Olhar pixelizado

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1 Instituto de Artes Departamento de Artes Visuais KARLAS RODRIGUES DE SOUZA OLHAR PIXELIZADO (Videoarte) Brasília - 2009

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Uma trajetória do olhar. Um pouco do que vemos e muito do que nos vê. O presente trabalho pretende pensar o olhar com a ajuda de Platão e o seu Mito da Caverna, buscando neste mito a relação entre visão e conhecimento.

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Instituto de Artes Departamento de Artes Visuais

KARLAS RODRIGUES DE SOUZA

OLHAR PIXELIZADO (Videoarte)

Brasília - 2009

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OLHAR PIXELIZADO (Videoarte)

Brasília - 2009

Trabalho de conclusão do curso de Artes Plásticas, habilitação em Bacharelado, do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade de Brasília. Orientador: Profª. Drª. Maria Beatriz de Medeiros.

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Dedicatória Dedico este trabalho à minha mãe (Rita) e ao meu pai (José) pelo apoio incondicional que me deram nessa longa jornada.

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Agradecimentos:

À professora Bia Medeiros, pela experiência da qual pude absorver um porco em nossos

anos de convivência e trabalho.

À professora Maria Luiza Fragoso, pelos conhecimentos, dedicação inspiração durante os

vários encontros ao longo de nosso curso no Departamento de artes Visuais.

Aos membros do Grupo Corpos informáticos, por terem me aceitado e me ensinado muito

sobre arte contemporânea.

À Equipe do Museu Nacional Barja, João e Lamartine, pelo apoio e pela cordialidade.

Aos meus sócios Clarissa, Antonio, Rodrigo e Marcelo, pela amizade incondicional e pelo

apoio técnico na produção do vídeo.

À Paula, por me ajudar com a gramática e os erros de português.

À minha amiga Valéria, pela ajuda na pós-produção do vídeo.

Ao meu marido Pedro, por compreender minha ausência nos momentos de estudo e

trabalho.

Aos colegas da Pós Graduação, pelas dicas para construção deste trabalho.

Aos colegas da graduação, pelos anos amizade.

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Sumário Lista de imagens ..................................................................................................................... 6Resumo ................................................................................................................................... 7Abstract ................................................................................................................................... 8Introdução ............................................................................................................................. 10A estética do olhar e a cadeira vazia ..................................................................................... 15Espelhos e imagens: o olhar dentro do espelho .................................................................... 17Os novos formadores do olhar: a geração bit ....................................................................... 23Simulando pessoas como se fossem produtos ...................................................................... 25O mito da Caverna, de Platão, o olhar sensível e o olhar verdadeiro ................................... 27Olhar Pixelizado e As três ecologias, de Félix Guattari ....................................................... 30Olhar Pixelizado ................................................................................................................... 32Conclusão ............................................................................................................................. 38Referências Bibliográficas .................................................................................................... 40ANEXO A ............................................................................................................................ 43ANEXO B − Fotos do Vídeo ............................................................................................... 49

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Lista de imagens Figura 01 – Olimpíadas de Berlim. Figura 02 – Câmeras quânticas. Figura 03 – Imagem pixelizada. Figura 04 – Uma ou três cadeiras, Joseph Kosuth, 1965. Figura 05 – Narciso, Caravaggio (1594-1596). Figura 06 – Orkut. Figura 07 – Filme Vanilla Sky. Figura 08 – Modelo de steadycam. Figura 09 – Filme Dogville. Figura 10 - Flash Mob No Pants.

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Resumo

Uma trajetória do olhar. Um pouco do que vemos e muito do que nos vê. O

presente trabalho pretende pensar o olhar com a ajuda de Platão e o seu Mito da Caverna,

buscando neste mito a relação entre visão e conhecimento. Outros autores também estão

presentes, em especial Félix Guatarri, com seu livro As três ecologias, que nos indica que

muito daquilo que vemos é o que o sistema capitalista nos mostra desde muito cedo e

maciçamente, tanto através de propagandas, como também de ícones, de modas e de outras

manipulações mais ou menos sutis. O olhar-se vendo, a relação entre olhares e espelhos,

nos remete a relação dúbia entre o real e o mágico e será estudado num dos capítulos deste

trabalho. Por outro lado, Arlindo Machado nos fala da geração bit, de um novo grupo de

pessoas que passou a olhar o mundo através de olhares fortemente mediados pelos aparatos

eletrônicos, como câmeras de celular, telas de computador, telas de TV, entre outros

gadgets, e esse ponto de vista emergente será discutido em outro capítulo. A parte prática

do trabalho busca mostrar o olhar cotidiano, que Nelson Rodrigues, em suas crônicas,

definia como “A vida como ela é”. É um olhar que caminha pela cidade, que acorda,

trabalha, passeia e dorme. Fecha os olhos e vê um mundo de sonhos.

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Abstract A trajectory of the look. Some of what we see and a lot of ourselves while watched

beings. The present work pretends to think the look with the assistance of Plato’s Cave

Myth, searching on it the relation between vision and knowledge. Other authors are also

present, specially Felix Guatarri with his book “The Three Ecologies”, which indicate us

that much of what we see is what the capitalist system show us since early days in life,

through advertisings, icons of fashion and more or less subtle manipulations. By looking at

ourselves while observers, the relation between looks and mirrors remit us to the dubious

connection between real and magic; it will be studied in the second chapter of this work.

On the other hand, Arlindo Machado tell us about the bit generation, a new group of people

who started to see the world through strongly electronic display halved looks, like cellular

phone cameras, computer screens, television screens, among other gadgets; this emerging

point of view will be discussed on the third chapter. The practical part of this work intent to

show the quotidian look, which Nelson Rodrigues defined “Life as it is”. It’s a town walker

look that awakes, works, travels and sleeps. Closes the eyes and sees a dream world.

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Trajetórias

Não é bom um olhar andar sozinho,

Se no caminho encontra outros olhares.

É melhor passear de mãos dadas.

Até que chega à tarde... ... e o pôr-do-sol é mais bonito.

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Introdução

Revolução do olhar.

Vemos em detalhes as estrelas e as células, o imensamente grande e o

incrivelmente pequeno. Vemos através do tempo e do espaço, com uma fidelidade

impressionante. Um país assiste a acontecimentos do outro em “tempo real” como fato

corriqueiro. A Copa do Mundo da África, de 2010, por exemplo, será vista por centenas de

países, bilhões de pessoas, praticamente no mesmo momento em que acontece. E poderá ser

vista e revista daqui a cinqüenta anos, cem anos ou mais, indefinidamente. Imagens da

primeira Olimpíada1, acontecida ainda sob o regime nazista, podem ser vistas hoje, numa

espécie de anulação do tempo histórico. Passado e futuro se entrelaçam no mesmo olhar.

Nossa visão de mundo literalmente mudou.

Figura 1

Olimpíadas de Berlim 1936.

1 No romance Contato (1997), de Carl Sagan, depois transformado em filme de mesmo nome, as imagens das Olimpíadas de Berlim são nossa primeira mensagem televisiva enviada para o espaço e recebida por alienígenas. Essas imagens são uma espécie de marco histórico da conquista do ser humano sobre o poder de criar e recriar imagens, de reinventar os acontecimentos.

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Os instrumentos de olhar, as formas de ver, se multiplicaram e se aperfeiçoaram

imensamente, sem contar que sua distribuição está muito mais acessível a um número cada

vez maior de pessoas. É comum um jornal televisivo mostrar imagens de determinado

acontecimento especifico feitas por um cinegrafista amador, como se cada pessoa comum

se tornasse um repórter em potencial; são exibidas inclusive imagens geradas a partir de

câmeras de celulares. Também cenas de câmeras de segurança são exibidas com certa

freqüência nesses jornais e na Internet. As possibilidades novas de olhar através das

câmeras parecem inesgotáveis e não se restringem ao que é meramente visível aos olhos

humanos. Câmeras quânticas2

, que formam imagens através de fótons entrelaçados, já estão

sendo criadas, por exemplo. O princípio por trás do funcionamento dessas câmeras

quânticas é diferente de tudo o que existe até agora no campo de coleta de imagens, seja de

instrumentos de visão biológicos, seja de instrumentos mecânicos. E quem sabe se num

futuro não muito distante este tipo de câmera esteja sendo vendido no camelô da esquina.

Figura 2

Imagem capturada por meio de uma câmera quântica, essa imagem não seria visível por outros meios.

2 Informação baseada no site http://www.inovacaotecnologica.com.br, acessado em 10/05/2008. A imagem da Figura 2 também está no mesmo site.

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Estamos no meio dessas mudanças, no “olho do furacão”. Como é possível, por

exemplo, que uma pessoa deixe de ser cega e passe a enxergar com uma supervisão, mais

poderosa até do que a visão do Superman? A tecnologia por detrás dessa revolucionária

mudança já está em fase de testes3, e não só essa supervisão será possível como será muito

provável que ela seja melhorada constantemente, ganhando depois novos recursos, algo

como uma visão de infravermelho, aplicações de zoom, entre outras possibilidades. Isto

tudo parece um mundo de sonhos, difícil de definir, de se ter certeza do que está de fato

acontecendo. Só que os sonhos também estão sendo intensamente estudados, também

correm o risco de serem tragados por este furacão, e as imagens oníricas podem acabar ou

na Internet ou meramente na TV da sala, como se fossem imagens de um filme qualquer,

sem nada de especial. Parece que não há um limite entre o que pode e o que não pode ser

visto, limite ético inclusive. Por exemplo, no aeroporto de Londres cogitou-se colocar

câmeras que mostram as pessoas como se estivessem nuas para serem vistas pelos oficiais

da alfândega4

, por medida de segurança. O caso é controverso, sem dúvida, mas o simples

fato dessas câmeras existirem torna a vida perigosamente diferente. O mundo nos olha, nos

fotografa, nos filma e não temos controle sobre estes processos, sobre o que acontecerá com

“nossas” imagens, sobre quem irá ver, editar ou distribuir imagens feitas sobre nós, muitas

vezes a nossa revelia. Definitivamente se trata de um furacão que não deixará pixel sobre

pixel, pedra sobre pedra.

3 http://www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=010110050411 4 http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI3357664-EI4797,00-Lente+para+camera+permitiria+ver+atraves+da+roupa.html

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Figura 3

Imagem com aplicação de filtro mosaic, realçando pixels grandes, ou seja, uma imagem de baixa resolução.

Na base de todas essas mudanças na forma como criamos e recriamos imagens

está o pixel, que, segundo o Dicionário Aurélio, é “a menor unidade gráfica de uma imagem

matricial, e que só pode assumir uma única cor por vez”. O dicionário completa que “é o

tamanho ou extensão do pixel que determina o grau de resolução da imagem: quanto menor

for aquele, maior será esta”. O pixel é importante porque permite um tratamento

matemático da imagem, como se a imagem se tornasse um mosaico de números que podem

ser manipulados por meios de cálculos e fórmulas. Nas palavras de Couchot (1993):

“(...) O computador permitia não somente

dominar o ponto da imagem – pixel – como substituir, ao

mesmo tempo, o automatismo analógico das técnicas

televisuais pelo automatismo calculado, resultante de um

tratamento numérico da informação relativa à imagem. A

procura do constituinte último da imagem concluía-se com o

pixel, ponto de convergência, se pode dizer isso, de duas

linhas de investigação tecnológica: uma que procurava o

máximo de automatismo na geração da imagem; outra, o

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domínio completo de seu constituinte mínimo. (...)” (grifos

do autor, p. 38)

A sofisticação do cinema com seus múltiplos efeitos especiais demonstra um

pouco dessa nova e instigante capacidade que se tem atualmente de manipular imagens, de

tal forma que está cada vez mais difícil distinguir num filme as cenas “reais” daquelas

feitas por computação gráfica. A televisão, o cinema, a fotografia e a Internet treinam as

formas como as pessoas olham as realidades em que estão submersas. A discussão teórica

ou mais aprofundada destes novos “pontos de vista”, porém, fica restrita a certos cursos de

nível superior, como artes plásticas ou cursos de design. O aprendizado do olhar, da forma

como vemos o mundo, precisa ser rediscutido levando-se em conta a revolução do olhar a

que se fez referência antes, e é nessa linha de estudo que o presente trabalho se enquadra.

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A estética do olhar e a cadeira vazia

Em termos de senso comum, a idéia é a de que ao olhar um objeto não estamos

modificando-o ou manipulando-o, ou seja, o olhar seria uma simples recepção passiva de

informações, uma captação do que o objeto é. Captação circunstancial é fato, pois depende

da variação da luz ambiente, da distância em que nos encontramos do objeto visto, do

ângulo de visão, entre outros fatores. Existiria para o senso comum algum tipo de verdade

naquilo que vemos, embora, como todo mundo sabe, haja possibilidades de enganos.

Figura 4

Joseph Kosuth, Uma e três cadeiras, 1965, MOMA Museu de Nova York.

Se pensarmos bem, entretanto, descobriremos que o olhar humano vê não apenas

um determinado objeto, uma cadeira, por exemplo, mas vê além, um lugar para sentar. É

um olhar contextual também, um lugar para sentar perto de Maria e longe de Pedro. O

objeto é visto e avaliado ao mesmo tempo, uma cadeira desconfortável, dura, velha. O

olhar humano é multidimensional, percebendo não este ou aquele objeto de forma isolada,

mas um todo, num conjunto interligado de percepções, avaliações, julgamentos, ações, ou

seja, o objeto é pensado pelo observador a partir dos conhecimentos que o observador tem

ou não do objeto que está sendo visto. A mesma cadeira que estava, digamos, numa sala de

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aula, será vista de forma diferente se a encontrarmos num contêiner de lixo, não porque a

iluminação será diferente ou porque o ângulo de visão mudou, mas porque a cadeira terá de

ser pensada em um novo contexto, em diferentes relações concretas e simbólicas. Existe

uma expectativa no olhar, uma expectativa que mistura presente, passado e futuro, e

esperamos ver, assim, certas coisas em certos lugares e dispostas de certas maneiras, e não

em outras perspectivas. Essa expectativa molda de algum modo a nossa visão. E essa

expectativa muitas vezes é coletiva, quer dizer, é compartilhada por várias pessoas. O

artista Joseph Kosuth trabalha o conceito de cadeira:

“Um de seus trabalhos mais famosos é “Uma e

três cadeiras”, uma expressão visual do conceito de Platão

das formas. Numa parte caracteriza-se uma cadeira física,

noutra uma fotografia dessa cadeira, e ainda o texto de uma

definição de dicionário da palavra “cadeira”. A fotografia é

uma representação da cadeira real situada no assoalho, no

primeiro plano do trabalho de arte. A definição, afixada na

mesma parede que a fotografia, delineia nas palavras o

conceito do que é cadeira, e nas suas várias encarnações.

Nesta e em outra, em trabalhos similares, Cinco palavras no

néon azul e vidro um e três, Kosuth envia para indicações

tautológicas, onde os trabalhos são literalmente o que dizem

que são” (D’ASSUNÇÃO, 2008, p. 02).

Se a realidade existe, nós não a vemos, nós a criamos. Primeiro, porque o suposto

real parte de uma simbolização, as coisas tem nomes e estes nomes são arbitrários, cadeira

em português, chair em inglês, por exemplo. O nome “cadeira” refere-se basicamente a

uma classe de objetos, é uma abstração, não é uma coisa em si, é uma forma de organização

do conhecimento que privilegia um conjunto em detrimento de algo singular, um dado da

experiência imediata. Se nos referimos a uma cadeira específica, um dado singular, usamos

expressões como ¨esta cadeira¨, ¨aquela cadeira¨. Depois, existe ainda uma diferença de

valores atribuídos a tipos diferentes de cadeira, como indicam expressões como a ¨cadeira

do chefe¨, o ¨trono do rei¨, ou seja, os objetos simbolizam status diferenciados e ao vermos

estes objetos estamos tendo uma indicação subentendida, mas adequada, de qual a

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importância de quem senta nesta ou naquela cadeira; o objeto cadeira existe em função de

outros objetos e das pessoas, possuindo não apenas materialidade como também valores. O

real é organizado socialmente em vários níveis de linguagem distintos5

. Ver, neste sentido,

é decodificar, é apreender significados, relacionando o visto com o não visto, com o

subentendido ou até mesmo com o engano, pois nossos erros de julgamento também

influenciam o modo como percebemos o que está a nossa volta. Na cadeira vazia sempre

existe alguém sentado...

Espelhos e imagens: o olhar dentro do espelho

Diante do espelho temos, aparentemente, nossa imagem mais ¨real¨, nosso olhar

captando de nós uma visão externa, como se fossemos um outro para nós mesmos. E

também um olhar-se vendo, uma reflexão do olhar. Por outro lado, o espelho é uma espécie

de tela, na medida em que nos projeta e projeta o que está ao nosso redor. Nesse sentido o

espelho é um precursor das telas do cinema e das telas de TV, com a diferença de exibir as

imagens, mas não as reter. A relação entre espelho e cultura é bastante antiga, não só

porque o espelho é uma invenção de séculos, mas principalmente porque existem espelhos

naturais que servem como superfícies refletoras, que igualmente mostram pobres e ricos,

velhos e novos, brancos e negros.

O espelho é como um canal que ampliaria as possibilidades de visão do olho. Suas

imagens não são reais ou irreais enquanto constituição de um objeto, mas são imagens

resultantes das propriedades da luz. A imagem de uma pessoa “dentro” do espelho não está

errada ao “colocar” a direita na esquerda, ou a esquerda na direita. O fenômeno é

meramente físico. Nós, seres humanos, é que nos identificamos em demasia com nossa

imagem especular e buscamos nessa imagem características que ela não possui. Nas

palavras de Umberto Eco (1996, Pg. 16):

5 A segunda definição do termo “cadeira” presente no Dicionário Aurélio é: “Disciplina ministrada em estabelecimento escolar; matéria, cátedra.” Como exemplo, o Dicionário apresenta: sua cadeira é literatura. Tal definição evidencia o caráter simbólico que podem assumir os objetos.

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“Diante do espelho não se deveria falar de inversão, mas de absoluta congruência;

a mesma que se verifica quando pressiono um mata-borrão sobre uma folha em que acabei

de escrever a tinta. (...)”.

Umberto Eco discute ainda no ensaio “Sobre espelho” a possibilidade de se pensar

como seriam os “espelhos mágicos”: “Prosseguimos agora com a nossa experiência

fenomenológica, imaginando espelhos mágicos (no sentido

de realmente mágicos, e não usados para criar impressões de

magia). Imaginemos dispor de um espelho congelante. A

imagem refletida congela-se sobre a superfície, mesmo

quando o objeto desaparece. (...) Espelho congelante é a

chapa fotográfica. (..)” (1996, p. 16).

A função, por assim dizer, “mágica” dos espelhos é amplamente desenvolvida nas

obras de arte e essa é uma das perspectivas que se pretende levar em conta no presente

trabalho, mas existem ainda espelhos “reais”, com usos bem definidos pela sociedade, que

serão discutidos posteriormente. O fenômeno “espelho” (como superfície que replica

imagens, podendo ser natural, como a água, ou artificialmente construído, como um vidro)

está na base da cultura humana. O mito de Narciso, da auto-contemplação, é o mito de

todos nós, de nossa construção enquanto indivíduos. Narciso vê um outro Narciso dentro de

um lago e essa imagem é e, ao mesmo tempo, não é ele próprio. Nas belas palavras de

Caetano Veloso: “Narciso acha feio aquilo que não é espelho”6. Esse elo simbólico

profundo entre um Eu e sua reprodução imagética é uma das bases da psicologia humana e

da arte. A imagem no espelho (natural ou artificial) funciona como um primeiro avatar7

:

nós nos identificamos com essa imagem e somos capazes de controlá-la com nossas

gesticulações. Vejamos alguns exemplos na arte.

6 Trecho da música “Sampa” de Caetano Veloso, do álbum Muito, gravadora Polygram, 1978. 7 Segundo o Dicionário Aurélio, o termo “avatar” provém do sânscrito e quer dizer “descida” (do Céu à Terra), e é o mesmo que a reencarnação do deus Vixnu. Em tecnologia esse termo serve para indicar a imagem que representa o usuário em um game ou outro programa eletrônico.

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Figura 5

Caravaggio, Narciso (1594-1596) the National Gallery, London.

Nós filmes de Harry Potter, os espelhos são representados como “objetos

mágicos”, que revelam não a simples aparência de uma pessoa, mas seus estados de alma,

sua “imagem interior”8

Essas reflexões mágicas parecem apontar, de uma maneira geral, para uma

imagem interior, da personalidade de quem está em frente ao espelho. É como se o espelho

nos provocasse a indagação de quem somos ao nos proporcionar um auto-retrato

extremamente fiel. O ver-se “fora de si” proporcionado pelo espelho combina-se com o

. Os espelhos da série Heroes, na primeira e segunda temporadas,

mostram a personalidade má e desdenhosa de uma das personagens, dividida entre ser uma

“boa mãe” ou ser uma assassina cruel e calculista. Já nos filmes de vampiros, por outro

lado, os espelhos mostram apenas os seres humanos comuns; os vampiros, criaturas das

sombras, que fogem da luz do sol, não possuem “reflexos”. O espelho da madrasta má no

conto “A bela adormecida”, é capaz de falar e dizer quem é a “mais bela de todas as

mulheres”: “Espelho, espelho meu, existe alguém mais bonita do que eu?”

8 Na obra literária “Prisioneiro de Azkaban”, escrita por J.K. Rowling, o personagem Harry Potter vê no espelho mágico a imagem dele com os seus pais, o que seria, segundo o filme, o maior desejo de Harry Potter, que se tornou órfão muito cedo por causa de seu inimigo, Lorde Voldemort. Esse espelho sempre mostra o maior desejo de quem está diante dele, o que talvez leve o espectador do filme de Harry Potter a pensar o que veria se estivesse diante de um espelho como esse. Existem espelhos mágicos em todos os filmes da série Harry Potter.

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“ver-se por dentro de si”, que é nossa experiência comum, e desse confronto pode ficar a

dúvida sobre o que de fato nos representa. Como pergunta Cecília Meireles no poema

Retrato: “em que espelho ficou perdida minha face?”

Os espelhos “reais”, não-mágicos, se apresentam em diferentes lugares e com

diferentes funções sociais. Nos carros, por exemplo, eles são itens indispensáveis para

manobras seguras. Em estabelecimentos comerciais eles podem servir como equipamento

de vigilância, evitando furtos. Em salões de beleza, os espelhos fornecem um feedback para

os clientes de como está progredindo o serviço estético que está sendo prestado. Banheiros

femininos costumam ser mais associados a espelhos do que banheiros masculinos, como

acontece nos shoppings, que disponibilizam espelhos extras para “retoque de maquiagem”.

Um caso particularmente interessante é o dos “espelhos de psicólogos”, que são similares

aos espelhos de salas de interrogatório policial, em que existe uma dupla observação: os

espelhos disfarçam a observação que é feita através deles, e os “investigados” se observam

quase como se estivessem diante de espelhos comuns9

A multiplicação do presente proporcionada pelos espelhos, multiplicidade de

perspectivas não-naturais, não-naturais no sentido de não proporcionadas exclusivamente

por nossos olhos, é uma multiplicidade sistematicamente e socialmente construída.

Dominamos nossas imagens, nossos avatares espelhados, ao dominarmos os espelhos e,

além deles, as telas de pinturas/fotografias e de televisões/monitores/projetores. Nossa

projeção imaterial feita de raios de luz, nossa imagem, é intensamente retrabalhada não só

pela indústria cultural, mas também, de forma bem cotidiana pelos incontáveis espelhos ou

superfícies refletoras espelhados em profusão pelas cidades. Nas áreas rurais não é tão

comum esse “ver-se vendo” típico do meio urbano. Por outro lado, o espelho vai sendo

substituído cada vez mais pelas câmeras, ou seja, a imagem fugidia do presente dá lugar a

uma imagem potencialmente armazenada do passado. O Narciso atual quer guardar o

passado de suas imagens para usos futuros, quer “rever-se” sem limitações de tempo ou

. Os espelhos “divertidos”, que

deformam de alguma forma a imagem que produzem, estão nos parques de diversão, dentro

da Casa dos Espelhos.

9 Só de muito perto dos espelhos os “investigados” conseguem perceber o outro lado, onde ficam os “investigadores”.

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lugar. É como se atualmente a imagem de uma pessoa fosse mais importante do que ela

própria, pois pode durar muito mais, vivendo em outros olhos.

Figura 6

O site de relacionamento beautifulpeople.com tem como critério básico para aceitação a aparência física dos candidatos a membros.

Para Umberto Eco, os espelhos são como próteses que ampliam nossa

possibilidade perspectiva:

“Uma prótese, no sentido exato, é um aparelho

que substitui um órgão que falta (membro artificial,

dentadura), mas, num sentido lato, é todo aparelho que

aumenta o raio de ação de um órgão. (...) Uma prótese

estende a ação do próprio órgão, mas pode ter funções tanto

de aumento (como a lente), como de diminuição (como as

pinças, que permitem estender o raio de preensão dos dedos,

mas eliminam as sensações térmicas e táteis). O espelho,

nesse sentido, é uma prótese absolutamente neutra, e permite

que se obtenha o estímulo visual onde o olho não poderia

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alcançar (...) com a mesma força e evidência. (...)”. (, p. 17-

18, 1989)

Os espelhos mágicos são relacionados pelo autor aos aparatos tecnológicos de

captura de imagens que dispomos. A câmara filmadora, nesse sentido, é uma espécie de

espelho mágico capaz de “captar” os movimentos. Sua base, no caso do cinema, é

justamente a imagem fotográfica, o espelho congelante, os frames. As imagens fotográficas

e dos filmes possuíam em comum o fato de precisarem de um referencial físico, algo a ser

fotografado ou filmado. A revolução digital, entretanto, criou imagens a partir de equações

matemáticas, a partir de bits e bytes, de zero e um, de pixels. O referencial torna-se

prescindível e, dessa forma, as imagens como que ganharam autonomia, saindo de dentro

dos espelhos mágicos que antes as prendiam. As sombras de Platão ganharam até mesmo

profundidade tridimensional (A Alegoria da Caverna, de Platão, será discutida mais

adiante). Na mesma edição da revista Veja tecnologia (Agosto de 2007) é anunciada uma

tela inovadora:

“Parece peça de ficção científica, mas a tela que

reproduz imagens em 3D, da Philips, com 42 polegadas,

pode ser comprada no Brasil”

O modo como olhamos o mundo forma-se em nossas múltiplas experiências

cotidianas de olhar. Atualmente estas experiências têm sido enormemente ampliadas não

apenas num nível individual, mas principalmente como aventuras coletivas. Aventuras aqui

no sentido de desbravamento, de conhecimento do novo, do inesperado, de ir além das

fronteiras e dos limites físicos, biológicos, intelectuais, mecânicos, ou de quaisquer outro

tipo. Já estamos mesmo a procura de universos paralelos, outras dimensões da realidade.

Como é dito no filme Vanilla Sky10

10 Vanilla Sky, Estados Unidos, cor, 2001, 145 mim, direção de Cameron Crowe. Este filme é uma refilmagem

do original espanhol Abre los Ojos, cor, 1997, 119 mim, direção de Alejandro Amenábar.

: “Open your eyes”. Neste estranho filme nem a morte é

capaz de fechar os olhos das pessoas, que “ressuscitam” num mundo futuro ou vivem

presas num mundo de sonhos, de fantasias pré-programadas.

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Figura 7

No filme Vanilla Sky, o personagem David vive num sonho acordado durante décadas.

Os novos formadores do olhar: a geração bit

É complexa a relação entre a realidade e sua representação, entre um objeto e o

olhar sobre ele. Para Arlindo Machado, a intermediação das mídias não traz uma falsa

realidade à tona, pois o real sempre foi construído socialmente, sempre foi uma imagem. O

processo de interferência da mídia apenas intensifica este processo. Por outro lado, para o

autor a midiatização engloba todos os aspectos da vida social. É o caso de se pensar que

mesmo aqueles que não entram em contato com as mídias eletrônicas são atingidos assim

mesmo por elas. Em seu livro Arte do Vídeo, Arlindo Machado nos diz que:

“(...) A televisão penetrou tão profundamente na

vida política das nações, espetacularizou de tal forma o

corpo social, que nada mais lhe pode ser ‘exterior’, pois tudo

o que acontece de alguma forma pressupõe a sua mediação,

acontece, portanto para a tevê. Aquilo que não passa pela

mídia eletrônica torna-se estranho ao conhecimento e à

sensibilidade do homem contemporâneo. (...)” (1988, p. 6)

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O artificialismo das mídias tende a diminuir com o passar das gerações, ou seja, o

julgamento entre o que é “artificial ou natural” é provisório e dependente do tipo de

conhecimentos que as pessoas recebem e produzem. Arlindo Machado fala em geração bit,

para denominar aqueles que nasceram no final do século XX e cresceram assistindo

programas de TV, como a MTV. “Resta saber se as mutações que a geração bit nos reserva

terão impacto e profundidade semelhantes à produção das gerações anteriores”. Numa

edição especial da revista Veja tecnologia (Agosto de 2007), encontramos relatos de uma

geração que já nasceu imersa nesse mundo paralelo, repleto de imagens digitais, de avatares

e de ícones: “A grande virada digital é a facilidade na

transferência de dados. Eu aposentei a minha TV. Baixo

filmes e vídeos pela internet. É tudo muito rápido. Se um

episódio de uma série começa a ser transmitido numa rede

de televisão americana, ele é imediatamente capturado e

jogado na web. (...) O melhor é que está disponível para ser

visto a qualquer hora, quando eu quiser.” Entrevista tipo

mesa-redonda, com Ricardo, publicitário virtual e outros

jovens ligados intensamente a tecnologias multimídia.

A relação entre novo e velho, atualizado e desatualizado, entre inovação e

tradição, para a geração bit, parece ser a de uma troca rápida, como quem troca todo dia de

camisa, sem refletir muito no que faz. Nem o novo é de fato novo, pois logo será

substituído, nem o velho é de fato velho, pois poderá a qualquer momento ser recriado de

alguma forma, como é bastante comum com a indústria da moda, sempre reinventando seus

modelos. O olhar da geração bit parece ser permeado pela curiosidade e pelo desapego,

querem a um tempo descobrir novas possibilidades, mas o que é descoberto parece nunca

ser importante, o que parece valer mais é a experiência em si e não aquilo que se

experimentou. É uma espécie de olhar sem respeito, sem reverência, que iguala tudo num

mesmo patamar. De alguma maneira, um olhar profano, constituído de valores passageiros,

circunstanciais.

Page 25: Olhar pixelizado

25

Figura 8

Garotos assistindo futebol pelo celular.

Simulando pessoas como se fossem produtos

De alguma forma parece que as pessoas estão se tornando simulacros de si

mesmas, num processo coletivo que teve suas dimensões ampliadas pelo advento da

Internet. Em termos filosóficos, é como se o parecer superasse o ser, de uma forma cada

vez mais radical. Quando as pessoas, por exemplo, moldam suas carreiras não por suas

aptidões, desejos, valores, mas por aquilo que o mercado necessita em determinado

momento, pode-se dizer que o parecer superou o ser. Este descompasso entre o que se quer

ser e o que é possível ser é normal, mas num sistema capitalista que vende não só produtos,

mas também símbolos e pessoas, o descompasso facilmente ganha proporções de abismo.

Em termos de mercado, as pessoas vendem não só sua força de trabalho, como dizia Karl

Marx, mas também o seu design pessoal, o seu marketing, a sua imagem. Um trabalhador

nesta perspectiva precisa não só ser competente, mas precisa remodelar a si mesmo, seus

gestos, suas roupas, seu físico, suas palavras, tudo aquilo que teoricamente mostra como ele

é. Um caso interessante de remodelagem acontece com os jogadores de futebol de maior

prestígio que fazem contratos publicitários que envolvem suas “imagens pessoais”, quer

dizer, se o jogador fizer qualquer coisa que “degrade” sua imagem perante o público, ele

automaticamente põe em risco o contrato; o jogador reflete a imagem e não é a imagem que

reflete o jogador.

Page 26: Olhar pixelizado

26

Na Internet nos identificamos através de apelidos, avatares, blogs, redes sociais e

essas identificações eletrônicas podem fugir completamente do que de fato vivenciamos no

nosso dia-a-dia, ou seja, a imagem que projetamos pode ter pouco ou nada a haver com o

que de fato somos. Podemos ser vistos, comentados e discutidos em comunidades, blogs,

sites de noticias, sites de vídeos, em todo o planeta, pelo menos em termos potenciais.

Nossas imagens ganharam uma autonomia e uma difusão sem precedentes na história da

humanidade, tanto para celebridades como para “pessoas comuns”, numa quebra entre os

limites entre o que é local ou nacional e o que é mundial. A relação entre o parecer e o ser

se tornou muito tênue. O real como que se esvaziou de sentido, perdendo cada vez mais a

importância. O real e o virtual se amalgamaram, diluindo-se ambos num mesmo conjunto

difícil de definir. Nas palavras de Baudrillard:

“(...) Nesta passagem a um espaço cuja curvatura

já não é a do real, nem a da verdade, a era da simulação

inicia-se, pois, com uma liquidação de todos os referenciais

– pior: com a sua ressurreição artificial nos sistemas de

signos, material mais dúctil que o sentido, na medida em que

se oferece a todos os sistemas de equivalência, a todas as

oposições binárias, a toda a álgebra combinatória. Já não se

trata de imitação, nem de dobragem, nem mesmo de paródia.

(...) O real nunca mais terá oportunidade de se produzir – tal

é a função vital do modelo num sistema de morte, ou antes

de ressurreição antecipada que não deixa já qualquer

hipótese ao próprio acontecimento da morte. Hiper-real,

doravante ao abrigo do imaginário, não deixando lugar

senão à recorrência orbital dos modelos e à geração

simulada das diferenças”. (1991 p. 184)

Page 27: Olhar pixelizado

27

O mito da Caverna, de Platão, o olhar sensível e o olhar verdadeiro

“O antro subterrâneo é o mundo visível”

(Fala de Sócrates na Alegoria da Caverna, de Platão)

A Alegoria da Caverna11

, de Platão, mostra como somos prisioneiros de um certo

tipo de conhecimento, como não é casual a forma como enxergamos o mundo, nem

tampouco é casual a forma como deixamos de ver certas realidades. Em certo sentido, trata-

se de uma prisão da vontade, pois preferimos ser cegos, preferimos não ver aquilo que pode

nos incomodar, aquilo que pode nos tirar de nosso conforto num lugar seguro, nossa

caverna. O termo caverna é interessante porque remete a um Eu primitivo, algo como um

troglodita, que não pensa racionalmente, que apenas reage tentando aumentar seu prazer e

diminuir sua dor. A hipótese da alegoria é que um desses habitantes das profundezas

escapou de sua prisão e depois voltou para contar o que viu lá fora. A alegoria começa

desta forma (na voz de Sócrates, que fala a Glauco):

“Imagina os homens encerrados em morada

subterrânea e cavernosa que dá entrada livre à luz em toda

extensão. Aí, desde a infância, têm os homens o pescoço e

as pernas presos de modo que permanecem imóveis e só

vêem os objetos que lhes estão diante. Presos pelas cadeias,

não podem voltar o rosto. Atrás deles, a certa distância e

altura, um fogo cuja luz os alumia; entre o fogo e os cativos

imagina um caminho escarpado, ao longo do qual um

pequeno muro parecido com os tabiques (...).”

“Supõe ainda homens que passam ao longo deste

muro, com figuras e objetos que se elevam acima dele,

figuras de homens e animais de toda a espécie, talhados em

pedra ou madeira. Entre os que carregam tais objetos, uns se

entretêm em conversa, outros guardam em silêncio” (1997,

p.73).

11 A Alegoria da Caverna ou Mito da Caverna (dependendo de como é traduzido) esta incluída no livro VII da obra A República de Platão.

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28

O que foi citado acima pode ser entendido como o núcleo do mito. É importante

citá-lo textualmente porque sua descrição da situação na caverna é bastante imagética,

como imagens de um filme ou de um programa de televisão. Todos os pormenores de como

estão os grupos na caverna são importantes, pois mostram um contraste grande entre os

prisioneiros que vêem apenas sombras e os homens livres que podem manipular o fogo, ou

seja, manipular a luz.

A condição do conhecimento, conhecimento entendido como “acesso à luz” (a

ignorância seria escuridão12), é diferente para os dois tipos de pessoas presentes na caverna.

O resto do diálogo da alegoria trata das implicações epistemológicas da “fuga” de um

prisioneiro e do que ele poderia vir a conhecer por ter escapado de sua situação inicial. O

prisioneiro teria condições de entender o quanto era mesquinho e falso o mundo em que

vivia antes, mas, se voltasse para os seus, seria incompreendido, tomado por um tolo, um

cego, e quem sabe, poderia mesmo ser morto pelos ex-companheiros13

A verdade, entendida por Platão como a idéia do bem, que ilumina e aquece a

alma humana, não é fácil de ser atingida, nem é garantia de uma boa condição social,

principalmente se os ignorantes é que estiverem dominando o mundo. “O antro subterrâneo

é o mundo visível”, ou seja, aquilo que percebem nossos sentidos resulta de um grande

equívoco coletivo, o real não seria o sensível, mas o inteligível. Somente o filósofo

conseguiria atingir, ainda que parcialmente, o conhecimento verdadeiro, somente o filósofo

se atreveria a olhar diretamente para o sol, mesmo com o risco de se tornar cego. O artista,

por sua vez, afastaria as pessoas da luz, pois criaria “sombras de sombras” ao basear seus

trabalhos no mundo sensível.

.

De uma perspectiva contemporânea a Alegoria de Platão nos traz a questão de

qual é a extensão de nosso mundo, de quanto somos capazes de ver. A expressão “Aldeia

Global”, de McLuhan, indica que o mundo se tornou tão pequeno como uma aldeia, ou uma

caverna. Estamos todos unidos pelos mesmos tipos de imagens, mesmo que

12 Essa relação entre luz-conhecimento e ignorância-escuridão é comum no Ocidente até os dias de hoje e evidencia-se em expressões como: “suas idéias não estão muito claras”; “o que você diz é obscuro, confuso”; “vivemos numa idade das trevas, repleta de ignorância”, etc. Os próprios termos “esclarecer”, “lúcido”, entre outros, carregam os mesmos sentidos apontados por Platão há séculos atrás. 13 O próprio Sócrates foi julgado e condenado a morte por “corromper a juventude” e “inventar novos deuses”, como é possível constatar lendo a Apologia de Sócrates, de Platão.

Page 29: Olhar pixelizado

29

incessantemente remodeladas. Causa espanto e é notícia o fato de alguém no Brasil nunca

ter visto televisão ou assistido a um filme no cinema. O que tornaria este mundo pequeno é

principalmente o trabalho de propagação das mídias, como exemplo a Internet, que agrega

páginas de todos os tipos e de todas as nacionalidades, tudo, em tese, podendo ser visto e

examinado, como se não houvessem distâncias entre os povos e suas culturas.

As reflexões de Bernard Stiegler ajudam a situar contemporaneamente a Alegoria da

Caverna, de Platão. A experiência da caverna é, em certa medida, uma experiência estética,

sensitiva. Existem dois grupos de pessoas na caverna com vivências radicalmente

diferentes. O desafio seria o de fazer dialogar essas práticas. Como resolver a tensão entre a

experiência individual e a experiência de grupo? Ou entre experiências/vivências muito

diferentes entre si? Entre o que uma pessoa vê e o que outra nem sequer imagina?

O conceito de singularidade de Bernard Stiegler parece promissor para pensar essas

dinâmicas interativas. Primeiro porque ele faz uma separação entre o que é meramente

particular e o que é propriamente singular. O singular seria aquilo que nos constitui

enquanto sujeitos, já o particular poderia nos constituir ou não enquanto sujeitos. Por

exemplo, certas memórias são muito importantes na nossa vida, enquanto outras são

praticamente descartáveis. O nome que temos, o lugar onde moramos, nossas músicas

prediletas são memórias fundamentais. A marca de sabonete que usamos já não é tão

relevante.

Fazer com que se tome algo particular, circunstancial, como algo profundo e

singularizante, parece ser sempre o objetivo das mídias eletrônicas. O ídolo da TV seria

mais apaixonante do que o namorado real, o capítulo da novela torna-se mais significativo

do que a própria vida que se vive. Nas palavras de Stiegler:

“(...) Todo objeto de desejo é absolutamente

singular. Não se pode desejar alguma coisa que não seja

singular. Se eu me apaixono por alguém, é porque

considero esse alguém absolutamente único. As

pequenas histórias de amor começam sempre assim:

uma moça se apaixona por um rapaz e lhe diz: ‘Você

não é como os outros’. Pode ser um clichê enfadonho de

banalidade, mas ele é tão banal porque é verdadeiro.”

(2007, p.24).

Page 30: Olhar pixelizado

30

Nosso olhar seria naturalmente limitado numa perspectiva platônica, o que quer

dizer que nossa compreensão de mundo é também limitada, como conseqüência. O que

vemos nos forma e, ao mesmo tempo, nos deforma, pois prende nosso olhar nesta ou

naquela direção. Nossa cultura nos restringe, e essa restrição, boa ou ruim, forma nossa

identidade e, de certo modo, nos opõe aos outros grupos que não possuem as mesmas

restrições. Ver com novos olhos é, em certa medida, abdicar de si mesmo e, por outro lado,

é abdicar dessa comunhão que temos com algumas outras pessoas. Conhecer o outro é

adotar o seu olhar diferente, a sua perspectiva nova, pelo menos nova em relação ao que

vivenciamos. O papel da arte talvez não seja o de criar sombras de sombras, mas sim o de

criar novas visões sobre o mundo e sobre as pessoas, criando singularidades.

Olhar Pixelizado e As três ecologias, de Félix Guattari

A idéia de Félix Guattari, presente no livro As três ecologias (1990), de que as

pessoas estão sendo infantilizadas no sistema capitalista pelo seu controle das mídias, é

exatamente o ponto em que a vídeo-instalação Olhar Pixelizado “trabalha” (O Olhar

Pixelizado constitui a parte prática do presente trabalho e será discutido adiante). É como se

o livro situasse o contexto macroscópico em que essa vídeo-instalação acontece. Somos ou

não marionetes-simulacros do sistema? Vemos só aquilo que nos mostram? Moldamos de

fato nossas imagens “pessoais” apenas por aquilo que se espera de nós, aquilo que é

conveniente para o mercado?

Os grandes e inegáveis feitos tecnológicos do capitalismo parecem nos arrastar para

formas de viver que não são nossas, nossas no sentido até de espécie, de seres humanos. As

máquinas, teoricamente, podem trabalhar ininterruptamente por longos períodos de tempo,

enquanto nós não. O ritmo de trabalho acelerado do capitalismo é, levando em conta as

teorias de Félix Guatarri, antiecológico e anti-humano. Como nos diz o autor:

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“(...) Jamais o trabalho humano ou o hábitat

voltarão a ser o que eram há poucas décadas, depois das

revoluções informáticas, robóticas, depois do

desenvolvimento do gênio genético e depois da

mundialização do conjunto dos mercados. A aceleração

das velocidades de transporte e de comunicação, a

interdependência dos centros urbanos (...) constituem

igualmente um estado de fato irreversível que conviria

antes de tudo reorientar. (...)” (1990, p. 25)

Por outro lado, a ecologia integradora de Félix Guattari nos permite também avaliar

como somos “povoados internamente”, quais são as abstrações, idéias, imagens que nos

habitam. O “lixo simbólico-cultural” do capitalismo (propagandas, programas trash ou

“enlatados”, entre outros) faz parte de nossa consciência do mundo e nos forma enquanto

pessoas. Precisamos, pelo menos, reciclar esses conceitos e não ignorá-los, ou varrê-los

para debaixo do tapete. Somos a um tempo consumidores e produtores de imagens, mas

seria interessante se fossemos construtores e desconstrutores de imaginários, ou seja, seria

melhor se conseguíssemos dominar várias linguagens visuais distintas. Não importa muito

o “lixo simbólico-cultural” do capitalismo, mas como a partir dele ou apesar dele

elaboramos nossa visão de mundo, constituindo nosso imaginário próprio, nossa memória

significativa, nossa singularidade, para lembrar Bernard Stiegler. Só dominando as várias

linguagens visuais poderemos nos expressar com liberdade, dialogando produtivamente não

apenas com outras pessoas, mas também com os “produtos enlatados”, as propagandas, os

programas televisivos de gosto tão duvidoso.

Page 32: Olhar pixelizado

32

Olhar Pixelizado

A parte prática de Olhar Pixelizado constitui-se de três momentos distintos. Uma

vídeo-instalação, um Flash Mob14 e uma performance15

, todos acontecendo na Galeria

Espaço Piloto, da UnB. Esses momentos complementares do Olhar Pixelizado serão

analisados detalhadamente a seguir. Os autores ou conceitos artísticos básicos que

fundamentam a parte prática do presente trabalho são o Minimalismo, o Manifesto Dogma

95 e o pesquisador Renato Cohen. O Olhar Pixelizado incide sobre o cotidiano das pessoas,

sobre o que vemos ou não vemos rotineiramente, sobre nossas trajetórias de olhar.

Trajetórias, inclusive, que podem ser refeitas e exibidas, se as filmarmos.

Figura 9

Modelo de Steadycam.

14 Flash Mobs são aglomerações instantâneas de pessoas em um local público, para realizar determinada ação inusitada, previamente combinada, após a performance, as pessoas se dispersam tão rapidamente quanto se reuniram. 15 Segundo Renato Cohen, a performance tem uma característica de evento, repetindo-se poucas vezes e realizando-se em espaços não habitualmente utilizáveis para encenações, valorizando o processo criativo mais do que o resultado artístico, porém não abrindo mão de dar um acabamento estético às apresentações.

Page 33: Olhar pixelizado

33

O filme é gravado no Museu Nacional, idealizado por Oscar Niemayer, tanto na

parte interna do museu, quanto na parte externa. O filme terá duração máxima de dois

minutos e apresentará uma seqüência de imagens cotidianas de um homem vestido de preto

que acorda, coloca um steadycam16

, escova os dentes, sai de carro para o trabalho, passeia a

pé e volta a dormir (ver roteiro em Anexo). O homem tem quase dois metros de altura,

aparenta ter trinta anos, possui cabelos pretos e tem pele morena escura. As roupas do

homem serão básicas, do dia-a-dia: short, calça e camisa, todos da cor preta, além de tênis

pretos. O ambiente que aparecerá no vídeo será amplo, vazio, com poucos elementos

cênicos, num estilo minimalista. A filmagem será feita a partir de duas perspectivas

distintas, uma de terceira pessoa, o homem de preto sendo registrado, e uma perspectiva de

primeira pessoa, o homem de preto filmando com a steadycam o seu cotidiano. Arlindo

Machado analisa estas duas perspectivas:

“A câmera subjetiva é um tipo de construção

cinematográfica em que há uma coincidência entre a visão

dada pela câmera ao espectador e a visão de uma

personagem em particular. Em outras palavras eu –

espectador – vejo na tela exatamente o que o personagem vê

no campo visual. No cinema convencional, o uso da câmera

subjetiva é sempre contrabalanceado com cenas não

subjetivas, ou seja, com cenas visualizadas por um

observador externo, cenas em que a personagem vidente

aparece também visualizada dentro do quadro. (...).” (2003,

p. 179)

Como fonte de inspiração do filme foi usado o cinema de Robert Bresson que, com

seus elementos mínimos, destaca a atuação dos atores. O cenário ficaria em “segundo

plano”, enquanto que os atores viriam para o “primeiro plano”. O cinema de Bresson foi

16 Steadycam é um equipamento de vídeo multifuncional. Ele funciona como um estabilizador de câmeras e também pode ser usado como suporte de ombro.

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34

resgatado pelo manifesto Dogma 95 17

Na Galeria Espaço Piloto da UnB o vídeo será projetado numa parede branca.

. Nesses manifestos o cinema não é um espetáculo,

mas uma realidade “nua e crua”, sem efeitos especiais. A câmera treme e os atores não

usam maquiagem.

Figura 10

Cenário minimalista do filme Dogville, de Lars Von Trier.

A performance ocorre na Galeria Espaço Piloto da UnB no dia da vernissage e é

realizada pelo mesmo ator do vídeo, caracterizado como no vídeo, com roupas pretas e um

steadycam. A performance tem uma duração total estimada de quinze minutos. O ator

interage com as pessoas presentes na vernissage e, ao mesmo tempo, as filma. Esta

filmagem substitui em tempo real e durante estes quinze minutos o filme anterior.

A performance é uma forma de representação cênica. Mas a arte cênica não é

restrita aos artistas. A separação entre arte e vida está deixando de fazer sentido. A arte da

performance justamente põe em cheque tal desunião. Além disso, a performance permite

uma maior interatividade entre o artista performático e os “co-autores”, o público,

provocando um diálogo enriquecedor tanto para o público como também para o próprio

artista. Uma arte do diálogo, que não apenas se expressa para os outros, mas também é

17 O Manifesto Dogma 95 foi escrito por Thomas Vinterberg e Lars von Trier em 1995 com intuito de criar um cinema mais realista e menos comercial. Segundo os cineastas, trata-se de um ato de resgate do cinema feito antes da exploração industria de Hollywood. O manifesto tem cunho técnico e apresenta uma série de restrições quanto ao uso de técnicas e tecnologias nos filmes e regras quanto ao conteúdo dos filmes.

Page 35: Olhar pixelizado

35

capaz de deixar que as outras pessoas se expressem, sem um curso de ação fixo,

determinado. Uma arte viva.

O Flash Mob é um evento que reúne pessoas sem muitas ligações entre si, fora o

próprio Flash Mob. Em geral, uma pessoa combina com várias outras um encontro em um

local específico. O objetivo deste encontro pode variar bastante, sendo que as motivações

por detrás deste tipo de evento costumam ser de três tipos: políticas, artísticas e

publicitárias. Como exemplo recente é possível citar o grupo de pessoas que se reuniu no

metrô de São Paulo não usando calças ou saias, o que foi bastante noticiado pela mídia

impressa e na Web (Folha de São Paulo, jornal O Globo e site UOL). Este Flash Mob foi

internacional, ocorrendo também nos metrôs de Londres e de Nova York.

Figura 9

Flash Mob (No Pants) realizado nas estações do Metrô de Nova York,São Paulo e em outras capitais mundiais.

O Flash Mob, do Olhar Pixelizado, tem duração aproximada de cinco minutos, das

20h00min até 20h05min. Os participantes fazem parte do círculo de amizades da autora

deste trabalho e serão contatados via e-mail para participar do Flash Mob no dia da

vernissage. Os participantes podem interagir com o vídeo projetado, filmando-o ou

fotografando-o. Posteriormente, poderão enviar este material para a autora, o conteúdo

gerado servirá de base para um blog com fotos e vídeos. Os participantes devem dispersar

depois das 20h05min, agindo como se nada tivesse acontecido. Na noite da vernissage,

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teremos participantes do Flash Mob e “espectadores”, que não serão previamente avisados

do evento. Existirá um elemento de imprevisibilidade, típico das performances:

“Em uma performance ao vivo, muitas vezes, na

própria proposta, já existe uma grande parte de improviso −

improviso entre os próprios artistas e ainda a participação

do público, levando a resultados inesperados. Em geral,

performances, instalações, videoinstalações e lend-art e os

grafites, moldam-se aos espaços disponíveis (invadem os

outros) e/ou remodelam os espaços, sendo difícil a

reconstrução.” (MEDEIROS, p. 290)

Já o vídeo Olhar Pixelizado traz questões contemporâneas. Nossas sombras atuais

são coloridas, dinâmicas, com aparente vida própria. A realidade virtual já é hoje uma

realidade, um fato incontestável. Não é um mero sonho, coletivo ou individual. Até o nosso

dinheiro se transformou em bits e bites. Alguns jogos eletrônicos, por exemplo, possuem

economias paralelas, como o Second Life18

. A TV, o mundo das sombras coloridas, está se

tornando algo indefinível e indefinido, perpassado de outras mídias. Nossa existência é feita

de projeções sonoras, de paredes que brilham, de irrealidade cotidiana.

Figura 11

TV Record compra outdoor no second Life, demonstrando o hibridismo entre economia “real” e as economias virtuais.

18 Testemunho de um jogador do Second life Veja Tecnologia (Agosto de 2007): “Na vida real sou lixeiro. Nem sequer tenho o ensino fundamental completo. No Second Life, recepciono grupos de novos participantes e tenho a função de ensinar os primeiros passos dentro do jogo. (...) Também invisto meu dinheiro virtual. Já tenho um terreno e uma loja de roupas e sapatos no Second Life. Não é possível trocar os lindens (a moeda do game) por reais, mas tenho planos de ganhar dinheiro de verdade no jogo.”

Page 37: Olhar pixelizado

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A proposta deste trabalho é trazer ao espectador um pouco dessa vertigem de

simulacro. É preciso perceber ou resgatar essa diferença do mundo real e da realidade

virtual Pensar a diferença entre a lâmpada, inventada por um homem e facilmente

controlada por seres humanos, e o Sol que, de certo modo, nos inventa a todos, pois sem

ele, muito provavelmente, não haveria vida em nosso planeta. Ou, em outras palavras,

trazer à luz a discussão sobre o que é real ou não.

A questão sobre “o que é a realidade?” foi banalizada, infelizmente. Mas não é

uma questão banal ou secundária, ainda mais levando em conta que o irreal é cada vez mais

presente e dominador nos dias de hoje. Precisamos rediscutir nossos parâmetros de

pensamento, nossos termos descritivos, nossos problemas atuais. Saber aonde essa

discussão vai nos levar talvez não seja o mais importante, mas entender para onde estamos

indo e o que nos impulsiona a ir nesta direção.

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Conclusão

O olhar pixelizado de hoje dará lugar a que tipo de olhar num futuro próximo? Uma

conexão direta entre cérebro e aparelhos de visão os mais variados talvez torne não só os

olhos humanos inúteis como também as múltiplas telas de que hoje dispomos serão

relíquias do passado, velharias que marcaram uma época. Num mundo cyborg seremos

máquinas orgânicas ou inorgânicas, conectadas a outras máquinas-pessoas, interagindo

numa lógica pós-humana, em rede, interligados. O próprio corpo humano, com suas

inúmeras limitações de tempo e espaço, corre o sério risco de virar peça de museu. Dirão de

nós: “Aqueles seres eram assim...” Sem conseguir processar o que este “assim” significava,

como um erro na lógica do sistema, um bug; num futuro próximo.

A arte de hoje parece “abrir caminhos” em direção a este futuro cyborg, com suas

experimentações das novas mídias. Não só a arte mais culta, como também a popular, de

entretenimento. Filmes como “Exterminador do Futuro” 19, que recentemente viraram uma

série, dramatizam o conflito entre passado e futuro, entre o que as máquinas podem nos dar

e o que as máquinas podem nos tirar. As máquinas ampliam nosso poder, ampliam nossa

visão do mundo, do universo, nossa visão do que existe e do que não existe. Mas será que

as máquinas que criamos vão começar a pensar e, principalmente, a pensar por nós? Até

quando teremos o poder de decisão sobre nossas vidas? Os filmes da trilogia Matrix20

As imagens que se agrupam e formam imaginários. Filmes, obras de literatura,

peças de teatro nos expõem futuros possíveis. Alguns mais, outros menos coesos. Ver, em

certo sentido, é compartilhar imagens, compartilhar visões. As imagens como que agregam

ou desagregam as pessoas, tornam-se símbolos de algo transcendente. As imagens do

primeiro pouso do homem na lua podem ter várias interpretações diferentes, há mesmo

quem negue que este pouso tenha de fato ocorrido, mas são imagens inegavelmente

indicam que nosso poder de decisão é apenas ilusão, como um pequeno programa

funcionando dentro de um sistema operacional muito mais amplo e poderoso. Não existiria

liberdade programada, por um lado, e tudo o que existe faz parte do sistema operacional,

por outro lado. Nesse sentido, o futuro cyborg é um simples incremento do sistema, um

acrescentar de variáveis, uma reconfiguração.

19 Exterminador do futuro, Estados Unidos, Cor, 1984, 107 mim, inglês, Direção James Cameron. 20 Matrix, Estados Unidos, Cor, 1999, 136 mim, inglês, Direção dos irmãos Wachowski.

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marcantes, que simbolizam uma conquista de toda a humanidade, “um pequeno passo para

o homem, mas um grande passo para a humanidade” 21

O mundo é do tamanho de nossos olhos; é pequeno se nos deixamos prender, e é

indescritivelmente grande se estamos abertos para novas possibilidades, vendo o mundo de

maneira incerta, sem seguir sempre, cotidianamente, os mesmos passos.

. Nosso futuro não é mais simples

aspiração, desejo disso ou daquilo. O futuro mudou. É um futuro visto e revisto, filmado e

refilmado, com maravilhosas e exuberantes trilhas sonoras e, é claro, repleto de efeitos

especiais. A grande questão é que o que parecia apenas ficção científica está

crescentemente sendo incorporado ao nosso cotidiano, como se todos nós estivéssemos nos

tornando personagens desses filmes futuristas.

Brasília 26 de junho de 2009.

21 Frase de Neil Alden Armstrong, ex-astronauta dos Estados Unidos, piloto de testes e aviador naval que, no século XX, escreveu seu nome na história da humanidade ao ser o primeiro homem a pisar na lua.

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MELO, Hygina Bruzzi. A Cultura do Simulacro. São Paulo, Loyola, 1988.

SILVA, Tomaz Tadeu. Da Antropologia do cyborgue. As vertigens do pós-humano. Belo

Horizonte, Autêntica, 2000.

VÍRILIO, Paul. A Máquina de visão. 2ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 2002.

ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao deserto do real. Rio de Janeiro, Boitempo, 2003.

Filmografia Apocalypse Now. Estados Unidos, Cor, 1979, 202 mim, inglês, Direção de Francis Ford

Coppola.

Contato, Estados Unidos, Cor, 150 mim, 1997, inglês, Direção de Robert Zemeckis.

Exterminador do futuro, Estados Unidos, Cor, 1984, 107 mim, inglês, Direção James

Cameron.

Matrix, Estados Unidos, Cor, 1999, 136 mim, inglês, Direção dos irmãos Wachowski.

Vanilla Sky, Estados Unidos, Cor, 2001, 145 mim, Direção de Cameron Crowe.

Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, Reino Unido, Cor, 2004, 141 mim, Direção de

Afonso Cuarón.

O Show de Truman, Estados Unidos, Cor, 1998, 103 mim, Direção de Peter Weir.

Abre los Ojos, Espanha, Cor, 1997, 119 mim, Espanhol, Direção de Alejandro Amenábar.

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Referências Eletrônicas http://www.revista.art.br/site-numero-10/trabalhos/32.htm. Acesso em 10/06/2009

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Acesso 25/05/2009. Acesso em 21/05/2009.

http://www.canalcontemporaneo.art.br. Acesso em 20/05/2009.

http://www.flashmob.com/. Acesso em 02/05/2009.

http://www.nopantssaopaulo.com.br/ Acesso em 02/05/2009.

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http://tv.limao.com.br/videos,FLASH-MOB-TIRA-AS-CALCAS-NO-

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http://www.inovacaotecnologica.com.br. Acesso em 10/05/2008.

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ANEXO A

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ROTEIRO

Olhar Pixelizado por Kacau Rodrigues

CENA 1 Acordar

Plano Aberto - num quarto escuro o dia amanhece (música de ninar). Close: um homem se levanta, veste seu steadycam, escova os dentes, urina, toma café, e sai de casa.

CENA 2 Trânsito

Cena fechada: alarme do carro, porta do carro abrindo, virando a chave na ignição, sinal de trânsito fechando, rosto do personagem, botão de Power do rádio, sinal de trânsito abrindo,

pneu do carro (carro partindo). CENA 3 Trabalho

Plano fechado – homem trabalha no computador. CENA 4

Pôr-do-sol pela janela do carro, personagem vira a cabeça para fora da janela.

CENA 5 Pôr-do-sol

Plano aberto – homem caminha na esplanada dos Ministérios para ver o pôr-do-sol (Pôr-do-sol a beira do lago, sentado em um píer com os pés dentro d’água).

Lapso de tempo – tempo indeterminado para transição

CENA 6 Captura

Close: homem volta para casa e captura os vídeos registrados durante o dia e posta na internet.

Plano fechado: Homem saindo do computador.

CENA 7 The End

Homem vai dormir (música de ninar novamente)

Transição longa

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CENA 8 Fecha com música agitada.

Imagens aceleradas de todo o dia em loop novamente.

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History Board

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ANEXO B − Fotos do Vídeo

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