Ócio criativo Domenico de Masi

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  • 1. E n t re v i st a a M a r i a S e r e n a P a 1 i e r i DOMENICO DE MASI O cio Criativo 3 Edio S EXTAN T E @ Domenico De Masi, 2000 traduo La Manzi preparo de originais Regina da Veiga Pereira capa Victor Burton desenbos da pgina 31 7 Axel Sande reviso Lcia Ribeiro de Souza, Luiz Cavalcanti Guerra e Srgio Bellinello Soares fotolitos Mergulhar Servios Editoriais Ltda. impresso e acabamento Lis Grfica e Editora Ltda. CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE. SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. D320 De Masi, Domenic o, 1938- O cio criativo / Domenico De Masi ; entrevista a Maria Serena Palieri ; traduo de La Manzi. - Rio de Janeiro : Sexante, 2000 Traduo de: Ozio creativo ISBN 85-86796-45-X 1. Criatividade nos negcios. 2. Lazer. 3. Perodo de repouso I. Palieri, Maria Serena. II Ttulo. 00-0291. CDD 306.4 CDU 316.728 Todos os direitos reservados, no Brasil, por Editora Sextante (GMT Editores Ltda.) Av. Nilo Peanha, 155 - Gr. 301 - Centro 20020-100 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: (21) 2524-6760 - Fax: (21) 2524-6755 E-mail: [email protected] Central de Atendimento: 0800-22-6506 www.esextante.com.br

2. ndice Apresentao Introduo de Maria Serena Palieri Primeiro Captulo Como os Lrios do Campo Segundo Captulo O Imbecil Especializado Terceiro Captulo A Razo do Lucro Quarto Captulo Nem Rir nem Chorar mas Entender Quinto Captulo "J obless Growth '' e "Turbocapitalismo '' Sexto Captulo Bem-vinda Subjaividade Stimo Captulo Uma Sociedade Previdente e Programada Oitavo Captulo Um Futuro Globalizado e Andrgino Nono o Captulo O Servilismo Zeloso Dcimo Captulo O Prazer da Ubiqidade Dcimo Primeiro Captulo Do Eu fao ao Eu sei Dcimo Segundo Captulo O Grande Trompe-lOeil Dcimo Terceiro Captulo Palavras-Chaves para o futuro Dcimo Quarto Captulo O Trabalho No Tudo 3. A guerra deve ser em funo da paz, a atividade em funo do cio, as coisas necessrias e teis em funo das belas. Aristteles No do trabalho que nasce a civilizao: ela nasce do tempo livre e do jogo. Alexandre Koyr Descansar? descansar de que? Eu, quando quero descansar, viajo e toco piano. Arthur Rubistein 4. Apresentao Quase nunca, na Itlia, as entrevistas televisivas ou Jornalsticas propiciam momentos de calma que permutam exprimir, tranqilamente, as prprias idias. Apressadas e superficiais, elas obedecem mais s regras de um pugilato vulgar do que s de um jogo intelectual. Por isso, h alguns anos, aceitei prazerosamente o convite da editora Ediesse para publicar este livro- entrevista, que me permitiu explicar de forma completa e organizada o meu pensamento sobre o trabalho, o tempo livre e a evoluo da nossa sociedade. Maria Serena Palieri, encarregada pelo editor de me entrevistar, revelou-se uma interlocutora ideal. Nossa conversa deu origem a O cio Criativo, um livro publicado em 1995, com uma segunda edio em 1997 que se esgotou, desaparecendo das livrarias. Agora, a convite da editora Sextante do Brasil de Rizzoli da Itlia, retomamos o nosso dilogo, desbastando-o das partes ligadas ao contexto em que se deu inicialmente e estendendo-o a uma srie de temas amadurecidos ao longo deste perodo. O resultado um texto novo em muitos trechos, tendo como pano de fundo uma insatisfao diante do modelo centrado na idolatria do trabalho e da competitividade. A este, contraponho com otimismo um modelo atento no s a uma produo eficiente, mas tambm a uma distribuio equnime da riqueza, do trabalho, do saber e do poder. Domenico De Masi Roma, 21 de maro de 2000 5. Introduo de Maria Serena Paliere Esta uma guia bem estranha, moa. Atravs dela no vers tosomente a casca amarela e luminosa da laranja. Jorge Amado Antigamente as famlias aristocrticas escolhiam um lema para os seus brases. Hoje todos ns, cada um por conta prpria, podemos escolher o seu, mas em vez de esculpi-lo em pedra podemos deix-lo flutuando permanentemente na tela do computador. O homem que trabalha perde tempo precioso'' exatamente o lema que flutua, em espanhol, no computador do Professor Domenico De Masi. Isto significa que para ele trabalhar o menos possvel uma filosofia de vida? Ou a frase traduz a aspirao a uma virtude que lhe falta? Digamos - com a fora paradoxal do humor - que o lema sintetiza a teoria de De Masi: o futuro pertence a quem souber libertar-se da idia tradicional do trabalho como obrigao ou dever e for capaz de apostar num sistema de atividades, onde o trabalho se confundir com o tempo livre, com o estudo e com o jogo, enfim, com o cio criativo, justamente disso que vamos falar ao longe das pginas deste livro. Como premissa, gostaramos de tentar uma abordagem indiscreta: entrar na vida do estudioso para verificar se existe uma coerncia entre a teoria e a prtica. Isto , se o socilogo pode dizer: Faa o que eu digo e faa o que eu fao. De Masi nasceu em Rotello, na provncia de Campobasso, no sul da Itlia, no dia 1 de fevereiro de 1938. Perdeu o pai muito cedo. Viveu em trs cidades diferentes: Npoles, Milo e Roma. Viajou muito. Para usar uma expresso adequada ao mundo cadenciado da escola, pode-se dizer que ele sempre foi adiantado em um ano. Tanto no sentido metafrico, porque nutre um interesse obstinado pelo futuro, como no sentido literal, porque pulou alguns anos do curso primrio e continuou a queimar quase todas as etapas clssicas. Aos dezenove anos j publicava, na revista Nord e Sud, ensaios de Sociologia Urbana e do Trabalho. Com vinte e dois ensinava na Universidade de Npoles. E depois, por mais de trinta anos, desenvolveu uma atividade frentica. Com sua primeira mulher teve duas filhas, que criou durante alguns anos como ''pai solteiro''. apaixonado pela esttica, por decorao e at pelas 6. vrios tipos de rendas e - acreditem - Cuida da casa quase tanto quanto sua atual mulher. Quando h cinco anos comeamos a nos encontrar para escrever este livro, a sua agenda anual acumulava uma multiplicidade de tarefas: professor de Sociologia do Trabalho na Universidade La Sapienza de Roma, diretor da S3-Studium, a escola de especializao em cincias organizacionais que fundou, editor de uma coleo publicada pela Franco Angeli e de uma outra para a Edizioni Olilvares, consultor de formao em Administrao, assessor cultural da Prefeitura de Ravello (a cildadezinha da costa amalfitana onde passa os meses de vero), alm de autor de inmeros artigos para revistas e Jornais e, peridicamente, escritor de alguns livros. Durante a semana, dava regularmente suas aulas na universidade e muitas vezes viajava para outras cidades. J na escala cotidiana, chegava a ter cinco ou seis compromissos por dia. E coma a tudo isso se somavam o estudo e a diverso, o seu dia acabava quase sempre durando vinte horas. Isto porque De Masi pertence quele tipo de pessoa que dorme de trs a quatro horas por noite. Quer dizer ento que o lema que flutua no computador uma zombaria? No mais, jura o professor. E abre a sua agenda para o ano 2000. Daqueles dez mil Prazos e Compromissos a cumprir quantos sobraram hoje? A carga horria fixa das aulas na universidade ao longo da semana uma renio com os estudantes que esto para se formar, uma outra na S3, uma para a redao da nova revista Next que ele dirige, um almoo em Aspen, um convnio sobre mobbing, uma entrevita a ser dada a algum jornal ou estao de rdio, alguns jantares com os amigos e o fim de semana dedicado ao cinema ou para uma fugida at Ravello,onde agora fortalecido pelo ttulo de cidado honorrio adquirido neste meio tempo, em vez de organizar concertos, como fazia h cinco anos, limita-se a escut-los. Vamos observar o professor: ele simplesmente passou do frentico ao humano. Sobretudo porque como socilogo que estuda a organizao social do trabalho, ele otimizou as suas condies logsticas. O Edifcio no qual mora e trabalha no corso Vittorio Emanuele se tornou seu quartel-general. No quinto andar encontra-se sua casa; alugada mas tem uma vista sobre os te- lhados mais lindos de Roma e o fato de ficar muito perto de algumas Igrejas que possuem quadros de Caravaggio, Rafael e Michelangelo, alm da proximidade com palcios onde se encontram obras de Vasari e dos Carraci, faz ele se sentir um colecionador milionrio como diz. Num apartamento dois andares abaixo, a escola S3 estabeleceu a sua sede. E isto - ele explica - acabou com a perda de tempo e dinheiro necessrios 7. aos deslocamentos entre a casa e o escritrio. E tambm o aliviou daquela obsesso comum a todos os que trabalham fora de casa: sair de manh tendo que prever todas as tarefas do dia e carregando consigo tudo aquilo de que ir precisar. Se ao meio-dia deseja encontrar-se com seus colaboradores, desce e se rene com eles, indo almoar juntos algumas vezes. Se s quatro da tarde ele se lembra de alguma outra providncia, toma de novo o elevador e volta para o escritrio. Uma outra novidade: decidiu passar a exportar as suas idias, no lugar do seu corpo fsico: em vez de continue a girar pela Itlia como um pio, recorre sempre com maior freqncia a teleconferncias, escreve alguns ou livros em seu apartamento ou em Ravello. Alm do correio eletrnico e das cartas, continua a receber - levando em conta os telefones de casa, o celular, o da faculdade e o da escola de especializao - uns oitenta telefonemas por dia. Mas disso cuidam as vrias implacveis secretrias eletrnicas das quais, afirma, no escravo: se d vontade, apaga os recados sem nem ouvir, porque uem geral tratam de assuntos que s valem para aquele dia'' . De Masi conquistou condies de trabalho privilegiadas? Se deixarmos predominar o mesquinho sentimento da inveja, diremos que sim. Mas, para dizer a verdade, ele prova in corpore vili o que como socilogo propem como receita social: uma forma de tele-trabalho feito em casa ou em qualquer lugar, descentralizado do escritrio. Porm, o que mais lhe interessa uma inovao existencial e no simplesmente logstica. a mistura entre as suas atividades: quanto de trabalho, quanto de escudo e quanto de jogo existem em cada uma delas. A sua nova sabedoria, diz, exige que em toda ao estejam presentes trabalho, jogo e aprendizado. Quando d uma aula ou uma entrevista, quando assiste a um filme ou discute animadamente com os amigos, deve sempre existir a criao de um valor e, junto com isso, divertimento e formao. justamente isso que ele chama de cio criativo''. Continua a ir dormir s trs e meia ou quatro da manh, depois de ter lido, escrito e limpado o correio eletrnico, e continua a acordar s sete e quinze, quando comea Prima Pagina, uma transmisso radiofnica que segue assiduamente para evitar a leitura dos jornais. Mas adicionou algum repouso diurno, em doses homeopticas: meia hora depois do almoo e quinze minutos antes do jantar. De Masi admite que adoeceu de hiperatividade: No conseguia dizer no a nenhum compromisso, provavelmente devido a alguma insegurana ligada pobreza que a minha famlia atravessou depois da morte precoce do meu pai.'' Admite que, subjetivamente, sua reflexo sobre o cio criativo'' brotou 8. como uma reao a toda aquela overdose. Assim como - num sentido objetivo - ela nasceu da constatao direta dos infinitos absurdos orgarnizacionais que angustiam o trabalho nas empresas. De Masi no prega a indolncia (sobre o seu ambivalente prazer escreveu Roland Barthes com tanta sabedoria). E ainda hoje, se lhe perguntamos se nunca vadiou, jogando tempo fora, o seu no'' acompanhado de um pulo da cadeira.. E por isso que aqueles que se deleitam com os langores do sono, dos sonhos e da preguia devem agradecer-lhe por ter estudado, dedicando uma vida - ou melhor, tantas noites -, os paradoxos e os desperdcios do uso do tempo na nossa sociedade. E usando a si mesmo como cobaia. Quantos so os estudiosos que tm essa honestidade intelectual? Para entender que tipo de intelectual o Professor De Masi, basta uma tirada sua: Ao escrever um livro, acabo sempre aprendendo alguma coisa.'' 9. Primeiro captulo COMO OS LRIOS DO CAMPO Aprendei dos lrios do campo, que no trabalham e nem fiam. E no entanto, eu vos asseguro que nem Salomo, em toda a sua glria, se vestiu como um deles. Evangelho segundo So Mateus Professor De Masi, h quem fale do senhor como "profeta do cio E h quem chegue a dizer que preconiza o advento de um mundo parecido com o "pas do chocolate", do famoso filme com Gene Wilder. Rtulos irritantes, imagino. Que relao tm com o seu verdadeiro modo de pensar? Eu me limito a sustentar, com base em dados estatsticos, que ns, que partimos de uma sociedade onde uma grande parte da vida das pessoas adultas era dedicada ao trabalho, estamos caminhando em direo a uma sociedade na qual grande parte do tempo ser, e em parte j , dedicada a outra coisa. Esta uma observao emprica, como a que foi feita pelo socilogo americano Daniel Bell quinto, em 1956, nos Estados Unidos, ao constatar que o nmero de ''colarinhos brancos'' ultrapassava o de operrios, advertiu: "Que Poder operrio que nada! A sociedade caminha em direo predominncia do setor de servios.'' Aquela ultrapassagem foi registrada por Bell. Ele no a adivinhou ou profetizou. Da mesma maneira, eu me limito a registrar que estamos caminhando em direo a uma sociedade fundamentada no mais no trabalho, mas no tempo vagi. Alm disco, sempre com base nas estatsticas, constata que, tanto no tempo em que se trabalha quanto no tempo vago, ns, seres humanos, fazemos hoje sempre menos coisas com as mos e sempre mais coisas com o crebro, ao contrrio do que acontecia at agora, por milhes de anis. Mas aqui se d mais uma passagem: entre as atividades que realizamos com o crebro, as mais apreciadas e mais valorizadas no mercado de trabalho so as atividades criativas. Porque mas- mo as atividades intelectuais, como as 10. mandais, quando so repetitivas, podem ser delegadas s mquinas. A principal caracterstica da atividade criativa que ela praticamente no se destaque do jogo e do aprendizado, ficando cada vez mais difcil separar estas trs dimenses que antes, em nossa vida, tinham sido separadas de uma maneira clara e artificial. Quando trabalho, escudo e jogo coincidem, estamos diante daquela sntese exaltante que eu chamo de cio criativo Assim sendo, acredito que o foco desta nossa conversa deva ser este trplice passagem da espcie humana: da atividade fsica para a intelectual, da atividade intelectual de tipo repetitivo atividade intelectual criativa, do trabalho-labuta nitidamente separado do tempo livre e do estudo ao "cio criativo'', no qual estudo, trabalho e jogo acabam coincidindo cada vez mais. Essas trs trajetrias conotam a passagem de uma sociedade que foi chamada de 'Industrial'' a uma sociedade nova. Podemos defini-la como quisermos. Eu, por comodidade, a chamo de "ps-industrial''. Quer uma imagem fsica desta mudana? Ns, nestes milhes de anos, desenvolvemos um corpo grande e uma cabea pequena 16 Nos prximos sculos, provavelmente reduziremos o corpo ao mnimo e expandiremos o crebro. Um pouco como j acontece atravs do rdio, da televiso, do computador - a extraordinria srie de prteses com as quais aumentamos o poder da nossa cabea e ampliamos o seu raie de ao. O resultado disso tudo no o dolce far niente. Com freqncia, no fazer nada menos doce do que um trabalho criativo. O cio um capitulo importante nisso tudo, mas para ns um conceito que tem um sentido sobretudo negativo. Em sntese, o cio pode ser quito bom, mas somente se nos colocamos de acordo com o sentido da palavra. Para os gregos, por exemplo, tinha uma constatao estritamente fsica; "trabalho'' era tudo aquilo que fazia suar, com exceo do esporte. Quem trabalhava, isto , suave, ou era um escravo ou era um cidado de segundo classe. As atividades no-fsicas (a poltica, o estudo, a poesia, a filosofia) eram 'ociosas'', em suma, expresses mentais, dignas somente dos cidados de primeira classe. O senhor prefere ento falar de tempo liberado em vez de cio? Tempo liberado'' uma definio burocrtica, sindical. Portanto, permanente no rastro do passado: da tradio industrial. A menos que nos reporte ao livro mais bonito que j foi escrito sobre o nascimento da sociedade industrial: Prometeu Desacorrenntado, de David S. Landes. O livra se referia a um Prometeu feito de carne e osso, metfora do homo-faber aprisionado na 11. rudez da sociedade rural e que depois se tornou desenfreado graas ao dinamismo industrial. Um Prometeu amarrado a um rochedo, torturado por uma guia que lhe roia o fgado e que, depois, graas s mquinas, desamarrado e se torna livre para expressar-se em toda a sua plenitude. Hoje, para este mesmo Prometeu concedida uma segunda liberao: depois dos membros, pode finalmente liberar tambm o crebro. A sociedade industrial permitiu que milhes de pessoas agissem somente com o corpo, mas no lhes deixou a liberdade para expressar-se com a mente. Na linha de montagem, os operrios movimentavam mos e ps, mas no usavam a cabea. A sociedade ps-industrial oferece uma nova liberdade: depois do corpo, liberta a alma. O crebro do operrio no estava empenhado em coordenar os movimentos das mos para que se harmonizasse com o da mquina?. Depois de algum tempo, o movimento se tornava completamente automtico. Eu me lembro que, quando foi inaugurado um novo grande estabelecimento automobilstico, a Alfasud, fizemos uma pesquisa da qual resultou que, para cerca de dois mil operrios, a etapa de trabalho durava setenta e cinco segundos. Calcule quantas vezes se repetia ao longo das oito horas cotidianas! Era um trabalho para macacos: bastava observ-lo por poucos minutos para aprender a realiz-lo. Ento, durante este tempo para onde ia a mente de quem trabalhava? Salvavam-se do tdio aqueles que tinham alguma coisa na cabea na qual pudessem pensar: a namorada, a brida com o vizinho. Porm, a distrao podia provocar alimentes. Da a batalha, durante anos, para obter das empresas mecanismos tcnicos de proteo para os trabalhadores: se uma mo estivesse fora do lugar, por exemplo, a mquina parada, tornava-se incua. Na realidade, a sociedade industrial no s fez com que, para muitos, se tornasse intil o crebro como tambm fez com que somente algumas partes do corpo fossem utilizadas. Isto era diferente da sociedade rural na qual o campons, para usa: a enxada ou a p, assim como o pescador para pescar, alm de utilizar o corpo inteiro, usava talvez um pouco mais o crebro. Para constatar isso basta ter a famosssima autobiografia de Henry Ford, o fundador da mltipla empresa automobilstica e o inventor da linha de montagem, nas paginas em que comenta uma lei que, em 1914, obrigava as 12. empresas americanas a empregar invlidos. Diz Ford: Se devssemos assumir um surdo para um trabalho para o qual necessrio ouvir, um manco onde necessrio correr, eu desobedeceria ao Estado. O papel empresarial no fazer caridade crist. Porm, posso assumir tranqilamente um cego para um emprego no qual os olhos no so necessrios'' E conta, a seguir, a pesquisa que fez nos seus estabelecimentos: Resultou que na fbrica desenvolviam-se 7.882 tarefas deferentes, escreve. 'Entre estas, 949 foram definidas como trabalho pesado, que requeriam homens robustos, com uma perfeita capacidade fsica, portanto, homens que, do ponte de vista fsico, no tivessem praticamente defeito algum; 3.338 tarefas requeriam homens de fora e estatura fsica normal. As 3.595 tarifas que sobravam no demandavam qualquer tipo de esforo fsico. As atividades mais leves sofreram uma segunda classificao para descobrir quantas dentre elas requeriam o uso de todas as faculdades. Descobriram que 670 podium ser delegadas a homens sem pernas, 2.637 a homens com uma perna s, duas a homens sem braos, 715 a homens com um s brao e dez atividades podiam ser realizadas por cegos''. A Ford assim retratada, faz pensar nas vitrines daquele tipo de loja que vende artigos ortopdicos, tais como muletas, prteses anatmicas plstico, etc. Porm Ford conclui: Isto significa que a indstria desenvolvida pode oferecer trabalho assalariado a um nmero mais elevado de homens-padro do que aquele que em geral se encontra em qualquer comunidade normal". J que falamos do corpo como uma presena real, vamos s voltar para o presente. Ns, no trabalho, usamos o crebro cada vez mais. Porm, na ndia existem pessoas que, para sobreviver vendem o sangue, os rins, as crneas. No uma contradio um pouco violenta? Lamentavelmente, para se realizar transplantes, que representam uma conquista para a humanidade, as peas de trocas devem ser retiradas de outros corpos vivos. Graas cirurgia moderna, estamos, aos poucos, ficando parecidos com carros ou avies: sempre noves gravas s peas de reposio. Mas existe uma diferena: se a Fiat constri mil carros, prev antecipadamente tambm a produo de dois mil ou trs mil pistes, de forma a poder substituir os que se quebram. Ou ento, quando precisamos de um pisto podemos tentar ach-la no ferro-velho, Para o nosso corpo, contudo, no dispomos de peas de reposio novas e prontas para o uso, pelo menos enquanto no 13. dispusermos de clones. O nosso ''feno-velho'' consiste na eventualidade de que algum, vivo ou que acabou de morrer, nos doe seus orgos ainda ativos. uma pena que estejamos pouco habituados a doar os nossos orgos, mesmo quando isto no nos prejudica. Alm disso, faltam grandes bancos para armazen-los. O resultado que, hoje, na Itlia, as pessoas espera de um transplante so muito mais numerosas que os doadores, os rgos para os transplantes so preciosos e as pessoas pobres podem chegar a um tal grau de desespero, que so obrigadas a vender partes do prprio corpo. Contudo, quando uma pessoa era escrava, era vendida por inteiro, incluindo o crebro. Na sociedade industrial, o fato de vender somente uma parte do prprio corpo poderia ser considerado como um progresso relativo. Na nossa sociedade, definida pelo senhor como ps-industrial, o trabalho competitivo, seja ele fsico ou intelectual, ser cada vez mais realizado pelas mquinas.Aos humanos, no trabalho ou no cio, resta a interessante tarefa de serem criativos. O senhor fala disso como de um progresso conquistado. Mas lhe parece realmente fcil aceitar essa nova condio e usufruir dela? No, dificlimo No se abandona num secundo os habitas adquiridos. Como dizia Ferdinando IV de Bourbon: si mais fcil perder o trono que perder o hbito.'' E ele entendia do assunto, j que, de fato, tinha perdido o trono. Estamos habituados a desempenhar funes repetitivas como se fssemos mquinas e necessrio um grande esforo para aprender uma atividade criativa, digna de um ser humano.. Nas empresas americanas, a funo de "executivo'' muito ambicionada e ostentada nos cartes de visita. O senhor defende a tese de que estamos em plena transio de poca. Estamos saindo de um mundo industrial e entrando num outro, ps-industrial Mas tambm verdade que a velha sociedade, que estamos deixando para trs, nos parece inelutvel, ''natural". Parece-nos natural viver segundo a organizao e os ritmos da idade industrial. Por exemplo, ao longo de um dia, trabalhamos oito horas, dormirmos em outras oito e nos divertimos, nos instrumos e tratamos do nosso corpo nas oito restantes. Ao longo de um ano, onze meses so de trabalho e um dedicado ao cio. Ao longo de uma vida se estuda durante quinze ou vinte anos, para depois trabalhar durante trinta anos e fazer bem pouco ou quase nada naquele tempo que nos resta, antes de morrer. Para romper este sentimento de naturalidade'', que nos condiciona 14. e impede de imaginar um modo diferente de viver, o senhor poderia enquadrar historicamente a sociedade industrial? Poderia dizer que mundo foi destrudo quando ela emergiu, como cresceu e desde quando comeou a envelhecer? Max Weber diz que as coisas sa podem ser compreendidas se forem observadas a sangue-frio e em profundidade, aprendendo sua objetividade. Eu creio que se compreende melhor a realidade quando a observao se d ao longo de um processo, conferindo-lhe uma perspectiva. E, neste caso, ao dar uma perspectiva, nos tornamos mais otimistas. Compreenderemos melhor a sociedade industrial se, em primeiro lugar, abordarmos as mudanas de poca que a precederam. Vamos procurar percorrer a histria humana atravs das etapas da sua criatividade, isto , tentar ver a Histria no como uma seqncia de batalhas e divises baseadas no possuir, mas como uma histrie das invenes, baseada no inovar. As mudanas sempre aconteceram. Ennio Flaiano dizia: Esta-. mos numa fase de transio. Como sempre.'' E isto, como em todos os jogos de palavra, em parte verdadeiro e em parte falso. Provavelmente, no existe. poca onde no tenta havido uma transio, porm nem todas as pocas mudam com a mesma intensidade e com a mesma velocidade. Muitas vezes temos a sensao de que, em dez anos, se faz mais histria do que num sculo. Nos ltimos dez anos, por exemplo, com a queda do muro de Berlim e com a difuso do fax, do telefone celular, da tomografia computadorizada e da Internet, vivemos uma evoluo tecnolgica mais intensa do que nas fases lentas e longas da Idade Mdia. Em determinados momentos, temos a sensao de que se trata de uma mudana de poca. Porm, no apenas um fator da Histria que muda, mas todo o paradigma - com base no qual os homens vivem - que se altera. Isso acontece quando trs inovaes diferentes coincidem: novas fontes energticas, novas divises do trabalho e novas divises do poder. Se somente um desses fatores se alterasse, viveramos uma inovao, mas, se todos eles mudassem simultaneamente, aconteceria um salto de poca. trata-se do mesmo conceito ao qual se referia Braudel, quando fala das ondas da histria, que podem ser muitas, breves, mdias ou longas. Se por salto de poca entendermos no uma simples guerra ou revoluo, mas sim esse salto trplice, ento nos damos conta de que os casos em que essa coincidncia de eventos se. realizou na histria humana so bem poucos: seis ou sete, no mais que isso. E existem fases de milnios, sculos ou anos nas quais aconteceu 15. alguma coisa, mas no uma verdadeira mudana de civilizao Quais foram, ento, os momentos da Histria nos quais ns, seres humanos, atravessamos encruzilhadas, vimos que o mundo virava de cabea para baixo, se tornava um outro mundo? Um primeiro longo perodo da histria humana vai de setenta milhes a setecentos mil anos atrs. Durante este perodo, quem vivia no percebia nenhuma mudana, se sentia sempre igual. Trata-se da longussima fase na qual o homem criou a si mesmo: aprendeu a andar ereto, a falar, a educar a prole. Se refletirmos bem, estas so mudanas extraordinrias, todas elas decorrentes da compensao dos nossos defeitos. Rita Levi Montalcini explicou isso muito bem no seu livro ( Lelogio dell'imperfezione (O elogio da imperfeio). Tnhamos um olfato fraco, portanto no podamos perseguir a caa farejando a terra, como fazem os animais, mas tnhamos que avist-la: para isto deveramos caminhar de p, j que a caa freqentemente fugia, desaparecendo na vegetao. Isto fez com que se tenham salvado somente aqueles indivduos da nossa espcie que se tornaram mais aptos para caminhar eretos. Como caminhar ereto implicava passara dispor dos dois membros superiores - que j no eram mais usados para caminhar -, nos liberamos e especializamos as mos, usando-as para compensar um outro ponto fraco: o da nossa mandbula. No tnhamos capacidade para agarrar a presa e esquartej- la com os dentes e, por isso, usamos as mos para construir utenslios e instrumentos. Eis a outra grande novidade deste perodo: o homem descobre que pode fabricar objetos. Como exemplo dos chamados ''animais criativos'', hoje nos mostram chimpanzs da Tanznia que recorrem a um bastozinho para bisbilhotar os formigueiros. Mas enquanto eles inventavam esses patticas varinhas, ns inventa mos os supersnicos. Em suma, naquele longo perodo aprendemos a criar utenslios com os quais compensar nossas fraquezas, mas que serviram tambm, em um segundo momento, para expressar nossa potencialidade. A televiso ou o mssil no so seno o resultado posterior do hbito inovador adquirido naquele perodo, sem o qual ns teramos desaparecido, pois no ramos nem os mais rpidos, nem os mais fortes, nem os mais capazes. A partir desse ponto surgiu uma outra modificao fisiolgica: graas posio ereta e graas ao uso intensivo do nosso crebro, este ltimo cresceu tambm quantitativamente. O ser humano o nico a possuir um crebro com, aproximadamente, cem bilhes de neurnios, dos quais cerca de quinze 16. bilhes constituem o crtex cerebral. Qualquer outra animal, por mais perspicaz que seja considerado, apresenta, no mximo, uma relao de um para dez com as nossas clulas cerebrais. Em resumo, naquela poca aumentamos e potencializamos o crebro, aguamos a vista e liberamos as mos. E educamos a prole A est um outro fato extraordinrio. Basta lembrar os dinossauros, cuja extino tambm est associada ao fato de que, quando os ovos se abriam, a prole gerada j era autnoma e, portanto, no era educada pelas genitores. Cada dinossauro recomeava do zero. A extino dos dinossauros, ento, se deve tambm ao fato de que os filhotes no recebiam nem leite verdadeiro nem leite cultural'' Isto , no eram informados sobre a arte de habitar o mundo? O dinossauro era perfeito j na origem, j sabia se mover, j sabia obter alimento sozinho e, portanto, os genitores o abandonavam prpria sorte. O ser humano, ao contrrio - e eis aqui novamente o elogio da imperfeio -, nasce indefeso. Se no fosse socorrido, morreria em poucas horas. Contudo, a sua fraqueza se transforma na sua fora, pois a assistncia biolgica que se d ao seu desenvolvimento durante tanto tempo implica tambm a aculturao do indivduo. Nos somos os nicos animais que precisam de ao menos dez anos de assistncia para que nos tornemos indivduos em condies de sobreviver. E somos os nicos animais que no recomeam sempre do incio, mas que, alm das caractersticas hereditrias e do saber instintivo, recebem dos adultos o saber cultural. Quer dizer que h setecentos mil anos, depois de setenta milhes de anos desse tipo de vida, o cenrio se transforma. Qual a causa dessa virada de poca? Antes de mais nada, criada uma nova fonte energtica: o cachorro. a primeira vez que o ser humano aprende a transformar um consumidor em produtor. Os ces eram chacais e lobos selvagens que giravam em torno dos grupos dos primeiros homens e se alimentavam dos restos da caa. Aos poucos, eles constataram a convenincia de colaborar com o homem, em vez de agredi-lo. E o homem constatou a convenincia de, em vez de ca-los ou agredi-los, passar a educ-los. A domesticao comea com o cachorros. (Conhece aquele livrinho timo de Konrad Lorenz, E l'uomo incontro il cane (E o homem encontrou o cachorro) O que , ento, o cachorro para o ser humano? Para entender esta questo, devemos conhecer como era o territrio 17. daquela poca. Ns atravessamos diversas grandes eras glaciais. E numa poca de gelo se necessitava de alguma coisa que puxasse os trens: o cachorro foi o primeiro motor a servio do homem. Quando nos perguntamos por que a roda foi inventada to tardiamente, a resposta : porque a roda sobre o gelo no servia para nada. Foi inventada quando, uma vez derretidas as geleiras, em algumas zonas - as da Mesopotmia -, tornou-se necessria alguma coisa que, em vez de deslizar, rodasse. Assim, setecentos mil anos antes de Cristo, o ser humano inventou o cachorro. E, muito tempo depois, realiza uma outra inveno fundamental: o arco e a flecha. Os instrumentos anteriores se perdiam. Se eu atirava um machado contra um cervo e errava o alvo, a arma tambm ficava perdida. O arco e a flecha constituem uma mquina blica extraordinria: no por acaso que uma das poucas que sobreviveram at os nossos dias. Toda a energia concentrada num s ponto e num s instante, mas a parte essencial da arma permanece em poder do matador. A parte secundria, a flecha, pode at perder-se, porque substituvel. Se comparados pistola de um s disparo, o arco e a flecha podem ser considerados uma metralhadora. Ocorre-me que justamente por essa relao nica que se instaura entre homem, instrumento e alvo que o tiro com o arco foi escolhido pela filosofia Zen como metfora de viver. Exato, o arco de fato uma inveno extraordinria. Durante esse longo perodo do qual estamos falando, o ser humano aprende tambm a distinguir os animais segundo a utilidade que pode obter ao domestic-los. Alm do co, domestica outros quatro animais, complementares, pois cada uma dessas espcies satisfaz necessidades diversas. Domestica o boi, pois graas sua conformao ssea pode puxar o jugo) o porco, porque uma reserva ambulante de carne; a cabra, porque uma reserva ambulante de leite; e o carneiro, porque uma reserva ambulante de l A l tem uma presena recorrente na mitologia das mais diversas reas geogrficas e, por definio, vale ouro, pois preciosa para sobreviver em regies frias. Mas, durante esse mesmo perodo, verifica-se tambm um outro acontecimento. Foram encontradas duas ou trs pontas de flecha em forma de amndoa, usadas no perodo da Idade da Pedra, decoradas com um desenho de folhas que se assemelham a folhas de louro. Esta a primeira expresso esttica do ser humano de que se encontrou um rastro. Pela primeira vez, um ser humano, alm de empregar semanas de trabalho para esculpir uma lmina, 18. ou seja, um objeto til, gasta dias e dias para decorar a lmina com um enfeite. Qual a exigncia que d origem a essa evoluo da nossa espcie: de ser passivo espectador da beleza natural de um mar azul ou de um cu cheio de estrelas, at se tornar ativo produtor de "beleza"? A exigncia de consolar-se. Por milhes de anos, os primeiros homens acreditaram que a morte era o nico fim do indivduo e que a dor, a tristeza e a melancolia eram inevitveis e incurveis. Estavam de tal maneira habituados a ver constantemente a morte e a dor (inclusive a morte de filhos e irmos jovens), que as consideravam um fato corriqueiro e irremedivel. E, assim, abandonavam os corpos e no os sepultavam, da mesma forma como fazem os animais ainda hoje. Depois, em um certo momento, os seres humanos "descobrem'' (isto , inventam) o outro mundo: podemos inclusive datar essa descoberta, porque coincide com a construo da primeira sepultura. A mais antiga, de noventa mil anos atrs, foi encontra- do em Belm, na Judia, que tambm o lugar de um famoso bero. Desde ento, o homem o nico ser vivo que enterra seus mortos, talvez por medo do contgio, do mau cheiro e do nojo causados pela putrefao. Mas isto no explica por que deixavam, ao lado dos corpos, tambm utenslios e objetos preciosos que deviam ajudar o defunto na outra vida. Fica evidente aqui a esperana de que o corpo ressuscite e de que exista uma vida ultra-terrena num outro mundo que fica alm deste. Em resumo, h noventa mil anos criou-se esta primeira e grande consolao, que suaviza a idia do fim definitivo. Um pouco mais recentemente, entre dezessete e dezoito mil anos atrs, o ser humano criou um outro consolo: adicionar esttica da natureza, beleza de uma nuvem, ou de um poente, uma esttica artificial - a arte. So portanto dois os momentos que assinalam a passagem do animal ao homem. O primeiro, conceituar a sobrevivncia. E o segundo, conceituar o belo. A evoluo do animal ao homem uma passagem muito lenta: dura oitenta milhes de anos e ainda no se concluiu. Dessa evoluo tambm fazem parte a descoberta da eternidade (como compensao para a morte) e a descoberta da beleza (como compensao para a dor. O primeiro e tmido testemunho da necessidade esttica constitudo pelas pontas de flecha com as folhas de louro; o verdadeiro grande testemunho da descoberta da arte constitudo pelos ciclos de afrescos rupestres, como os das grutas de Lascaux. Trata- se de arte simblica - cruzes, tringulos - e arte 19. figurativa - bises e pessoas, representados com uma vivacidade extraordinria. Foram pintados no escuro das cavernas, iluminando as paredes com tochas, porque pensavam que ali os afrescos estariam mais protegidos. Ou talvez porque sentissem a necessidade de pintar em um ambiente mdico, cheio de motivao e inspirao. O conceito de esttica aparece com freqncia nos sues escritos. Por que o senhor lhe atribui tanto valor? Por uma questo muito simples: porque, entre todas as formas de expresso humana, a esttica aquela que, mais do que qualquer outra, responsvel pela nossa felicidade. Como diz Marx nos seus Manuscritos, "o animal constri somente seguindo a medida e as necessidades da espcie a que pertence, enquanto o homem capaz de construir de acordo com as mediras de qualquer espcie... As folhas de louro na ponta das lanas recebem, provavelmente, aquele a mais de trabalho porque eram incises supersticiosas, com o sentido de aplacar a ira divina. Mas so feitas com tanto cuidado, que nossa imediata reao dizer: "Este trabalho no melhora a eficincia ou a virulncia da flecha, porm a embeleza.'' Ainda que fossem propiciatrias sugerem a idia de que, para conseguir a graa dos deuses, devemos realizar algo que soja belo, no de utilidade imediata. Se eu tivesse que roubar uma obra de arte, roubaria aquelas pequenas pedras. Contudo, a esttica no nos serve mais para conseguir a graa dos deuses": um componente menos mgico da nossa existncia. Mas, se pensarmos bem, ainda hoje delegamos uma grande parte da nossa felicidade arte: quando desejamos nos sentir bem, nos divertir, vamos ao cinema, ao teatro, a um museu, ou vamos admirar uma bela paisagem. Foi a sociedade industrial que isolou o belo, expulsando-o do mundo do trabalho: so pouqussimos os empresrios que deram valor esttica. Um exemplo raro o de Robert Owen, que, no incio do sculo XIX, construiu uma esplndida fiao, New La- nark, na Esccia. Eu a visitei: enorme, quase uma cidade. Ali se encontram a casa da inteligncia e a casa dos sentimentos: at mesmo a topografia foi planejada de modo a que, desde criana, o ser humano pudesse habituar-se a se tornar um ser pensante. Depois de Owen, devemos avanar at Wiener Werkstette, a cooperativa vienense do incio do sculo XX. L, em 1905, jornalistas que a visitavam ficaram impressionados sobretudo com a beleza dos escritrios, com a sbia utilizao da luz, com as cores que diferenciavam as reas de trabalho. Depois disso, necessrio chegar a Adriano Olivetti, com suas fbricas rodeadas de jardins e suas mquinas de escrever, cujo design ficava sob a 20. responsabilidade de profissionais de alto nvel, como Nizzoli e Sottsass. O pice seu estabelecimento em Pozzuoli, construdos de tal maneira que o operrio, ex-pescador, no se sentisse separado da natureza na qual estava habituado a viver. Mas essas so raras excees do mundo industrial. Ser a sociedade ps-industrial, que, ao contrrio, recupera, decididamente, o gosto pela esttica: no mais para uma pequena elite, mas uma esttica destinada a todos. E no somente uma esttica do vesturio ou dos ornamentos, mas tambm a do ambiente de trabalho e das boas maneiras: hoje em dia, um empresrio exige com orgulho a sua fbrica bela e espaosa, enquanto, antes, se sentia orgulhoso de mostrar uma fbrica eficiente, aparelhada com o ltimo modelo de torno. Penso, a ttulo de exemplo, na surpreendente empresa de Semler, no Brasil. O belo penetrou a deontologia, tornou-se um valor primrio? Sim, ainda que o salto de qualidade, naturalmente, no seja geral. A imensa maioria dos escritrios ainda horrvel, com cores neutras, mveis e decoraes de tipo hospitalar. Mas, no conjunto, e em comparao sociedade industrial, ocorreu uma grande melhora. O senhor dizia que os homens pr-histricos usavam a esttica para conseguir a graa dos deuses''. Atualmente, para ns, qual a ao que corresponde quela, antiqussima, de "propiciao dos favores divinos"? Planejar o futuro, que no depende mais do caprichos dos deuses, mas do modo pelo qual ns o prevemos e o preparamos cientificamente. O homem pr-histrico sabia planejar o futuro? Os nossos longnquos antepassados viviam como os lrios do campo, dos quais fala o evangelho segundo So Mateus. No trabalhavam, nem fiavam. Porm duvido que se vestissem melhor do que o Rei Salomo. Eles aprenderam a planejar o futuro s depois que descobriram a semente. O uso de sementes uma descoberta que remonta a seis mil anos antes de Cristo e provoca uma verdadeira revoluo. Desta vez as protagonistas foram as mulheres. a grande fase matriarcal. Uma diviso sexual do trabalho j tinta ocorrido: o homem saa para caar e a mulher, impossibilitada de locomover-se devido s maternidades freqentes, usava o tempo livre para a colheita de frutas. Contudo, aos poucos, o macho aprende que pode substituir o cansao da caa por aquele, menor, da criao de animais: a caa implica perseguir animais adultos, muitas vezes perigosos, rebeldes e que fogem. A atividade de castor, ao contrrio, permite do- minar os animais desde o seu nascimento. 21. A mulher, por sua vez, aprende que melhor do que recolher as frutas cadas ''cultiv-las'' com a agricultura: pode plantar as sementes, reg-las e ver crescerem as plantas. Ambas as tcnicas, pecuria e agricultura, produzem alimentos dentro de um prazo previsvel, diferido no tempo. Nesta fase, o ser humano aprende, justamente, a diferir, isto , a adiar programando. Enquanto o animal deve satisfazer suas necessidades aqui e agora, o ser humano planeja o futuro e aprende que, trabalhando hoje, poder obter alimento dali a seis meses. E tambm nessa fase que se descobre que o macho participa no nascimento dos filhos. At ento reinava a convico de que as mulheres produzissem sozinhas os filhos. Nessa ocasio, talvez com a observao dos animais, algum entende que existe uma ligao entre cpula, nove meses antes, e nascimento, nove meses depois. Assim, passa-se do matriarcado ao patriarcado, que dura at hoje, mas que est acabando, justamente porque as mulheres agora tm condio de gerar filhos sem a participao de um ma- rido, enquanto os homens no tm condio de gerar filhos sem uma mulher. Outra descoberta: a produo em srie. Remontam a esta poca os restos de algumas garrafas, fabricadas no por estrita necessidade, mas, evidentemente, para serem conservadas, trocadas ou vendidas. Pois bem, o animal faz somente aquilo que necessrio, aqui e agora, para si mesmo e para a sua famlia. O ser humano, ao contrrio, a partir dessa fase e da para a frente, planeja o futuro e expande a produo, vendendo produtos a outros. Nasce o excesso de produo, um sistema econmico e de vida que dura at hoje. Quando que essas sociedade? descobertas do origem a novas formas de Trs mil anos antes de Cristo, o ser humano, enriquecido com todas essas invenes, descobre a cidade e a escrita. Isto acontece na Mesopotmia, onde tem incio uma poca extraordinria. ali que nasce a nossa civilizao e por isso que, recentemente, a Guerra do Golfo nos atingiu de uma maneira mais ancestral do que, digamos, a guerra na Chechnia. Ur e Uruk, as duas cidades sumrias, so os umbigos da civilizao ocidental. Na Mesopotmia, nesta fase, descoberto o ego e so fabricadas as primeiras rodas. Descobre-se a astronomia, que oferece a possibilidade de viajar tambm de noite e, portanto, de multiplicar o alcance das viagens. Nasce, desse modo, o comrcio distncia. Inventa-se a matemtica. Inventa- se a escola. E se inventam as primeiras leis. Em suma, na Mesopotmia de cinco mil anos atrs, aquele "atendimento cultural" que, milhes de anos antes, nos tornou diferentes dos 22. outros animais passa a ser a regra e se institucionaliza? Sim, o processo de aculturao torna-se mais extenso e generalizado. Evidentemente, a criao da escola importantssima. Pode-se ter a histria da humanidade como uma histria de aculturao progressiva: comea com o animal que socorre a prole, prossegue com o ser humano que a educa at a adolescncia, em seguida com a criao da escola que prolonga ainda mais este perodo de aculturao, para finalmente chegarmos aos dias de hoje, nos quais os meios de comunicao de massa nos "educam'' e nos "aculturam" desde o nascimento at a nossa morte. Mas que significado o senhor atribui a esse termo "aculturao"? Aculturar significa colonizar o crebro com o objetivo de mol- d-lo, de modo que faa aquilo que o grupo de referncia considera til. No um termo sempre positivo. Uma quadrilha de ladres tambm capaz de aculturar, ensinando a roubar. Vamos voltar Mesopotmia. Junto com a escrita, foi realizada uma outra inveno fundamental: o selo de acompanhamento. Tratava-se de um tijolinho de barra sobre o qual, com um canudo, era escrita a quantidade de mercadoria enviada. Assim, podia-se comunicar: "Ateno,este transportador lhe traz um saco com vinte quilos de trigo." O selo uma sntese de comrcio, de globalizao e de cultura, e com ele que nascem os nmeros e as moedas. Da Mesopotmia de cinco mil anos atrs nos chegam tambm os primeiros relatos de verdadeira poesia. E tambm l que nascem novas formas de organizao social: o autoritarismo, a ditadura e o imperialismo. Formas que, a seguir, com os persas, atingiro uma estrutura excelente: o exrcito organizado em forma de quadriltero, com o condutor no centro, protegido assim de forma perfeita. At esse momento, as organizaes sociais tendem a permanecer de pequena dimenso para se auto-protegerem. Contudo, a partir de ento, expandem-se: a proteo do centro, da capital, passa a ser assegurada pela quantidade de territrio conquistado. At culminar no imperialismo romano: Trajano tenta fazer coincidir seu imprio com toda a superfcie conhecida do planeta. Logo depois, com Adriano, a poltica muda: o sistema no deve mais expandir-se ao infinito, mas deve realizar-se completamente, como um hortus conclusus. Por isso so erigidas as muralhas, criado o Vallo Adrianeo. O Imprio passa a ser uma zona protegida de civilizao, de cidadania. O que est fora pura barbrie. Mas antes disso, na Grcia, no quinto sculo antes de Cristo, amadurece 23. uma civilizao que estamos habituados a considerar uma perfeio. Segundo a sua definio, ela fruto de uma mudana de poca? A Grcia de Pricles , naturalmente, o bero de uma nova fase que durar por muito tempo, at o sculo XI depois de Cristo. sinnimo de democracia, filosofia, arte, teatro e poesia. E tambm uma outra descoberta importante: a rede, o network, como a chamaramos hoje em dia: um conceito importante para a nossa sociedade ps-industrial. A Grcia, na prtica, no existiu. Ela consistiu em uma rede de cidades que podiam se aliar ou guerrear, segundo o momento. Em comum, os habitantes possuam a lngua, o que significa que um texto de Aristfanes podia ser representado e compreendido tanto em Atenas como em Siracusa. Exatamente como aconteceu mais tarde com o latim e como acontece hoje com o ingls. O que o leva a ler como uma nica poca mil e seiscentos anos de histria, do quinto sculo antes de Cristo ao sculo XI d.C.? O fato de este perodo ser caracterizado, inteiramente, pela rejeio da tecnologia. O progresso ocorrido na Mesopotmia foi tal, que dava a sensao de que tudo j tivesse sido descoberto. uma sensao cclica na histria humana e que retorna ainda hoje na leitura de alguns socilogos. Naquela poca, era sustentada por Aristteles: como tudo aquilo que servia vida prtica f tinha sido descoberto, valia mais usar: a energia para uma outra coisa. A convico de que o progresso j tivesse se exaurido deter mina o modo de viver dos gregos e dos romanos: um modo de viver que no era baseado na quantidade das coisas, mas na qualidade, no ''sentido'' a elas atribudo. No Fedro, de Plato, faz calor e Scrates est sob um carvalho. Ele encontra uma fonte, refresca as mos, repousa sombra e encontra ali a perfeita consonncia entre si e o que o circunda. Isto dar "sentido'' s coisas. Scrates no precisa de nada mais, no como Onassis ou Trump, que cortam o mar com seus iates e mil acessrios. As poucas coisas que um filsofo possui lhe bastam, j que ele sabe enriquec-las de significado. Esse um conceito atualmente determinante tambm para ns, pois caracteriza o ps-moderno, uma cultura na qual o ''sentido'' mais importante do que a quantidade. Os gregos lapidaram ao mximo a arte de "dar sentido" s coisas. Plato, em O Banquete, chega at a nos sugerir a metodologia para atingir esse ponto: "Satisfeitas as necessidades, antes que tu fiques bbado, naquela fase se coloca o mtodo para a tua sabedoria. . .'' E descreve aquele momento aps o banquete, o "simpsio", durante o qual os comensais conversam. Quem fala segura o copo de vinho. O gesto de ter o copo nas mos 24. confere um sentido ao tempo que passa e ao que diz o comensal. Cada dilogo de Plato, seja sobre a amizade, o amor ou a guerra, como uma transcrio estenogrfica de um desses simpsios desses brain- storming. A rejeio da tecnologia que caracteriza a civilizao grega tem uma origem somente flosfca, existencial? Sua origem no clara, e filsofos como Marcuse e Koyr discutiram a esse respeito. De seguro, sabemos que naquela poca a tecnologia era desencorajada. Nessa rejeio do progresso tecno- lgico talvez no estivesse ausente uma razo prtica: tinha sido criada a escravido, logo, no havia necessidade de mquinas. Considera esse momento historicamente regressivo? Para os homens livres um passo avante; para os escravos, um passe atrs. Os trezentos mil escravos da Atenas de Pricles, que permitiram aos quarenta mil homens livres escrever e dedicar-se poltica e arte, trabalharam, a longo prazo, tambm para ns. Porm a vida deles foi trgica e desumana. De todo modo, o senhor considera regressiva a fase da histria humana caracterizada pela rejeio da tecnologia? A tecnologia no um fim em si mesma. Serve para que se viva melhor. Do ponto de vista da sade, por exemplo, da gesto da dor e do prolongamento da vida, rejeitar o aporte tecnolgico equivale a regredir. Do porto de vista das relaes humanas entre cidados livres, com certeza a Grcia de Pricles marcou um grande passo adiante. Mas o ser humano no pode prescindir de ajuda, seja esta na forma de escravos ou de tecnologia. E a relao numrica entre escravos e homens livres em Atenas e Roma, a massa de pessoas reduzida a "gado humano'' (como diz Bloch), constitui um indicador de no-civilizao. Porm, na realidade, no existe nunca uma poca de total regresso ou total avano: at mesmo a guerra pode ter algumas decorrncias positivas, como, por exemplo, o progresso tecnolgico. Permanece o fato de que, se no se usa tecnologia, se usam seres humanos: operrios, servos, escravos. E isto no civilizado. Porm o uso da tecnologia no indolor. Requer concentrao e um certo esforo. Claro, mas a contribuio global que ela fornece muito superior ao cansao decorrente da concentrao ou do esforo. A verdade que muitos intelectuais so afetados por um tipo de esnobismo anti-tecnolgico. Porm, mesmo aqueles que se gabam de usar a medicina alternativa, quando tm uma crise de apendicite ou contraem um cncer no pulmo, se operam com as mais modernas tcnicas cirrgicas. 25. Em suma, para o senhor a rejeio da tecnologia puro esnobismo e masoquismo? Com certeza. At quem usa a tecnologia para matar o faz para se cansar menos, para no se sujar enquanto mata, ou para evitar o sofrimento da vtima. A tecnologia elimina cansao e sofrimento. Porm, o "mal tecnolgico'' dos gregos do sculo V parece ser um componente perene na natureza humana. Tanto assim que Robert Pirsig escreveu a esse respeito em Zen e a Arte da Manuteno de Motocicletas, um livro cult, durante os anos 70. Se eu tivesse tempo, escreveria um livro intitulado A Motocicleta e a Arte da Manuteno do Zen. Quem se perturba diante da tecnologia pode se limitar a no us-la. Mas no tem o direito de impedir seu uso pelos outros. Se eu tenho medo de andar de avio, nem por isso posso proibir a aviao. A tecnologia uma oportunidade, no uma obrigao. Alis o planeta est cheio de zonas no tecnologizadas: sobre a Terra hoje coexistem todos os nveis de civilizao, desde a Pr-Histria at o ano 2000. Quem no gosta de tecnologia tem para onde ir, se quiser. Em As Memrias de Adriano, Yourcenar conta que o imperador convocou o poeta Juvenal - que criticava os embelezamentos a seu ver excessivos da capital - e lhe perguntou se ele conhecia algum lugar do Imprio onde a vida fosse mais feliz do que em Roma. Se no me engano, Juvenal indicou a Trcia. Adriano ordenou que ele se transferisse para l para sempre. Quer dizer que a tecnologia se torna um diktat? Para os despreparados sim. E, infelizmente, os despreparados existem em abundncia, mesmo que nem todos tenham culpa de s-lo. Na poca que se inicia com a Grcia de Pricles foram zeradas as pesquisas ou ocorreram outras descobertas e invenes? Contam-se bem poucas invenes: o arco arquitetnico, o alistamento militar, o viaduto, a roldana. Em outros casos houve invenes que aconteceram, mas que no foram utilizadas: um exemplo o moinho d'gua, que foi inventais no sculo I a.C., mas no foi utilizado. H um episdio que ilumina e explica bem esse comportamento. Sob Vespasiano, o Capitlio pega fogo e um cidado, ao apresentar ao imperador um projeto de roldanas e correias para transportar as pedras necessrias reconstruo, obtm como resposta do imperador: "Compro, desde que voc no o divulgue. Seno, o que faro as pessoas que ficarem sem trabalho?'' Hoje, ns tambm, para vender estoques ou para evitar 26. o aumento do desemprego, retardamos a comercializao de novas tecnologias, como, por exemplo, os livros eletrnicos. Naquela poca existiam os escravos e nenhuma tecnologia, que, seja como for, mais perfeita do que o escravo. A IBM est gastando milhes para construir uma mquina de ditafonia perfeita: eu falo e ela escreve. O escravo j fazia tudo isso. Obviamente, porm, o escravo no estava feliz com a sua condio. O incio da nova era, o sculo XIId.C., tem alguma coisa a ver com tudo isso? Comea um perodo de grande exploso tecnolgica que talvez possa ser relacionada com a dificuldade, que surgiu neste perodo, de conseguir escravos. Roma no mais to potente como antes e, fora dos confins do Imprio, os brbaros se tornaram irredutveis. No interior do Imprio, para quem possua escravos passa a ser mais conveniente liber-los, porque, ao faz-lo, significava no ter mais o dever de aliment-los. Na falta de escravos, os homens livres voltam a recorrer tecnologia. Inicia-se assim uma nova fase de descobertas e de invenes, similar quela ocorrida na Mesopotmia quatro mil anos antes: inventa-se a plvora, se redescobre o moinho d'gua, difundem-se a bssola e os arreios modernos dos cavalos. O cavalo, com o novo arreio, rende vinte vezes mais do que com o velho tipo de freio. So inventados os culos que logo duplicam a vida intelectual da humanidade. (Lembra-se dos quadros de Giotto? Todas as pessoas so retratadas com os olhos semi-fechados. Andavam assim, aguando a vista, porque ainda no dispunham de culos.) So inventados a imprensa e o relgio.. Porm estas so reflexes j feitas por Bacon e Bloch. Depois disso se faz uma outra descoberta fundamental: a descoberta do Purgatrio. Isso uma piada, uma frase de efeito? Muito pelo contrrio, a pura verdade. Nada do que falamos teria se desenvolvido, nem difundido, sem uma acumulao econmica primria. Se, no incio da sociedade industrial, a acumulao primria se d graas s colnias, na Idade Mdia realiza-se graas ao Purgatrio. Para constat-lo, basta que se leia La naissance du Purgatoire (O nascimento do Purgatrio), de Le Goff. At o sculo XIII, o Purgatrio no existia no imaginrio cristo, nem existia um lugar assim em nenhuma outra religio. Toda religio limita o fim do jogo, o rien ne va plus, com a morte. A Igreja Catlica, pelo contrrio, descobre ou inventa o Purgatrio. Esse debate nasce com Gregrio Magno: se existe ou no alguma coisa 27. alm do Paraso e do Inferno. Chega-se, pouco a pouco, definio de um terceiro lugar de mediao entre Inferno e Paraso, mas tambm de mediao entre os vivos e os mortos. E, pela primeira vez na histria da humanidade, os vivos passam a encontrar-se em situao de poder fazer alguma coisa em favor dos mortos: pagar missas e indulgncias pelo resgate da alma deles. Inaugura- se assim uma poca de especulao sobre as almas. O comrcio das indulgncias torna-se central na sociedade crist e permite uma acumulao imensa por parte das igrejas. Pense que hoje em dia o santurio de Pompia acumula milhes a cada ano. Imagine que, no jubileu dos 2.000 anos, milhes de peregrinos j chegaram a Roma para obter a indulgncia plenria, ou seja, para evitar as penas do Purgatrio. Para gerir essas poupanas desmedidas nasceram bancos com nomes de santos e os montepios de caridade. E tudo isto preparou o advento da indstria . Que expresso adquirem esses acontecimentos no plano terico ? Os pensamentos de Bacon, de Descartes e de Joo Batista Vico so fundamentais porque invertem a filosofia de Aristteles. Para Aristteles, tudo aquilo que servia ao bem-estar material j tinha sido descoberto, portanto, tornava-se uma prioridade dedicar-se ao esprito. Bacon inverte este raciocnio e diz: "Chega de filosofia e poesia, hora de dedicar-se ao progresso da vida cotidiana.'' um utilitarista, no no sentido estrito de pertencer a essa escola filosfica, mas porque coloca a utilidade prtica em primeiro lugar. um poltico pragmtico, um ministro de Estado. Bacon considera a filosofia grega "um amontoado de tagarelice de velhos estonteados para jovens desocupados''. Bacon nasce sob Henrique VIII, numa Inglaterra arcaica e autoritria, e morre numa Inglaterra pronta para a revoluo industrial. Indispensveis a esta revoluo sero as descobertas da eletricidade, da mquina a vapor e da organizao taylorista, mas tambm a primazia da razo. O homem descobre que grande parte dos problemas tradicionalmente resolvidos de modo religioso ou fatalista podem, ao contrrio, ser administra dos racionalmente: seja o medo do temporal e do raio, seja a carestia, seja a ditadura. neste ponto que se impem o cruzamento entre desenvolvimento tecnolgico, desenvolvimento organizacional e desenvolvimento pedaggico. Porque cada progresso tecnolgico acompanhado da necessidade de ser transmitido, atravs do ensino, s geraes futuras. A Mesopotmia tinha inventado a escola para as elites, a sociedade industrial inventa a escolarizao e o consumo de massa. 28. Durante toda a longa era pr-industrial os seres humanos eram mais felizes ? Com certeza a durao da vida deles era menor, assim como trabalhavam menos horas por dia. No seu Tableau de l'tat physique et moral des ouvriers dans les fabriques de coton, de laine et de soie ou seja, Tratado sobre o estado fsico e psquico dos operrios nas fbricas de algodo, l e seda, de 1840, Villarm referia que naqueles tempos os escravos das Antilhas trabalhavam nove horas por dia, os condenados ao trabalho forado nas instituies penais, dez, e os operrios de algumas indstrias de manufaturas trabalhavam dezesseis horas por dia. Operrios naquela mesma Frana que com sua revoluo tinham proclamado os Direitos do Homem. Porm impossvel comparar o grau de felicidade de duas pessoas, de dois mundos ou de duas pocas diversas. A felicidade, apesar de ser uma aspirao humana universal e perene, continua a ter uma definio difcil, e mais difcil ainda quantific-la. Eu seria muito mais cauteloso que Paul Lafargue em acreditar na felicidade manifesta das populaes rurais. Lembro- me de uma passagem daquele clebre panfleto O Direito ao cio, na qual ele diz: "Onde esto aquelas mulheres vivazes e robustas, sempre em movimento, sempre na boca do fogo, sempre cantando, eterna fonte de alegria, que davam luz filhos sadios e fortes sem sequer sentir dor? No lugar delas o que vemos hoje so moas e mulheres de fbrica, flores murchas e descoloridas, anmicas, com as barrigas vazias e os membros fracos.'' Se g u n d o Ca p t u lo O Imbecil Especializado Continuamos a desperdiar tanto tempo e energia como os que eram necessrios antes da inteno das mquinas; nisto fomos idiotas, mas no h motivo para que continuemos a ser. Bertrand Russell Ns nos encontramos agora diante do nascimento da sociedade que a todos ns (com exceo somente daqueles que hoje so ainda muito jovens) parece um habitat natural: a sociedade industrial. No comeo no foi absolutamente considerada como "natural", mas sim como um abalo. Quo profunda a revoluo iniciada no sculo XVIII? 29. Como j disse, quando na nossa histria coincidem trs tipos de mudana - a descoberta de novas fontes energticas, uma nova diviso do trabalho e uma nova organizao do poder -, estamos diante de um salto de poca. E estes trs tipos de mudana trazem consigo uma nova epistemologia, um novo modo de ver o progresso e o mundo. A sociedade industrial foi tudo isso. Mais ou menos na metade do sculo XVIII nasce um novo movimento, o racionalismo, que confia na razo humana para a soluo dos problemas, em contraposio a solues atravs de um enfoque emotivo, religioso ou fatalista. A vida prtica do homem do sculo XVIII no diferente da dos seus antepassados, dos tempos de Jlio Csar ou de Hamurbi. Ele tambm tem medo de raios e troves, das pestes e de eventos que, apesar de serem naturais, lhe parecem de ordem sobrenatural, para os quais no possui uma explicao que no seja de carter religiosa ou, como dizia, fatalista. No sculo XVIII insinuam-se, pela primeira vez, a dvida e a esperana de que a razo possa compreender, para depois administrar, os eventos. Talvez, dito com confiante otimismo (aquele otimismo que o Candide de Voltaire ironiza), vir o dia em que o homem saber, com antecedncia, se chover ou se vir um tempo de seca, e saber, alm disso, como conter um raio. Para chegar a tal porto, necessrio estudar racionalmente, necessrio nutrir nossa mente, necessrio "cultivar o nosso jardim". A dvida brota como dvida terica, isto , em uma linha puramente intelectual? Sim, a dvida brota daquela imensa florao de clubes, sales e iniciativas que deram vida ao Iluminismo. Nasce daquela mistura de cientificismo, racionalismo, ironia e auto-ironia que fez do sculo XVIII o "sculo das luzes". Examinemos esse sculo, por um instante, atravs do advento da Encyclopdie: um grupo de pessoas cultssimas que decidem transmitir o saber que possuem para aqueles que no sabem. Decidem coletar o saber num corpus de livros, no para que seja contemplado ou mesmo utilizado em um sentido apenas intelectual, mas para que seja usado como fonte de saber tcnico. A Encyclopdie oferece uma srie de planchettes de tbuas ilustrativas com desenhos detalhados e medidas exatas de maquinarias diversas. Portanto, o que os inspira a vontade de permitir, a quem que: que possua tais livros, reproduzir um universo tecnolgico que at ento era um patrimnio restrito aos iluminados. Os 30. iluminados, enfim, iluminam, tornam-se lumi. Porm a Encyclopdie um evento interessante tambm por outros motivos, Alm da inteno de divulgar o saber tcnico e cientfico contra o saber irracional, seu interesse deve-se tambm ao fato de ter criado uma mquina organizacional capaz de produzir cincia com um mtodo original de trabalho coletivo. Vale a pena estudar o mtodo com o qual trabalham os enciclopedistas - Diderot, Rousseau, D'Alembert e outros - que se reuniam na casa de campo de d'Holbach. De manh, cada um permanecia no prprio quarto, estudando. Durante a tarde se encontravam, cada um lia para os outros aquilo que tinha pensado e, noite, dedicavam-se msica e ao entretenimento. Desse modo, junto com um sistema de difuso do saber, aperfeioaram tambm um mtodo para incrementar a criatividade cientifica. Um mtodo possvel graas ao fato de que esses lumi no tinham qualquer preocupao de ordem econmica ou prtica. Depois dos gregos, os iluministas so os maiores cultores do "cio criativo''. Porm, o sculo XVIII no s um sculo de sistematizao do saber " um sculo de descobertas. De fato, outra pea da eminente sociedade industrial que se estava formando constituda pela descoberta da energia eltrica e da locomotiva. Inclusive do praraios: Franklin consente dar ao novo homem, o homem racional, a conscincia de que capaz de domar a natureza at nas suas manifestaes mais terrveis e caprichosas. Ocorrem progressos em quase todos os campos cientficos - na fsica, na filosofia, na biologia -, enquanto a literatura, a arte e a poesia no efetuam outros passos alm dos j realizados durante o Renascimento. A msica, ao contrrio, atravessa um momento mgico: Bach tinta acabado de morrer e Mozart, Beethoven e Haydn estivam vivos. No plano econmico, o que acontece? O colonialismo tinha comeado a fornecer aos pases hegemnicos - Espanha, Portugal, Inglaterra e Holanda - grandes quantidades de matria- prima e de ouro: a acumulao primria. As outras peas que vm se somar so as duas revolues: a americana e a francesa, que libertaram imensos potenciais. Cada vez que uma revoluo concede o acesso "sala de controle'' a novas classes sociais - classes estas que, at ento, eram oprimidas e, num certo sentido "virgens'' -, enormes 31. potencialidades so liberadas. Foi o que aconteceu naquele tempo com o advento da burguesia. o que est acontecendo agora com a liberao feminina. Naquela poca, foi a burguesia, uma classe social inteira, que compreendeu que tinha chegado a sua vez. E se aproveitou disso: atravs das revolues burguesas, milhares de novo crebros atingiram a liderana das diversas naes. A que necessidades fundamentais, final das contas, responde, essa sociedade nascente? necessidade objetiva de produzir, com menor esforo, uma quantidade de bens materiais suficiente para satisfazer as necessidades pressentes de uma crescente massa de consumidores: exatamente os burgueses. H um exemplo muito interessante a este propsito, o do fabricante de mveis Michael Thonet. Thonet convocado em Viena, pelo prncipe de Liechtenstein, para que lhe fabrique mveis e parqus. Estamos em torno da metade do sculo XIX e o industrial descobre que, na capital, alm do prncipe, encontras-se um imenso mercado em potencial. Trata-se de gente que ainda no tem dinheiro em demanda, que no possui ainda uma cultura prpria e, por isso, imita os aristocratas. Mas em seu conjunto j constitui um alvo vasto e suficientemente rico de pessoas que esto "bem de vida'' desejam viver mais completamente e querem ostentar o prprio status de classe mdia recm-nascida. Thonet dar a esta nascente burguesia vienense exatamente aquilo a que ela aspira. Cria um estilo que no imitao do aristocrtico, como era o Biedermeier, mas sim construdo sob medida para a burguesia emergente. So mveis pouco caros, prticos, facilmente montveis e, logo - eis a novidade -, vendveis a partir de um catlogo. Thonet, em sntese, inventa um estilo, um marketing e um modo de produo em srie. O catlogo infinito: 14 mil objetos diversos, cada um acompanhado de preo e medidas. Thonet possui uma viso unitria do produto, do mercado e da produo. E a sociedade industrial exatamente isso. Mas quando que aflora a conscincia de que a sociedade mudou? Quando que as pessoas comeam a se dar conta de que habitam um novo mundo, diferente daquele artesanal e rural? 32. Por muito tempo a mudana percebida apenas em partes pelos estudiosos. H quem, como Owen, denuncie a explorao; quem, como Fourier, fantasie utopias; outro ainda, como Smith, enfatize o tamanho das fbricas, e a quem, como Engels, Dickens e, em seguida, Zola, preste ateno na misria dos trabalhadores. A conscincia de que foi toda a sociedade que mudou s aflora, aqui e acol, em torno de 1850. ento que se comea a falar no mais somente de indstrias, mas de "sociedade industrial", e percebe- se a globalidade da mudana de poca que acabou de acontecer. Exatamente como ocorreu nestas ltimas dcadas: a sociedade ps- industrial nasce em 1950, mas s alguns poucos, como Bell ou Touraine, perceberam logo este advento e suas dimenses, tratando-o como um novo sistema global, nico. Em vez disso, a massa de intelectuais percebeu somente aspectos singulares da mudana (a tecnologia ou os meios de comunicao de massa, ou a tecno-estrutura, a globalizao, etc.), mas no entendeu que todo o paradigma tinha mudado completamente. A sociedade industrial significa, desde o comeo, e significar por muito tempo, a hegemonia de uma categoria: a dos engenheiros. Originalmente com Frederick W. Taylor. Geralmente tem-se uma imagem deformada de Taylor, um pouco caricata. Na verdade, ele nasceu rico, trabalhava por hobby e estudava a organizao do trabalho porque era sua paixo. Foi o maior importador do racionalismo para o interior dos Estados Unidos e das fbricas. Na histria da humanidade, somente um tipo de trabalho antes da indstria tinta aglomerado tantas pessoas num s lugar: o exrcito. Mas, em 1804, a fbrica de Owen, na Esccia, postula trs mil empregados, e, em 1901, a United States Steel, na Amrica, cem mil representantes. Na realidade, o projeto organizacional e existencial de Taylor, a longo prazo, no tende absolutamente a tornar mais cruel o trabalho, mas sim a liberar as pessoas do cansao e a lhes permitir um lazer criativo. Quanto a ele, pessoalmente, retirou-se em sua manso, aos quarenta e cinco anos, passando a dedicar-se aos seus jardins, que eram cuidados por trinta e cinco jardineiros. Para Taylor, o trabalho uma coisa que pode ser evitada. Entre as vises do trabalho que se confrontavam naquele perodo, a sua era a mais liberadora e cheia de vitalidade. No final das contas, pensando bem, Taylor mais prximo ao Lafargue do "direito ao cio'' do que ao sogro deste, Karl Marx, com seu "direito ao trabalho'', ou ainda a Smith ou at mesmo ao prprio Proudhon. Porm isto no impede que, por pelo menos cem anos, o cronmetro de 33. Taylor e a linha de montagem de Ford tenham parcelado o trabalho at o ponto de priv-lo de toda e qualquer forma de inteligncia. Marx j havia dito que ''o trabalho produz coisas espirituais para os ricos, idiotices e imbecilidades para o trabalhador''. Porm, a partir de Taylor, h o agravante de que o imbecil especializado. Quais so as teorias sociais que se enfrentam no final do sculo XIX e incio do XX? Para os catlicos, o trabalho uma sentena condenatria, como reafirmar a Rerum Novarum, em 1891. Para os liberais, uma disputa mercantil. Para Marx, a nica possibilidade de redeno, junto com a revoluo, e por isso um direito a ser conquistado. Somente Taylor, no plano prtico, e Lafargue, no plano terico, consideram o trabalho um mal que deve ser reduzido ao mnimo, ou evitado. As teorias sociais dessa poca se diversificam segundo a posio que defendem em relao ao conflito. A burguesia teme perder o poder que acabou de conquistar com a Revoluo Francesa, e assim passa a ter medo de outras revolues. De um lado, encontram-se a teoria liberal e o cristianismo, baseados no medo do conflito. De outra, a teoria marxista, fundada, ao contrario, na esperana da revoluo. Somente no nosso sculo, com a teoria dos sistemas e com Dahrendorf, vai se chegar a afirmar que o conflito, se contido dentro de certos limites e arbitrado pelo Estado, til s organizaes, pois determina seu dinamismo e crescimento. A Rerum Novarum intervm tardiamente nesse debate ao final do sculo. Por que mesmo assim importante? Porque a teoria de maior difuso entre as massas catlicas do final do sculo XIX e incio do sculo XX. Os milhares de deserdados que aportam na Amrica trazem consigo essa cultura. A revoluo industrial na Amrica enraza-se to rapidamente porque existe uma minoria, a dos patres, que est convencida de que quem possui fortuna neste mundo a merece, j que esta a vontade de Deus. So convictos de que Deus est do lado dos wasp, isto , dos "brancos anglo-saxes protestantes". Mas se era fcil encontrar gente convicta do prprio direito de comandar, era, no entanto, difcil encontrar gente disposta a obedecer. E, assim, essas massas catlicas, impregnadas da Rerum Novarum que tinham ouvido em todas as igrejas, estavam convencidas de que tinham o dever de sofrer em silncio e trabalhar. Tenha-se presente que as massas que 34. emigraram para a Amrica provinham p sobretudo do Caribe, Irlanda, Espanha, Itlia, Polnia e Hungria, todos pases catlicos. O que lhes havia ensinado a encclca? Leo XIII estava apavorado tanto com o conflito quanto com os socialistas e os liberais. A encclica comea assim: "Os prodigiosos progressos das artes e os novos mtodos industriais, as relaes mudadas entre patres e operrios, a riqueza acumulada em poucas mos e a grande expanso da pobreza, o senti- mento da prpria fora que se tornou mais vivo nas classes trabalhadoras, assim como a unio entre elas mais intima, este conjunto de fatores, aos quais se soma a corrupo dos costumes, deflagrou o conflito. . .'' O papa tem plena conscincia do verdadeiro motivo, pois acrescenta: "Um nmero muito restrito de ricos e de opulentos imps a uma multido infinita de proletrios um jugo que quase de servido.'' Porm, para ele, tal desigualdade no justifica o conflito, que deve ser evitado de qualquer jeito, graas a algumas condies que veremos a seguir. A Rerum Novarum equnime em seu dio contra liberais e socialistas. Destes ltimos, diz: ''Esta converso da propriedade particular em propriedade coletiva, to preconizada pelo socialismo, no teria outra efeito seno tornar a situao dos operrios mais precria, retirando-lhes a livre disposio do seu salrio e roubando-lhes, por isso mesmo, foi a esperana e toda a possibilidade de engrandecerem o seu patrimnio e melhorarem a sua situao.'' A encclica deixa claro, desde o comeo, que a propriedade privada um direito natural - logo, divino. E o faz com o seguinte raciocnio abstruso: como os animais tm o direito de usar as coisas, mas no de possu-las, o homem, que superior aos animais, deve ter um direito a mais. Por conseguinte, o direito propriedade. Um raciocnio, digamos, baseado na doutrina jurdico-filosfica do direito natural? Digamos a verdade: um raciocnio ridculo. A encclica fala a seguir da famlia e do Estado. Depois disso, comea a parte sobre a ''necessidade das diferenas sociais e do trabalho pesado". Diz: " impossvel que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo nvel... o homem, mesmo que no estado de inocncia, no era destinado a viver na ociosidade, mas ao que a vontade teria abraado livremente como exerccio agradvel'' - e eis o meu (cio criativo -, "a necessidade lhe acrescentou, depois do pecado, o sentimento da dor e o imps como uma expiao: "a terra ser maldita por tua causa; pelo 35. trabalho que tirars com que alimentar-te todos os dias da vida". Se no se aceitam as desigualdades sociais e o trabalho como expiao, nasce a luta de classes: "O erro capital na questo presente crer que as duas classes so inimigas natas uma da outra como se a natureza tivesse armado os ricos e os pobres para se combaterem mutuamente num duelo obstinado.'' E aqui o papa ataca Marx, diretamente, ainda que tome o cuidado de no o nomear. Como se a natureza criasse alguns homens patres e outros operrios, do mesmo modo que cria raposas e galinhas. Qual o re-mdio que o papa oferece como alternativa ao pensamento de Marx? A encclica propem que as diversas classes entrem num acordo, em nome de um organicismo, resgatado tal e qual o de Menmio Agripa. O texto original, que vale a pena reportar por extenso, o seguinte: " necessrio colocar a verdade numa doutrina contrariamente aposta, porque, assim como no corpo humano os membros, apesar da sua diversidade, se adaptam maravilhosamente uns aos outros, de modo que formam um todo exatamente proporcionado e que se poder chamar simtrico, assim tambm na sociedade as duas classes esto destinadas pela natureza a unirem-se harmoniosamente e a conservarem-se mutuamente em perfeito equilbrio. Elas tm imperiosa necessidade uma da outra: no pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital. A concrdia traz consigo a ordem e a beleza; ao contrario, do conflito perptuo s podem resultar confuso e lutas selvagens. Ora, para dirimir este conflito e cortar o mal na sua raiz, as instituies possuem uma virtude admirvel e mltipla.'' E eis que se ajusta o papel superior da Igreja tanto contra os socialistas fomentadores de dio entre as classes quanto contra os liberais: "E, primeiramente, toda a economias das verdades religiosas, de que a Igreja guarda e intrprete, de natureza a aproximar e reconciliar os ricos e os pobres, lembrando s duas classes os seus deveres mtuos e, primeiro que todos os outros, os que derivam da justia. (...) O que vergonhoso e desumano usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e no os estimar seno na proporo do vigor dos seus braos.'' O papa, portanto, coloca-se como defensor do status quo e inimigo da luta de classes, propondo o cristianismo como o melhor dos meios para garantir a paz social. 36. Uma mensagem"conservadora" em sentido liberal: almeja manter o que j existe. Porm preciso admitir que a Igreja, do alto da sua tradio milenar empenha-se neste porto em discutir uma sociedade recm-nascida: a sociedade industrial tinha ento pouco mais de um sculo e o conflito entre o capital e o trabalho tinha se iniciado somente uns setenta anos antes, na Inglaterra. A lgreja compreende que a industria sua inimiga: porque racionaliza o mundo, substitui a magia pela cincia e o raciocnio, torna v a f na vida depois da morte com a confiana no progresso. E o papa adverte para o perigo de que as classes pobres pretendam enriquecer. Quanto menor for o nmero de pobres, menor ser o nmero de fiis com o qual a Igreja poder contar: de fato, nas zonas rurais, o campons era submisso ao padre, enquanto nas cidades industriais o operrio pobre se emancipava e passava da pregao dos padres das vanguardas polticas. Na prtica, qual a soluo que a encclica papal propem sociedade? O dever do rico , "em primeiro lugar, o de dar a cada um o salrio que convm'' e agir segundo "a caridade crist". O proletrio, por sua vez, faz bem em concentrar-se com o que tem, pois, diz o papa, "que abundeis em riqueza ou outros bens, chamados de bens de fortuna, ou que estejais privados deles, isto nada importa eterna beatitude o uso que fizerdes deles o que interessa. (...) Assim, os afortunados deste mundo so advertidos de que as riquezas no os isentam da dor; que elas no so de nenhuma utilidade para a vida eterna, mas antes um obstculo...''. Em suma, melhor ser pobre do que rico. Se, entretanto, a caridade dos ricos e a resignao crist dos pobres no bastarem para evitar a luta de classes, que se recorra, ento, fora publica: "hoje especialmente, no meio de tamanho ardor de cobias desenfreadas, preciso que o povo se conserve no seu dever. (...) Intervenha portanto a autoridade do Estado, e, reprimindo os agitadores, preserve os bons operrios do perigo da seduo e os legtimos patres de serem despojados do que seu'. A Rerum Novarum lhe parece brutalmente ditada pelas exigncias do momento, ou inspirada tambm em valores evanglicos, digamos, eternos? No final das contas, a doutrina catlica para a sociedade industrial, cem anos depois, tem ainda algum valor ou deve ser jogada fora, completamente, como resduo de uma poca superada? 37. Evidentemente, o alvo dela a sociedade que nasceu com as fbricas: o marxismo de um lado e o liberalismo do outro. Parecido com o que acontecer depois com a Centesimus Annus de Joo Paulo II: ele tambm ataca os comunistas, por um lado, e o consumismo, sobretudo o americano, por outro. Tambm ele volta a propor o papel central da Igreja. Afirma que as desigualdades no podem ser eliminadas, que a caridade precisa ser exercida pelos ricos, e a pacincia, pelas pobres. Mas a Rerum Novarum mesmo se contextualizada no perodo histrico em que foi escrita, continua a surpreender pelo seu conservadorismo explcito. Tomemos como exemplo esta passagem: "Certos tipos de trabalho no se adequam s mulheres, feitas por natureza para os trabalhos domsticos, os quais so uma proteo honestidade do sexo fraco e tm natural correspondncia com a educao dos filhos e com o bem-estar do lar'' Ou em outra parte, onde se l: "Trabalhos h tambm que se no adaptam tanto mulher, qual a natureza destina de preferncia os arranjos domsticos, que, por outro lado, salvaguardam admiravelmente a honestidade do sexo, que correspondem melhor, pela sua natureza, ao que pedem a boa educao dos filhos e a prosperidade da famlia". o conceito de trabalho como sacrifcio e como parte central da vida. Mas toca tambm na idia da diviso social do trabalho: pela primeira vez se tem conscincia de que a fbrica, ao contrrio da atividade agrcola ou artesanal, divide a famlia. E, j que deve ser dividida, melhor que o marido v trabalhar na linha de montagem, mas que ao menos a mulher fique em casa. Te r e i r o C a p t u 1 o A Razo do Lucro Dado que uma sociedade, segundo Smitb, no feliz quando a maioria sofre.. necessrio concluir que a infelicidade da sociedade a meta da economia poltica. As nicas engrenagens acionadas pela economia poltica so a avidez pelo dinheiro e a guerra entre aqueles que padecem disso, a concorrncia. Karl Marx 38. Introduzimos algumas distraes para as crianas. Ensinamos elas a cantar enquanto trabalham; isso as distrai e faz com que enfrentem com coragem essas doze horas de esforo e cansao que so necessrias para que obtenham os meios de subsistncia. Relatrio de um empresrio durante o primeiro congresso de filantropia de Bruxelas, em 1857 Falvamos das ideologias da era industrial: catlica, liberal, comunista. Quais so os valores que, aos poucos a indstria vai destilando por conta prpria? A. fbrica, caracterizada pelos muros que a circundam e que interditam o ingresso de estranhos, destila seus princpios no interior do seu prprio universo tecnolgico. Uma vez que entra fbrica, o trabalhador no tem mais contato algum com o exterior: no dispe de telefone, e seu corpo e sua alma ficam segregados. Os princpios instaurados no interior da fbrica so completamente novos em relao ao trabalho agrcola ou artesanal e so to fortes que, embora formulados para a oficina, sero em seguida aplicados tambm nos escritrios e, aos poucos, em todos os setores da sociedade. Depois da descoberta da agricultura e da criao de animais, pela primeira vez na histria da humanidade repensar o trabalho significa repensar e reorganizar a vida inteira. No se pode organizar o trabalho na grande industria sem obrigar milhares de pessoas, que antes desenvolviam uma outra atividade no prprio lar, a sair de casa e ir para a fbrica. Mas estes milhares de pessoas, alm de modificar o prprio ritmo de produo, devem tambm modificar suas relaes afetivas com os outros, sua relao com o bairro em que vivem e com a prpria casa. importante refletir hoje sobre tudo isso, pois estamos s vsperas de uma revoluo nova e, igualmente, drstica: a da reorganizao informtica graas ao tele-trabalho e ao comrcio eletrnico, que traro de volta o trabalho para dentro dos lares e, assim, nos obrigaro a rever toda a organizao prtica da nossa existncia. Falvamos antes da estandartizao: o princpio inventado pelo 39. construtor de mveis Thonet. Quais so outras leis ditadas pela indstria? Quase todas foram escritas e aperfeioadas por Taylor. Alvin Toffler as sintetiza muito bem no seu livro A Tereira Onda. Thonet, como vimos, descobriu que, em vez de fabricar cem cadeiras, cada uma diferente da outra, muito mais lucrativo faz-las todas iguais: o desperdcio menor, a produo mais rpida e a menor custo. um ciclo contnuo: se usam mtodos estandardizados para fazer produtos estandardizados, vendidos a preos estandardizados. Portanto, podem ser vendidos em supermercados ou grandes lojas tipo self-service, em vez de em lojas pequenas que mantm atendimento personalizado ao cliente. Toda a economia completamente reestruturada: da planificao produo e s vendas. Porm, para se obter a venda de produtos feitos em srie, deve-se, naturalmente, padronizar tambm o gosto dos consumidores, fazendo-os desenvolver um gosto padro. At aquele momento, todo aristocrata desejava que a sua carruagem fosse "personalizada'', tivesse uma insgnia original, com desenho e cor escolhidos por ele. Dali para a frente, as pessoas devero se contentar com automveis todos idnticos. O emblema deste novo ciclo econmico o Modelo T, o automvel inventado por Ford em 1908. At 1932, foram produzidos dezesseis milhes de exemplares que sofrem pequenas variantes sucessivas, mas cuja estrutura permanece basicamente igual. O slogan da Ford era: ''Os americanos podem escolher carros de qualquer cor. Desde que seja preta.'' Um slogan que pressupe uma massificao do gosto sem contestao. Hoje em dia, a Benetton no poderia jamais fazer o mesmo tipo de propaganda para os seus suteres. Quer dizer que a estandardizao produtiva que as pessoas adquiram um novo valor: o desejo de se sentirem iguais s outras, em vez de aspirarem a ser diferentes.? Exatamente. A estandardizao traz depois consigo o segundo princpio da sociedade industrial: a especializao levada s mximas conseqncias, muito diferente da adotada nos sculos anteriores, quando o guerreiro se distinguia do mdico e este se distinguia do sacerdote. Na interior de cada uma dessas profisses ainda no existiam excessivas especificaes. Taylor chega ao ponto de defender que cada trabalhador deva repetir, milhares de vezes por dia, um s gesto (enroscar um parafuso, por exemplo, ou fixar um objeto), exatamente como far Chaplin, ironicamente, em Tempos Modernos, filmado, se no me engano, em 1936. 40. Da especializao profissional dos cargos deriva a especializao funcional dos espaos: em lugar do armazm, onde se produzia, por inteiro, um vaso ou uma carroa, surgem departamentos adequados a cada fase da produo. Aqui se produzem sa parafusos, ali s tornos e l fomente brocas. A cidade, por sua vez, tambm se especializa: desenvolve-se a zona industrial, local onde se produz; os bairros residenciais, onde se descansa; os bairros comerciais, onde se fazem as compras; as zonas de lazer, lugar de diverso, etc. Trata-se da cidade funcional, to cara a Corbusier, que a teoriza num livro de urbanstica em 1923. Significa que trabalho, vida, orao, diverso e embriaguez no se encontram mais concentradas numa s casa, nem num s bairro. Agora o ser humano que se desloca rapidamente de um lugar para o outra. E assim nascem tambm os sistemas de transporte da cidade moderna: metrs, avenidas, auto-estradas. E qual o terceiro princpio? A sincronizao''. Se fssemos artesos numa oficina de vasos, cada um fabricaria um vaso inteiro. Se, ao contrrio, trabalhssemos numa linha de montagem, voc enroscaria um parafuso e, cinco segundos depois, eu deveria apertar outro: logo, deveramos ambos estar presentes no instante em que a cadeia se inicia. E bastaria que um de ns dois falhasse para que fracassasse toda a produo. A fbrica sincronizada requer uma cidade sincronizada: para que todos estejam presentes na mesma hora, na prpria linha de montagem (seja ela a autntica cadeia de montagens das fbricas, seja a dos empregos burocrticos, nos escritrios), todo mundo tem que sair e voltar para casa no mesmo horrio. Na hora do rush , at o adultrio torna-se impossvel'' - dizia o escritor Flaiano. A cidade congestiona-se, bairro aps bairro, devido ao deslocamento de todos os seus habitantes num s horrio, e esse um dos grandes desperdcios da sociedade industrial: em nome da eficincia, uma parte da cidade fica completa mente deserta da manh at a noite, nos dias teis, e outra parte fica vazia de noite e nos feriados. Cada um de ns obrigado a desenvolver atividades diferentes em dois ou trs portos afastados da cidade. Alm da sincronizao do dia, h uma outra sincronizao que vem desse perodo histrico: a das fases da existncia. E; messe caso, o motivo menos claro. Por que nesse tipo de sociedade convm que as pessoas sigam uma vida estereotipada:de estudo na juventude, trabalho 41. forado e procriao na poca madura e coao ao descanso na terceira idade? Comecemos da formao: nas oficinas artesanais, a criana crescia ao mesmo tempo que aprendia, com o pai ou com a me, e, mesmo enquanto ainda era aprendiz, j produzia. Com a diviso do trabalho, esta mistura abolida. Tambm na sociedade industrial aquilo que se aprende como estagirio serve por muito tempo, de modo que a formao pode limitar-se a um tempo circunscrito. Na sociedade ps-industrial, este esquema entra de novo em colapso, pois, como as mudanas so contnuas, requerem uma formao tambm ininterrupta: seja na escola ou na universidade, seja no trabalho. Por exemplo, atualmente na escola de executivos da Telecom, a empresa estatal italiana de telefonia, os engenheiros fazem cursos de atualizao que dura nove meses. Mas, no final do curso, parte do que aprenderam j se tornou ultrapassada, porque no meio tempo um novo tipo de celular ou de fibra tica foi introduzido no mercado. Na sociedade industrial pelo contrrio, o saber acumulado na juventude, durante a formao tcnica ou universitria, bastava para toda a parte da vida dedicada ao trabalho? Sim, era calculado de modo que bastasse at a aposentadoria e at a morte. A sociedade Taylorista estabelesce , tambm que a uma certa idade, entre os cinqenta e cinco anos, as pessoas se tornam inteis e so ento constrangidas as cio forado. Por que? Na verdade, antes as pessoas eram aproveitadas at o dia em que morriam. A vida mdia at duas geraes atrs era de trezentas mil horas, e o inicio da aposentadoria quase sempre coincidia com o fim da vida. As companhias de seguro, at pouco tempo, estavam financeiramente equilibradas porque as pessoas morriam quando atingiam a idade para usufruir da aplice. Os nossos bisavs trabalhavam durante quase a metade de sua vida. Na segunda metade do sculo XIX-, a vida mdia dos homens era de trinta e quatro anos, e a das mulheres, de trinta e cinco: menos da metade da atual expectativa de vida na Itlia. Mas tem mais: segundo as hipteses dos paleontlogos mais respeitados, o homem de Neandertal vivia em mdia trinta e nove anos. 42. Portanto, a expectativa de vida entre ele e nossos bisavs aumentou fomente cinco ou seis anos, segundo o sexo, ao longo de oitocentas geraes. Agora, em menos de duas geraes, aumentou quarenta anos, e cada um de ns trabalha s durante um dcimo da prprio existncia. A sincronizao da cidade faz com que o horrio de abertura dos escritrios pblicos, bancos e fbricas seja o mesmo. Somente as donas- de-casa ou os aposentados podem pagar as contas ou requerer documentos em horrios impraticveis para o operrio ou empregado. A diviso sexual do trabalho tornou-se exasperada com a produo industrial. Alm disso, com a sincronizao das funes, foram criados mtodos absurdos para o uso do tempo. Alguns trabalham demais, outras no trabalham; alguns oferecem seus servios n