Oh Pressão Rua sem Saída! FLÁVIO VIEIRA DE MELO* · Como material de análise contou-se com...

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0 *UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos/Sorocaba. Mestrando em Educação, Comunidade e Movimentos Sociais. Oh Pressão... Rua sem Saída! FLÁVIO VIEIRA DE MELO* RESUMO Este trabalho é parte de uma pesquisa em andamento no programa de mestrado em Educação, comunidade e Movimentos Sociais na UFSCAR/Sor que busca entender O QUE MANTÉM UM GRUPO DE TEATRO. Neste ínterim, um dos campos observados é o engajamento do grupo, das peças teatrais construídas e apresentadas por eles, o que desemboca neste artigo que olha para a trajetória de uma personagem (Zéfa), do espetáculo Rua sem Saída, suas condições objetivas de sobrevivência e transformação da realidade. Como material de análise contou-se com fontes orais e documentais além do texto teatral. Partindo então da peça Rua sem Saída, em particular, da trajetória de uma personagem mulher em situação de rua, pensar a resistência, o engajamento e a união entre classes de oprimidos como agentes de transformação. Descrição das fontes orais utilizadas: Entrevista com a atriz Stefany Cristiny 1 ; Entrevista com o dramaturgo João Bid 2 ; Texto da Peça “Rua sem Saída 3 ”. 1 Atriz fundadora do grupo teatral Nativos Terra Rasgada. Na peça em questão interpreta a personagem Zéfa, uma moradora em situação de rua que tem uma trajetória marcada pela resistência. 2 Músico, contador de histórias e dramaturgo. Participou de todo o processo de construção da fábula da peça. Não necessariamente cumpre com a função de escrever o texto, mas, contribui com histórias e narrativas que vão circundando o processo criativo. 3 Peça teatral construída em processo de criação coletiva onde todos os integrantes do projeto sugeriam (em cena, com cenas) como seria capa um dos aspectos que constituem o que hoje é a peça teatral. A Fábula foi criada pelo dramaturgo João Bid e os textos foram criados em cena pelos atores, atrizes e diretor em processo de extensa pesquisa e discussão.

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*UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos/Sorocaba. Mestrando em Educação, Comunidade e Movimentos Sociais.

Oh Pressão... Rua sem Saída!

FLÁVIO VIEIRA DE MELO*

RESUMO

Este trabalho é parte de uma pesquisa em andamento no programa de mestrado em

Educação, comunidade e Movimentos Sociais na UFSCAR/Sor que busca entender O QUE

MANTÉM UM GRUPO DE TEATRO. Neste ínterim, um dos campos observados é o

engajamento do grupo, das peças teatrais construídas e apresentadas por eles, o que desemboca

neste artigo que olha para a trajetória de uma personagem (Zéfa), do espetáculo Rua sem Saída,

suas condições objetivas de sobrevivência e transformação da realidade. Como material de

análise contou-se com fontes orais e documentais além do texto teatral. Partindo então da peça

Rua sem Saída, em particular, da trajetória de uma personagem mulher em situação de rua,

pensar a resistência, o engajamento e a união entre classes de oprimidos como agentes de

transformação.

Descrição das fontes orais utilizadas:

Entrevista com a atriz Stefany Cristiny1;

Entrevista com o dramaturgo João Bid2;

Texto da Peça “Rua sem Saída3”.

1 Atriz fundadora do grupo teatral Nativos Terra Rasgada. Na peça em questão interpreta a personagem Zéfa, uma moradora em situação de rua que tem uma trajetória marcada pela resistência. 2 Músico, contador de histórias e dramaturgo. Participou de todo o processo de construção da fábula da peça. Não necessariamente cumpre com a função de escrever o texto, mas, contribui com histórias e narrativas que vão circundando o processo criativo. 3 Peça teatral construída em processo de criação coletiva onde todos os integrantes do projeto sugeriam (em cena, com cenas) como seria capa um dos aspectos que constituem o que hoje é a peça teatral. A Fábula foi criada pelo dramaturgo João Bid e os textos foram criados em cena pelos atores, atrizes e diretor em processo de extensa pesquisa e discussão.

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*UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos/Sorocaba. Mestrando em Educação, Comunidade e Movimentos Sociais.

Oh Pressão... Rua sem Saída!

INTRODUÇÃO

É história oral. A perspectiva que este trabalho é realizado é o da história oral, cabe

com isso explicar o que parece ser óbvio, mas não é. Como metodologia de pesquisa fazer uso

da técnica de coleta de dados da história oral é de conhecimento da totalidade dos

pesquisadores. Ocorre que a maneira com que este trabalho é realizado, é uma espécie de meta

linguagem ou, “meta metodologia”. Explico:

O Artigo que aqui se apresenta é um estudo que faz uso da história oral para discutir a

trajetória de uma personagem teatral – mulher - em situação de rua em uma peça intitulada “Rua

sem Saída” do grupo Nativos Terra Rasgada de Sorocaba.

O Nativos Terra Rasgada é um grupo de teatro alocado em Sorocaba, interior do

Estado de São Paulo. Com 15 anos de labuta, tem como uma de suas principais características

o trabalho continuado - possibilitado pelo modo que o grupo se organiza - o que significa dizer

que dos nove integrantes do grupo, três são fundadores, duas outras entraram no primeiro e

segundo ano, outro depois do terceiro ano e os demais estão a nove, sete e cinco anos de grupo.

Ou seja, existe uma relação de intimidade e familiaridade que transcende a técnica e a relação

de trabalho pura e simplesmente. O que pode ser comprovada com a constituição familiar dos

integrantes que formaram três casais dentro do grupo, dos quais nasceram três crianças, uma de

cada casal (Fellipe – 4 anos), (Lorenzo e Rafaela – 1 ano).

Tal comentário não é descartável, de modo que sua importância se dá para elucidar

como o Nativos existe enquanto grupo e como produz teatro, e, é esse dado que justifica o que

venho por meio desta comprovar. No Nativos, não há texto que anteceda a cena teatral. As

criações das falas acontecem por intermédio da pesquisa realizada pelo grupo, apropriação dos

artistas com as personagens e, principalmente pela confiança entre as pessoas, entre os artistas,

em cena e fora dela.

O exposto acima pode ser conferido nas palavras de João Bid dramaturgo da peça em

questão que, ao explicar sua função no tocante da construção da peça Rua sem Saída, se recusa

a ser chamado de dramaturgo porque não é ele quem escreve o texto, como é classicamente

designado a essa função.

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*UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos/Sorocaba. Mestrando em Educação, Comunidade e Movimentos Sociais.

Não me considero dramaturgo, considero um... um contador de história

que tem umas histórias na cabeça e de repente elas se transformam em... duas delas

se transformaram em teatro, então, dentro da ficha técnica de dramaturgo, mas os

textos surgem com todo mundo. (Bid, 2018).

O que Bid diz contextualmente em sua entrevista é que sua história não é essa que está

no texto propriamente dito. A história que ele contou interferiu no Nativos e em tudo que

pensavam, mas foi recriada, foi criada uma nova história com partida naquela que ele trouxe.

Os textos mesmo, são inspirados nas relações que o João Bid colocou para o grupo, mas o modo

como foram proferidos, organizados sequencialmente, para quem se direcionavam, isso tudo

foi feito pelos artistas em cena. Aliás, acompanhando o trabalho do grupo, pode se dizer que

este texto muda de intenção, lugar, tempo e até de personagem e sentido por conta da

apropriação que os artistas têm dele.

Deste modo, fica explícito que o texto passa a existir no papel apenas em momento

posterior à peça, um modo de registrar ipsis litteris aquilo que a “personagem” (por intermédio

dos artistas) falam em cena.

Então, a técnica de coleta de dados usada, para além das entrevistas realizadas com a

atriz e o dramaturgo, conta com o uso do texto teatral que, considerando o modo com que foi

construído, será tomado como transcriação da fala da personagem. Agrega-se ao exposto, razão

para tomar a entrevista da atriz e do dramaturgo como comentários diretos das falas e ações da

personagem em cena.

Fala baixo senão eles vão nos ouvir...

Apenas alguns objetos encontram-se dispostos em meio da praça pública, três

esqueletos de ferro e umas espumas velhas coloridas onde o público pode se sentar. Parece uma

arena vazia, pois os atores estão fora, espalhados por todo o espaço externo (não há nenhuma

intenção de omitir a condição de intérpretes dos artistas. A montagem do cenário, colocação

dos figurinos e preparação vocal é feita de maneira revelada, na frente do público). Uma gritaria

se inicia, falas soltas reclamam o tratamento agressivo de agentes públicos do Estado. Entram

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*UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos/Sorocaba. Mestrando em Educação, Comunidade e Movimentos Sociais.

em cena três lupemproletariados4, moradores em situação de rua fugidos de uma reintegração

de posse.

Ao que entra na cena o primeiro personagem Zé 1, reclama gritando e fugindo “Para,

para, ai, para! Não precisa disso, para, seu filho de uma pu... Dói pra caralho essas

borrachadas... não precisa de tanta violência ninguém tá armado... tava só no argumento,

porra! Desgraçado! Desta vez bateram pra valer” (Zé 1, 2015). A ação cênica imediata ao

texto supracitado é a entrada da Zéfa correndo. Quando avista Zé 1, dispara uma fala em censura

imediata aos gritos do amigo. “Zé, Zé… Fala baixo Zé senão eles vão ouvir...” (Zéfa, 2015).

Até o presente momento cênico, duas falas foram proferidas, mas uma enorme situação

cênica foi apresentada ao público revelando tratar-se de reintegração de posse acompanhada de

muita violência. Ao que segue a referida cena, observamos a sequência do diálogo entre Zé 1 e

a Zéfa até serem interrompidos pela entrada do Zé 2 gritando.

Zé 1 – Que falar baixo o que, tem de falar alto pra todo mundo saber que

não tem diálogo não, os caras chegam e vão sentando a borrachada na gente...

Zefa 1 - Claro, eu e o Zé… Cadê o Zé?

Zé 1 – O Zé... tava com você Zefa.

Zefa - Claro, você saiu correndo na frente e eu e o Zé ficamos lá tomando

porrada...

Zé 2 – (chegando da correria) Ai, ai, ai, ai, ai... Zefa! Ai Zé! dói muito,

muito, muito... bateram e bateram aqui na minha cabeça olha...

Zé 1 - Por isso que eu não fico pra trás.A gente tá dormindo em um lugar

ai vem eles e bate na gente pra gente sair porque lá não pode, aí nóis fica na rua e

eles batem porque na rua não pode também... e a gente vai mudando e apanhando,

mudando e apanhando…

Zefa - Para com isso Zé, eu também tomei porrada na cabeça e não to

chorando como vocês dois. Vocês são tudo uns frouxos.

Zé 2 – Frouxo nada, o Zé tem é razão. Quando a gente tá num lugar, batem

pra gente deixar... Quando estamos na rua batem do mesmo jeito, eles pegam a gente

e ó, pé na nossa bunda...

Zefa – É que vocês dois são carne de segunda

4Em O Dezoito de Brumário de Luis Bonaparte (1852), Marx refere-se ao lumpemproletariado, do alemão

lumpenproletariat, como uma massa desintegrada, que reunia indivíduos arruinados e aventureiros egressos da

burguesia, vagabundos, soldados desmobilizados, batedores de carteira, mendigos etc., nos quais Luís Bonaparte

apoiou-se em sua luta pelo poder. Em um contexto semelhante, ao analisar a ascensão do fascismo, autores

marxistas mais recentes também fizeram referências ocasionais ao lumpemploretariado, embora tal noção não

tenha um lugar muito destacado em sua análise.

O principal significado da expressão lumproletariado não está tanto na referência a qualquer grupo social

específico, mas antes no fato de ela chamar a atenção para o fato de que, em condições extremas de crise e de

desintegração social em uma sociedade capitalista, um grande número de pessoas pode separar-se de sua classe e

vir a formar uma massa “desgovernada”, particularmente vulnerável às ideologias e aos movimentos reacionários.

(http://resumodaobra.com/marx-lumpemproletariado/) visitado em 10/04/2018 às 10:13h.

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*UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos/Sorocaba. Mestrando em Educação, Comunidade e Movimentos Sociais.

Zé 1 e Zé 2 - Carne de segunda Zefa?

Zefa- (Tirando onda com os dois) É, tem que bater e bater pra ver se vocês

ficam mólinho, molinho. (Rua sem Saída, 2015).

Ao que se vê, existe um senso de humor característico nos três, apesar da dura situação

vivida, carregam uma simplicidade capaz de ver beleza e graça em pouco. Graça que também

revela certa familiaridade e constância com o processo de desapropriação violenta vivido pelas

personagens. Primeiro na Fala do Zé 2 que diz que apanham para deixar um lugar e, ao sair de

lá vão para a rua, onde a violência se repete; e em segundo lugar, na própria fala da Zéfa que

diz que eles são carne dura que precisa ser amaciada com muita porrada para quebrar as fibras,

por isso apanham sempre.

A busca por um lugar que lhes ofereça o mínimo de condições é constante e, ao mesmo

tempo, improvável. Ainda assim, os Zés, enquanto fugiam da truculência do estado que os

despejava da última ocupação, depararam-se com um espaço abandonado no meio da cidade e

que aparentemente não iria despertar o incômodo de ninguém, um cemitério.

Tal relação de pertencimento e opressão não é novidade na história real e ficcional no

Brasil, como descreve Erico Veríssimo em seu conhecido livro Incidente em Antares, o

sentimento de poder transcende o poder de fato, constitui-se como endeusamento e tende a

perpetuar-se por intermédio da força.

Foi assim que entre as duas dinastias antarenses, a dos Vacarianos e a dos

Campolargos, começou uma feroz rivalidade, que deveria durar quase sete decênios,

com períodos de maior ou menor intensidade, ao sabor de acontecimentos de ordem

política, econômica ou puramente pessoal. (VERISSIMO, Erico. 1995. p.11).

Palavras que descrevem o início da trama que circunda todo o romance intitulado

Incidente em Antares. Para Veríssimo, assim como na perspectiva dos Zés na peça Rua sem

Saída, o “lugar” é espaço de disputa no campo simbólico, político, religioso etc.

Na peça, o que buscam os três moradores em situação de rua é um abrigo do vento, da

chuva e um canto para guardar seus poucos objetos pessoais, o que já se tornaria um lar.

Condições ofertadas por aquele cemitério abandonado. A ficção tem início neste momento. O

cenário é transformado, a praça vira cemitério e a fábula é apresentada. Concomitantemente, os

Zés discutem a ocupação daquele espaço e o argumento de convencimento é que o cemitério e

a cidade são muito parecidos, casas, ruas, prédios, conforme pode-se observar nas falas

seguintes:

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*UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos/Sorocaba. Mestrando em Educação, Comunidade e Movimentos Sociais.

Zé 2 - Zé, Zefa, ai eu não quero ficar aqui não. Isso aqui é um cemitério…

Eu vou embora… (faz mensão de sair quando é interrompido por Zé 1)

Zé 1 - Um cemitério Zé…? Olha, tive uma ideia, não vamos sair daqui

não… quer saber? Vamos ficar aqui…

Zé 2 - Ai não Zé… você ta doido…? Ficar aqui nada, isso aqui deve ter

dono. Aí nóis vamos entrar aqui o dono chama a polícia e o que acontece…? Porrada

em nóis de novo.

Zefa - Não Zé. Isso aqui é um cemitério público, terra de ninguém…

Zé 2 - E daí, quando é público não tem dono, nóis pode pegar pra nóis?

Zé 1 - É Zé, público é assim…

Zé 2 - Assim como Zé?

Zé 1 - É… assim… é… público ué!!!

Zé 2 - Não entendi nada, explica direito Zé.

Zé 1 - Vou explicar porque eu sou um homem letrado, coisa que você não

é… Público é assim ó… é… público vem do grego, tudo vem do grego mesmo. Vem

do grego publicus, e significa que… é… ah, já sei. Dizia a história que Deus era

valente e aí ele entrou em um labirinto e lá ele encontrou um homem com cabeça de

touro e aí ele matou Deus e ai Deus morreu… é…, Deus morreu e morrendo ele…

Há, Deus quando morreu deixou testamento prá alguém, deixou? Não, não deixou e

aí seus filhos fizeram uma fila e aí as coisas foram divididas prá eles e aí todo mundo

ficou rico!!!

Zefa – É, ai todo mundo ficou rico!!!

Zé 2 - Que rico o que Zefa? E onde é que nóis estava quando Deus

distribuiu as terras porque eu não peguei nada. Devia estar tomando porrada na

cabeça por que que pegou as terra ta rico cheio de prédios e nóis, não tem nem onde

cair morto.(Entra o sax novamente e o refrão da música dos mortos é cantado.). (Rua

sem Saída, 2015)

As condições globais a que estão submetidos os Zés vão se constituindo em cena e a

consciência política das personagens vão sendo apresentadas na medida que os conflitos entre

ficção e realidade vão se estabelecendo. O Humor quase absurdo e sádico torna-se estranho

vindo da personagem em análise sobre suas condições existenciais. Tornar-se estranho – para

o público – neste caso, por intermédio deste modo de fazer humor de si mesmo possibilita a

construção de um “acúmulo de incompreensibilidade até que surja a compreensão. Tornar

estranho é, portanto, ao mesmo tempo tornar conhecido.”. (ROSENFELD, 2008. p. 152).

Distanciar o público da ficção por intermédio da forma teatral, significa, pois, dizer

tornar-se possível submetê-los a uma reflexão sobre a vida real. Deslocando o público por entre

cenas e argumentos consolidados, mas não necessariamente lógicos e sequenciais, revelando as

condições humanas como por exemplo, lapsos de memórias e consciência, exatamente como

no caso exposto na cena observada e confirmada na música a seguir que institui a cena de

transformação do ambiente onde a peça teatral está por realizar-se.

Queria como eu devia…

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*UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos/Sorocaba. Mestrando em Educação, Comunidade e Movimentos Sociais.

Cantar a vida e não a morte

Mas aqui pra nossa gente isso é só com muita sorte

É o teatro comparando o cemitério e cidade

Buscamos, não encontramos, mas queremos a verdade

E aqui não é mais praça, passa ser outro lugar

O cemitério, o cemitério em cidade vai se materializar

E aqui não é mais praça

Passa ser outro lugar

O cemitério, o cemitério em cidade vai se materializar

Só brincadeiras de cena, um desafio constante

Túmulos, apartamentos, se confundem num instante

Nessa cidade todo dia, briga de povo e poderosos

Sacudindo o cemitério e não são nada amistosos

E aqui não é mais praça, passa ser outro lugar

O cemitério, o cemitério em cidade vai se materializar

E aqui não é mais praça

Passa ser outro lugar

O cemitério, o cemitério em cidade vai se materializar

Religioso não é santo muito menos o Barão,

Segurança mata e morre agoniza a Educação,

Sobrevive o Preconceito, a justiça nem nasceu,

Continua a Fome viva e a Esperança já morreu.

Vamos nessa nossa história

Revelar toda verdade

Não existe diferença

Cemitério é cidade

Cemitério é cidade (5x). (Rua sem Saída, 2015).

O uso desse recurso técnico, a música, para “substituir uma cena, é inspirado em

Bertolt Brecht, como no mais, toda a peça é épica brechtiana5, mas, isso é assunto para outra

ocasião. A questão aqui é a finalidade deste recurso em específico, a música que é tida como

um comentário, uma narrativa cantada, uma “ruptura” na encenação, uma manifestação de

opinião dos artistas de dentro da peça.

Essa primeira ruptura é reforçada por duas outras separações: a que é

imposta pela passagem da fala falada para a fala cantada, e a que opõe mutuamente

dois significados, uma vez que o discurso do song comenta, de maneira

frequentemente irônica ou crítica, o do personagem, bem como o seu comportamento.

(ROUBINE, 1982. p.67)

Durante a execução dessa música, a cena constitui-se por intermédio da ação dos atores

que, abandonados de suas condições de personagens, montam o cenário. Aqueles esqueletos de

ferro tornam-se grandes túmulos e as espumas onde o público se senta, recebem cruzes e passam

a ser pequenas lápides.

5 Aquilo a que se refere à Bertolt Brecht.

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*UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos/Sorocaba. Mestrando em Educação, Comunidade e Movimentos Sociais.

O modo como se realiza a cena e se aplica tal recurso cênico tipicamente épico

brechtiano, amplia-se o modo de entendimento exposto na referida citação para um comentário

que transcende a questão da ironia com base ou referência à personagem e seu comportamento,

trata-se, do mesmo modo (irônico e crítico), de uma conjuntura global, no caso da música em

questão, trata-se de comentários críticos sobre a cidade e algumas de suas estruturas.

Instituída então a analogia cidade x cemitério, o público se vê inserido naquele cenário

sob dois pontos de vista: primeiro, se não adentrar à história fictícia, ele é observador da peça

teatral e tal como as personagens vivos (os Zés) estão exclusos de toda a produção material do

mundo real; segundo, se o fato de estarem sentados nas espumas colocadas no início da peça e

transformadas em túmulos durante a execução da música despertar neles a perspectiva crítica e

se fizer clara a proposição de tê-los como mortos e, portanto cidadãos daquela cidade ficcional,

tornam-se agentes do processo de transformação que vão presenciar e ter oportunidade de

interferir para a transformação do mundo.

Este conflito é potencializado com a introdução do mundo dos mortos na cena. Os

personagens Educação, Barão, Segurança Pública e Ecumênico, bases estruturantes da

sociedade, são os mortos pois, na leitura do Nativos, eles não nos representam, não dão conta

de gerir a vida social; e os vivos são todos impedidos de acessar a vida material. Deste modo,

justifica-se a analogia instaurada e que conduz toda a encenação.

O que vai criar novas fissuras neste pensamento é o processo dialético e as

contradições apresentadas no decorrer da encenação e que darão horizontes destacados para três

personagens, Zéfa, Educação e o Negro. Este último, também membro do mundo dos mortos

transita entre os dois mundos, sem interferir no de cá.

A escolha de ficar no cemitério e tomá-lo como lugar de moradia feita pelos Zés, revela

ainda o modo como sua consciência é forjada, instituindo novas analogias entre a já construída

cidade x cemitério.

Zé 1 - Olha…! Que bonito...

Zé 2 e Zefa - Bonito...?

Zé 1 - É, bonito! Parece uma cidade, olha só, tem um monte de rua... tem

umas casinhas, tem corredores, tem prédios e apartamento… A gente pode ficar aqui!

Zé 2 – Ai não Zé, parou. Eu não vou ficar aqui não Zé, isso aqui é um

cemitério… Ó Zefa! Olha esse aqui! Tem uma cruz de madeira... olha como ta feio,

sem pintura. Deve ser um igual nóis...

Zefa – Não, Zé, igual nóis fica em outro lugar, não tem direito a túmulo...

Zé 2 – É, parece a cidade... tá meio abandonado né, mas parece mesmo.

Zé 1 – Mas nós temos o resto da vida pra arrumar.

Zefa – É! Podemos ficar aqui pra sempre, Zé! (Rua sem Saída, 2015)

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*UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos/Sorocaba. Mestrando em Educação, Comunidade e Movimentos Sociais.

O caminhar dos moradores em situação de rua revela inclusive um entendimento

peculiar do sistema econômico e de governo capitalista comparando vida e morte (ao acesso ao

dinheiro). Por diversos momentos Zéfa e os Zés se veem em situação de fome absoluta, falam

sobre comer comida de oferenda, sonhos com tortas e outros.

Morar em um centro comercial, estar próximo a residências, em meio a fluxo de

pessoas, são estratégias que acabam por aumentar a chance de conseguirem alguma alma

caridosa que possa se sensibilizar e contribuir para matar a fome deles. Sendo assim, morar no

cemitério não parece uma boa escolha, o que acaba provocando muita discussão e argumentação

de cada um dos envolvidos, tanto para se convencerem de que ali é um bom lugar para ficarem

quanto para o contrário.

Ocorre ainda que a relação que os personagens têm com a conquista de bens materiais,

mesmo aqueles mais fundantes como alimentação, são afastados deles de tal modo que parece

interiorizado, uma memória automática, um despertador do automatismo que, quando desperta

a consciência, os faz refletir no sentido de recuar, inferiorizar-se, matar-se, como podemos

observar na cena que segue.

Zé 2 - Mas aqui não tem ninguém! Só gente morta! E eu não estou morto!

Zé 1 – E você tem certeza que está vivo Zé? Você tem família?

Zé 2 - Não!

Zé 1 - Tem RG?

Zé 2 - Não!

Zé 1 - CPF?

Zé 2 - Não!

Zé 1 - Você tem crédito na praça, Zé?

Zé 2 - Nem sei o que é isso?

Zé 1 - Sem crédito na praça, você tá morto6, Zé! Bem vindo ao nosso lar!!

(Rua sem Saída, 2015).

Zé 2 – Então quer dizer que sem estas coisas nós somos iguais estas

pessoas, Igual as pessoas que tão aqui, Zé…? Então, acho que eu vou ficar aqui...

perto deste vizinho aqui. Olha Zé, esse aqui era importante: (lendo sua lápide) Dona

Saúde... “Depois de muitos anos de luta contra uma doença degenerativa,

descansou.” (Fica olhando vários túmulos)

Zé 1 – (em outro túmulo) Aqui, ó! Dona Generosidade.

Zefa - Quem matou foi o capeta…

Zé 1 e Zé 2 - O capeta Zefa???

Zefa - O Capetalismo…

Zé 2 – Olha aqui! Senhora Segurança. Deixa eu tentar ler. “Depois de

muitos anos protegendo Barões e ricos em geral, morreu de remorso.”

Zé 1 – Este é interessante. Senhor Preconceito! Olha o que está escrito

aqui. “Esta cova foi adquirida pelo Senhor Preconceito. Favor não enterrar

ninguém”. Pelo jeito não há meio desse desgraçado morrer. A cova ta vazia.

6 Ver item 26 “Crédito e Banco” de O Capital de Karl Marx 7ª Edição resumida por Julian Borchardt 1982.

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*UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos/Sorocaba. Mestrando em Educação, Comunidade e Movimentos Sociais.

Zé 2 – Essa aqui é a mais importante. Dra. Justiça. “Dra. Justiça:

Natimorta. Filha da Senhora Ética e do Dr. Moral. Não resistiu ao parto”. O quê

quer dizer essa palavra Nati... Natu...?

Zefa - Que o nome dela era Natália…

Zé 1 – E que ela nasceu morta...

Zé 2 – Coitadinha...

Zefa – Aqui está morta e enterrada a mais importante de todas: Senhora

Educação. (Divagando) Eu sonhava em ser ela quando eu era criança. Vou ler a

história dela pra vocês...

Zé 2 – Você não sabe ler, você é analfabeta....

Zefa – Sei sim, sei sim… olha só… Parágrafo Primeiro, era uma vez a dona

Educação. Ela foi encontrada sozinha em sua casa. Abandonada pelos parentes.

Desnutrida e desidratada, foi levada para o ambulatório, onde agonizou, agonizou,

agonizou, até morrer.. (Rua sem Saída, 2015).

Deste modo, apresentam a perspectiva completa daquilo que sofrem as personagens

da peça e da cidade, vida e ficção submetidas ao mesmo sistema.

A continuidade da cena conduz ficção e realidade para um encontro entre mundos

ligado pela passagem (morte) da personagem Zéfa para o mundo dos mortos. Levada pela

segurança – entidade posta a serviço do Barão – Zéfa tem, ainda antes de sua passagem um

encontro, uma espécie de sonho, onde fala com o Ecumênico que a convoca para a morte em

nome de “Deus” mas na verdade quem pediu para que ela (Zéfa) fosse levada ao mundo dos

mortos foi o Barão.

Na sequência, Zéfa mostra um desejo coletivo, revela uma ideal de justiça e sociedade

apoiada por suas experiências de vida, pela falta de crença e dúvida na esperança.

Zefa – (vendo o padre, mistura de sonho e realidade) Padre, por que temos

que pagar pra acreditar em Deus?

Padre7 - Você não paga pra acreditar em Deus. Paga pra manter o

trabalho daqueles que disseminam a palavra de Deus.

Zefa - Dissemino a palavra de Deus e nunca recebi nada por isso. Só quem

recebe o dinheiro da igreja é que pode disseminar a palavra de Deus?

Padre - Somos sacerdote do senhor, e como sacerdote...

Zefa - (Interrompendo) Padre, eu pensei que fossemos todos iguais perante

Deus. Não sabia que só os sacerdotes é que tinha direito aos benefícios de ser filho

de Deus.

Padre - Você não entende.

Zefa - (Interrompendo) Padre, por que Deus que é tão poderoso, deixa as

pessoas sofrerem tanto durante sua vida na terra?

Padre - “Não derramais o seu ódio em mim, que sou como tu, filho do

senhor e não o trai como Judas.” Disse o apóstolo Felipe aos revoltados no monte

pascoal.

Zefa - Eu não entendo esse negocio de não cobiçais pra lá, não derramar

seu ódio pra cá. É não pra isso, é não pra aquilo, é não pra tanta coisa. Já pensou se

a bíblia fosse um pouquinho mais positiva? Sim, terá direito a farta alimentação. Sim,

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*UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos/Sorocaba. Mestrando em Educação, Comunidade e Movimentos Sociais.

terá direito a boa moradia.(retomando o sentido e percebendo que está “sonhando”)

E agora, a gente tá tendo essa conversa, isso é real, o que tudo isso significa?

Padre - Significa que você faz parte do plano de Deus. E ele o chama para

junto dele.

Zefa - Me chamando? Essa conversa toda é para o senhor me dizer que eu

vou morrer? Eu não sei se o céu existe, e nem se eu quero ir pra lá. O senhor faz um

favor? Fala pra Deus que eu não quero ir, eu quero ficar aqui com meus amigos, eles

são tudo o que eu tenho nessa vida.

Padre - Essa escolha não é sua. Vá e se despeça dos seus amigos. (Rua

sem Saída, 2015).

O desespero de Zéfa por não querer morrer, mesmo diante de tanta adversidade é

traduzido na música que marca sua última cena enquanto vivente. Não encontrando sentido na

vida, Zéfa canta em busca de sentido para morrer. Atribui esse lapso de esperança à sua fé, na

mesma fé que a sustenta enquanto questiona o Ecumênico sobre a condição de vida na terra.

Zéfa não tem uma fé cega, sua fé é material, pode ser vista e responde por falta de comida, de

saúde, moradia...

Para personagens como a Zéfa, mulher, acostumada a enfrentar o cotidiano desumano

da vida na rua, enfrentar a morte significa abdicar do sofrimento, mas, também deixar de ter

com ela aquilo que mais valoriza, a presença de seus amigos Zé 1 e Zé 2.

Como não se trata de uma escolha dela, como deixa claro o texto proferido pelo

personagem Religião, ao relacioná-la para ser exterminada, a pedido do Barão que quer, com a

morte de Zéfa, por um fim na ocupação ao cemitério, cabe à Zéfa então, enfrenta a morte com

a mesma coragem e humor que acendem como principais características da personagem em

cenas anteriores.

Percebendo-se morta, alia-se ao negro que, junto com ela articula o fim do domínio do

Barão que, segundo ela própria, não percebeu que mortos, são todos iguais e que a escravidão,

pelo menos na peça, no mundo dos mortos, acabou! Segue dizendo que se ele não conseguisse

entender aquilo, eles – Zéfa e Negro - dariam um “incentivo” para ele entender.

Muitas são as questões que acendem neste momento, a destacar articulação entre

oprimidos (negro e Zéfa) aliados à Educação que faz um caminho paralelo na peça,

contribuindo com o negro o tempo todo, tentando assumir sua função de educar ao invés de

ficar ensinando técnicas de reprodução industrial que diminuem a capacidade de inteligir das

pessoas tornando-as, dentre outras coisas, alienadas do processo político.

Neste cenário, juntados Zéfa, Negro e Educação, iniciam a aplicação de um plano de

transformação no mundo dos mortos, mas, que impacta diretamente no mundo dos vivos.

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*UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos/Sorocaba. Mestrando em Educação, Comunidade e Movimentos Sociais.

A analogia que se estabelece é o mundo dos mortos como representação do estado, do

governo que não se entende no mesmo mundo que os pobres mortais, famintos e miseráreis.

A perspectiva de revolução é articulada pelos três e posta em prática com a ruptura da

Educação com o Estado.

O Barão ainda faz mais uma tentativa de alcançar seus objetivos, controlar tudo e

todos. Discursa sobre a natureza, revelando que nada pode fugir ao seu comando e que na

tentativa de desvio de conduta, todos sofrerão repressão. O Barão reproduz, em cena, aquilo

que estudantes, professores e trabalhadores estão acostumados a enfrentar na vida real,

sobretudo aqui no Estado de São Paulo, a violência do Estado por intermédio da polícia militar.

Sem esperar, o Barão e sua Segurança, enfrentam a resistência da sociedade civil

representada pela Zéfa, Negro e Educação. Com tal ato, desmobilizam a Segurança e encontram

o Barão desguarnecido. Mediante tal situação, os três revolucionários percebem condições

objetivas de efetivar a desmoralização do Barão e pôr fim a seu “reinado”.

As cenas que seguem cumprem funções objetivas e até didáticas que visam, primeiro:

Denunciar um pensamento preconceituoso que se tenta instaurar sobre todos os que desejam

um mundo diferente do que está posto, como temos observado na vida real, comunista por

exemplo, passa a ser usado como xingamento, como ofensa.

Segundo, Alocar a Educação como função central no registro da memória e construção

de conhecimento das estruturas materiais e filosóficas. A fala do Ecumênico provoca a

Educação em diversos aspectos. Ela que já estava tendo dificuldades para manter

relacionamento com o Barão, aproveita o ensejo e dispara contra os dois.

Educação - Chega, Padre! Faça um papel mais bonito. Fica intrigando,

defendendo o Barão, quando na verdade deveria estar preocupado com os problemas

que causa para essas pessoas, deveria estar preocupado em ajudar essas pessoas.

Religião - “Não levantaras falso testemunhos…”

Barão - Chega! Já fizeram manifestaçãozinha agora me cubram antes que

as maritacas cheguem.

Educação - Parem! Parem, ninguém aqui vai lá. Demorei muito não é

senhor Barão? Demorei mas basta. Eu sou o início da mudança. Ninguém aqui

atenderá mais as suas ordens. Ensinarei a todos que devemos viver pelo princípio da

liberdade. se você quiser Senhor Barão, se você quiser santidade, podem continuar

vivendo nesse inferno que vocês criaram, eu vou viver na minha paz eterna. (Rua sem

Saída, 2015).

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*UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos/Sorocaba. Mestrando em Educação, Comunidade e Movimentos Sociais.

Terceiro, retomar um lugar discursivo que o Barão institui no início da peça onde se

dirige ao negro com palavras ofensivas, racistas. Com motivações próprias, o Negro se dirige

ao Barão por intermédio da leitura de uma carta escrita por ele mesmo.

Negro - Chega dessa mentira senhor Barão. Durante anos eu e os meus

antepassados fomos açoitados, retirados a força da nossa pátria e levados para

sermos os seus braços e as suas pernas. Hoje o chicote é a bala de borracha, o

cassetete. As senzalas são as prisões, as comunidades que existem neste lugar. Que

liberdade é essa Barão que nos foi dada que nos impede de viver, de ter uma moradia,

de ter o que comer, de estudar? Desculpa barão, mas eu e o meu povo preto não

somos vagabundos não. O seu sistema é quem nos prende, nos aterroriza, faz com

que a ignorância reine nas pessoas e impede a massa de pensar. Só quem tem a

dignidade açoitada diariamente sabe que o racismo ainda está aí e tem levantado

muitos, muitos e muitos discípulos. Eu e o meu povo preto sofremos durante séculos,

mas agora é a sua vez. O levante está apenas começando e se prepare porque uma

hora ou outra vai chover merda! (Começa o ataque ao barão. Zéfa e Educação

juntam-se a ele e arremessam “merda de maritacas”). (Rua sem Saída, 2015).

Quarto, Zéfa dá a cartada final. Usa de sua experiência de vida para provocar a reflexão

do Barão assimilando suas perdas às dela. Diz, simples e diretamente “E então senhor Barão,

dói ou não dói perder tudo que a gente mais gosta?”(Rua sem Saída, 2015).

O Barão, retorna à sua postura inicial de estátua de cemitério, mas agora, sem a

imponência de outrora. Seu pescoço quebrado, todo cagado e de língua pendurada faz menção

à queda do governo.

A cena marca a última fala de Zéfa, acentua sua trajetória de luta e põe fim às questões

políticas tratadas na peça.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A trajetória da personagem Zéfa, estudo a que me propus realizar, não dá conta da

totalidade dos conflitos enfrentados por mulheres, tão pouco por negras e ou moradoras de rua.

Sua trajetória não resume as lutas das Mães de Maio, do Movimento Sem Terra, Sem teto, Povo

sem Medo. A Zéfa, na peça Rua sem Saída, não dá conta de denunciar de modo global a falta

de políticas públicas para a Assistência social, Saúde e Educação. Não discute, como certamente

precisamos, em profundidade, o impacto das instituições religiosas no processo de alienação

das trabalhadoras e trabalhadores.

De todo modo, não sei se essa é a proposta da peça, do grupo, da atriz, do dramaturgo.

A questão, ao que me parece, é de assumir um lugar na história. Usando por empréstimo a

perspectiva de Walter Benjamim sobre seu conceito de História, Rua sem Saída narra histórias

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*UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos/Sorocaba. Mestrando em Educação, Comunidade e Movimentos Sociais.

de pessoas que não foram declarados vencedores, histórias que não estão registradas em livros,

histórias não “oficiais” a fim de retirar o ponto final destes capítulos pois...

Os derrotados em junho de 1848, para mencionar um exemplo muito

presente em Das Passagen-Werk (mas também na obra histórica de Marx), esperam

de nós não só a rememoração das injustiças passadas e a realização da utopia social.

Um pacto secreto nos liga a eles e não nos desembaraça facilmente de sua exigência,

se quisermos nos manter fiéis ao materialismo histórico, ou seja, a uma visão da

histórica como luta permanente entre os oprimidos e os opressores.

A redenção messiânica/revolucionária é uma tarefa que nos foi atribuída

pelas gerações passadas. Não há um messias enviado do céu: somos nós o Messias,

cada geração possui uma parcela do poder messiânico e deve se esforçar para

exercê-la. (Benjamim, 2005: 51).

Deste modo, a trajetória vivida na peça pela personagem Zéfa, vai de encontro com a

reflexão Benjaminiana, e reflete o Materialismo Histórico. Não objetivamente constroem juntos

(Zéfa e Zés) uma luta por mudanças objetivas na sociedade. Por condições visíveis na peça, sua

luta é pela sobrevivência, matar a fome e dormir. Cenário este que é radicalmente transformado

após sua morte que, dentre outras coisas a liberta de ter de lutar por comida e moradia (mortos

não comem), além do que, Zéfa se encontra com outras minorias que estão em processo de

pensar um novo mundo (Negro e Educação). Nestas condições objetivas, Zéfa engaja-se na luta

contra o poder vigente (o Barão), une forças com o Negro e a Educação, enfrentam a truculência

do Estado e marcam posição frente à barbárie que é a vida.

No campo simbólico, o reflexo da vitória contra o Barão reflete de imediato na vida

real onde os Zés ocupam em definitivo o túmulo do Barão enterrando nele o corpo de Zéfa e

mudando sua lápide que trazia o dizer “Empedrado sou o poder perpetuado! ” e que após a

intervenção dos lupemproletariados e da morte da Zéfa ficou “É tudo Nosso! ”.

Concluo assim observando que o trabalho teatral a que me debrucei para realizar este

estudo retoma as inúmeras lutas por direitos humanos travadas ao longo da história, recolocando

as oprimidas e oprimidos como centrais nessa luta. Uma reabertura de processos históricos não

findados e que dependem de nós e dos que virão depois de nós para modificá-la. A Zéfa não é

uma heroína, é uma sobrevivente.

Como mais um elo que liga este pensamento a Benjamim em seu conceito de história,

fica a música derradeira da peça.

Essa história que contamos não tem tempo nem lugar

Pois a Vida e seus segredos não tem como situar

A cidade e o cemitério se dividem na razão

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*UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos/Sorocaba. Mestrando em Educação, Comunidade e Movimentos Sociais.

Mas misturam tempo e espaço nessa imaginação

Quando nasce o bicho homem passa a vida na cidade

Compra casa, carro e luxo, só não compra a eternidade

Nesse jogo existimos, resistimos dia a dia

Viva a vida, não se encaixe, sobreviva as armadilhas

Nesse jogo existimos, resistimos dia a dia

Viva a vida, não se encaixe, sobreviva as armadilhas (Rua sem Saída,

2015).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIM, Walter. – Aviso de Incêndio : Uma leitura das teses “Sobre Conceito de

História” / Michael Löwy ; tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant, [tradução das teses]

Jeanne Marie Gagnebin, Marcos Lutz Müller. – São Paulo :Boitempo, 2005

BENJAMIM, Walter. – Ensaio sobre Brecht / Walter Benjamim ; tradução Claudia

Abeling – 1. ed. – São Paulo : Boitempo, 2017. (Marxismo e Literatura)

BENJAMIM, Walter. – Magia e Técnica, arte e política : ensaios sobre literatura e

história da cultura / Walter Benjamim ; tradução Sérgio Paulo Rouanet ; prefácio Jeanne Marie

Gargnebin. – 7. ed. – São Paulo : Brasiliense, 1994. – (Obras Escolhidas ; v.1).

DAVIS, Angela. – Mulheres, raça e classe / AngelaDavis ; tradução Heci Regina

Candiani. – 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2016.

MARX, Karl. – “O Capital”. – Karl Marx ; resumo de Julian Borchardt ; tradução de

Ronaldo Alves Schmidt. – 7.ed. – Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1982.

ROSENFELD, Anatol. – O Teatro Épico / Anatol Rosenfeld. – São Paulo :

Perspectiva, 2010. – (debates; 193).

ROUBINE, Jean-jacques. – A linguagem da encenação teatral”. – Jean-Jacques

Roubine ; tradução e apresentação, Yan Michalski. – 2.ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,

1998.