Oftalmia Simpática: A Propósito de Um Caso Clínico...hifema no pós-operatório. Em Junho de 2007...

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VOL. 33, JANEIRO - MARÇO, 2009 29 Oftalmologia - Vol. 33: pp. 29 - 32 Trabalho apresentado como comunicação oral no 50.º Congresso Português de Oftalmologia, Dezembro de 2007, Porto Oftalmia Simpática: A Propósito de Um Caso Clínico Mário Neves 1 , S. Freire 2 , R. Campos 1 , F. Trindade 1 , S. Prazeres 1 , A. Barbosa 2 1 – Interno do Internato Médico de Oftalmologia 2 – Assistente Hospitalar de Oftalmologia Serviço de Oftalmologia do Centro Hospitalar de Coimbra, E.P.E. Director: Dr. Roque Loureiro [email protected] RESUMO Objectivo: A Oftalmia Simpática é uma uveíte granulomatosa, que tem início após traumatismo penetrante prévio de um olho. A incidência estimada é de 0,3-0,5% após traumatismo acidental e de 0,015% após cirurgia ocular. O tratamento inclui o uso de imunossupressores. O prognóstico é reservado e depende do início precoce e agressivo da terapêutica. Material e Métodos: Os autores apresentam o caso clínico de uma Oftalmia Simpática, após vitrectomia, em doente com antecedentes de traumatismo ocular penetrante há 20 anos. Foi instituída terapêutica imunossupressora com corticoesteróides e ciclosporina A. Houve melhoria significativa da acuidade visual e sintomatologia oftalmológica. As características clínicas, diagnóstico, fisiopatologia, e os aspectos terapêuticos serão discutidos. Conclusão: A Oftalmia Simpática representa um desafio para o oftalmologista em todos os aspectos: no diagnóstico, que deve ser de exclusão; na severidade do quadro, e na terapêutica, que deve ser precoce e agressiva. O caso apresentado ilustra a gravidade que esta afecção pode assumir, e a dificuldade em tratar estes pacientes. ABSTRACT Sympathetic Ophthalmia: Case Report Introduction: Sympathetic ophthalmia is a granulomatous uveitis that occurs after a penetrating injury to one eye. The estimated incidence is of 0,3-0,5% following acidental trauma, and 0,015% following intraocular surgery. The treatment included the use of immunosuppressive medication. The prognosis is reserved and depends of prompt and agressive treatment. Methods: The autors present a case of a sympathetic ophthalmia following vitrectomy in patient whit antecedent penetrating ocular trauma 20 years ago. Was established immunosupressive therapy whit corticoesteroids and ciclosporin A. There was a significant improvement of visual acuity and ophthalmic symptoms. The

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VOL. 33, JANEIRO - MARÇO, 2009 29

Oftalmologia - Vol. 33: pp. 29 - 32

Trabalho apresentado como comunicação oral no 50.º Congresso Português de Oftalmologia, Dezembro de 2007, Porto

Oftalmia Simpática: A Propósito de Um Caso ClínicoMário Neves 1, S. Freire 2, R. Campos 1, F. Trindade 1, S. Prazeres 1, A. Barbosa 2 1 – Interno do Internato Médico de Oftalmologia2 – Assistente Hospitalar de Oftalmologia Serviço de Oftalmologia do Centro Hospitalar de Coimbra, E.P.E. Director: Dr. Roque Loureiro

[email protected]

RESUMO

Objectivo: A Oftalmia Simpática é uma uveíte granulomatosa, que tem início após traumatismo penetrante prévio de um olho. A incidência estimada é de 0,3-0,5% após traumatismo acidental e de 0,015% após cirurgia ocular. O tratamento inclui o uso de imunossupressores. O prognóstico é reservado e depende do início precoce e agressivo da terapêutica. Material e Métodos: Os autores apresentam o caso clínico de uma Oftalmia Simpática, após vitrectomia, em doente com antecedentes de traumatismo ocular penetrante há 20 anos. Foi instituída terapêutica imunossupressora com corticoesteróides e ciclosporina A. Houve melhoria significativa da acuidade visual e sintomatologia oftalmológica. As características clínicas, diagnóstico, fisiopatologia, e os aspectos terapêuticos serão discutidos. Conclusão: A Oftalmia Simpática representa um desafio para o oftalmologista em todos os aspectos: no diagnóstico, que deve ser de exclusão; na severidade do quadro, e na terapêutica, que deve ser precoce e agressiva. O caso apresentado ilustra a gravidade que esta afecção pode assumir, e a dificuldade em tratar estes pacientes.

ABSTRACT

Sympathetic Ophthalmia: Case Report

Introduction: Sympathetic ophthalmia is a granulomatous uveitis that occurs after a penetrating injury to one eye. The estimated incidence is of 0,3-0,5% following acidental trauma, and 0,015% following intraocular surgery. The treatment included the use of immunosuppressive medication. The prognosis is reserved and depends of prompt and agressive treatment. Methods: The autors present a case of a sympathetic ophthalmia following vitrectomy in patient whit antecedent penetrating ocular trauma 20 years ago. Was established immunosupressive therapy whit corticoesteroids and ciclosporin A. There was a significant improvement of visual acuity and ophthalmic symptoms. The

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Mário Neves, S. Freire, R. Campos, F. Trindade, S. Prazeres, A. Barbosa

clinical features, diagnosis, physiopathology, and therapeutic aspects will be discussed. Conclusion: Sympathetic ophthalmia is a challenge for the ophthalmologist in all aspects: in the diagnosis that shoud be of exclusion; the severity of presentation, an in therapy that should be prompt and agressive. This case illustrates the severity of this entity and the difficulty in the treatment of these patients.

Palavras Chave: Oftalmia Simpática; Uveíte; Imunossupressão; Enucleação; Vitrectomia.

Key Words: Sympathetic Ophthalmia; Uveitis; Immunosuppression; Enucleation; Vitectomy.

Introdução

A oftalmia simpática é uma uveíte granulo- matosa bilateral secundária a um trauma-

tismo penetrante do globo ocular. É caracterizada por um início insidioso, com um período de latência entre o traumatismo no olho excitante e o início dos sintomas no olho simpatizante raramente inferior a 2 semanas, e uma evolução progressiva.

O traumatismo inicial é acidental (ferida per-furante; contusão; rotura da esclera) em cerca de 70% dos casos, sendo a cirurgia intra-ocular (victrectomia/cirurgia retina; cirurgia filtrante; extracção catarata) responsável pela quase totali-dade dos restantes 30% 1. A incidência estimada é de 0,3-0,5% após traumatismo acidental e de 0,007-0,015 após cirurgia ocular 2,3.

A apresentação clínica da oftalmia simpática quase sempre se inicia no segmento anterior com a característica uveíte anterior granulomatosa crónica (nódulos de Koeppe; precipitados querá-ticos em «gordura de carneiro»; espessamento da íris; sinéquias posteriores). Ocasionalmente pode ter início no segmento posterior. A uveíte posterior cursa com vitrite de grau variável, nódulos de Dälen-Fuchs em 1/3 dos casos, edema da papila e descolamento exsudativo da retina. As manifestações sistémicas são muito raras, ao contrário da síndrome de Vogt-Koyanagi-Harada (VKH).

A patogénese exacta é desconhecida. Pensa-se que a oftalmia simpática representa uma resposta auto-imune a um, ou vários componentes da retina, epitélio pigmentar da retina ou coróide. Os

estudos sugerem que o traumatismo penetrante do olho induz a libertação de antigénios uveais na circulação sistémica, que desencadeiam uma resposta auto-imune de linfócitos T contra uma das proteínas solúveis associada à membrana dos fotorreceptores da retina, denominada antigénio S da retina 4, 5, 6.

No diagnóstico secundário devem ser conside-rados a síndrome de Vogt-Koyanagi-Harada, a uveíte facoantigénica bilateral e outras causas de uveíte granulomatosa (fungos, bactérias).

O único tratamento preventivo conhecido é a enucleação do olho traumatizado antes do olho simpatizante ser envolvido. A enucleação após o início da uveíte simpática mantém-se um tópico de considerável controvérsia.

Os corticóides tópicos, perioculares e sisté-micos, constituem a terapêutica de eleição após o início do processo inflamatório, podendo ser associados agentes imunomoduladores como a ciclosporina A, clorambucil, ciclofosfamida.

O prognóstico desta entidade clínica é reser-vado e está relacionado com o início precoce do tratamento. As sequelas mais frequentes são a catarata, o glaucoma, o descolamento da retina, a atrofia óptica e a phthisis bulbi.

Caso Clínico

Doente do sexo feminino, 33 anos, que recorre ao serviço de urgência em Julho de 2007 por diminuição acentuada da acuidade visual do olho direito, com cerca de uma semana de evolução, sem história de traumatismo.

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Oftalmia Simpática: A Propósito de Um Caso Clínico

Como antecedentes pessoais apresentava his-tória de traumatismo penetrante do olho esquerdo há 20 anos, tendo ficado afáquica. Em Março de 2007 apresentou descolamento da retina do olho esquerdo, regmatógeno, com cerca de um mês de evolução, tendo sido submetida a vitrectomia mecânica posterior + endolaser + tamponamento com C3F8, sem sucesso, com hemovítreo e hifema no pós-operatório.

Em Junho de 2007 foi submetida a lavagem terapêutica da câmara anterior por hifema.

À observação o olho direito apresentava AV inferior a 1/10, hiperémia conjuntival de predomínio ciliar, Tyndall +/++ e íris regular. A PIO era de 18mmHg. À fundoscopia apre-sentava vitrite moderada e intenso edema na área macular e retina periférica com perda do reflexo rosado (Fig. 1). O olho esquerdo apresentava AV sem percepção luminosa com hifema de metade da câmara anterior. À fundoscopia apresentava proliferação vítreo-retiniana severa, não se visualizando a retina.

O exame objectivo geral era normal.Foi realizada angiografia fluoresceínica do

olho direito que revelou múltiplos pontos hiper-fluorescentes na área macular com derrame tardio (Figs. 2 e 3).

A doente foi internada no Serviço de Oftal-mologia e instituída terapêutica com predniso-lona endovenosa 2mg/kg/dia e Ciclosporina A

oral 5 mg/kg/dia e terapêutica tópica com atro-pina e prednisolona.

A doente evoluiu favoravelmente, com aumentoprogressivo da acuidade visual do olho direito e diminuição do edema macular.

Actualmente, 3 meses após o início do qua-dro, apresenta AVOD 9/10 sem correcção, e à fundoscopia observa-se alterações pigmentares da mácula (Fig. 4). A angiografia não apresenta alterações de relevo (Fig. 5). Mantém terapêutica de manutenção com prednisolona oral 20 mg id e ciclosporina A 100 mg id.

Fig. 1 – Retinografia.

Fig. 2 – Angiografia fluoresceínica.

Fig. 3 – Angiografia fluoresceínica.

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Mário Neves, S. Freire, R. Campos, F. Trindade, S. Prazeres, A. Barbosa

Discussão

No caso apresentado, apesar da evolução clínica favorável, é fundamental um follow- -up apertado com manutenção da terapêutica imunossupressora por um período não inferior a doze meses, de acordo com a evolução clínica. Para além disso deve ser preconizada a enucleação do olho esquerdo (excitante), uma vez que se trata de um olho amaurótico, sem qualquer viabilidade.

Algumas questões se colocam acerca da etio-logia da oftalmia simpática: Qual a importância do traumatismo inicial há vinte anos? E da vitrectomia mecânica posterior?

De acordo com estudo recentes, a oftalmia simpática pode ser vista após vitrectomia, mesmo sem história prévia de traumatismo, sendo o risco superior em doentes com traumatismo prévio 8, 9. Neste caso, o traumatismo inicial terá sido responsável pela sensibilização imunitária, representando a vitrectomia um estímulo antigé-nico adicional, embora a etiologia definitiva não possa ser estabelecida.

Todas as uveítes atípicas ou persistentes após vitrectomia devem alertar para a possibilidade do desenvolvimento de oftalmia simpática.

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Fig. 5 – Angiografia 3 meses depois.

Fig. 4 – Retinografia 3 meses depois.