Um discurso Escrito por Olavo de Carvalho | 28 Setembro 2015 Artigos - Cultura
O que caracteriza o presente estado de coisas é precisamente que até os homens honestos e
inteligentes começam a falar na linguagem dos cretinos e cretinizadores, pelo simples fato de que
já não há outra disponível.
Nada ilustra melhor o estado de coisas numa sociedade do que a linguagem dos seus homens
públicos. Aprendi isso com Karl Kraus e até hoje não vi esse critério falhar.
Num de seus últimos discursos, o comandante do Exército, general Eduardo Villas-Boas, afirmou
que as Forças Armadas estão conscientes da atual “derrocada dos valores”, mas que sua missão é
preservar acima de tudo a “estabilidade” e a “legalidade”. Ora, se o poder instituído é ele próprio o
agente principal da derrubada dos valores – coisa que ninguém mais pode razoavelmente negar --,
preservar sua estabilidade é garantir-lhe os meios de continuar a demolir esses valores
tranqüilamente, imperturbavelmente, impunemente, sob a proteção de fuzis, tanques e navios de
guerra pagos com o dinheiro do povo que ele espolia e engana. É a estabilidade da destruição.
Não creio que essa fosse a intenção subjetiva do general, mas é o sentido objetivo que suas
palavras adquirem no contexto real. Lido nessa perspectiva, seu discurso é mais uma amostra do
emocionalismo psitacídeo em que se transformou a fala brasileira nas últimas décadas, no qual as
palavras valem pelas nuances emotivas associadas diretamente ao seu significado dicionarizado,
independentemente dos fatos e coisas a que fingem aludir. Em termos de linguística, o significado
usurpa o espaço do referente, que desaparece nas brumas da inexistência.
Quando à segunda expressão, “legalidade”, ela não tem nada a ver com a ordem legal substantiva,
já destruída há tempos e que só subsiste na função de referente suprimido: ela visa apenas a
marcar a diferença entre os militares de hoje e os de 1964, exigência indispensável do código
“politicamente correto” contra o qual o general havia acabado de resmungar umas palavrinhas
desprovidas de qualquer efeito objetivo até mesmo sobre o seu próprio discurso.
O general Villas-Boas não é nenhum imbecil e com certeza não é um homem desonesto. O que
caracteriza o presente estado de coisas é precisamente que até os homens honestos e inteligentes
começam a falar na linguagem dos cretinos e cretinizadores, pelo simples fato de que já não há
outra disponível.
A finalidade dessa linguagem é construir aquilo que Robert Musil e, na esteira dele, Eric Voegelin,
chamavam de “Segunda Realidade”, uma espécie de mundo paralelo feito inteiramente de
significados dicionarizados e sem nenhum fato ou coisa dentro. Uma vez removida para a Segunda
Realidade, a mente humana já não serve como instrumento de orientação na realidade genuína,
mas conserva apenas duas funções essenciais: o engano e o auto-engano, que passam a vigorar
como “ações políticas”, com resultados previsivelmente bem distintos das intenções alegadas.
Os dois milhões de manifestantes que foram às ruas protestar em março e setembro, com o apoio
de noventa e três por cento da população, diziam e berravam da maneira mais clara os nomes dos
inimigos contra os quais se voltavam: PT e Foro de São Paulo. Centenas de videos do youtube
confirmam isso de maneira incontestável.
A Constituição Brasileira, Título I, Art. 1o., alínea V, parágrafo único, estabelece: “Todo o poder
emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente.” Que significa
esse “ou diretamente”? Significa que os representantes eleitos, ocupantes do Executivo e do
Legislativo, são um “poder instituído”, o qual, por definição, não se sobrepõe jamais ao “poder
instituinte”, a massa popular que o criou e que conserva o direito de suprimi-lo a qualquer momento
pela sua ação direta.
Como, dos sete por cento que ainda apoiavam o governo àquela altura, seis o consideravam nada
mais que “regular”, o apoio substantivo de que ele desfrutava era de apenas um por cento. Nunca
um governo foi rejeitado de maneira tão geral e avassaladora. Com ele, eram rejeitados também os
ajudantes diretos e indiretos que o mantinham no poder contra a vontade do povo: congressistas
omissos, juízes cúmplices, mídia chapa-branca.
O povo, em suma, voltava-se frontalmente contra o “sistema” como um todo, sabendo-o
aparelhado a serviço do esquema comunolarápio e do Foro de São Paulo, a maior organização
subversiva e criminosa que já existiu na América Latina, empenhada em colocar o roubo, o
homicídio, o narcotráfico e a mentira em doses oceânicas a serviço da ambição de poder total, não
só sobre o país, mas sobre o continente.
O termo “estabilidade” designa uma qualidade, não uma substância. Estabilidade é sempre de
alguma coisa, isto é, de uma ordem ou sistema. Ora, nas passeatas de março e setembro havia
claramente duas ordens ou sistemas em confronto. De um lado, a ordem normal e constitucional,
em que a maioria absoluta da nação, manifestando sua vontade de maneira direta e inequívoca,
exigia o fim das entidades criminosas, PT e Foro de São Paulo. Do outro lado, o sistema federal de
exploração, manipulação, roubo e auto-engrandecimento insano. De qual dessas duas ordens o
general desejaria “manter a estabilidade”?
Ele não esclareceu esse ponto, que é a substância mesma do assunto nominal do seu discurso.
Preferiu o adjetivo sem substantivo, como aliás é de praxe no Brasil de hoje. Acredita piamente ter
dito alguma coisa porque a sua linguagem, coincidindo com os usos gerais do dia, soa bem aos
seus próprios ouvidos e aos de todos aqueles que não precisam da realidade, só de palavras.
Não creio ser demasiado pessimista ao prever que, enquanto os homens inteligentes e honestos
continuarem falando na linguagem que os charlatães inventaram para seu exclusivo uso próprio, o
Brasil continuará vivendo na Segunda Realidade, onde um governo criminoso apoiado por um por
cento da população constitui a “ordem”, e sua manutenção no poder por juízes e congressistas
comprados é a única forma de “estabilidade” possível.
Publicado no Diário do Comércio.
http://olavodecarcalho.org
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