Olavo de Carvalho_Um Discurso

4
Um discurso Escrito por Olavo de Carvalho | 28 Setembro 2015 Artigos - Cultura O que caracteriza o presente estado de coisas é precisamente que até os homens honestos e inteligentes começam a falar na linguagem dos cretinos e cretinizadores, pelo simples fato de que já não há outra disponível. Nada ilustra melhor o estado de coisas numa sociedade do que a linguagem dos seus homens públicos. Aprendi isso com Karl Kraus e até hoje não vi esse critério falhar. Num de seus últimos discursos, o comandante do Exército, general Eduardo Villas-Boas, afirmou que as Forças Armadas estão conscientes da atual “derrocada dos valores”, mas que sua missão é preservar acima de tudo a “estabilidade” e a “legalidade”. Ora, se o poder instituído é ele próprio o agente principal da derrubada dos valores – coisa que ninguém mais pode razoavelmente negar --, preservar sua estabilidade é garantir-lhe os meios de continuar a demolir esses valores tranqüilamente, imperturbavelmente, impunemente, sob a proteção de fuzis, tanques e navios de guerra pagos com o dinheiro do povo que ele espolia e engana. É a estabilidade da destruição. Não creio que essa fosse a intenção subjetiva do general, mas é o sentido objetivo que suas palavras adquirem no contexto real. Lido nessa perspectiva, seu discurso é mais uma amostra do emocionalismo psitacídeo em que se transformou a fala brasileira nas últimas décadas, no qual as palavras valem pelas nuances emotivas associadas diretamente ao seu significado dicionarizado, independentemente dos fatos e coisas a que fingem aludir. Em termos de linguística, o significado usurpa o espaço do referente, que desaparece nas brumas da inexistência.

description

O que caracteriza o presente estado de coisas é precisamente que até os homens honestos e inteligentes começam a falar na linguagem dos cretinos e cretinizadores, pelo simples fato de que já não há outra disponível.

Transcript of Olavo de Carvalho_Um Discurso

Um discurso Escrito por Olavo de Carvalho | 28 Setembro 2015 Artigos - Cultura

O que caracteriza o presente estado de coisas é precisamente que até os homens honestos e

inteligentes começam a falar na linguagem dos cretinos e cretinizadores, pelo simples fato de que

já não há outra disponível.

Nada ilustra melhor o estado de coisas numa sociedade do que a linguagem dos seus homens

públicos. Aprendi isso com Karl Kraus e até hoje não vi esse critério falhar.

Num de seus últimos discursos, o comandante do Exército, general Eduardo Villas-Boas, afirmou

que as Forças Armadas estão conscientes da atual “derrocada dos valores”, mas que sua missão é

preservar acima de tudo a “estabilidade” e a “legalidade”. Ora, se o poder instituído é ele próprio o

agente principal da derrubada dos valores – coisa que ninguém mais pode razoavelmente negar --,

preservar sua estabilidade é garantir-lhe os meios de continuar a demolir esses valores

tranqüilamente, imperturbavelmente, impunemente, sob a proteção de fuzis, tanques e navios de

guerra pagos com o dinheiro do povo que ele espolia e engana. É a estabilidade da destruição.

Não creio que essa fosse a intenção subjetiva do general, mas é o sentido objetivo que suas

palavras adquirem no contexto real. Lido nessa perspectiva, seu discurso é mais uma amostra do

emocionalismo psitacídeo em que se transformou a fala brasileira nas últimas décadas, no qual as

palavras valem pelas nuances emotivas associadas diretamente ao seu significado dicionarizado,

independentemente dos fatos e coisas a que fingem aludir. Em termos de linguística, o significado

usurpa o espaço do referente, que desaparece nas brumas da inexistência.

Quando à segunda expressão, “legalidade”, ela não tem nada a ver com a ordem legal substantiva,

já destruída há tempos e que só subsiste na função de referente suprimido: ela visa apenas a

marcar a diferença entre os militares de hoje e os de 1964, exigência indispensável do código

“politicamente correto” contra o qual o general havia acabado de resmungar umas palavrinhas

desprovidas de qualquer efeito objetivo até mesmo sobre o seu próprio discurso.

O general Villas-Boas não é nenhum imbecil e com certeza não é um homem desonesto. O que

caracteriza o presente estado de coisas é precisamente que até os homens honestos e inteligentes

começam a falar na linguagem dos cretinos e cretinizadores, pelo simples fato de que já não há

outra disponível.

A finalidade dessa linguagem é construir aquilo que Robert Musil e, na esteira dele, Eric Voegelin,

chamavam de “Segunda Realidade”, uma espécie de mundo paralelo feito inteiramente de

significados dicionarizados e sem nenhum fato ou coisa dentro. Uma vez removida para a Segunda

Realidade, a mente humana já não serve como instrumento de orientação na realidade genuína,

mas conserva apenas duas funções essenciais: o engano e o auto-engano, que passam a vigorar

como “ações políticas”, com resultados previsivelmente bem distintos das intenções alegadas.

Os dois milhões de manifestantes que foram às ruas protestar em março e setembro, com o apoio

de noventa e três por cento da população, diziam e berravam da maneira mais clara os nomes dos

inimigos contra os quais se voltavam: PT e Foro de São Paulo. Centenas de videos do youtube

confirmam isso de maneira incontestável.

A Constituição Brasileira, Título I, Art. 1o., alínea V, parágrafo único, estabelece: “Todo o poder

emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente.” Que significa

esse “ou diretamente”? Significa que os representantes eleitos, ocupantes do Executivo e do

Legislativo,  são um “poder instituído”, o qual, por definição, não se sobrepõe jamais ao “poder

instituinte”, a massa popular que o criou e que conserva o direito de suprimi-lo a qualquer momento

pela sua ação direta.

Como, dos sete por cento que ainda apoiavam o governo àquela altura, seis o consideravam nada

mais que “regular”, o apoio substantivo de que ele desfrutava  era de apenas um por cento. Nunca

um governo foi rejeitado de maneira tão geral e avassaladora. Com ele, eram rejeitados também os

ajudantes diretos e indiretos que o mantinham no poder contra a vontade do povo: congressistas

omissos, juízes cúmplices, mídia chapa-branca.

O povo, em suma, voltava-se frontalmente contra o “sistema” como um todo, sabendo-o

aparelhado  a serviço do esquema comunolarápio e do Foro de São Paulo, a maior organização

subversiva e criminosa que já existiu na América Latina, empenhada em colocar o roubo, o

homicídio, o narcotráfico e a mentira em doses oceânicas a serviço da ambição de poder total, não

só sobre o país, mas sobre o continente.

O termo “estabilidade” designa uma qualidade, não uma substância. Estabilidade é sempre de

alguma coisa, isto é, de uma ordem ou sistema. Ora, nas passeatas de março e setembro havia

claramente duas ordens ou sistemas em confronto. De um lado, a ordem normal e constitucional,

em que a maioria absoluta da nação, manifestando sua vontade de maneira direta e inequívoca,

exigia o fim das entidades criminosas, PT e Foro de São Paulo. Do outro lado, o sistema federal de

exploração, manipulação, roubo e auto-engrandecimento insano. De qual dessas duas ordens o

general desejaria “manter a estabilidade”?

Ele não esclareceu esse ponto, que é a substância mesma do assunto nominal do seu discurso.

Preferiu o adjetivo sem substantivo, como aliás é de praxe no Brasil de hoje. Acredita piamente ter

dito alguma coisa porque a sua linguagem, coincidindo com os usos gerais do dia, soa bem aos

seus próprios ouvidos e aos de todos aqueles que não precisam da realidade, só de palavras.

Não creio ser demasiado pessimista ao prever que, enquanto os homens inteligentes e honestos

continuarem falando na linguagem que os charlatães inventaram para seu exclusivo uso próprio, o

Brasil continuará vivendo na Segunda Realidade, onde um governo criminoso apoiado por um por

cento da população constitui a “ordem”, e sua manutenção no poder por juízes e congressistas

comprados é a única forma de “estabilidade” possível.

Publicado no Diário do Comércio.

http://olavodecarcalho.org

 cultura | Brasil | governo do PT | direito