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Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 109 OLHARES CONTEMPORÂNEOS SOBRE HISTÓRIA E CULTURA AFRO- BRASILEIRA COMO POLÍTICA CURRICULAR DA FORMAÇÃO DOCENTE 1 CLAUDILENE MARIA DA SILVA 23 Resumo O artigo objetiva discutir os olhares de professoras e professores em formação sobre a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira no Brasil, 12 anos após a promulgação da Lei nº 10.639/03. Metodologicamente, trabalhamos com a produção escrita de professoras e professores em formação inicial e continuada, elaboradas em dois processos formativos vivênciados no estado de Pernambuco. O procedimento metodológico realizado foi a análise documental. No tratamento e organização dos dados adotamos a análise de conteúdo na perspectiva de Bardin (2007). Na leitura dos documentos das professoras e professores em formação inicial evidenciamos o entendimento do grupo sobre o contexto de surgimento da Lei nº 10.639/03 e suas possibilidades de contribuir para a superação do racismo no espaço escolar; com o grupo em formação continuada ganham destaque as dificuldades apontadas para a implementação da temática em suas práticas docentes. Os resultados indicam que a inclusão da temática nos currículos escolares já não causa tanto estranhamento aos docentes em formação inicial ou continuada, embora ainda enfrente dificuldades de diversas ordens. Palavras chave: Formação docente; política curricular; ensino de História; cultura afro- brasileira. Abstract The aim of this article is to discuss believe of teachers and student of the teacher training college on the teaching of history and Afro-Brazilian culture in Brazil, 12 years after enact Law 10.639/03. Methodologically, we had worked with the written production of teachers in initial and continuing education, developed in two formative processes experienced in the state of Pernambuco in Brazil. The procedure was the documentary analysis. Treatment and organization of data, we adopted the content analysis from the perspective of Bardin (2007). Reading the documents of the teachers in initial training evidence understanding of the group of emerge the context of the Law 10.639/03 and their ability to contribute to overcoming racism in Brazilian school. The group of teachers in continuing education has highlighted the difficulties pointed to bring about the thematic in their teaching practices. The outcomes of the research indicate include of the theme in school curriculum no longer causes so much strangeness for teachers in initial or continuing education, although still face difficulties of various orders. 1 Trabalho originalmente apresentado como comunicação oral no VIII Congresso Brasileiro de Pesquisadores(as) Negros (as), na cidade de Belém do Pará – Brasil, entre 29 de julho e 02 de agosto de 2014. 2 Doutoranda em Educação; Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco/ Núcleo de Formação de Professores e Prática Pedagógica; Estudos financiados pela FACEPE.

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OLHARES CONTEMPORÂNEOS SOBRE HISTÓRIA E CULTURA AFRO-

BRASILEIRA COMO POLÍTICA CURRICULAR DA FORMAÇÃO

DOCENTE1

CLAUDILENE MARIA DA SILVA23

Resumo

O artigo objetiva discutir os olhares de professoras e professores em formação sobre a

obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira no Brasil, 12 anos após a promulgação da Lei nº 10.639/03. Metodologicamente, trabalhamos com a produção escrita de professoras e professores em formação inicial e continuada, elaboradas em

dois processos formativos vivênciados no estado de Pernambuco. O procedimento metodológico realizado foi a análise documental. No tratamento e organização dos

dados adotamos a análise de conteúdo na perspectiva de Bardin (2007). Na leitura dos documentos das professoras e professores em formação inicial evidenciamos o entendimento do grupo sobre o contexto de surgimento da Lei nº 10.639/03 e suas

possibilidades de contribuir para a superação do racismo no espaço escolar; com o grupo em formação continuada ganham destaque as dificuldades apontadas para a

implementação da temática em suas práticas docentes. Os resultados indicam que a inclusão da temática nos currículos escolares já não causa tanto estranhamento aos docentes em formação inicial ou continuada, embora ainda enfrente dificuldades de

diversas ordens.

Palavras chave: Formação docente; política curricular; ensino de História; cultura afro-brasileira.

Abstract

The aim of this article is to discuss believe of teachers and student of the teacher

training college on the teaching of history and Afro-Brazilian culture in Brazil, 12 years after enact Law 10.639/03. Methodologically, we had worked with the written

production of teachers in initial and continuing education, developed in two formative processes experienced in the state of Pernambuco in Brazil. The procedure was the documentary analysis. Treatment and organization of data, we adopted the content

analysis from the perspective of Bardin (2007). Reading the documents of the teachers in initial training evidence understanding of the group of emerge the context of the Law

10.639/03 and their ability to contribute to overcoming racism in Brazilian school. The group of teachers in continuing education has highlighted the difficulties pointed to bring about the thematic in their teaching practices. The outcomes of the research

indicate include of the theme in school curriculum no longer causes so much strangeness for teachers in initial or continuing education, although still face difficulties

of various orders.

1 Trabalho originalmente apresentado como comunicação oral no VIII Congresso Brasileiro de

Pesquisadores(as) Negros (as), na cidade de Belém do Pará – Brasil, entre 29 de julho e 02 de agosto de

2014. 2 Doutoranda em Educação; Programa de Pós -Graduação em Educação da Universidade Federal de

Pernambuco/ Núcleo de Formação de Professores e Prática Pedagógica; Estudos financiados pela

FACEPE.

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Key words: Teacher training; curriculum policy; history teaching; African-Brazilian

culture.

Introdução

Aprendemos com Paulo Freire (2011), que sendo uma prática social, a educação

ou o agir educativo de cada povo ou nação, pauta-se pelas condições e necessidades

postas em seus contextos e em seu tempo. Estudos realizados por Gatti, Barreto e André

(2011) sobre as políticas docentes no Brasil apontam que as novas realidades

contemporâneas, preocupadas com a educação como um direito humano e entendendo o

direito à educação como o direto à diferença (inclusive curricular) solicitam um novo

perfil docente e incidem diretamente nos currículos que circulam tanto nas escolas,

como nas instituições formadoras.

Gatti, Barreto e André (2011) afirmam que os modos de gestão do currículo,

constitui uma das maneiras por meio das quais a política docente se efetiva, se

materializa, ganha vida. As autoras apontam indícios de que o currículo é um território

em disputa social, e que esta disputa pode ser percebida inclusive a partir da concepção

de currículo defendida por cada uma das partes interessadas. Nos referenciais nacionais,

embora se busque responder a demanda social de inserção de questões como pluralidade

cultural, gênero e sexualidade, meio ambiente entre outros temas atuais, o currículo

ainda é estruturado de forma dicotômica e hierárquica. De um lado estão as áreas do

conhecimento e de outro os temas transversais.

Ao contextualizar as questões sobre políticas curriculares da diversidade e

políticas da igualdade, no conjunto das políticas de formação docente do governo

federal, Gatti, Barreto e André (2011) põem em evidência, a tensão existente entre esses

dois campos e a predisposição do Ministério da Educação (MEC), em romper com o

dualismo e ofertá-las de forma articulada, em que pese o fracasso dessa articulação,

identificado na análise das autoras.

Todavia, a oferta de políticas focais para a população negra incide diretamente

na oferta de políticas universais, uma vez que esta população constitui a maioria da

população brasileira e que a literatura pertinente revela que as práticas racistas na escola

são um obstáculo para a aprendizagem de alunas e alunos negros/as, quando não os

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afasta desse espaço. Por outro lado, consideramos que a oferta dessas políticas

específicas não se destinam apenas as populações específicas que beneficiam

diretamente.

Sejam elas voltadas para as relações de raça, de gênero, de sexualidade, de

geração, de inclusão ou qual quer outra subjetividade humana, destina-se ao benefício

de toda a população brasileira. O que se busca é que se repensem as bases das relações

étnico/raciais, sociais e pedagógicas sobre as quais se assenta a política educacional no

Brasil. O que caracteriza a importância da implementação dessas políticas curriculares,

portanto, da formação de professores sobre tais temáticas específicas.

Dentro desse contexto, a última década tornou-se palco do desencadeamento de

uma série de processos e ações educativas, de diversas ordens e nos diversos níveis de

ensino, com vistas à implementação da legislação educacional brasileira4, no que se

refere à inclusão da educação para as relações étnico-raciais e do ensino de história e

cultura afro-brasileira, africana e indígena nos currículos escolares. Algumas dessas

ações foram fomentadas, estimuladas e/ou financiadas pelo MEC por meio de editais5.

Nas pesquisas e estudos que se preocupam com essa questão6 a formação de professoras

e professores ganha centralidade no debate, aparecendo em duas perspectivas: ora como

maior obstáculo a ser enfrentado, ora com uma estratégia relevante para garantir o

sucesso do processo de implementação da legislação. Os resultados dessas pesquisas

revelam a importância dos processos formativos na constituição da prática docente,

discente e gestora da instituição escolar, tanto na sua dimensão inicial, quanto na

dimensão continuada.

Diante da realidade descrita propomo-nos a refletir sobre a formação docente

referente à temática da história e da cultura afro-brasileira no Brasil, 12 anos após a

promulgação da Lei nº 10.639/03. Nosso interesse é conhecer os olhares de professoras

e professores em formação sobre a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-

brasileira na atualidade.

Metodologicamente, trabalhamos com a produção escrita de professoras e

professores em formação inicial e continuada. O grupo em formação inicial é oriundo de

4 Em 2003 é promulgada a Lei nº 10.639 que introduz na Lei nº 9.394/1996, de Diretrizes e Bases da

educação Nacional, o Art. 26A que determina a obrigatoriedade do ensino do estudo de História e Cultura

Afro-Brasileira e Africana. Em 2008, a promulgação da Lei nº 11.645 altera o mesmo Art. 26A,

estendendo a obrigatoriedade para o ensino de histórias e culturas dos povos indígenas. 5 Ver Gomes (2009); Gatti, Barreto e André (2011).

6 Silva (2009a, 2009b); Oliveira (2011); Gomes (2012); Gonçalves e Silva (2013) entre outros.

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dois cursos de licenciatura (Educação Física e Ciências Biológicas) em uma instituição

particular, que seguindo as recomendações do MEC para garantir uma boa avaliação

conceitual dos cursos, incorporou em 2011 a matriz curricular das licenciaturas a

disciplina denominada “Educação e Cultura Afro-Brasileira”. As produções desse grupo

foram 19 avaliações dissertativas respondidas por esses sujeitos e utilizadas como

instrumento de verificação da aprendizagem dos conteúdos ministrados na referida

disciplina.

O grupo em formação continuada atua nas redes públicas de ensino de 05

cidades do estado de Pernambuco e participaram do curso de extensão “Educação das

Relações Étnico-Raciais”. O curso foi oferecido pelo Núcleo de Estudos Afro-

Brasileiros da Universidade Federal Rural de Pernambuco (NEAB/UFRPE) e

financiado pelo MEC. As produções desse grupo foram 05 diagnósticos da realidade das

escolas nas quais estão inseridos, sobre a temática das relações étnico-raciais. Escritos

em equipes, os documentos possuíram o objetivo de subsidiar o planejamento das aulas

do curso, no módulo “Metodologia para Educação das Relações Étnico-Raciais e o

Ensino da História e da Cultura afro-brasileira” e orientar as ações do grupo em suas

realidades.

O procedimento realizado foi a análise documental e utilizamos como fonte as

avaliações dissertativas e os diagnósticos produzidos em ambos os processos

formativos. Para o tratamento e organização dos dados adotamos a análise de conteúdo

na perspectiva de Bardin (2007), por meio da análise temática.

O artigo está organizado em três sessões: na primeira parte realizamos uma

discussão teórica por meio da qual buscamos enfatizar os 12 anos da Lei 10.639/03,

como construção de uma política de educação para as relações étnico/raciais no Brasil,

texto no qual as categorias política curricular e formação docente ganham relevo. Na

segunda e terceira partes trazemos os resultados da análise da percepção das professoras

e professores em formação inicial e continuada, respectivamente, sobre a

implementação do ensino de história e cultura afro-brasileira na atualidade.

12 anos da Lei nº 10.639/03: construindo uma política de educação para as relações

étnico/raciais no Brasil.

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As iniciativas educativas empreendidas pelo Movimento Social Negro

Brasileiro, ao longo da história do país, são indícios de que esse movimento social

sempre considerou a educação escolar como um portal poderoso para ascensão social de

seu povo. Além de promover os seus próprios processos de escolarização, reivindicou e

continua a reivindicar a inclusão da população negra na escola pública em todos os

níveis de ensino. Entretanto, como se sabe, o espaço escolar é marcadamente

discriminatório para essa população, resultando num aproveitamento desigual e

exigindo-lhes maior grau de empenho para que consigam atingir o sucesso escolar

(PAIXÃO, 2008).

Ao perceber que o tipo de política educacional adotado no Brasil desconsiderava

a população negra, a atuação do movimento negro brasileiro no século XX elegeu a

educação como uma forte bandeira de luta e buscou evidenciar a necessidade de

introduzir o estudo da História da África nos currículos escolares; discutir o papel da

professora e do professor na descolonização do ensino; e considerar a aprendizagem

pela prática cultural como elemento importante para o sucesso do processo de

ensino/aprendizagem da população negra7.

O início do século XXI é marcado pela transformação, ainda que lenta, das

antigas reivindicações dos movimentos negros em políticas públicas. No âmbito da

educação, a promulgação da Lei nº 10.639, em 9 de janeiro de 2003, é uma conquista

histórica desses movimentos (SILVA, 2009a).

A partir das reivindicações de acesso da população negra à instituição escolar e

da inclusão da história e cultura afro-brasileira nos currículos escolares, os movimentos

negros brasileiros problematizaram a existência de valores e práticas discriminatórias na

escola, principalmente quando essa instituição nega a existência da diferença em seus

domínios. Revelou a heterogeneidade da escola e enfatizou a história de luta e

resistência da população negra (uma vez que a escola apenas oferecia a história de sua

escravidão) e a centralidade da cultura nos processos educacionais do povo negro.

De acordo com Nilma Gomes (2010, p. 04):

Os ativistas do Movimento Negro reconhecem que a educação não é a solução de todos

os males, porém, ocupa um lugar importante nos processos de produção de

conhecimento sobre si e sobre “os outros”, contribui na formação de quadros

intelectuais e políticos e é constantemente usada pelo mercado de trabalho como critério

de seleção de uns e exclusão de outros.

7 Proposições resultantes dos debates realizados no VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste,

realizado no Recife, em julho de 1988.

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É nesse sentido que compreendemos o processo de instituição da

obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira como parte do embate

histórico empreendido por este movimento em busca de caminhos possíveis para a

construção e o fortalecimento de uma identidade étnico-racial positiva para a população

negra no Brasil. Ou dito de outra forma, como resultado das lutas do Movimento Social

Negro contra o racismo existente na sociedade brasileira.

A alteração da LDB 9394/96 pela Lei nº 10.639/03, como lembra Gonçalves e

Silva (2013 p. 2) “trata-se de uma política curricular de reconhecimento e de reparação

de desigualdades”. E não por outro motivo, 10 anos após a institucionalização da

política ainda são muitas as dificuldades elencadas pelos secretários de educação, como

anuncia Gomes (2010), para dar corpo à gestão da diversidade em seus sistemas de

ensino. Tais dificuldades embora sejam indicativas das disputas e negociações

permanentes em torno da construção do texto e das vivências das práticas curriculares,

também apontam para o desconhecimento dos documentos que regulamentam a Lei – o

Parecer nº 03/2004 e a Resolução nº 01/2004 –, ambos emitidos pelo Conselho Nacional

de Educação (CNE). Neles encontramos orientações fundamentais para a

implementação e consolidação da política curricular.

O Parecer CNE/CP 03/2004 foi elaborado sob a responsabilidade da professora

Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva8, a partir de ampla consulta a diversas pessoas e

grupos do Movimento Social Negro, Conselhos Estaduais e Municipais de Educação,

professores que desenvolvem trabalhos sobre a temática das relações étnico-raciais

(GONÇALVES E SILVA, 2006 apud GOMES, 2009). O documento oferece caminhos

possíveis para que os sistemas de ensino tenham parâmetros e condições de efetivar os

preceitos da Lei nº 10.639/03. Explicita os princípios orientadores da política

educacional e faz recomendações para a formação de professoras e professores, a forma

e os conteúdos que devem ser abordados, a necessidade de investimentos em pesquisas,

bem como a produção e aquisição de materiais didáticos.

8 Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva é reconhecida ativista e intelectual da causa negra. Pesq uisadora

das relações étnico-raciais e africanidades brasileiras, é professora titular de Ensino-Aprendizagem das

Relações Étnicorraciais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e integra o Núcleo de

Estudos Afro-Brasileiros/UFSCar.

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Por sua vez, a Resolução CNE/CP 01/2004 fundamentada no referido parecer,

institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais

e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que devem ser

adotadas pelas diversas instituições de ensino, inclusive aquelas que atuam em

programas de formação inicial e continuada de professoras e professores. Destaca que o

cumprimento das referidas diretrizes será considerado na avaliação das condições de

funcionamento das instituições de ensino. Apresenta os objetivos de cada uma das

temáticas em questão, aponta as atribuições de cada ator dos sistemas de ensino e indica

possíveis parceiros para subsidiar e trocar experiências com os sistemas e

estabelecimentos de ensino na implementação da política, tais como: os grupos do

Movimento Social Negro (inclusive grupos culturais), as instituições formadoras de

professoras e professores e os núcleos afro-brasileiros de estudos e pesquisas.

Como é possível notar essa política curricular propõe-se a modificar a escola,

mexendo com a estrutura da instituição, uma vez que exige a mudança de atitude dos

atores da comunidade escolar em seus mais diversos níveis de atuação.

Ainda segundo Nilma Gomes (2009, p. 40):

Com avanços e limites, a Lei 10.639/03 e suas diretrizes curriculares possibilitaram uma

inflexão na educação brasileira. Elas fazem parte de uma modalidade de política até

então pouco adotada pelo Estado brasileiro e pelo próprio MEC. São políticas de ação

afirmativa voltadas para a valorização da identidade, da memória e da cultura negras.

Ao considerarmos que o racismo antinegro constitui elemento estruturador das

relações sociais e institucionais que foram estabelecidas no Brasil, podemos concluir

que, por consequência, a política curricular do ensino de história e cultura afro-brasileira

propõe modificações para a estrutura da própria sociedade brasileira. Partindo desse

princípio, não será difícil compreender o nascedouro das dificuldades vivênciadas e

enfrentadas no exercício de sua implementação. Como assinala Gonçalves e Silva

(2013, p. 2):

Uma sociedade cuja herança da colonização europeia é valorizada não como um dos

componentes da cultura nacional, mas como aquele em que todos deveriam

privilegiadamente se pautar, os descendentes de europeus estão convencidos de que os

valores, conhecimentos, tradições que herdaram de seus avós migrantes são universais.

E nesse sentido, a política põe em evidência o questionamento ao modelo único

de escola e dentro dele, a seleção e hierarquização dos conhecimentos curriculares, bem

como as “dificuldades frequentes de pessoas de diferentes pertencimentos étnico-raciais,

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notadamente brancos e negros, indígenas e não indígenas conviverem em relações de

igualdade e respeito” (GONÇALVES E SILVA, 2013 p. 2). Motivo pelo qual, como

sugere Oliveira (2011), ela é um instrumento que pode criar as condições para a

transformação das relações de subalternidade na educação brasileira, pois se propõe a

ampliar o foco dos currículos, assumindo novas abordagens interpretativas sobre a

identidade nacional, com alguns pressupostos não-eurocêntricos.

Nesse processo, a formação docente ganha papel relevante, uma vez que “o

desafio de contar e aprender uma história outra e fazer dela um elemento de novas

perspectivas políticas, epistemológicas e indenitárias nos processos educacionais”

(OLIVEIRA, 2011, p. 11) não está mais apenas a cargo dos movimentos negros, mas de

todos os profissionais da educação. Todavia, concordamos com o autor que este

continua sendo um campo de disputas, conflitos e negociações. E, portanto, “a produção

de novas enunciações e espaços de enunciações” dependerá durante muito tempo ainda

da capacidade de luta e organização coletiva da população negra brasileira para dar

materialidade à intencionalidade da Lei e suas diretrizes.

Gatti, Barreto e André (2011), afirmam que as preocupações com a educação,

com a formação de professores e suas condições de trabalho aparecem como uma

questão importante na sociedade atual, exatamente por que resultam das “demandas e

das pressões de variados grupos sociais” (p. 13). Ao lado do Movimento Social Negro e

do Movimento Social Indígena, os Movimentos Sociais do Campo, destacados no

trabalho de Maria do Socorro Silva (2009), se constitui exemplos dessas demandas e

pressões.

Convidando-nos a refletir sobre os sentidos e significados de uma educação

contextualizada, Socorro Silva (2009) identifica e reconhece os Movimentos Sociais do

Campo como protagonistas da construção e desenvolvimento de práticas pedagógicas

voltadas para a educação do campo, inclusive no que se refere à elaboração de um

marco jurídico específico para essa educação, assim como dá visibilidade e audibilidade

às Escolas do Campo e suas práticas, temáticas como bem lembram Gatti, Barreto e

André (2011), ainda silenciadas no âmbito da formação de professores e da prática

pedagógica. Assim, uma das contribuições da autora para este campo de pesquisa é

exatamente o questionamento ao modelo único de escola que não mais condiz com a

realidade e as necessidades contemporâneas da educação brasileira, nem no campo e

nem na cidade.

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Todavia, as novas exigências ao trabalho docente e entre elas a obrigação de dar

conta das diferentes diversidades, ainda assustam e incomodam docentes e outros

profissionais da educação que habitualmente foram preparados para lidar com a

igualdade e não com a diferença. É nesse contexto que desejamos conhecer os olhares

das professoras e professores em formação sobre a implementação da política curricular

que institui o ensino de história e cultura afro-brasileira.

A Lei Nº 10.639/03 na Percepção de Professoras e Professores em Formação Inicial

12 anos após sua Promulgação

Na leitura dos documentos produzidos pelas professoras e professores em

formação inicial buscamos evidenciar o entendimento do grupo sobre o contexto de

surgimento da Lei nº 10.639/03 e suas possibilidades de contribuir para a superação do

racismo no espaço escolar.

Identificamos três dimensões de referência à compreensão do contexto que são

apresentadas pelo grupo em suas respostas: (1) o reconhecimento da luta do movimento

social negro;(2) a repetição do discurso legal sobre a temática; e (3) o reconhecimento

da diferença cultural entre os povos. Cabe ressaltar que estas respostas foram

produzidas em situação de avaliação, que tinha como fonte de inspiração as vivências e

os textos discutidos ao longo da disciplina. Portanto, tendem a refletir o entendimento

construído ao longo desse processo formativo.

Compreender o contexto de promulgação da obrigatoriedade do ensino de

história e cultura afro-brasileira como reconhecimento da luta do movimento social

negro, expressa o protagonismo desse movimento social, mas também revela a solidão

da população negra na luta antirracista no Brasil, como é possível notar nas falas que

seguem:

Uma conquista histórica para o Movimento Negro Brasileiro, que tanto lutou para ela

ser obrigatória no contexto da escola. (PFI 3)

O surgimento dessa lei partiu de muitas batalhas travadas pelos negros em busca de um

ideal, uma identidade, do reconhecimento histórico de seu povo e sua importância no

âmbito social, demostrando seus interesses para uma adequação antirracista nos seus

direitos como qualquer cidadão. (...) É um marco que se faz necessário e de extrema

importância para o entendimento histórico que precisamos ter sobre essa realidade. (PFI

7)

Ainda que considerando a solidariedade e comprometimento de pessoas e grupos

antirracistas de outros pertencimentos raciais, que foram/são aliados do Movimento

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Negro nesse processo, como já afirmamos em trabalho anterior, não se pode negar que

as preocupações com as relações que se desenvolvem entre a educação e a questão

étnico-racial fora do âmbito do Movimento Social Negro são muito recentes (SILVA,

2009b).

Outra ideia importante que esta compreensão do contexto revela é o

entendimento de que a atuação do movimento social negro incidiu na construção da

política pública de educação, como mostra uma das professoras: “essas leis foram

formadas através de grupos, onde cada grupo tinha o objetivo de defender sua etnia.

Passam a vigorar no Brasil com o intuito de minimizar o preconceito, o racismo e a

discriminação” (PFI 1).

Uma ideia que dialoga com o trabalho de Maria do Socorro Silva (2009), quando

em seus achados a autora reafirma a Educação do Campo como conquista de um direito,

originária dos movimentos sociais do campo, os quais conseguiram implementar

práticas pedagógicas local e nacionalmente, transformando-as em política educacional.

Aponta, portanto, para um contexto político/temporal no qual, por meio de suas diversas

formas de organização e luta, as demandas dos movimentos sociais específicos vão

ganhando contornos de política pública.

Uma segunda dimensão do contexto encontrada nas respostas do grupos em

formação inicial é a repetição do discurso legal sobre a temática. Aqui é importante

destacar que quando falamos em discurso legal, não estamos nos referindo apenas e

especificamente ao que diz a legislação sobre o assunto, mas também ao que pode ser

considerado como o “politicamente correto” sobre o contexto de surgimento da Lei,

como é possível verificar no texto que segue:

A lei aborda o contexto das relações étnico-raciais brasileiras, como política

educacional de promoção da igualdade racial, incluindo a questão étnico -racial nas

metas educacionais. Com uma abordagem de se ter um discurso sem distinção, chega-se

a escola onde tudo começa a ser distinguido para que sejam compensados processos

desiguais entre a população brasileira.

(PFI 6)

Em que pese nossa fonte documental tratar-se de uma avaliação, chama nossa

atenção o fato de algumas professoras e professores trazerem uma síntese sobre o

assunto tal qual os textos discutidos e utilizados para inspiração, sem demostrar suas

compreensões sobre o contexto, já que o instrumento avaliativo solicitava o seu

entendimento.

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Por fim, a terceira dimensão apresentada sobre o contexto de surgimento da

política curricular em questão indica o reconhecimento da diferença cultural entre os

povos, entendido como necessidade para possibilitar o diálogo entre culturas, conforme

os textos a seguir:

O contexto geral vem do pensamento de ensinar para combater o racismo dentro do

currículo escolar e mostrar, de forma geral, que podemos ter culturas diferentes, mas

não existem culturas superiores (PFI 4);

Surgiu a partir do interesse ao conhecimento histórico e cultural dos nossos ancestrais,

tornando mais claro a nossa miscigenação racial e cultural, valorizando mais o

conhecimento e estudo da nossa cultura (PFI 5);

Esta compreensão do contexto se aproxima do que o militante afro-equatoriano

Ruan García tem se referido como o conhecimento casa a dentro. Segundo Walsh

(2007), Garcia utiliza essa expressão para designar os processos internos das

organizações e comunidades para construir e fortalecer um pensamento e um

conhecimento próprios. Para o afro-equatoriano, sem conhecimentos próprios não

podemos construir a interculturalidade. Se não temos conhecimento casa a dentro, não

podemos dialogar com outros conhecimentos casa a fora9.

No que se refere às possibilidades da obrigatoriedade do ensino de história e

cultura afro-brasileira contribuir para a superação do racismo no espaço escolar, as

professoras e professores em formação inicial são unanimes: acreditam que o

conhecimento sobre as culturas permite construir novas visões de mundo e, portanto,

construir novas visões sobre o racismo, o preconceito e a discriminação racial, ainda

que reconhecendo os limites e morosidade da Lei nesse processo, como é possível

notar:

Sim, as pessoas têm que entender que todos nós descendemos de alguma cultura, e a

diferença entre culturas não nos torna diferentes. A forma certa de tratar disso é

exatamente essa, ensinando as culturas . (PFI 4)

Creio que sim. Pois tendo um conhecimento de nossas culturas e origens, veremos que

nossa formação cultural, social, religiosa e “racial” parte de uma grande mistura de

povos e culturas. Com o estudo das culturas teremos um conhecimento cultural maior e

um respeito a mais com as diferentes culturas, “raças” e credos . (PFI 5)

Sim, pois os indivíduos passam a ter o conhecimento da cultura e sendo assim passa a

ter uma nova visão sobre o preconceito e o racismo. (PFI 1)

9 Alguns autores/as afro-brasileiros, como Célia Azevedo, têm se referido a esses mesmos processos com

os termos “da porteira pra dentro” e “ da porteira pra fora”.

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A lei é um excelente passo para o início da “extinção” do preconceito racial. (...) O

conhecimento é a chave para acabar com a ignorância. Entretanto, querendo ou não o

preconceito racial vai ser muito difícil de se extinguir. (PFI 2)

Consideramos importante destacar a ideia contida nesta última fala sobre a

implementação da política curricular como passo inicial. De acordo com a resposta do

professor, é possível inferirmos que embora o conhecimento seja importante nesse

processo, ele não conjuga todos os elementos necessários para a produção de práticas e

comportamentos antirracistas.

Compreensão que dialoga com os achados de nossa pesquisa (2009a), na qual as

professoras entrevistadas consideraram que as atividades por elas desenvolvidas no trato

às relações étnico-raciais na sala de aula contribuem para a superação do racismo no

espaço escolar, embora sejam mínimas considerando a grandiosidade do problema, e

necessitem de aprofundamento.

Parece-nos, portanto, que o que está em xeque quando se questiona a capacidade

de mudança a ser produzida pelo conhecimento sobre a cultura afro-brasileira é a forma

como ele está sendo oferecido. Ou seja, é a qualidade desse conhecimento que está

sendo disseminado no espaço escolar. Aspecto que podermos melhor aprofundar ao

analisarmos a percepção das professoras e professores em formação continuada sobre a

implementação da temática no espaço escolar.

História e Cultura Afro-Brasileira e Africana no Espaço Escolar: a percepção de

professoras e professores em formação continuada

Uma primeira leitura dos dados da realidade escolar produzidos pelas

professoras e professores em formação continuada logo nos revela as aproximações que

podem ser feitas entre os diagnósticos apresentados10. Guardadas as devidas

singularidades, há semelhanças entre as realidades das escolas, que se localizam na

periferia de grandes cidades, na região central de cidades menores, ou em suas áreas

rurais. Os alunos são apresentados, em sua maioria, como sendo das camadas populares

ou de baixa renda, possuindo pouco acesso a atividades de lazer e em alguns casos

desenvolvendo tarefas para contribuir com o orçamento familiar ou compartilhando as

10

Documento escrito sobre a realidade escolar nas quais os profissionais estão inseridos. Produzido em

equipe e com a finalidade de apresentar um olhar diagnóstico sobre as relações étnico-raciais em cada

espaço. O roteiro de elaboração foi sugerido pelas professoras formadoras do curso e serviu para orientar

as suas aulas.

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responsabilidades domésticas com seus familiares. Em relação ao pertencimento racial,

são descritos, majoritariamente, como negros e negras (pretos/pardos), embora boa parte

não se percebam assim.

Para o aprofundamento da análise três temáticas ganharam destaque: (1) a

percepção dos docentes sobre as relações étnico/raciais na escola; (2) a existência ou

não de atividades relacionadas a história e cultura afro-brasileira e africana; e (3) as

dificuldades encontradas para a implementação do trabalho pedagógico.

No que se refere às relações raciais na escola, notamos que ainda existe

resistência para o enfrentamento a questão posta. É difícil para os profissionais

reconhecer a existência de manifestações de preconceito, discriminação e racismo em

seu espaço escolar. E quando há o reconhecimento, essa percepção aparece quase

sempre na relação entre os estudantes como indica o depoimento a seguir: “Entre eles

não percebo a discriminação direta, ou seja, nunca ouvi os chamarem de negros ou

soltar piadas, pelo menos em sua maioria” (D3). O conflito é quase sempre negado.

Quando aparece no texto, é como uma ação que excede a regra, conforme descrito no

diagnóstico 4: “Há um certo respeito às diferenças, em parte pelas regras estabelecidas

pela escola, mesmo assim acontece esporadicamente casos de preconceito (são

raríssimos)”.

De acordo com os diagnósticos, a maior parte das escolas não possuem um

trabalho sistemático em relação à implementação do ensino de história e cultura afro-

brasileira e africana, ou mesmo sobre as relações étnico-raciais. Em uma instituição o

trabalho é realizado de forma pontual e solitária, dentro da sala da professora ou

professor, em outra a temática nunca foi discutida, conforme a afirmação a seguir:

“nunca houve um trabalho voltado para o tema das relações raciais. Não há profissional

que aparentemente se interesse pelo tema. A gestora não interfere e nem opina para que

a temática seja desenvolvida, embora apoie qualquer iniciativa de professores” (D2). Há

também o caso das escolas nas quais os profissionais afirmam a existência de algum

trabalho coletivo, conforme podemos ver:

Houve um projeto que envolveu alunos, pais, sociedade corpo docente etc. com o

objetivo de conscientizar e valorizar os elementos da cultura afrodescendente e

indígenas e também apresentar a Lei 10.639/03 fazendo valer seus direitos e valores.

(D1)

Durante o ano de 2012, além das discussões na disciplina Direitos Humanos, realizamos

oficinas com a temática, e um café filosófico com o tema “racismo”, foram debates

muito interessantes. (D4)

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Nestes casos, as atividades são pontuais e as referências são feitas em relação ao

tempo passado, em que pese ambos os diagnósticos afirmarem que as escolas

desenvolvem um trabalho que acontece periodicamente: “todos os profissionais

trabalham a temática bimestralmente nas salas de aula, com debates, pesquisas, mural

etc.” (D1); possuindo o envolvimento de todos os professores e em todas as áreas de

conhecimento: “a escola trabalha esse tema não somente nas ciências humanas, mas em

todas as áreas do conhecimento. O estudo desse tema está inserido no planejamento da

escola”. (D4) Todavia, não apresentam maiores detalhes que possam nos ajudar a

encontrar a consistência do trabalho em questão.

Existem ainda escolas que tiveram instituída uma disciplina específica sobre a

temática na matriz curricular de sua rede de ensino, mas que reconhecem que o trabalho

desenvolvido é ainda “inicial e tímido”. “A partir do ano de 2011, foi inserida na matriz

curricular a disciplina sob a denominação “História das Culturas Afro e Indígena”, e

vem sendo abordada sem o devido entusiasmo (...) infelizmente ainda não avançamos o

desejável na abordagem da temática” (D5).

No caso dessa rede de ensino o documento ainda acrescenta que a disciplina é

ministrada pelos professores de história do Brasil e estes profissionais “desde o início

reclamam a falta de ajuda pedagógica para melhor conduzir os conteúdos propostos”.

Embora apresentem algumas notícias de atividades desenvolvidas, a maior parte

dos diagnósticos: a) Não deixa evidente a existência de um trabalho sobre a temática; b)

Não traz os elementos da ação; e c) Não discute as circunstâncias nas quais a temática

foi, ou não foi inserida na escola.

Quando enfocamos as dificuldades encontradas para a implementação do

trabalho pedagógico. Os problemas apresentados são muito parecidos e alguns já bem

conhecidos e discutidos nesse contexto: falta de formação para os profissionais, falta de

material didático, falta de parceiros para a realização do trabalho, falta de apoio da

gestão escolar, entre outros.

Além desses problemas, o processo de construção identitária dos sujeitos que

compõem o espaço escolar é lembrado como uma dificuldade para a implementação da

temática, como é possível notar neste relato: “O tema não é facilmente desenvolvido

porque a escola tem professores e alunos (maioria) negros, mas que não se declaram

negros, não são receptivos com o assunto e não tentam desenvolvê- lo” (D2).

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Entretanto, um aspecto merece destaque: diz respeito à forma como as

professoras e professores veem a relação entre o ensino de história e cultura afro-

brasileira e africana e as religiões de matriz africana. De forma geral, a ligação

estabelecida entre estes dois campos aparece como sendo a grande dificuldade a ser

enfrentada na implementação de um trabalho sobre a temática. As professoras e

professores afirmam que:

[são dificuldades] A falta de aceitação dos educadores e educandos, a associação feita

entre a cultura afro e o candomblé e a rejeição por parte dos evangélicos. (D1)

As maiores dificuldades em trabalhar tal temática está no preconceito velado que ainda

existe na nossa sociedade como um todo, e também na formação cultural das famílias

que fazem parte da escola. Mas o ponto mais crítico dessa discussão é a religião. (D4)

Como já indicamos em trabalho anterior (SILVA, 2009a), as religiões de matriz

foram (e ainda são) sistematicamente apresentadas à população brasileira como práticas

demoníacas, associadas à bruxaria e à loucura, causando medo naqueles que não a

conhecem). A depreciação dessas práticas religiosas configura-se como uma forma de

manifestação do racismo, uma vez que é fundamentada pela classificação de “coisa de

nego”, que neste caso possui a conotação de “coisa do mal”.

Consideramos que esta é uma situação bastante delicada, pois

múltiplos são os casos de preconceito religioso que acontecem no espaço escolar. De

forma que a associação entre cultura afro-brasileira e religiões de matriz africana têm

servido como justificativa para a rejeição da abordagem da temática no espaço escolar.

Entretanto duas considerações merecem ser feitas: a primeira é que como destaca o

diagnóstico 2, “na prática, não se pode confirmar 100% a rejeição do assunto, uma vez

que nunca foi abordado nem desenvolvido por ninguém”. A segunda é que as

religiões de matriz africana são a base da cultura afro-brasileira. E dessa forma,

para ensinar história e cultura afro-brasileira os profissionais da educação de fato

precisam se aproximar desse campo temático, não como sistema religioso, mas como

manifestação cultural dos povos negros.

Considerações Finais

As aproximações da produção das professoras e professores em formação, seja

ela inicial ou continuada, apontam indícios de que 12 anos após a instituição da

obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira, a inclusão dessa temática

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nos currículos escolares já não causa tanto estranhamento. Ou seja, parece-nos que esta

realidade é indicativo de que, embora a Lei ainda não esteja sendo implementada em

todas as escolas, ou aconteça de forma vulnerável em alguns contextos, existe um

debate público instalado sobre esta questão na sociedade brasileira.

Nenhuma professora ou professor que participou do nosso estudo questiona, por

exemplo, se existe ou não existe racismo no Brasil, como acontecia há alguns anos. Em

seus discursos aparece inclusive a cobrança em relação ao ensino de história e cultura

afro-brasileira ainda não ser vivenciado pela maioria das escolas. Em sintonia com uma

formação específica, esses docentes construíram um discurso sobre a importância da

inclusão da temática no espaço escolar, embora ainda apresentem dificuldades para

vivenciar esse currículo. O que é indicativo de que estamos vivenciando um momento

de mudança, de transição.

Tomando a grande quantidade de atividades, programa, projetos e ação que

foram desencadeadas pela legislação e pela política curricular para o ensino de história e

cultura afro-brasileira (entre as quais se encontram os processos formativos que

constituíram o universo desse estudo), parece-nos que não de forma tranquila, mas a

disputa curricular está instalada na sociedade brasileira e no interior das escolas.

Entretanto, a perspectiva epistêmica dessas ações educativas nem sempre apresentam

distanciamentos significativos das práticas eurocêntricas que produziram a suposta

inferioridade da população negra no Brasil.

Situar a formação docente no mundo contemporâneo apresenta-se como uma

possibilidade para avançar nesse processo. Um mundo que se caracteriza

fundamentalmente como um espaço de trocas, disputas e negociações permanentes

(entre pessoas e grupos), sejam elas políticas, econômicas, sociais ou culturais. Um

mundo, como afirma Nestor Canclini (2009), que cada vez mais reconhece e afirma as

identidades, as subjetividades e/ou as diferenças, mas mantém intactas as desigualdades.

Nesse mundo, a problematização de questões conceituais vinculadas a prática docente e

a produção do conhecimento histórico acerca da temática, nos parece constituir desafios

atuais a serem enfrentados no campo da formação de professoras e professores, tanto

inicial quanto continuada.

Consideramos que não basta a incorporação de conteúdos relativos à temática

nos currículos escolares, sem uma ampla reflexão sobre para que ensinar, por quê

ensinar, o quê e como ensinar sobre educação das relações étnico-raciais e história e

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cultura afro-brasileira. Uma questão fundamental para não corrermos o risco de

continuar reproduzindo a subalternização da população negra, nos parece ser a reflexão

sobre a perspectiva epistemológica que irá orientar a educação e o ensino. De qual

África, de qual afro-brasileiros, de qual cultura e de qual história falamos? Nesse

caminho, a explicitação e apropriação de princípios orientadores da atuação pedagógica

poderá constituir uma relevante estratégia.

Percebemos que a formação de professoras e professores (tal qual a vivenciamos

hoje) possui elementos que podem possibilitar uma incidência na prática docente, mas

não dá conta de incidir na inteireza da prática pedagógica, aqui concebida como define

Souza (2009): uma prática institucional, constituída pelas dimensões docente, discente,

gestora e epistemológica. A atuação docente, no que se refere à educação das relações

étnico-raciais e ao ensino de história e cultura afro-brasileira, ainda acontece de forma

voluntária e isolada, muitas vezes sem ultrapassar os limites da sala de aula. Investir em

estratégias que estimulem uma ação coletiva e institucional, além de fortalecer os

trabalhos individuais já existentes poderá evitar a descontinuidade e vulnerabilidade da

ação pedagógica.

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