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Patágios Fúnebres: Uma leitura vampírica de Otávio e Branca 1 ________________________ Cid Vale Ferreira Nos países marcados pela escassez de leitores, o ofício poético desafia a peneira do tempo sob o iminente risco do esquecimento. A desatenção da crítica pode cavar a cova de quaisquer poetas, mas seu desabono encobre-os sob conceitos repulsivos de difícil remoção. No Brasil, qualquer estante de biblioteca pode confirmar que, à margem de cada autor consagrado, espreitam centenas de talentos desacreditados, relegados pelos mais diversos às vezes torpes motivos. O caso do santista João Cardoso de Menezes e Souza (1827-1915) é exemplar: apesar de A Harpa Gemedora (1849), seu primeiro livro, ser um dos sustentáculos de nossa segunda geração romântica, o conjunto de sua obra inspira reações detratoras em boa parte dos críticos. As entrelinhas de tais ataques, no entanto, revelam contaminações advindas de sua longa carreira política, culminada pelo decreto que o designou Barão de Paranapiacaba em 1883. Seria inútil imaginar qual teria sido sua recepção caso um pseudônimo fosse adotado ou, digamos, se alguma moléstia o tivesse ceifado prematuramente, mas o fato é que as incursões poéticas do “velho Barão” sobrepuseram-se às composições do jovem “João Cardoso”, agregando pitadas de hipocrisia e preconceito à apreciação de seu legado poemático. Esplim na garoa “O grande objetivo da vida é a sensação. Sentir que existimos, mesmo no sofrimento.- Byron. A influência dos maçons sobre a oligarquia brasileira, fundamental ao nosso processo de emancipação política, manteve-se atuante nas décadas que sucederam a Independência com focos nos “núcleos de bacharelismo, como São Paulo e Recife, onde se formava a elite dirigente do país” 2 . Nesse período, divulgou-se como nunca a poesia de Byron, cuja reminiscência avassalou uma multidão de estudantes com seu diadema de devassidão e perversidade. A esse respeito, relatou Machado de Assis: Tudo concorria nele para essa influência dominadora: a originalidade, a sua doença moral, o prodigioso de seu gênio, o romanesco de sua vida, as noites de Itália, as aventuras de Inglaterra, os 1 Versão revista do ensaio publicado originalmente em: FERREIRA, C. V. (Org.). Voivode: Estudos sobre os vampiros. Jundiaí: Pandemonium, 2003. 2 BROCA, B. Álvares de Azevedo e o culto byroniano. In: Românticos, Pré-Românticos, Ultra- Românticos: Vida Literária e Romantismo Brasileiro. Brasília: Polis, 1979. p. 212.

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Patágios Fúnebres:

Uma leitura vampírica de Otávio e Branca1

________________________ Cid Vale Ferreira

Nos países marcados pela escassez de leitores, o ofício poético desafia a peneira do

tempo sob o iminente risco do esquecimento. A desatenção da crítica pode cavar a cova de

quaisquer poetas, mas seu desabono encobre-os sob conceitos repulsivos de difícil

remoção. No Brasil, qualquer estante de biblioteca pode confirmar que, à margem de cada

autor consagrado, espreitam centenas de talentos desacreditados, relegados pelos mais

diversos – às vezes torpes – motivos.

O caso do santista João Cardoso de Menezes e Souza (1827-1915) é exemplar: apesar

de A Harpa Gemedora (1849), seu primeiro livro, ser um dos sustentáculos de nossa

segunda geração romântica, o conjunto de sua obra inspira reações detratoras em boa parte

dos críticos. As entrelinhas de tais ataques, no entanto, revelam contaminações advindas de

sua longa carreira política, culminada pelo decreto que o designou Barão de Paranapiacaba

em 1883.

Seria inútil imaginar qual teria sido sua recepção caso um pseudônimo fosse adotado

ou, digamos, se alguma moléstia o tivesse ceifado prematuramente, mas o fato é que as

incursões poéticas do “velho Barão” sobrepuseram-se às composições do jovem “João

Cardoso”, agregando pitadas de hipocrisia e preconceito à apreciação de seu legado

poemático.

Esplim na garoa

“O grande objetivo da vida é a sensação. Sentir que existimos, mesmo no sofrimento.”

- Byron.

A influência dos maçons sobre a oligarquia brasileira, fundamental ao nosso processo

de emancipação política, manteve-se atuante nas décadas que sucederam a Independência

com focos nos “núcleos de bacharelismo, como São Paulo e Recife, onde se formava a elite

dirigente do país”2. Nesse período, divulgou-se como nunca a poesia de Byron, cuja

reminiscência avassalou uma multidão de estudantes com seu diadema de devassidão e

perversidade. A esse respeito, relatou Machado de Assis:

Tudo concorria nele para essa influência dominadora: a

originalidade, a sua doença moral, o prodigioso de seu gênio, o

romanesco de sua vida, as noites de Itália, as aventuras de Inglaterra, os

1 Versão revista do ensaio publicado originalmente em: FERREIRA, C. V. (Org.). Voivode: Estudos sobre os

vampiros. Jundiaí: Pandemonium, 2003. 2 BROCA, B. Álvares de Azevedo e o culto byroniano. In: Românticos, Pré-Românticos, Ultra-

Românticos: Vida Literária e Romantismo Brasileiro. Brasília: Polis, 1979. p. 212.

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amores da Guiccioli, e até a morte na terra de Homero e de Tribulo. Era,

por assim dizer, o último poeta.3

Em 1844, o maçom João Cardoso ingressava na Academia de Ciências Jurídicas e

Sociais de São Paulo, epicentro do “mal byrônico”, que reunia poetas como Álvares de

Azevedo, Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães, Francisco Otaviano e muitos outros.

Oriundos de diferentes estados, esses jovens instalavam-se em repúblicas precárias e, não

raro, fraquejavam ante a distância de seus lares. Na fase de adaptação, eram comuns as

queixas de esplim, tédio generalizado e melancólico agravado pelas noites nas quais a garoa

os enfurnava, visto que a cidade não oferecia serviços de saúde pública e o risco de adoecer

não podia ser desprezado.

Entretanto, longe do escrutínio familiar, os acadêmicos encontraram uma solução

escapista no cultivo de extravagâncias que tinham o desregramento e a quebra da rotina

como objetivo. Em voga, a lendária rebeldia de Byron era arremedada em noites notórias.

Servia-se conhaque em crânios retirados das valas comuns reservadas aos escravos e

capelas necropolitanas acolhiam orgias com prostitutas que, visando esconder os estigmas

da lepra, “só se vendiam às escuras”4.

Porém, nem só com madrugadas escandalosas se exorcizava o esplim. A produção de

poesia pantagruélica (ou bestialógica) – “que consistia em dizer disparates, sabendo-se que

o eram”5 – ganhou força por meio dos improvisos de Bernardo Guimarães, João Cardoso e

José Bonifácio. Primando pela desconexão, essa lavra satírica fez do absurdo uma fonte de

humor que dissolvia ansiedades e tensões, mas o alívio proporcionado por essas pitadas de

loucura provou-se efêmero: o “gosto do nada” continuava a amargar seus cotidianos afeitos

à intensidade byroniana…

Ramalhete de mágoas

“Mas ai! – não palmilhei o estádio inteiro Do berço à sepultura, Inda tenho a beber as negras fezes

Do cálix da amargura.”

- João Cardoso de Menezes e Souza, Quem me dera!…

Embora idolatrasse Byron, João Cardoso repudiava os entusiastas que, tomando-o por

um arquétipo de delinquência, alarmou a Justiça paulistana ao empreender crimes piores

“do que a ficção da maior parte das novelas de ‘terror gótico’”6. O desafio não era, segundo

ele, perambular por cemitérios a vilipendiar cadáveres ou gabar-se de ter participado de

delitos; mas esmerar-se em compreender sua poesia, sua postura ante as agruras de seu

percurso e, por fim, as ações que o mitificaram como um mártir libertário7.

A devoção do santista aos versos “sombrios e tenebrosos” do Lorde inglês ofereceu-

lhe elementos que comporiam os esboços da trindade herética que ele esboça em seu

3 ASSIS, M. In: JUNIOR, R.M. Poesia e Vida de Álvares de Azevedo. São Paulo: Edameris, 1962. p. 46. 4 ALMEIDA, P. A Escola Byroniana no Brasil. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1962. p. 178. 5 SOUZA, J. C. M. A poesia pantagruélica. In: Poesias Escolhidas. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura,

1965. p. 164. 6 RAMOS, P. E. S., org. Introdução. In: Poesia Romântica: Antologia. São Paulo: Melhoramentos, 1965. p.

21. 7 George Gordon Byron, 6 Lorde Byron, nasceu em 1788 e tornou-se um dos heróis da Grécia moderna após morrer em 1824, durante campanha bélica por sua libertação.

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prefácio. Byron seria um “gênio da irrisão sentado sobre as ruínas do universo” que,

encarnado como poeta, viveu como “hóstia votada ao sacrifício”. Por sua vez, cada poema

de Lamartine seria “uma gota de maná celeste derramado sobre as úlceras sangrentas do

coração”. Pai, Filho e Espírito Santo? Em sua liturgia romântica, Gonçalves de Magalhães

era visto como uma espécie de apóstolo – o “chefe de nossa escola moderna” – e,

finalmente, aos poetas cabia a missão de “orvalhar a terra com as lágrimas da

desesperação”.8

Em 1847, esse encargo autoimposto o levou a reunir algumas de suas primeiras

produções poéticas na coletânea A Harpa Gemedora, publicada após permanecer dois anos

no prelo. Apresentada humildemente numa dedicatória àqueles cuja “existência é uma

expiação e uma cadeia de dores”, a obra é permeada por um timbre tétrico que repercutiria

na dicção dos principais poetas de seu tempo. O Gemido de Melancolia, por exemplo, é

uma pungente constatação de que – entre todas as suas esperanças – restou apenas a certeza

da morte; enquanto Quem me dera!… evoca imagens do Velho Testamento ao antever

amarguras futuras de proporções abissais.

Também incrustados no livro estão poemas indianistas (que antecedem em vários

anos a produção de Gonçalves Dias) e composições de inspiração lutuosa que sacralizam o

cadáver materno, motivo recorrente na época. Todavia, apesar de sua contribuição no

estabelecimento do indianismo, do byronismo e de sua presença entre os fundadores da

literatura bestialógica, o poeta é ignorado pela maior parte dos historiadores do nosso

romantismo. Não é de se estranhar, portanto, que outros de seus méritos permaneçam

velados, como a autoria da provável primeira obra vampírica brasileira.

Amantes desgraçados

“Era a hora em que o negro anjo da morte, Seguido dum cortejo de finados, Ergue coa espada as lápidas dos mortos,

E, sobre um sólio de escarnados ossos, Planta o seu estandarte funerário.”

- João Cardoso de Menezes e Souza, Otávio e Branca.

Em sua “primeira mocidade”, João Cardoso ouviu estarrecido o jurisconsulto Antônio

Joaquim Ribas narrar-lhe Leonor, balada terrífica de Gottfried August Bürger9que teve

longa sequela em autores como Matthew Lewis, responsável por imbuí-la no imaginário

gótico inglês. Disposto a se embrenhar pelo estilo, o santista redige Otávio e Branca ou A

Maldição Materna10

, tragédia familiar que ecoa o moralismo macabro de Bürger numa

ambientação em que abundam, da estrutura às menores filigranas, elementos típicos das

narrativas góticas medievalistas.

Comumente, os acadêmicos lusófonos não costumam reconhecer a autonomia desta

escola, rebaixando-a a detalhe pitoresco do pré-romantismo ou a ponto de partida da

literatura policial. Rara exceção, a portuguesa Maria Leonor Machado de Sousa oferece-nos

uma acurada investigação do romance gótico, cunhando uma definição sucinta e didática

8 SOUZA, J. C. M. Lede. In: A Harpa Gemedora. São Paulo: Silva Sobral, 1849. p. 7-9. 9 Mesmo sem conhecer a língua alemã, João Cardoso publicaria a imitação Leonor ou o Castigo da Blasfêmia,

baseado apenas nas reminiscências do enredo da balada. 10 SOUZA, J. C. M. Octavio e Branca ou A Maldicção Materna. In: A Harpa Gemedora. São Paulo: Silva

Sobral, 1849. p. 99-117.

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que o descreve como “um romance sentimental, em cuja intriga de amor intervêm o

sobrenatural e o misterioso, geralmente ao serviço de potências maléficas, mas que não

conseguem destruir os heróis, assistidos pela justiça imanente que protege a virtude”11

. Eis,

sem delongas, os alicerces de Otávio e Branca.

Na pena de João Cardoso, o anoitecer transforma o firmamento numa espécie de

tabuleiro, onde, a cada lance, anjos lúgubres convertem ressentimentos em maldições,

nuvens em tempestades e defuntos em emissários da Morte…

Logo no início, a narrativa em versos estabelece a ambientação lúgubre que atribui a

agitação de cães à possível presença de um “maligno Vampiro redivivo” e faz surgir, dentre

as lápides dum cemitério inundado pelos badalos da meia-noite, um vulto (Otávio) que

engrena sua marcha rumo a um castelo próximo, onde uma bela mulher (Branca) o recebe

secretamente.

Não à toa, o tom é de mau agouro. Preconceitos tradicionais separaram o casal que,

desde a infância, ansiava o matrimônio. Plebeu, Otávio foi recusado pelo pai de Branca, o

Conde Holbachi, que prometera sua virginal herdeira ao rico Oranzo. Contudo, na véspera

da boda, numa entrevista proibida, os jovens decidem fugir mar adentro. A fidalga contraria

o desígnio paterno, pretere o noivo, abandona a mãe moribunda e, na mesma madrugada,

consuma seu primeiro beijo, afugentando definitivamente o “anjo da inocência” que a

protegia desde o berço.

Desenlaces nefastos se vislumbram. Na aurora seguinte, a expectativa pelo

matrimônio arranjado atrai cidadãos ao Castelo de Holbachi, onde o noivo abandonado

anseia sangrar o ousado raptor daquela que “enobreceria seu ouro”. Não menos atônita, a

mãe acamada de Branca finalmente se rende à foice, despendendo seu fôlego desgostoso

para acusar sua filha de envenenar seu “leito de dor”. As canções que embalaram o dia se

adensam em lamentos lutuosos à noite, atraindo anjos coléricos que, vaporizando as nuvens

com os estertores da Condessa, iniciam uma tempestade torrencial que encobre a

embarcação do casal fugitivo. Num estrondo, o colo da bela virgem é alvejado por um raio

que a fulmina implacavelmente.

A conspiração começara. Dentre os anjos de rapina, precipita-se a Morte – “rainha

dos horrores”12

– que, a convulsionar a água com suas asas de negror, estilhaça o veleiro

num rochedo próximo à praia de onde partiram. Otávio jaz, desmaiado como oferenda ao

ímpio punhal de Oranzo, que não o poupa. Segue-se um segundo cortejo fúnebre, que

desova os amantes num mesmo sepulcro e, após a dissipação do velório, apenas o Conde

Holbachi – cuja intolerância desencadeara tudo – permanece ali prostrado. Adormecido

sobre a campa, o aristocrata parece não ter reparado na presença dos dois morcegos que

voavam ao seu redor pouco antes de ele também ser encontrado sem vida. Fica uma dúvida:

a presença dessas criaturas guardaria alguma relação com a morte do conde?13

Malditos em

11 SOUSA, M. L. M. O “Horror” na Literatura Portuguesa. Amadora: Instituto de Cultura Portuguesa,

1979. p. 10. 12 Nesta expressão, João Cardoso evoca uma célebre passagem d’O Paraíso Perdido, de Milton, que descreve

a ceifadora com sublime obscuridade. Na tradução de António José Lima Leitão: “O outro fantasma, em que

não é possível / Distinguir as feições, julgar dos membros, / Substância informe, escurecida sombra, / Tem o

aspecto da Noite, o horror do Inferno, / De Fúrias dez ostenta a feridade, / Pronto para o brandir um dardo

empunha, / E na altura maior, que inculca fronte, / De c’roa real cingido se afigura”. 13

Essa possível interpretação do obscuro encerramento do romance – faz-se necessário frisar – parte da

descrição quiróptera dos vampiros contida na primeira nota que o sucede. Assim como a ambientação

romântica de Otávio e Branca admite interferências angélicas, assim também ocorreria com as sanguessugas

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vida, predadores após a morte, os jovens podem ter perpetrado sua vingança sustentados

por insólitas “asas de vampiro”.

Em nossa varredura da produção nacional precedente, não encontramos quaisquer

alusões ao vampirismo, já que o rondó A Noite, publicado em 1799 por Silva Alvarenga,

inaugurou o uso do vocábulo em versos que tratam estritamente do morcego hematófago.

João Cardoso, entretanto, conflui ambas as acepções do termo através de um espécime

distinto – mescla do quiróptero tropical e dos mortos-vivos europeus – cerca de cinco

décadas antes dos voos noturnos de Drácula.

Larva da imaginação popular

“O teu corpo, do túmulo surgindo, Há de à terra voltar e, transformado

Num vampiro de força poderosa, Fará morada (pavoroso espectro!) Nessas paragens, onde houveste berço, Indo a todos os teus sugar as veias.”

- Byron, O Giaur.

Embora a dicção exacerbada constitua a tônica gótica setecentista, o estilo assimilou

cada uma das rupturas estéticas decorridas após seu advento. Não obstante, Otávio e

Branca mantém a candura da escola inicial, que adornava os horrores das superstições

cristãs com eufemismos e demonstrações de virtude. Seria isso um demérito? Afinal,

parodiado à exaustão, tal modelo se desgastara frente à emulação de Beckford, Radcliffe,

Sade, Lewis, Scott, Maturin, Byron14

e Poe, entre outros. Atento a tal anacronismo, o poeta

prevê uma gélida recepção aos seus “débeis passos” e chega, na segunda nota ao fim do

romance em verso15

, a justificar a puerilidade de algumas passagens ao revelar que

“contava pouco mais de 14 anos” ao compor esta sinistra “fantasia de criança”.

Além de nos conscientizar do raro privilégio de sondar desvarios adolescentes dos

primórdios do nosso romantismo, as notas de João Cardoso expõem aos leigos da época seu

conceito particular sobre as sanguessugas. Referências literárias – como Ruthwen, vampiro

aristocrático de O Vampiro (1821), de John William Polidori – junto à descrição de Eugène

Sue dos morcegos gigantes de Java, assinalam as fontes que, entrelaçadas, encerram a

chave da interpretação vampírica da obra. Das subsequentes considerações acerca da lenda

do “defunto ambulante”, uma se sobressai:

Todos aqueles a quem ele exauriu o suco vital, se escapam à morte,

tornam-se por sua vez Vampiros, se não comem um pouco da terra da

cova de que se eles levantam, molhando-se no próprio sangue que o

Vampiro extraiu etc.

cuja presença é sugerida já na primeira estrofe: “Só ousa violar mudez tão erma / Do pássaro da noite o guincho agudo, / E uivos de cães, quiçá correndo em cata / De maligno Vampiro redivivo”. 14 Entre os poemas de Byron que o futuro Barão verteria ao português, O Giaur (1813) destaca-se como único

aceno do Lorde aos sugadores. Por conseguinte, Péricles Eugênio da Silva Ramos, crítico paulista, especula

ter sido a leitura das notas aos versos vampíricos daquele o que primeiro atraiu o interesse do santista à lenda. 15 Nesse ponto, cabe uma observação. Já que boa parte dos poemas de inspiração baladesca não seguiam

métricas adequadas ao canto, seus frontispícios distinguiam-nos através de designações como “xácara”,

“soláo”, “rimance” e “romance”. Otávio e Branca incorre neste último caso, a fim de indicar sua fonte

popular em detrimento da iconografia clássica.

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Nesse excerto, evidencia-se a intimidade do autor com a repercussão do Visum et

repertum (1732), auto da infantaria austríaca responsável por primeiro disseminar o termo

Vampir. Comparativamente, reproduzimos da perícia os trechos recontados no respeitado

tratado de Dom Augustin Calmet, de 1746:

Foi há aproximadamente cinco anos que um heiduque, habitante de

Medreira, chamado Arnold Paul, ficou esmagado debaixo de um carro de

feno. Trinta dias após a sua morte, quatro pessoas morreram subitamente,

e da mesma maneira que morrem, segundo a tradição daquele país, os que

são molestados pelos vampiros. As pessoas lembraram-se então que o tal

Arnold tinha muitas vezes contado que, para os lados de Cassova e nas

fronteiras da Sérvia turca, tinha sido atormentado por um Vampiro, e elas

acreditavam que aqueles que tinham sido Vampiros passivos em vida

tornavam-se ativos depois da morte, quer dizer, que todos aqueles que

tinham sido sugados iriam por sua vez sugar. Mas ele tinha encontrado o

modo de se curar comendo terra do sepulcro do Vampiro e esfregando-se

com o seu sangue. Precaução que não o impediu, contudo, de o vir a ser

depois de morto, pois foi desenterrado quarenta dias depois do funeral e o

cadáver apresentava todas as marcas de um arquivampiro. O seu corpo

estava vermelho, os cabelos, as unhas e a barba tinham sido renovadas, e

as veias estavam cheias de sangue fluído, o qual corria de todas as partes

do corpo para o lençol em que estava envolto.16

Outro dado relevante entre os apontamentos do poeta trata do desenvolvimento, no

âmago do enredo, da crença “de que a justa maldição dos pais cai como o anátema de Deus

sobre a cabeça do filho culpado”. Novamente, é o gótico literário do século XVIII que nos

fornece a mais imediata analogia: O Castelo de Otranto, publicado por Horace Walpole em

1764, fundamenta-se no pressuposto bíblico de que “os pecados dos pais se fazem presentes

em seus filhos até a terceira ou quarta geração”17

.

No século XIX, o mergulho desbravador às intempéries emocionais obsoletou muitos

mecanismos terríficos anteriores, como o tema baladesco da “sobrevivência do amor além

da morte”, que se “manifesta pela vingança contra quem impediu a sua realização em

vida”18

. Alheio à reforma, João Cardoso reafirma o caráter autorreferencial da ficção

gótica, debruçando-se sobre cada tópos como um enxadrista que, respeitando as limitações

de suas peças, procura rearranjos insuspeitos no conservador manejo de arquétipos e, numa

época em que o papel de acusar e reparar injustiças incidia tradicionalmente sobre

aparições intangíveis, as sombras vampíricas de Otávio e Branca possivelmente insurgem-

se palpáveis das abafadas sepulturas de seus amos.

Pois bem, após A Harpa Gemedora, nossa poesia romântica engendrou apenas um

punhado de poemas que tocaram o vampirismo casual e superficialmente. No verso “Vem

16 CALMET, A. In: AMBELAIN, R. O Vampirismo. Trad. Ana Silva e Brito. Lisboa: Bertrand, 1978. p.

136-137. 17 WALPOLE, H. Prefácio para a primeira edição. In: O Castelo de Otranto. Trad. Alberto Alexandre

Martins. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. p. 15. 18 SOUSA, M. L. M. Op. cit. p. 27.

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às horas dos pálidos vampiros”, por exemplo, o carioca Teixeira de Melo nada mais faz do

que sugerir uma noturnidade feérica. Relativamente contemporâneos, Álvares de Azevedo,

Casimiro de Abreu, Zoroastro Pamplona e Castro Alves não reservam mais que piscadelas

às sanguessugas… Na prosa, Couto de Magalhães é uma exceção, com seus demônios

vampíricos escondidos sob os hábitos de monges.

Diante dessa escassez de referências, só nos restam os bibliótafos, onde podemos

sondar os acervos de livros que já não têm registro em nossa memória comum. A despeito

dessas dificuldades, eis – na grafia original, incluindo deslizes tipográficos – uma pequena

agulha vampírica do nosso vasto palheiro literário.

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João Cardoso de Menezes e Souza (1827-1915)

Octavio e Branca

Ou

A Maldicção Materna

Romance

Minuit, c’est un roi sans couronne,

Un roi, qui la peur environne,

Un spectre hideux et fatal

Descendu de son pedestal.

Minuit, c’est le prince de l’ombre,

Qui jette au vent des glas sans nombre

Avec ses lévres de metal.

Turquety.

1849

I

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Meia noite sôou! – Nos ares tremulos

Funebre echôa o som do campanario

De horrôr gelando o coração dos vivos!

Meia noite sôou! – Por toda a parte

Silencio sepulcral desdobra as azas!

Nem estrondo de andar, que trilhe as ruas

Nem brisa, que murmure brandamente!

Dirieis desmaiada a natureza

Ao pavoroso badalar do bronze.

Só ouza violar mudez tão erma

Do passaro da noite o guincho agudo,

E uivos de cães, quiçá correndo em cata

De maligno Vampiro redivivo.

Qual lampada em docel de azul saphira,

Muda e serena a lua o céo perlustra,

E as nuvens, como bandos d’alvas garças,

De quando em quando a face lhe sombreião.

Palleja ao longe a torre esbranquiçada,

Como enorme fantasma erguendo a louza

Involto no sudario do sepulchro.

Era a hora em que o negro anjo da morte,

Seguido d’um cortejo de finados,

Ergue co’a espada as lapidas dos mortos,

E, sobre um solio de escarnados ossos,

Planta o seu estandarte funerario.

II

Quem era, d’onde vinha?

Castilho.

Mas quem se atreve a assoberbar hardído

Dos mortos o rancôr á taes deshoras?

Involto em longo manto ahi jaz um vulto,

Na fronteira pilastra repousando,

Tenebroso – qual dia arripiado,

Em que o gêlo nos rouba o fogo ás vêias,

E o sol, coberto c’um lençol de nevoas,

Perde o brilho e calôr co’a luz velada.

– Será crime ou amor? – Ninguem se atreve

Nem póde desvelar nas fibras intimas

Que arcanos guarda o coração humano.

Placido entanto o lago espêlha as torres

Do castello em que habita o conde Holbachi,

Que, por voto do povo, estende o mando

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Sobre a antiga republica ditoza,

Que ao pedreiro sagrado as bases deve:

– Essa que livre sempre, affronta ousada

Do tempo tragadôr a foice ahenea,

Do tempo, que ao roçal-a, encolhe as azas,

E com respeito beija a sacra cupola,

Que lhe corôa a cathedral vetusta.

E em quanto um sobre outro imperios róllão,

Ella serena os vê, firme os diviza,

Qual no oceano adamantino escòlho.

III

Eis que uma nuvem densa, adelgaçando-se,

Descobre a face pallida da lua,

E o vulto move os passos vagarozo

Parecendo arrastar no andar a vida.

Altas muralhas cingem o castello,

Ferreo portão por ponte levadiça

Bem no centro negreja: – parecia

Immovel sentinella, que velava

Por ordem do senhor – forrão-lhe o musgo

E as curvas trepadeiras parasitas.

Para ahi elle os passos endereça,

E, já proximo á meta, de seu peito

Abafado suspiro se evapóra.

Rangem então da porta os ferreos quicios,

E uma figura candida se antolha

– Como visão etherea, ou como virgem

Evocada da campa aos ais do amante;

Subito tudo some-se dos olhos.

O pesado portão rangeo de novo

Nos jardins do castello introduzindo-os.

Que mysterio! – Será comboy de espectros

Ou do baque do estado a trama horrivel?

Silencio! – eis o desfecho! – Attenta ás vozes

Que, involtas em suspiros amorózos,

Suaves – como o cantico dos anjos, –

– Como o bafejo de sonhar de virgem, –

Vem ameigar o ouvido sequioso.

“Amada Branca, do meu ser metade,

“Delicias de minha alma, anjo celeste,

“Que, sobre esta existencia amargurada,

“Vertes saudavel dictamo de vida,

“Cede do amante aos votos abrazados,

“Vê que em torno de nós as lindas flores

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“O halito de amor no arôma exhalão,

“E tu, – formoza perola cahida

“Da corôa do eterno sobre a terra, –

“Queres quebrar do amor as leis sagradas?

“Oh! Não! – fujamos já d’estes lugares,

“Vem! – corramos a praia – em náo veleira

“Lá nos aguarda o nauta – o mar trilhemos,

“E passando á outro lar, em paz iremos

“Gozar de amor delicias ineffaveis

“Pelo nó do hyminêo santificadas.

“E, entre prazeres deslizando a vida,

“Involverá segredo inviolavel

“A estancia em que habitar Octavio e Branca.

“Zomba do pae cruel, que quer pêar-te

“Vôos do coração, impulsos d’alma;

“Elle já recusou cumprir meus votos

“Unindo-nos á face dos altares.

“Vem, não resistas mais; em vindo a auróra

“Hão de estes sitios resôar c’os cantos,

“Que de Oranzo a consórte hão de aclamar-te:

“Preferes dar-lhe a mão? – Ah! que esta idêa

“Basta para gelar-me os seios d’alma,

“E erriçar-me os cabellos sobre a fronte;

“Mas, antes que eu te veja em braços d’elle,

“Hei-de co’a espada o coração rasgar-lhe,

“Ou terás de passar por meu cadaver

“Para marchar ao thalamo infamado.”

IV

“Caro Octavio, a paixão te torna injusto,

“A ingratidão te cega e te allucina;

“Só me prende dever: um pai que adóro,

“Cuja velhice ameigo e suaviso,

“De um lado me apresenta as cãas manchadas,

“E o coração de angustias retalhado.

“Negro quadro de tintas carregadas

“Me pinta moribunda a mãe querida

“Prostrada nas angustias da agonia,

“E a quem vou despenhar na sepultura.

“Pareço divisar brandões accesos

“Em torno de um esquife mortuario…

“Mas embora, pr’a os céos alçando o vôo,

“Meu anjo protector de mim se aparte,

“Vou affrontar a maldição paterna,

“Pompas de nome, e opinião do mundo.

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“Vamos, que – á tua discrição me entrego,

“Vamos, que quero respirar teu halito,

“Que a briza, que constrange á amor os laços,

“Em vez de me alentar, suffóca a vida.”

V

Quem poderá pintar com vivas côres

Os transportes de Octavio? – A virgem bella

Meiga inclinára a fronte de alabastro

Em seu rosto de fogo: em doce beijo

Unirão-se os seus labios abrazados.

Era a primeira fruição de amôres

N’esses labios virgineos, que tremião

Como rosas do zephiro agitadas;

Era a emoção primeira de delicias

N’esse peito illibado, arfando ancioso

Qual si quizesse o coração rompel-o.

Alma anhellante, transbordando em viço

Tinha a puresa da scentelha eterna,

Que não degenerou do mundo ao sôpro.

Esse instante solemne de mysterios,

Em que desbrocha o coração no peito,

E falla d’alma a mystica harmonia

No primeiro sentir do amor, que acorda,

Resume os sonhos da existencia inteira,

Compensa eternidade de martyrios.

Mas o gôso ineffavel desparece,

Nunca mais o sentimos sobre a terra,

Só nos deixa saudades e lembranças:

É o extremo roçar das azas brancas

Do anjo da innocencia ao despedir-se.

Somente quando á tarde o sol desmaia

N’essa hora do crepusculo saudôso,

Parece ás vezes despertar-se um echo

Longinquo sim, dos gozos d’esse instante;

Sentimos um perfume do passado,

Que nos recorda o Céo, e nos consóla,

Chamando aos olhos lagrimas suaves

E Octavio? Esse momento o endeosára,

Seu fervido sonhar realizava,

Forão seus labios calices mimozos,

Em que libara o nectar das delicias,

Filtrárão-lhe no peito suspirozo

Um balsamo suave, como as aguas

Para a flôr do areal, que o sunn bafeja.

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Quem póde descrever momentos breves

Em que languidos olhos de donzella,

Em que seu peito á palpitar de amôres,

Unido ao nosso coração, que arqueja

Aballão nossa essencia e a divinisão?

Cahir da tarde, lampejar da auróra,

Sombras da noite, pallejar da lua,

Côres de iris, murmurar da fonte,

Vagos sons d’harpa aeria em dulias notas

– Anjos e luz, perfumes e harmonias –,

Nada equivale ao delirar do amante

Ao estrêar no livro dos amôres

Das fruições a pagina dourada.

Elles, que desde a infancia, as mãos unidas,

Entre abraços e beijos innocentes,

Nos jardins do castello passeando,

Aprendêrão á amar co’a natureza!…

VI

Nunca a mente mais fervida sonhára

Um anjo assim…

Mendes Leal Junior.

Virgem, que apenas desflorava a vida,

Branca era bella como a luz da aurora,

Olhos meigos – espelho de su’alma –

Arroubavão n’um extasi divino,

Negras tranças, que o cóllo lhe beijavão

Tornavão cega a alvura de seu seio,

Onde a cecem e a rosa se mesclavão.

Mas n’esse cofre, – sanctuario augusto, –

– Só seus rozeos dedinhos penetravão;

E quanto almejo lhe adejava em torno!

Seraphim de beleza, oh! Quem pudéra

Nos palpites, que o peito te dilatão

Desvelar teus arcanos amorosos!

Si na boca um sorriso lhe pairava

Era um botão de rosa, que se abria

Descobrindo o matiz de argenteos pontos;

Sua cintura fragil se envergava

Como a hastea da flôr, que pende o calix;

Deslisavão seus passos sobre a relva,

Como si aéria silphide a roçasse;

E si a visseis trajando a côr da neve

Como a virgem de Dante, então julgáras

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Ver em magos jardins a linda Armida,

Entre os brancos vapôres da alvorada,

Era o mais bello seraphim mandado

A embellecer a solidão do mundo;

Nunca tão bella, tão aeria virgem

Os sonhos de um poeta retratárão,

– E como a estrella, que fulgente assoma

No firmamento envolto em densas trevas,

Quando a procella horrisona ribomba,

E parece aballar do mundo os eixos –

Era um iris de paz, que apparecia

Onde alguma desgraça negrejava;

Embrandecia a sanha dos guerreiros,

Que lectavão em fervido torneio,

E dava vida ou morte em mago riso,

No electrico volver dos olhos bellos.

VII

Vagas côres no Ceo se desenhavão,

E a negra côr dos montes nevoados

N’um carregado azul se convertia;

Desmaiavão as pallidas estrellas,

E a lua descorada se espêlhava,

Qual moribunda lampada, no lago,

Nas furnas tenebrosas se açoitavão

Aves da noite, que da luz fugirão,

Enredadas nas folhas verdejantes

Alvos flócos das arvores pendião.

E os primeiros preludios da alvorada

Inda á receio os passaros trinavão.

E ao longe um remo, que açoitava as aguas

Alternado por languido silencio,

E átravez d’esse rapido intervallo

Soava ás vezes o écho de um suspiro,

Que attravessando o ar, tocava a terra

Como nota escapada ao côro angelico.

VIII

Já scintilava o sol n’um céo sem nuvens,

Qual triumphante athleta sobre a arena,

E, sorrindo quebrava os brandos raios

Nos altos corucheos de São Marinho,

Onde ledo agitava as mansas brizas

O sino festival chamando ao templo.

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Do bronze atrôador sulphureas nuvens

Na pura athmosfera se enrolavão,

E ao longe resoavão sons cadentes

De musica suave involta em vivas.

De alegre gala os cidadãos trajados,

No semblante a alegria demonstravão;

E o castello do conde parecia

O foco do prazer, mansão de risos…

Que será? – É o dia do consorcio

Da filha do Senhôr – de Branca e Oranzo

IX

Como por um condão mysterioso

O estrondo dos prazeres emmudece,

E surdo murmurar, e crebros passos

Apresurados subitos resoão

Pelos salões do gothico edificio.

Pela espaçosa casa errava um homem

Terrivel, como o tigre esfomeado

Contra o raptor dos filhos, que aleitava,

Espumando de raiva, em braza os olhos,

No livido semblante esparsa a côma,

Rangendo os dentes, respirando á custo,

Surdos sons murmurando em voz sinistra;

Era Oranzo feroz, que ardendo em zêlos,

Blasphemas maldições lançava aos ares,

Jurando estragular de Octavio o peito,

Trincar-lhe o coração, beber-lhe o sangue.

Elle – o plebeo audaz, mancebo ignoto

Lhe arrebatára a perola brilhante,

Heraldico brazão, timbre de gloria

Com que queria ennobrecer seu ouro.

Seu sonho o mais fagueiro se esvaia;

Branca desparecera do castello,

Longe a levava o roubadôr infame.

X

Um cazo tão fatal sumerge em lucto

Os desolados domnos do castello.

O conde Holbachi, venerando velho,

Á quem a idade, as faces enrugando,

A fronte d’alvas cãas lhe engrinaldara;

Vagava pelas longas galerias,

Ferindo o ar c’os ais do desespêro,

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Suffocado co’as lagrimas da angustia.

“Filha, filha, bradava em voz queixoza

Quem hade sustentar-me a fronta exhausta,

Quem hade dirigir-me os debeis passos,

Quando eu fôr á cabana do mendigo

Levar-lhe o pão, e vozes de esperança?

Deslizavão meus dias derradeiros

Embalados por sonhos de futuro,

Que eu nutria por ti, – nos labios tinha

Um sorriso de orgulho ao contemplarte,

Candida flôr que os anjos orvalhavão

Exalando os arômas da innocencia.

Em ti minha esperança repousava,

Como um florão de gloria, que augmentasse

Brilho e explendor a raça dos Holbachis.

Mas tu lançastes a nodoa da deshonra

No brasão de teu pai, e envenenaste

Meus ultimos momentos de existencia.

Triste! apagou-se a luz, que me guiava

Sinistra escuridão me venda os olhos.

Leito da campa recebei meus ossos,

Só póde a morte embrandecer taes dores.”

Presa ao leito da dôr, a mai de Branca

Tinha exalado os ultimos suspiros,

Pois golpe tão cruel cortára o fio

D’esa vida á luctar nos paroxismos.

E os convivas, que ao baile erão chamados,

As sedas do festim trocando em crépe,

Formárão seu cortejo funerario.

Assim como esse castello, que entre rizos

Como encantada habitação de fadas,

Vira o sol levantar-se no oriente,

Quando a noite estendeu seu veu de sombras,

Echoava nas gothicas arcadas

Carpir de viuvez, psalmos de mortos.

XI

Eis subito do sol descóra o brilho,

E sinistra se estende e involve os ares

Negra nuvem, presagio de procella,

Apparêlha os corceis a tempestade,

Com elles varre a vastidão do espeço,

No frio sôpro derramando horrôres;

Já banquêão do ceo torrentes d’agua;

Rajadas de Aquilões cercêão troncos,

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E despem da floresta a verde côma,

Erriça a juba o mar, e ao ceo se altêa

Em altaneiros turbilhões de espuma

Depois tomba de chófre nos abysmos.

Em furias a rugir no leito immenso.

Com tremenda explosão ribomba o raio,

Á rouquejar nos echos das montanhas,

Como listão de fôgo os ceos cingindo;

Corre com rapidez milhões de legoas

Pela dextra do Eterno arremeçado,

Eis roça lindo alabastrino cóllo,

Mimo de amôr, habitação das graças,

E n’um momento em marmore converte

Essa obra prima do cinzel divimo,

Que um bafejo do ceo vivificava.

...................................................................

E fez-se ouvir um funebre suspiro

Como o extremo arquejar de um moribundo.

XII

Seccou-se a fonte, que adornavão graças,

Murchou na terra a flôr, c’os anjos móra,

Orna de Deos supremo a frente augusta,

Chamou-a um seu sorrizo aos ceos de gloria;

Ó miseros mortaes, seccae o pranto.

XIII

Branca – a formosa virgem fugitiva –

Victima foi da maldicção materna.

Cerrou-lhe a mão da mórte os longos cilios,

Nos labios de coral já desbotados

Tem estampado o sêllo do sepulchro.

Ella tão linda, no botão dos annos,

Passar da vida á escuridão da campa,

Quando apenas o calix dos prazeres

Por seus labios roçára, quando erguêra

Do véo mysterioso dos amôres

Apenas uma ponta, – e começava

A comprehender a etherea melodia,

Que escutava na aragem suspirósa,

Da noite na mudez nos véos da auróra,

No fulgor melancolico da lua,

No perfume das roixas violetas,

Nos sônhos em que os anjos a emballavão!..

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Que expiação cruel! – Mas antes ella

Do que ver saciado o amôr do amante,

Sentir já frouxo o aperto dos abraços,

E essa aridêz dos gozos embotados,

Que até recordações esterilihza,

E nos priva do encanto das saudades!

XIV

– Freio das vagas – magestosa assôma

Proxima á praia, alcantilada e queda

Rócha, que a mão, do tempo ennegrecêra;

Sobre ella o mar em furias se abalrôa,

E, gemendo, rebenta em branca espuma:

Alli, qual vidro fragil, se espedáça

Veleiro barco sossobrando ás ondas…

Misero Octavio, em vão co’as vagas luctas,

Reina a mórte – rainha dos horrôres –

Nos tremendos tufões, que o pego açoitão.

Ella te erruga o sobrecenho irado

E te acena co’as ancias d’agonia;

Sobre o negro rochêdo sobranceiro

Juncto ao corpo da amada te arremeça,

Já quase extincto e frio como ella.

Que importa que inda um sôpro de existencia

Te faça arfar o peito entumecido,

Si o demonio terrível da vingança

C’um sorrizo infernal te adeja em tôrno!!

XV

E n’esse instante, em que fallava aos homens

Nos echos dos trovões a vóz do Eterno,

Quando de horrôr o coração se gela,

Treme o punhal na dextra do assassino,

Quando surge na mente a eternidade,

Quando nos labios a oração cicia,

Quando os jôelhos tremulos se dobrão

Ante a Madona Santa do Oratorio,

Ante esse horror da natureza em lucta,

D’esse quadro de môrte pavorôso,

A idêa do homicidio negrejava

N’uma fonte abrazada, e enchentes d’odio

N’um coração zeloso transbordavão.

Immovel – como estatua solitaria

Esquecida entre combros de ruinas –

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Sobre a deserta praia estava um homem.

Quando a tormenta em furias redobrava

Riso feroz os labios lhe franzia,

E, si o trovão deixava instantes vagos,

Confusos sons á espaços murmurava.

Eis que ligeiro se avizinha á rocha,

Onde, quase exhalando o extremo arranco,

O desmaiado naufrago arquejava,

E, erguendo sobre elle o braço armado,

Punhal buido lhe enterrou no peito.

E ao longe se sumiu veloz qual sombra

Entre os trovões e raios, que estalavão.

Quem seria esse homem de mysterios?

Talvez fosse o demonio da vingança,

Que se involveo no manto da tormenta

Para ser instrumento do ciume.

XVI

Solemne, triste e grave o bronze entôa

A merencoria nenia dos finados,

Pregôando que a louza dos sepulcros

Sobre mais um cadaver vai feixar-se,

Que do archanjo da morte o sôpro gelido

Passou por mais um ente, em cujo peito

Ha pouco ainda o coração batia.

– Pavoroso signal, – pregão terrivel,

Que é como um echôar da eternidade,

Como uma voz, que o tumulo levanta

Para mostrar o nada dos humanos,

E a immensa magestade do Infinito!

Quem rasgaria o involucro de argila?

Quem faria o terrivel passamento?

Quem vai pousar a fronte enregelada

No duro travesseiro d’esse leito,

Em que o lençol é funebre mortalha,

E onde o côrpo repouza em cinzas frias!

Quem são esses, que á campa s’encaminhão

Deitados n’esses negros atahudes?

Vede – um formoso rosto de donzella,

– Lyrio que o vento derrubou na louza –

Resalta d’entre o crepe em que se involve.

Cinge-lhe a fronte alvissima grinalda

De rózas e cecens – symbolo uzado

Da innocencia, pureza e virgindade –

Ao seu lado um semblante de mancebo,

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No verdor da existencia emmurchecido;

E as lettras, que na campa se gravárão

Em dois anneis entrelaçados, dizem

– Octavio e Branca, amantes desgraçados. –

XVII

Deo a volta final e derradeira

A chave do atahude – cahe a lagem

Sobre a boca do tumulo – a existencia

Se esvaeceo, começa a eternidade,

Garret.

Já baqueou a lagem do sepulcro,

Apagárão-se as tóchas mortuarias,

E findarão-se os psalmos dos finados;

Apenas bruxolêa a luz mortiça

Da lampada sagrada sobre a campa,

Que encerra os novos hospedes da mórte.

E n’essa muda solidão do templo

Sôarão uns suspiros suffocados.

Erão d’um velho, que, prostrado em terra,

Por todos esquecido, alli ficára.

Apóz momentos nada mais se ouvia

Pelas longas abobadas antigas;

Só o sussurro d’aza dos morcegos

Voando em tôrno á lampada, quebrava

Essa mudez solemne e atterradôra.

Parecia que o velho adormecera

Reclinado na lagem funeraria.

Quando raiou a aurora no oriente,

E o sacristão abrio do temploas portas

Para resar-se a missa da alvorada,

Tropeçou sobre um corpo inanimado;

E então cantou-se o officio dos defuntos

Pela extincta familia dos Holbachis.

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Notas.

De maligno Vampiro redivivo.

Bem conhecida é essa creação phantastica dos modernos povos Gregos, celebrada na

lenda de Lord Ruthwen, que personifica essa larva da imaginação popular, essa entidade

mysteriosa e satanica denominada Vampiro. – Mr. Eugenio Sue no Judeo Errante falla do

Vampiro, e pinta-o como um morcêgo colossal, que espera o somno de sua victima para vir

rasgar-lhe as veias, e beber-lhe o sangue, em quanto a refresca com as azas, para mitigar-

lhe o fôgo do clima abrazadôr, que peza sobre ella, e lhe opprime o coração.

Mas o Vampiro do povo – a entidade sobrenatural é o defuncto ambulante, que quebra

a lousa da sepultura, e, animado d’um espírito infernal, vem peregrinar sobre a terra, para

alimentar sua ephemera existencia com o sangue dos vivos. Elle torna a resucitar aos raios

da lua, e derrama por toda a parte por onde passa a deshonra, a desgraça, a miseria, e o

crime; e todos aquelles á quem elle exhaurio o succo vital, si escapão á morte, tornão-se por

sua vez Vampiros, si não comem um pouco da terra da cova de que se elles levantão,

molhando-se no proprio sangue que o Vampiro extrahio, &c. Esta crença popular tem muita

relação com aquella dos Lubishomens, que parece ser uma transplantação de Portugal, e

que na infancia ouvimos muitas vezes da bôca de nossas amas, sentados juncto á lareira nas

compridas noites de Inverno.

Sobre a antiga republica ditosa,

Que ao pedreiro sagrado as bases deve,

Li nos primeiros annos de minha adolescencia n’um d’esses periódicos litterarios da

Europa a tradição maravilhosa da fundação da republica de S. Marinho por um pobre

pedreiro do mesmo nome, e causou-me tanta impressão que resolvi-me a fazer passar a

scena de um Romance no seu territorio. Tinha eu então a imaginação fresca e brilhante, por

que contava pouco mais de 14 annos, e ainda o sôpro das paixões ardentes, que murcharão

minha alma não tinha passado sobre ella – Realisei o meu intento, e tomei por objeto essa

pia e religiosa crença popular, de que a justa maldição dos Paes cahe como o anathema de

Deos, sobre a cabeça do filho culpado, e que nunca a devemos provocar ou assoberbar.

Sahio um Romance amoldado á S. Marinho, e quando o quis modificar para manda-a ao

público, achei-me na impossibilidade de tirar-lhe esse colorido e forma natal com que o

tinha produzido a minha phantasia de creança. Que fazer pois? Conservei-a intacta, tal qual

tinha sahido da lavra, e por isso peço desculpa pelos defeitos, e quiçá puerilidades d’esta

producção dos meus primeiros annos.

Essa, que livre sempre, affrouta ousada

Do tempo tragadôr a foice ahenea.

A Republica de S. Marinho, talvez pela milagrosa influencia de seu fundador, tem

resistido aos vaivens, que tem mudado a face de outros Estados Europeos. É espantoso

como esta Republica microscopica collocada sob a protecção do Papa se tem conservado

até hoje no seu primitivo estado, depois que alguns seculos ja sobre ella passarão para se

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sumirem na voragem do tempo. Até o leão da guerra, – Napoleão – a respeitou, e disse que

queria conserval-a para modelo de um estado livre.