaram essa opção

ortográfica até o advento da Lei 5.765/1971, que, de conformidade com o parecer

conjunto da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa,

exarado a 22 de abril de 1971, segundo o disposto no artigo III da Convenção Ortográfica,

celebrada em 29 de dezembro de 1943 entre Brasil e Portugal, implantou a abolição do

trema nos hiatos átonos, do acento circunflexo diferencial na letra e e na letra o, da sílaba

tônica das palavras homógrafas de outras em que são abertas a letra e e a letra o, exceção

feita da forma pôde, que passou então a ser acentuada por oposição a pode, além do

acento circunflexo e do grave com que se assinala a sílaba subtônica dos vocábulos

derivados em que figura o sufixo mente ou iniciados por z.

Ao sobrevir o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, de 1990, que entrou em vigor

no início de 2009, no Brasil, e em 13 de maio de 2009 em Portugal, a Federação Espírita

Brasileira procurou igualmente adequar suas reediçõesaos novos estalões normativos.

Em realidade, ao longo dos anos tem sido claramente identificável a zelosa preocupação

da FEB em produzir edições cuidadas, o que inclui as mencionadas adequações à moldura

gramatical vigente. Além disso, atenta à percepção de que o médium Francisco Cândido

Xavier psicografava, como diriam os romanos, currente calamo – ou seja, em grande

velocidade na transmissão sináptica da junção neuromuscular –, o que muitas vezes

deixou à vista pequenas imprecisões, a primeira revisão editorial legitimamente procurou

escoimá-las antes da impressão definitiva.

De presumir, então, que tenham sido similares a esses os fins que guiaram a proposta de

atualização da obra em foco pelo recente Acordo Ortográfico, o que, porém, nemsempre

foi seguido à risca, como se vê, ilustrativamente, da grafia “instrui-lo-ei a respeito”,

constante da 45ª edição (p.51), que desatendeu à exigência, mesmo sob as novas regras

do Acordo, de que o i em posição final de palavra oxítona, quando antecedido de outra

vogal com que forme hiato, deve ser acentuado, como já vigorava sob a vigência das

normas anteriores, o que explica que, na 17ª edição, tivesse sido acertadamente escrito

“instruí-lo-ei a respeito” (p. 55).

Mas não édesse tipo de fato editorial que cuida este exame submetido à sua apreciação, e

sim daquelas alterações que, além de arredarem as escolhas estilísticas dos Autores,

instalaram trocas ortográficas indevidas.

As observações abaixo expostas não têm a pretensão de ser exaustivas, porquanto a

releitura dessa obra clássica de minha parte sempre se fez mais em nome do alinhamento

com a luminosa filosofia aí anunciada. Todavia, mesmo mergulhado na exploração do

conteúdo da obra em sua recente edição, não pude deixar de notar que seus desvios

ortográficos e estilísticos comprometem o feitio literário dos Autores.

Não é fora de propósito pôr em evidência que todo autor tem seu próprio estilo, o que traz

à cena as célebres palavras extraídas do discurso pronunciado por Buffon na Academia

Francesa, a 25 de outubro de 1753: “Le style c’est l’homme même”. Isso explica

a credibilidade de obras mediúnicas como a notável Parnaso de Além Túmulo, capaz de

arrancar admiração do rigoroso crítico literário, embora cético quanto ao

Espiritismo, Agripino Grieco, como reconheceu, em entrevista ao Diário da Tarde, em

1944, quando de observação feita em relação aos escritos psicografados por Chico Xavier

e atribuídos a Augusto dos Anjos e Humberto de Campos.

Nessa pesquisa de identidade literária, busca-se, quase sempre, delimitar os

chamados estilemas, que são recorrências ou traços característicos do estilo. A dupla

Chico Xavier/Emmanuel, aqui focalizada como unidade autoralpela íntima comunhão

de propósitos entre ambos, tinha igualmente os seus, os quais, afora adaptações

ortográficas, convidam a ser deixados intactos.

Feito esse prólogo, passo a apresentar as imprecisões identificadas na 45ª edição

de Paulo e Estêvão, pondo em cotejo, repita-se, os trechos nela contidos com os que se

encontram na 17ª edição:

1.“O feitor designou Jeziel, incontinente” (p. 50, 45ª edição). Basta consultar as edições

antigas para verificar que os Autores se valeram de outra forma gráfica, como se lê da

página 52 da 17ª edição: “O feitor designou Jeziel, incontinenti”.

Esse deslize poderia passar à conta de desatenção tipográfica se essa primeira impressão

não fosse logo desfeita pelas repetições encontráveis muitas páginas à frente:

“Incontinente, tomou o caminho de Jope” (p. 166); “um tribuno militar

organizou incontinente um troço de soldados” (p. 412). Na 17ª edição, assoma a real

preferência dos Autores: “Incontinenti, tomou o caminho de Jope” (p. 83); “um tribuno

militar organizou incontinentium troço de soldados” (p. 464).

Incontinenti é latinismo adverbial lexicalizado na língua portuguesa e, em razão

disso, sem adaptação morfológica, mesmo após a citada Reforma Ortográfica de 1971,

ficando assim mantida essa forma nas grandes obras de referência lexicográfica:

“incontinenti (nên). [Adapt. do lat. in continenti.] Adv. Sem demora; sem intervalo; sem

interrupção; sem detença; imediatamente” (Novo dicionário Aurélio da língua

portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 933).

Da mesma ordem é o ensinamento de Rocha Lima: “9. Incontinenti – latinismo –

significa imediatamente; sem demora, intervalo ou interrupção: ‘Reconhecemo-nos

incontinenti, com igual espanto’ (Monteiro Lobato)” (Gramática normativa da língua

portuguesa. 30. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, p. 315).

Incorporado, pois, à língua portuguesa sem acentuação e sem grifo, tal como consta da 5ª

edição, de 2009, do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia

Brasileira de Letras, tem sido adotado tanto por escritores célebres quanto pelo culto

padrão redacional das leis brasileiras, como se vê de dispositivos do Código

Civil Brasileiro, instituído pela Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002: “A doação verbal

será válida, se, versando sobre bens móveis e de pequeno valor, se lhe seguir incontinenti

a tradição” (art. 541, parágrafo único); “se houver instruções do comitente proibindo

prorrogação de prazos para pagamento, ou se esta não for conforme os usos locais, poderá

o comitente exigir que o comissário pague incontinenti” (art. 700); “se o transporte não

puder ser feito ou sofrer longa interrupção, o transportador solicitará, incontinenti,

instruções ao remetente” (art. 753).

A alteração foi, portanto, indevida.

2. Na 45ª edição, depara-se com este trecho: “Estêvão era uma inteligência poderosa e

mostrara, ao morrer, uma paz impressionante, acompanhada de valores espirituais

que o infundiam assombro” (p. 176).

Salta aos olhos que houve adulteração da regência verbal, porquanto o

verbo infundirrege acusativo de coisa e dativo de pessoa, e, no caso, o objeto direto dele

já é assombro, sendo completamente descabida a inserção do pronome o no contexto

da sentença, por não exercer aí qualquer função sintática. A redação das versões antigas,

por óbvio, jamais cometeria esse tipo de pecado linguístico: “Estêvão era uma

inteligência poderosa e mostrara, ao morrer, uma paz impressionante, acompanhada de

valores espirituais que infundiam assombro” (17ª edição, p. 195).

A mudança de regência do verbo, ao introduzir verdadeiro corpus alienum,

positivamente não tem abonação gramatical.

3. Na 17ª edição, os Autores assim compuseram a seguinte passagem: “os coríntios

riam gostamente” (p. 431). Na atualização feita pela 45ª edição, grafou-se: “os coríntios

riam gostosamente” (p. 383).

Gostamente é forma adverbial vernácula, encontrável nos autores clássicos de

maior feição lusitanizante. Assim é que, entre os contemporâneos, se lê do escritor e

jornalista angolano João Melo no conto “Madinusa”: “(...) alheia a esses receios de G.W.

Bush — que, como os brasileiros, eu chamaria gostamente de ‘bobos’” (Contos do mar

sem fim. Rio de Janeiro: Pallas, 2010).

Também no Brasil a expressão está presente em alguns cronistas, como Pedro Rogério

do Couto Moreira, nascido em 1946: “Meio? - ri gostamente o escritor. - Era

inteiramente” (Jornal Amoroso: Edição Vespertina. Brasília: Thesaurus Editora, 2007,

p. 159).

Os Autores de Paulo e Estêvão fizeram, então, uso consciente, pois, na introdução,

tinham usado forma alternativa: “Templos e devotos entregam-se, gostosamente, às

situações acomodatícias” (17ª edição, p. 8; 45ª edição, p. 8).

Aqui, a revisão editorial desafeiçoou-se inteiramente do talhe estilístico aposto à obra.

4. Na 17ª edição, há recorrente estilema dos Autores: trata-se do uso da locução até a.

Confira-se esta passagem da 17ª edição: “Saulo de Tarso, com a profunda sinceridade que

lhe caracterizava as mínimas ações, só queria saber que Deus havia mudado de resolução

a seu respeito. Ser-lhe-ia fiel até aofim” (p. 204). A 45ª edição alterou para “ser-lhe-ia

fiel até o fim” (p. 183).

Não é a única ocorrência modificativa. O trecho “ei-la junto do companheiro, nas lides

do tear, até às horas mais avançadas” (17ª edição, p. 247) foi transmudadoem “ei-la

junto do companheiro, nas lides do tear, até as horas mais avançadas” (45ª edição, p.

222).

Inexiste incorreção na utilização de até a em lugar apenas de até. A esse respeito, adverte

bem Antônio Houaiss:

“(...) como prep., é indiferentemente correto associá-la ou não a outra preposição (ir a[té]

o parque ou ir a[té] ao parque; caminhar a[té] a igreja ou caminhar a[té] à

igreja) (...) atualmente, é mais comum em Portugal o emprego associado à

prep. a, enquanto no Brasil as utilizações pendulam; historicamente, até o sXVII, usou-

se na língua apenas até; nesse mesmo século foi que começou a surgir até a, com o art.

fem. (até à, até às), e posteriormente com o art. masc. (até ao, até aos); grandes escritores

dos sXIX e XX alternaram o emprego do até preposicionado com o até sem preposição,

por vezes na mesma obra (Machado de Assis, por exemplo)” (Dicionário Houaiss da

língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, verbete até, p. 331).

A adoção de até à constitui, então, marca estilemática dos Autores, difusa por suas obras,

como se lê, entre outras, de Renúncia (14ª edição, 1983): “trabalhar devotadamente, até

à vitória” (p. 12); “amparai nossos espíritos até ao dia” (p. 24-25); “ansioso por defender

Madalena até ao fim” (p. 205-6).

Não se trata de traço único nessa preciosa produção em que há, aqui e ali,

registros estilístico-gramaticais deliberadamente lusitanizantes. Bom exemplo se tem

no seguinte passo: “Tamanho o movimento de necessitados de toda sorte, que há

muito Simão não mais podia entregar-se a outro mister” (17ª edição, p. 61). O emprego

de há muito sem flexão, quando deveria estar em correlação com tempo verbal

imperfeito, não tem o referendo de gramáticos mais ortodoxos (ALMEIDA, Napoleão

Mendes de. Gramática metódica da língua portuguesa. 35. ed. São Paulo: Saraiva,

1988, p. 534), mas é avalizado por Celso Cunha e Lindley Cintra (op. cit., p. 528), sendo

corrente sobretudo em autores portugueses.

Outro traço de relevo no manejo literário de Chico Xavier/Emmanuel diz respeito à

colocação dos pronomes átonos. Deliberadamente, eles operam com extrema anteposição

clítica à esquerda, como nos seguintes trechos: “Se hei de abandonar a dádiva de Pedro a

pessoas que lhe não podemreconhecer o valor que lhe atribuímos (...). E temo que os

adeptos de Jesus te não possam compreender de pronto” (17ª ed., p. 243; 45ª ed., p. 219).

Trata-se de forma de colocação conhecida como apossínclise, muito comum entre

os clássicos até o início do século XX, a exemplo desses versos de Fernando

Pessoa/Ricardo Reis: “Não a ti, Cristo, odeio ou te nãoquero” (Obra poética. Rio de

Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 271).

Sob a égide da influência do padrão lusitano, nessa quadra histórica, o primeiro Código

Civil brasileiro, promulgado em 1916, com sua forma gestada pelo rigor do aceso debate

entre o gramático Ernesto Carneiro Ribeiro e Rui Barbosa, jurista e seu ex-aluno, trouxe

construções com essa abonação: “Art. 94. Nos atos bilaterais, o silêncio (...) constitui

omissão dolosa, provando-se que sem ela se não teria celebrado o contrato”.

Modernamente, esse uso foi abandonado no Brasil, que tem sua alocação clítica (por

sinal, algumas vezes utilizada nesta mensagem) bem menos rigorosa até do que aquela

adotada pelo atual Código Civil, conquanto não seja desagradável ao ouvido nativo – ao

contrário do anterior – o giro preferido pela nova redação do art. 147: “Nos negócios

jurídicos bilaterais, o silêncio (...) constitui omissão dolosa, provando-se que sem ela o

negócio não se teriacelebrado”.

Para que essa mudança frasal tivesse lugar, foi necessária nova lei. Com muito mais

razão, não se considera lícita a intromissão revisora na confeição literária de

um escritor, porquanto somente a ele seria dado fazê-lo.

Tratando-se de Francisco Cândido Xavier/Emmanuel, o erudito travo estilísticocompõe

o sabor em suas obras. Por essa razão, aí se descobrem vocábulos como maniatados,

constante da 17ª edição (p. 523), que, por felicidade, foi deixado intacto na 45ª (p. 463),

e archeiros (17ª ed., p. 477; 45ª ed., p. 423). Ambos os lexemas se apresentam hoje com

certo sabor de arcaísmo quando postos em contraste com manietadose arqueiros, mas

coexistem bem, por todo o texto, com o uso de expressões tidas como rebuscadas, que,

podendo até induzir a erro os menos avisados, gozam, porém, de vernaculidade, como na

frase “atento ocargo oficial que ocupava” (17ª edição, p. 130), felizmente

também mantidana 45ª (p. 118), pois aí não se trata da locução prepositiva atento a, mas

sim do particípio passado do verbo atentar, que é empregado, embora menos comumente

no Brasil, no sentido de “levado em consideração; visto, ponderado”

(HOUAISS, op.cit., p. 333), como neste trecho do respeitado filólogo e lexicógrafo

português Rebelo Gonçalves: “atento ouso que se lhes há dado e o registo que, por isso,

já lhes tem cabido em obras lexicais” (Tratado de ortografia. Coimbra: Tipografia

Atlântida, 1947, p. 198, nota 4).

Outra palavra cujo significado tradicional tem diferido do contemporâneo é volúpia, que

integra o seguinte trecho: “Antes, revoltava-se contra o Messias Nazareno, em cuja ação

presumia tal ou qual incompreensível volúpia de sofrimento” (17ª edição, p. 209; 45ª

edição, p. 191). O uso atual não raro tem tonalidade semântica de prazer sensual; todavia,

em Francisco/Emmanuel, é o mesmo empregado pelos clássicos, inclusive

por Guillon Ribeiro na tradução de O Evangelho segundo o Espiritismo: “Se

unicamente buscásseis a volúpiaque uma ação boa proporciona (...)” (108ª edição, 1994,

p. 222).

Por essas poucas amostras lexicais se vê que os Autores movimentavam-se pela língua

portuguesa com a mestria dos clássicose seus usos cultivados. Em descuido para com

a predileção autoral por essa modelagem literária, a revisão terminou por fazer

coexistir na obra aquelas formas menos usuais, já citadas, com outras submetidas a

impróprias atualizações. Com efeito, alterou-se céptico(17ª edição, p. 209)

para cético (45ª edição, p. 190). Mesmo que se argumente que a atualização ortográfica

deva conformar-se com a craveira nacional vigente, isso não explicaria que o

lusitanismo de conjeturas(17ª edição, p. 203) fosse deixado sem alteração na 45ª edição

(p. 182), quando, em realidade, o uso brasileiro correntio é conjectura. Mais

contraditório foi manter sem alteração ditério (17ª edição, p. 291; 45ª edição, p. 259)

se a conformação gráfica utilizada no Brasil é dictério.

O câmbiofoi, por conseguinte, infeliz.

Mas mais infeliz ainda mostraram-se ser as alterações sem o avalde qualquer norma,

tal como se deu quanto ao uso da função anafórica do pronome, que não dispensa a

reverência da inicial maiúsculaquando se reporta a nome próprio de entes sagrados.

Assim é que muito elegantemente os Autores escreveram: “Preciso servir Àquele que se

dignou arrancar-me das trevas do mal” (17ª edição, p. 236). Contudo, a 45ª edição preferiu

forma menos reverente: “Preciso servir àquele que se dignou arrancar-me das trevas do

mal” (p. 213).

Disso tudo vai-se percebendo que, se não se interferisse nas opções ortográficasdos

Autores, ainda que incomuns no Brasil, não se teria o resultado pouco apreciável de

ranhuras na unidade estilística da obra.

5. Em outro caso, a alteração produziu completa deformação de sentido, podendo-se

suspeitar que aqui a desatenção tenha tido origem na semelhança morfológica entre os

vocábulos. Eis a passagem na 17ª edição: “Em seguida, fez a leitura dos ensinos de

Jesus, respigando algumas sentenças do Mestre Divino nos pergaminhos esparsos” (p.

227). O verbo respigartem significado muito claro: “2. t.d. recolher (o que os outros

disseram ou fizeram)” (HOUAISS, op.cit., verbete respigar, p. 2.439).

Pela transcrição do texto se percebe incontroversamente que somente caberia

dizer mesmo respigar, jamais respingar, como muito equivocadamente consta da 45ª

edição: “Em seguida, fez a leitura dos ensinos de Jesus, respingandoalgumas sentenças

do Mestre Divino nos pergaminhos esparsos” (p. 206). Embora não seja rigorosamente

necessário, convém lembrar que respingar é “lançar borrifos ou pingos (de líquido)”

(HOUAISS, op.cit., verbete 2respingar, ib.), o que deixa à mostra sua completa

inadequação ao texto.

6. Em certo momento, a revisão parece ter querido propositadamentealijar a obra

da seleção lexical feita pelos Autores, pondo em seu lugar outra de duvidoso acerto. É

o que se pode observar do seguinte passo da 45ª edição: “Aonde iremos com semelhantes

excessos de interpretação, a respeito um mistificador vulgar” (p. 85). Além da ausência

da preposição “de”, que deve obrigatoriamente seguir-se a “a respeito”, descobre-se, no

confronto com a 17ª edição, que a interferência foi muito mais deformante: “Aonde

iremos com semelhantes excessos de interpretação, em torno de um mistificador vulgar”

(17ª edição, p. 92).

Nenhuma inconveniência, seja de que ordem for, emerge da locução prepositiva em

torno de; ao contrário, no contexto, revela-se muito mais sóbria.

7. Como já dito, a velocidade da atividade psicográfica, feita “ao correr da pena”, pode

produzir pequenos lapsos que autorizam a correção por parte dos responsáveis pela

revisão e pela edição. Embora haja pouquíssimos deles na obra em questão, aqui e ali se

detectam alguns que poderiam ter sido legitimamente retificados tanto pelas tiragens

antigas quanto pelas atuais, em vez de focarem-se estas na pretensa correção do que

jamais deveria ter sido alterado.

Eis alguns desses lapsos:

a. "(...) aquele gesto de confiança e carinho, tratando-o como um irmão” (45ª edição, p.

206), redação também encontrada na 17ª edição (p. 228). Esse arranjo fraseológico,

todavia, gera ambiguidade e, por isso, convida ao uso do chamado objeto direto

preposicionado, a fim de que não se possa ser levado a pensar que “irmão” seja sujeito.

Introduz-se, então, o acusativo preposicionado para burlar a anfibologia. Nesse caso, teria

sido melhor construído o período em exame da seguinte maneira: “(...) aquele gesto de

confiança e carinho, tratando-o como a um irmão”.

As gramáticas, mesmo as mais populares, sempre alertaram para esse emprego peculiar.

A esse respeito, Domingos Paschoal Cegalla ensina: “Objeto direto preposicionado (...)

3) quando precisamos assegurar a clareza da frase, evitando que o objeto direto seja

tomado como sujeito: ‘Tratava-me sem cerimônia, como a um irmão.’ (O. Bilac)”

(Novíssima gramática da língua portuguesa. 27. ed. São Paulo: CEN, 1985, p. 296).

No mesmo sentido, ensinam os filólogos Celso Cunha e Lindley Cintra em obra de

referência: “1. O objeto direto costuma vir regido de preposição a: com os verbos que

exprimem sentimentos: Não amo a ninguém, Pedro. (C. dos Anjos, M, 196)” (Nova

gramática do português contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985,

p. 138).

O objeto direto preposicionado constitui, pois, regra da gramática da língua portuguesa

com coloração estilística, já tendo, a propósito, merecido atenção de estudiosos

estrangeiros, a exemplo de Karl Heinz Delille na obra intitulada Die geschichtliche

Entwicklung des präpositionalen Akkusativs im Portugiesischen(Romanisches

Seminar der Universität Bonn, 1970).

Os Autores de Paulo e Estêvão estavam perfeitamente cônscios desse emprego, tanto

que, muitas páginas depois, escreveram: “(...) aproximou-se do ex-rabino e o abraçou

efusivamente, como se o fizesse a um irmão amado” (17ª edição, p. 271; 45ª edição, p.

305).

b. Ambiguidade que poderia ser corrigida pelos primeiros revisores e pelos atuaisé

localizável nesta passagem: “Os israelitas mantinham viva a ideia da expulsão dos

missionários, quando um incidente ocorreu em auxílio deles” (17ª edição, p. 360). O uso

do anafórico “destes” calharia melhor que “deles”, expungindo qualquer dúvida sobre

quem foi auxiliado pelo incidente. Todavia, na 45ª edição, o trecho ambíguo permaneceu

inalterado (p. 318).

c. Outro bloco em que houve pequena imprecisão encontra-se na página 269, da 17ª

edição: “Saulo viveu em Cafarnaum horas deliciosas para seu espírito emotivo.

Fora olocal das pregações do Mestre; mais adiante, a casinha de Simão Pedro”.

Conquanto o texto tenha assim sido mantido na 45ª edição (p. 241), muito provável que

os Autores tenham querido dizer “fora ao local das pregações do Mestre; mais

adiante, à casinha de Simão Pedro”.

d. Na passagem seguinte, razoável concluir que ou os Autores empregaram uma

forma não dicionarizada no Brasil ou então houve lapso gráfico: “Essas palavras eram

ditas num tom de convicção tão ardente que o próprio charlatão israelita se fizera lívido.

Barnabé também empalidera, enquanto o nobre patrício observava o ardoroso pregador”

(17ª edição, p. 336).

A recente edição preferiu tratar a ocorrência como deslize gráfico e tomou o vocábulo

por empalidecer. Menos mal se ficasse somente nisso; todavia, avançou para adotar o

imperfeito como tempo verbal: “Essas palavras eram ditas num tom de convicção tão

ardente que o próprio charlatão israelita se fizera lívido. Barnabé também empalidecia,

enquanto o nobre patrício observava o ardoroso pregador” (45ª edição, p.298)

Esqueceu-se aí que o tempo verbal mais apropriado, em nome da correlação, certamente

seria o mais-que-perfeito, como deixa entrever a própria forma sintética contida no texto

das primeiras edições: empalide[ce]ra. Deve ser lembrado que, ao contrário do

imperfeito, que designa um fato passado, mas não concluído, o mais-que-perfeito revela

uma ação que ocorreu antes de outra, já acontecida. No trecho em questão, nota-se que

tanto o charlatão israelita quanto Barnabé já tinham empalidecido com a retórica paulina

antes que o patrício romano começasse a observar.

O período, então, tomando-se por certo que o verbo é mesmo empalidecer, deveria ter

sido redigido nas novas edições da seguinte forma: “Essas palavras eram ditas num tom

de convicção tão ardente que o próprio charlatão israelita se fizera lívido. Barnabé

também empalidecera, enquanto o nobre patrício observava o ardoroso pregador”.

e. Um capítulo em que dificuldades da língua se avolumam, sem que se possa cunhar

regulação rígida para todos os casos, diz respeito à virgulação. Como bem observam

Celso Cunha e Lindley Cintra, “o ritmo acelerado da vida intensa de nossos dias obriga-

nos, necessariamente, a uma elocução mais rápida” (op.cit., p. 114). Isso afeta

profundamente o modo pelo qual se apõem as vírgulas, que são indicativas de pausas

melódicas de breve duração, mas dependentes do ritmo que se pretende fazer representar.

Por isso convivem normalmente vírgula e ausência dela em trechos funcionalmente

similares, como os seguintes, transcritos por Celso Cunha e Lindley Cintra (op.cit., p.

628):

“‘Depois levaram Ricardo para a casa da mãe Avelina’ (J. Lins do Rêgo, U, 320)

‘Depois, tudo caiu em silêncio’ (Castro Soromenho, TM, 261).”

Em algumas situações, contudo, não é demasiado inferir que a aposição da vírgula fosse

o mais adequado a fazer. Em Paulo e Estêvão, há pelo menos um exemplo dessa ordem.

Observe-se o seguinte passo, mantido inalterado pela 45ª edição (p. 122): “Foi pela

manhã de um dia muito claro, que o futuro rabino, cercado de alguns companheiros e

soldados, bateu à porta da casa humilde” (17ª edição, p. 131). Não é inapropriado

sustentar que melhor quadraria aí a vírgula para isolar o aposto, o que fica nítido na

seguinte reelaboração: “Foi pela manhã, de um dia muito claro, que o futuro rabino,

cercado de alguns companheiros e soldados, bateu à porta da casa humilde”.

Perdoado esse pecadilho do novo escrutínio editorial ao deixar de melhorar o período,

a revisão andou muito mal em suprimir pausas pertinentes da edição original.

A vírgula a seguir, de oração reduzida seguida de oração subordinada explicativa

restritiva, em que há equivalência com oração adverbial, é irrepreensível: “Incapaz de

compreender as circunstâncias que lhe haviam modificado os planos e esperanças da

vida,imputava o insucesso dos seus sonhos de mocidade (...)” (17ª edição, p.171).

Não que essa pausa se submeta a qualquer cânone impermeável, tanto que Manuel

Bandeira, avesso a exageros puristas, escreveu em Itinerário de Pasárgada: “Depois de

certa hora os alunos externos voltavam para suas casas e eu ficava sozinho na grande sala

dos fundos do edifício” (Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986,

p. 50). Mas isso é prerrogativa do autor, não do revisor. Portanto, ilegítima a

supressãona 45ª edição: “Incapaz de compreender as circunstâncias que lhe haviam

modificado os planos e esperanças da vida imputava o insucesso dos seus sonhos de

mocidade (...)” (p. 156).

Em outro caso, a omissão da vírgula lançada na edição original desfigurou

completamente o sentido da oração. A redação “se é assim ... replicou o outro, vencido”

(17ª edição, p. 246) transformou-se, na 45ª, em “se é assim ... replicou o outro vencido”

(p. 221), produzindo um errôneo sentido textual, como se existisse mais de um vencido.

Virgulação até certo ponto comezinha, como a que separa as inserções apositivas, já

citada, não foi ainda alvo de zelo em mais um lugar da nova edição, como se vê do

confronto do irretocável passo “os fariseus formalistas, da sinagoga, não mais se

insurgiam contra as atividades do ‘Caminho’” (17ª edição, p. 261) com o que

aparece truncadamente na 45ª como “os fariseus formalistas da sinagoga, não mais se

insurgiam contra as atividades do ‘Caminho’” (p. 234).

O emprego da vírgula que se segue a uma conjunção adversativa, ainda mais quando

demarca aposto, é de comum conhecimento. O período seguinte, da 17ª edição, está,

então, muito bem balizado pelas pausas: “Festo recebeu a comissão, cavalheirescamente,

e mostrou-se inclinado a atender, mas, prudente por índole e por dever do cargo, declarou

que...” (p. 483). Na 45ª edição, a opção altera o ritmo indevidamente: “Festo recebeu a

comissão, cavalheirescamente, e mostrou-se inclinado a atender mas prudente por índole

e por dever do cargo, declarou que...” (p. 428).

Por último, entre outros exemplos dos descuidos virgulatórios na reedição da clássica

obra espírita, deve ser aqui transcrita parte do trecho das plangentes palavras de Abigail

a Saulo: “Para lembrar e seguir tuas advertências, recordava que me chamaste a atenção,

à última vez que nos encontramos, para a amizade de Zacarias e de Ruth” (17ª edição, p.

177). Na 45ª edição, a beleza da pausa melódica foi banida de forma incompreensível:

“Para lembrar e seguir tuas advertências recordava que me chamaste a atenção, à última

vez que nos encontramos para a amizade de Zacarias e de Ruth” (p. 161).

8. Enxertia de forte desafeição ao espírito ideológico da obra está na Nota da Editora

de n. 5, constante da página 17, da 45ª edição: “Antiga cidade da Grécia, no Peloponeso,

junto ao Golfo Sarônico, no istmo de Corinto. São Paulo visitou-a em 55, em sua

passagem rumo a Jerusalém”.

São, apócope de santo, usa-se antes de nomes iniciados por consoante. Todavia, ambos

os termos antepositivos pertencem à hagiografia católica; por isso mesmo, ao serem

introduzidos em texto espírita, se mostram completamente desambientados. Sem ser

preciso ingressar na discussão conceitual de santidade nos domínios espiritistas, pode-se

seguramente afirmar que neles não se empregaessa noção como apelo denominativo

da elevação moral dos espíritos.

Ainda mais relevante é ter em conta que a forma hagiográficaafasta-se rematadamente

da estética literária dos Autores, que, em nenhum momento da obra, a utilizam, nem

mesmo nas notas marginais. Por isso é que se lê do seguinte passo do Autor espiritual

da obra em nota: “1) As observações de Paulo na Epístola aos Gálatas (2:11-14) referem-

se a um fato anterior à reunião dos discípulos. – (Nota de Emmanuel)” (17ª edição, p.

378). A observação de pé de página foi reproduzida sem modificação na 45a edição (p.

334).

Como que, então, se pode transigir que notas alheias a um autor, destoemde

sua própria maneira de construí-las e promovam, ademais, mixórdia

doutrinária? Mesmo que, por algum pouco crível argumento, se admitisse esse adjunto

adnominal, não deveria se ficar indiferente ao fato de que Paulo, na altura histórica da

nota, ainda era Saulo e, portanto, longe dos elevados dotes morais que assinalarão sua

passagem pela Terra.

9. Recurso editorial que costuma ser útil na reedição de obra clássica de

cunho histórico é a apresentação de notas explicativas, meio de que, na obra Paulo e

Estêvão, o Autor espiritual se serve algumas vezes, com a devida parcimônia, ao lado

daquelas produzidas originariamente pela Editora da FEB.

Na 45ª edição, essas notas da Editora se multiplicaram, agora com novidade:

a apresentação de significações. Palavras como sobrolho (p. 39), singultos(p.

47), algibeira (p. 54), capitoso (p. 66), onusto (p. 68), chanfalho (p. 125), astenia (p.

212) e posca (p.272) mereceram verbetes inéditos, à maneira de glossário. Discute-se,

nos domínios neurocognitivos da Linguagem, se o cérebro precisa mesmo desses aportes

marginaispara entrar na intimidade significacional dos vocábulos pouco conhecidos.

Parece que não, já que termos corriqueiramente usados não se prendem, de ordinário, a

consultas prévias de significados dicionarizados, uma vez que estes se deixam aflorar

naturalmente pelas recorrências das oposições estruturais nos textos à medida que se

passa cada vez mais a frequentá-los.

Mas, tendo-se como certo que sejam úteis tais notas, fica-se a pensar qual critério de

seleção terá sido usado no caso em apreço, uma vez que palavras nada usuais

como adusto (p. 82), estos (p. 171), desfaçado (p. 198), repto (p. 237), repeso (p.

257), latagão (p. 328) e esmar(p. 374) ficaram alheias a qualquer atenção lexicográfica,

como se fossem de uso costumeiro por toda sorte de leitor.

Quanto às notas de geografia histórica, que tiveram seu número significativamente

aumentado, são elas passíveis do mesmo questionamento quanto ao critério

adotado. Trazem-se esclarecimentos sobre o que seriam e onde se localizariam Cencreia

(p. 17) e também Cefalônia, Nicópolis e Citium, estas três reunidas na mesma página 49,

da qual se lê, também, a primeira menção a Nea-Pafos, localidade que será novamente

lembrada algumas vezes mais à frente da obra, como na página 294, onde aparece ao lado

de Amatonte, que mereceu a nota de número 37.

Nea-Pafos, contudo, não recebeu nota alguma da 45ª edição. Mas, por coerência editorial,

bem que merecia. Desde 1962, escavações promovidas pelo Departamento de

Antiguidades de Chipre trouxeram à luz do mundo modernos prédios públicos e

edificações particulares e eclesiásticas, em trabalho que tem merecido outros

empreendimentos arqueológicos de pesquisadores da Europa, Estados Unidos e Austrália.

Mais recentemente, os pesquisadores australianos descobriram, nessa antiga cidade que

se situava a sudoeste da famosa ilha mediterrânea, um teatro construído no século III a.C,

além de arquitetura helenística típica.

O mesmo se pode dizer da ausência de qualquer nota sobre Palmira, referida na página

209, da 45ª edição. A antiquíssima cidade síria, situada quase que a exato meio caminho

entre o mar Mediterrâneo e o rio Eufrates, era, nessa locação geográfica, parada

obrigatória para muitas caravanas das rotas comerciais da época. Objeto de escavações

desde 1929, tornou-se há pouco tempo alvo de pesar mundial porque, sob o controle da

intolerância religiosa do Estado Islâmico, vários dos seus monumentos históricos foram

reduzidos a pó.

45ª edição 2014 alterada

Senhor Presidente, com essas modestas observações, que por aqui se encerram, torna-se

recomendável que a Federação Espírita Brasileira, como fiel depositária dos direitos de

publicação dessa e de outras obras do fértil conúbio mediúnico entre Francisco Cândido

Xavier e Emmanuel, que lhe foram confiados em nome da alta missão institucional de

que está investida, possa doravante ficar atenta à necessidade de preservar a

originalidade autoralconstante da 1ª edição, por tanto tempo respeitada nas que se lhe

seguiram.

Pode-se ser levado a refletir que o rigor com certas exigências normativas seja excessivo,

por se estar em tempos em que o jugo da disciplina purista perdeu força censória.

Esse tipo de licença, entretanto, não pertence ao editor, mas ao autor, ainda mais

quando, além de trocas de regras gramaticais ao talante do revisor, se pretende

interferir na própria composição estilística, cuja beleza pode estar em

ser indissociáveis forma e fundo, mais ou menos como, ao som de linda canção, se frui

sua estética sem que se cindam letra e música. Esse é o sentimento dos que, ao longo de

mais de seis décadas, leram as belas páginas de Paulo e Estêvão, induzidos

pela confiança inconsciente de que o arranjo literário terá atendido aos cuidados dos

Autores.

Não que esse tipo de intervenção imprópria seja incomum. Ao contrário, o prurido

revisortem atuado, ao longo dos anos, como temível espantalho na vida de escritores e

poetas. Autran Dourado, ao se reportar a erros de revisão e a alterações a pretexto de

correção na sua obra Uma vida em segredo, desabafou acidamente: “Me dedico com

paixão à minha escrita, passo às vezes mais de um ano escrevendo um livro e não há de

ser um revisor, nas suas poucas horas de trabalho com o meu livro, que vai me ensinar

como escrever”, pois, segundo ele, “tenho o direito de não abrir mão de minhas

particularidades para ninguém” (apud ROCHA, Diva Vasconcelos da. Comunicação

(mimeo.) apresentada ao I Congresso Internacional de Filologia portuguesa. Niterói,

1973).

Um dos mais expressivos nomes da poesia de língua portuguesa, Manuel Bandeira, vez

por outra dava de cara com esses cacoetes “corretivos”. Conta ele que, ao traduzir

Hölderlin, compôs estrofe de Metade da Vida dessa forma: “Peras amarelas/ E rosas

silvestres/ Da paisagem sobre a/ Lagoa” (op.cit., p. 93). O linotipista, achando improvável

que se pudessem combinar “peras” e “rosas”, mudou para “heras amarelas”...

Mas a melhor tirada do poeta pernambucano contra o vezo corretor, e que serve

de advertência geral, veio da conhecida passagem de Saudades de Quixeramobim: “Eu

vivia encantoado na sala da frente, que ia de oitão a outro, com várias sacadas para o

largo, mobiliada (atenção, revisor: não ponha ‘mobilada’, que é palavra que eu detesto!)

com uma cama de vento, uma cadeira e um lavatoriozinho de ferro” (op.cit., p. 503).

É duvidoso que Chico Xavier, mesmo com seu encantador franciscanismo lírico, deixasse

de sinalizar ar contrafeito para com as idiossincrasias editoriais na republicação da

obra. Emmanuel talvez fosse ainda menos condescendente. À parte esse exercício

conjectural, em caráter objetivo o que fica mesmo é o alvitre para que se preserve o

engenho literário dos Autores como testemunho eloquente de que

as ausências devam ser sempre respeitadas.

Atenciosamente.

Brumado, Bahia, 8 de dezembro de 2017.

João Batista de Castro Júnior (Professor do Curso de Direito da Universidade do Estado

da Bahia, campus XX, Brumado. Juiz Federal titular da 1ª Vara da Subseção Judiciária

de Vitória da Conquista-Ba. Mestre em Linguística Histórica e Doutor em Linguística e

Cultura pela Universidade Federal da Bahia).

[grifos do autor, sublinhados com grifos nossos; junção de palavras é da cópia do texto

para o facebook; o original primorosamente escrito está intocável no conteudo e forma]

Fonte Notícias

PAULO E ESTÊVÃO: O DESACERTO EDITORIAL NO RELANÇAMENTO DO

CLÁSSICO ESPÍRITA