Oliver Twist

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  • Oliver Twist

  • C A R L O S D I C K E N S

    Oliver Twist

    TraduoMachado de Assis

    Ricardo Lsias

    So Paulo 2002

  • Copyright Hedra, 2002

    CapaCamila Mesquita

    Projeto grficoAntonio Carlos da Cunha

    Fabiana Pinheiro

    Produo grficaFabiana Pinheiro

    RevisoRita Sam

    Iuri Pereira

    Nota editorial: os textos reproduzidos na orelha e na quarta capa foram extrados dos seguintes livros: Carpeaux, Otto Maria.

    Ensaios reunidos, 1942-1978. Rio de Janeiro, Topbooks/UniverCidade, 1999; Ferreira, Aurlio Buarque de Holanda & Rnai,

    Paulo. Mar de histrias vol. 3. 4a. ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Dickens, Charles, 1812-1870Oliver Twist / Charles Dickens; traduo de Machado de Assis e Ricardo Lsias 1a. edio So Paulo: Hedra, 2002.

    Ttulo original: Oliver Twist.

    ISBN 85-87328-26-31. Romance ingls I. Assis, Machado de, 1839-1908. II. Lsias, Ricardo. III. Ttulo.

    00-0299 CDD-823 ndices para catlogo sistemtico:1. Romances: Literatura inglesa 823

    [2002]EDITORA HEDRA

    rua fradique coutinho, 1139 - 2o andar05416-011 So Paulo - SP - Brasil

    telefone/fax: (011) 3097 [email protected]

    www.hedra.com.br

    Foi feito o depsito legal.

  • CHARLES JOHN HUFFMAN DICKENS NASCEU EM LANDPORT, arredores de Portsmouth, em 7 de fevereirode 1812. Considerado o escritor mais tpico da Inglaterra, trabalhou como operrio at osquinze anos e viu seu pai ser encarcerado por no conseguir pagar suas dvidas. Em 1827empregou-se como escrevente de cartrio, emprego no qual pde aprender a estenografiaque o levaria mais tarde a conseguir um lugar como reprter-estengrafo do Morning Herald.Em 1833 publicou uma srie de crnicas da vida londrina, reunidas em 1836 sob o ttuloSketches by Boz (Esboos de Boz). Publicou em seguida em folhetins o romance Pickwickpapers (Documentos de Pickwick). Em 1836 casou-se com Catherine Hogarth, com quemteria dez filhos. Dois anos depois publicou Oliver Twist, romance de enorme sucesso em queDickens, inspirado em sua infncia e na Londres da poca, denuncia a desumanidade dascasas de trabalho que acolhiam as pessoas pobres. O tema desse e de outros romances Nicholas Nickelby (1838-39), Old curiosity shop (Loja de antigidades, 1840), Barnaby Rudge(1841), por exemplo leva Dickens a assumir um papel de reformador social. Nessa pocavai aos EUA, de onde voltaria decepcionado com o materialismo presente na democraciaamericana. Em 1843 publicou Christmas Carol (Contos de Natal) livro que bem expressa opaternalismo essencialista de Dickens. Quando j gozava de uma celebridade que ultrapassavaos limites da Inglaterra, procurou sintetizar em uma narrativa suas idias morais no romanceque muitos considerariam sua obra-prima, David Copperfield (1849-50). A infncia rudede Dickens, alm de outros aspectos da vida na Inglaterra de seu tempo, esto a retratadosde modo ora dramtico ora ameno. Publicou ainda Bleak house (Casa desolada, 1852), Hardtimes (Tempos difceis, 1854) e Little Dorrit (A pequena Dorrit, 1857), todos imbudos deum profundo pessimismo e desencanto com os homens e as instituies de sua poca. Em1857 abandonou a esposa para unir-se a uma jovem atriz, Ellen Ternan. Charles Dickensmorreria em 9 de junho de 1870, em Gadshill, Rochester, deixando inacabado um romancepolicial The mistery of Edwin Drood (O mistrio de Edwin Drood, 1869-70).

    JOAQUIM MARIA MACHADO DE ASSIS nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1839. De famlia humilde,foi criado pela madrasta. Antes de trabalhar para a imprensa, atividade que exerceu durantepraticamente toda a vida, empregou-se como tipgrafo. Praticou a poesia, o teatro, a prosa, oensaio e a crnica, tendo-se destacado como notvel contista e romancista. Como tradutor,alm de Charles Dickens e Vtor Hugo, trouxe para o portugus Alphonse de Lamartine,William Shakespeare, Alfred de Musset e Edgar Allan Poe, entre outros. A partir da publicaodas Memrias pstumas de Brs Cubas (1881), passou da posio de bom escritor para a deprosador mais notvel das letras brasileiras. s Memrias seguiram-se Quincas Borba (1892)e Dom Casmurro (1900), entre algumas coletneas de contos. Apesar de ter ficado conhecidocomo personalidade tmida e reservada, manteve contato com os principais intelectuais de suapoca e fundou a Academia Brasileira de Letras. Faleceu em 1908.

    RICARDO LSIAS tem vinte e seis anos, nasceu e sempre viveu em So Paulo. Mestre em LiteraturaBrasileira, doutorando na mesma rea, publicou em 1999 o romance Cobertor de estrelas,que agora est sendo traduzido para o espanhol e o galego. Atualmente, divide com oilustrador Newton Foot a autoria da srie Turma dos Direitos, uma coleo de livrosdestinada ao pblico infantil cujo principal tema a Conveno pelos Direitos da Criana;o primeiro livro, Sai da frente, vaca brava!! foi publicado em 2001 e o segundo, Greve contraa Guerra, est no prelo. Alm disso, traduziu para o portugus o livro Flor do deserto, deWaris Dirie, para colaborar na luta contra a mutilao genital feminina. Enquanto preparaseu segundo romance, publicou a novela Capuz na forma de uma plaquete no comercial.

  • ApresentaoCaptulo ICaptulo IICaptulo IIICaptulo IVCaptulo VCaptulo VICaptulo VIICaptulo VIICaptulo IXCaptulo XCaptulo XICaptulo XIICaptulo XIICaptulo XIVCaptulo XVCaptulo XVICaptulo XVIICaptulo XVIIICaptulo XIXCaptulo XXCaptulo XXICaptulo XXIICaptulo XXIIICaptulo XXIVCaptulo XXVCaptulo XXVI

    Captulo XXVIICaptulo XXVIIICaptulo XXIXCaptulo XXXCaptulo XXXICaptulo XXXIICaptulo XXXIIICaptulo XXXIVCaptulo XXXVCaptulo XXXVICaptulo XXXVIICaptulo XXXVIIICaptulo XXXIXCaptulo XLCaptulo XLICaptulo XLIICaptulo XLIIICaptulo XLIVCaptulo XLVCaptulo XLVICaptulo XLVIICaptulo XLVIIICaptulo XLIXCaptulo LCaptulo LICaptulo LIICaptulo LIII

    ndice

  • Apresentao

  • O leitor no tem em mos, de maneira nenhuma, uma traduo con-vencional. No comeo de 1870, respondendo a um convite dos propriet-rios do recm fundado Jornal da Tarde, Machado de Assis aceitou atarefa de verter para o portugus o badalado romance Oliver Twist. Otradutor no tinha uma ponta sequer do prestgio que lhe trariam osromances publicados a partir de 1881; ainda assim conquistara certorespeito no meio literrio por conta de seu trabalho na imprensa comocrtico e comentarista poltico. Tal fama, acrescida das necessidadesparticulares do gnero folhetinesco, permitiu que Machado ousasse enor-mes liberdades na iniciativa de trazer Charles Dickens para o pblicobrasileiro. O resultado final, ainda que seja um trabalho incompleto, extremamente curioso e permite, alm do interesse mais propriamentehistrico e literrio do assunto, alguns instantes de reflexo acerca doofcio de traduzir.

    Antes de mergulhar, contudo, no trabalho de Machado, vale destacarque a edio seriada caracterizou quase que a totalidade da primeira pu-blicao dos textos de Charles Dickens. certo que o enorme sucesso queatingira em vida, raro para um escritor de sua poca, deve-se em parte circulao dos jornais em que colaborava. Alis, a recepo de seus escritosgarantiu-lhe, alm da fama, certo conforto financeiro tambm incomumpara um autor daquele perodo.

    Segundo Grahame Smith, a serializao uma das principais marcasliterrias do romance dickensiano1. No erro creditar certa queda pelomistrio e tambm um uso freqente do elemento descritivo questesque s vistas de alguns crticos diminuiriam o valor de parte dos textos s necessidades prprias do gnero folhetinesco de suspense, por um lado, ede volume, por outro.

    1 The crucial point to make about Dickens in this regard is that he wrote serially for serial publication. In other words,as has already been pointed out, his novels were written discontinuosly in separate segments, usually as a result oftwo weeks writing a month, and then published in this form with a minimum of revision. Grahame Smith, CharlesDickens A literary life, New York, St. Martins Press, 1996, p. 21. [Uma traduo aproximada do trecho seria:sobre Dickens, o ponto crucial o fato de que ele escrevia de maneira seriada para publicaes seriadas. Conformej foi apontado, suas novelas eram escritas de forma descontnua e em fragmentos, costumeiramente realizando otrabalho de um ms em duas semanas, e ento publicando-o com um mnimo de reviso.]

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    Oliver Twist surgiu para o pblico, pela primeira vez, em 1837 nas pgi-nas do Bentleys Miscellany. A publicao continuou com grande sucessoat 1839. Um ano antes, segundo informa Smith2, o romance foi publicado,ainda antes da concluso do folhetim, por Richard Bentley.

    No difcil identificar, aqui e ali, as marcas de folhetim em Oliver Twist.Alm da sucesso quase contnua de aventuras, s vezes anunciadas para cri-ar efeito de suspense, e outras lanadas com surpresa para aguar a curiosi-dade do leitor, a prpria construo da trama, tecida por meio de personagensque, se no so complexas, ao menos representam fielmente o principal traoque Dickens lhes confere, parece favorecer a publicao seriada.

    Dessa forma, o pequeno Oliver, cujo destino o motor do romance, v-seo tempo inteiro confrontado com fatos que lhe aconteceram em um passadoprximo e que tero importncia fundamental para o seu futuro. O mist-rio, que sempre deixa o leitor vido pelo prximo captulo, est justamenteno desvendamento das origens de Oliver. Como tal revelao crucial paraseu destino, est engatilhado o desenrolar da trama: o tempo presente servepara esclarecer o passado que ser determinante para o futuro. No h comodeixar passar um captulo, portanto.

    No vou, claro, adiantar o enredo do livro. Mesmo assim, pode ser inte-ressante destacar dois momentos que ilustram s maravilhas os procedi-mentos de folhetim manipulados por Dickens. O primeiro, apontado porKathleen Tillotson3, est no desenvolvimento do carter da personagemNancy, central para a soluo da trama. Segundo Tillotson, nada at o ca-ptulo XVI indica que Nancy tornar-se-ia protetora de Oliver frente aogrupo de bandidos e, ainda mais, chegaria a tra-los apenas para garantirao menino o futuro que lhe era justo. Ao que parece, Dickens transformou apersonagem, j que o romance gestava-se enquanto era publicado, paraadequ-la trama.

    Outro ponto digno de nota, ligado ao anterior, o brutal assassinato deNancy. A dramaticidade de sua morte garante flego suficiente para que ofolhetim continue renovado: ao mistrio que envolve a vida da personagemprincipal soma-se o desespero do assassino, perseguido pela prpria cruel-dade, e a caada que a cidade de Londres, no fim quase inteira, impe-lhe.Para marcar a fora da cena, basta registrar que Dickens costumava l-laem excurses e sempre causava perplexidade, quando no horror, nos tea-tros em que se apresentava.

    2 Op. cit., p. 17.3 Apud Grahame Smith, p. 35.

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    No resta dvida que, se o folhetim tiver sido mesmo a fuso admi-rvel do til com o ftil, o parto curioso e singular do srio consorciado como frvolo, como classificou-o Machado de Assis4, Dickens conseguiu forjarmuito bem tal unio.

    O folhetim, moda na Europa, no passou evidentemente ao largo da aten-o de Machado de Assis. Desde cedo, o bruxo empregou-se em redaes dejornal, conseguindo sustentar-se ou por meio de crnicas e crticas, ou atra-vs da publicao seriada de seus romances e, como no caso de Oliver Twist,da realizao de tradues. Ainda em 1859, Machado reconhece a impor-tncia do jornal para a circulao do pensamento:

    O jornal a verdadeira forma da repblica do pensamento. a locomotivaintelectual em viagem para mundos desconhecidos, a literatura comum, uni-versal, altamente democrtica, reproduzida todos os dias, levando em si a fres-cura das idias e o fogo das convices5.

    Ao entend-lo como um lugar de manifestao plural, o jornal torna-seum espao de convivncia intelectual acessvel a todos:

    Uma forma de literatura que se apresenta aos talentos como uma tribuna uni-versal o nivelamento das classes sociais, a democracia prtica pela inteli-gncia6.

    Consigo, o jornal traz o folhetim:

    O folhetim originrio de Frana, onde nasceu e onde vive a seu gosto, comoem cama de inverno. De l espalhou-se pelo mundo, ou pelo menos por ondemaiores propores tomava o grande veculo do esprito moderno: falo do jor-nal7.

    Como homem de jornal que foi durante quase toda a vida, Machado nopoderia ter deixado de praticar, com certo sucesso, o folhetim.

    4 Obras completas, vol. 3, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, s/d, p. 959.5 Op. cit., p. 945.6 Op. cit., p. 947.7 Op. cit., p. 959.

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    Quincas Borba, um de seus romances mais importantes, foi publicadoentre 15 de junho de 1886 e 15 de setembro de 1891 pelo quinzenrio AEstao8. A revista dirigia-se ao grande pblico e trazia nas suas pginastextos para a famlia, recortes de costura e notcias de costume. Evidente-mente, Machado precisou adequar-se, no sem dificuldade para a receitaque vinha adotando desde as Memrias pstumas de Brs Cubas, ao pbli-co da revista. Eugnio Gomes escreve que o clebre romance teve a suaprimeira divulgao delimitada a um crculo de leitores, porventura muitoaqum das sutilezas de suas intenes9. Quincas Borba sai em livro aindaem 1891, mesmo ano da concluso do folhetim, muito modificado, com al-gumas passagens suprimidas e outras acrescentadas. Machado, portanto,trabalhava na publicao do volume enquanto conclua a colaborao paraa revista, adequando o texto, acertando passagens e eliminando as marcasprprias do folhetim, o que demonstra clara compreenso da diferena en-tre os gneros10.

    A conscincia do gnero, alis, bem anterior redao dos romancesde maturidade de Machado de Assis. J em 1874, ao publicar A mo e aluva, o bruxo ressalta em nota as particularidades do texto escrito paraser um folhetim:

    Esta novela, sujeita s urgncias da publicao diria, saiu das mos do autorcaptulo a captulo, sendo natural que a narrao e o estilo padecessem com essemtodo de composio, um pouco fora dos hbitos do autor. Se a escrevera emoutras condies, dera-lhe desenvolvimento maior, e algum colorido mais aoscaracteres, que a ficam esboados11.

    A mo e a luva foi escrito pouco depois de Machado abandonar a tradu-o de Oliver Twist. A crtica ainda no chegou a perceber, a despeito dasgrandes diferenas, certas semelhanas entre os enredos dos dois folhetinsou, se se quiser, romances.

    O romance de Dickens desenvolve-se a partir do cruzamento de duaslinhas que, a certo momento, confundir-se-o: por um lado, a luta de uma

    8 A informao est na edio de Quincas Borba publicada pela Comisso Machado de Assis em 1969.9 A observao foi publicada na mesma edio da Comisso Machado de Assis.10 John Gledson, no entanto, afirma que, ao contrrio do que acontecera com o Brs Cubas, em que Machado foi feliz

    ao adequar o folhetim ao formato do livro, no caso de Quincas Borba o esforo no foi inteiramente bem sucedido.Cf. John Gledson, Machado de Assis Fico e histria, So Paulo, Paz e Terra, 1986, p. 66.

    11 Machado de Assis, A mo e a luva, So Paulo, tica, 1998. Ao contrrio do que estranhamente afirma, Machadotinha sim o hbito de praticar o folhetim.

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    criana miservel, Oliver Twist, por manter-se afastada da companhia deladres e, depois, descobrir o seu passado; por outro, o desenrolar de umamor que no pode se concretizar devido origem, misteriosa e plebia, damoa Rosa, objeto de proteo da senhora Maylie, e alvo do amor de seufilho Harry. A prpria senhora Maylie, sempre excessivamente carinhosae compreensiva para com Rosa, desaconselha a unio, o que pesa muito nasdecises da moa.

    A mo e a luva tambm traz a histria de uma jovem, Guiomar, deixadaaos cuidados de uma senhora. Do mesmo jeito, a menina muito bem trata-da pela protetora. Eliane Zagury nota que a madrinha de Guiomar oesboo de uma matriarca suavizada pelo amor12. Guiomar, no entanto,no tem a mesma inocncia de Rosa Maylie: ainda que palidamente, adi-anta j um pouco do frio calculismo que caracterizaria a mulhermachadiana. Todavia, tanto no folhetim de Dickens quanto no de Macha-do, no apenas a estrutura familiar (uma senhora que toma conta de umajovem em idade de casamento) que coincide: as duas moas vem-se na obri-gao de confrontar, o que fazem de maneiras distintas, a rgida estruturasocial com a manuteno de seus sentimentos ou interesses.

    Roberto Schwarz chega a afirmar que, em A mo e a luva, o que estem jogo a concepo do favor. A moa deve obedincia irrefletida suabenfeitora, ou ter o direito de levar em conta os seus prprios desejos, deprocurar um compromisso entre o seu interesse e os deveres da gratido13.Se h, como quer o crtico, a presena da brasileirssima prtica do favor noenredo de A mo e a luva, persiste nele tambm eco da leitura que Macha-do vinha fazendo dos autores europeus. Joo Ribeiro diz que lendo o OliverTwist ou David Copperfield, tenho a impresso de que estou a ler um livro,ou um conto ou um romance de Machado de Assis14.

    No interessa aqui, evidentemente, discutir se a literatura de Machado ou melhor, qualquer literatura reflete a sociedade em que se instalaou se releitura particular da tradio que a antecede e determina15; muitoembora, se precisar optar, o presente ensaio alie-se segunda hiptese. Parao caso, vale notar que o trabalho de tradutor de Machado de Assis ultrapas-sa o mero papel de coadjuvante e chega at mesmo a servir, como OliverTwist, de pista para o esclarecimento de suas afinidades no apenas genri-

    12 Op. cit., p. 6.13 Roberto Schwarz, Ao vencedor, as batatas, So Paulo, Duas Cidades, 1977, p. 75.14 Apud Eugnio Gomes, Machado de Assis Influncias inglesas, Rio Grande do Sul, INL, 1976.15 Releitura que acaba moldando a viso histrica que inventamos para cada perodo.

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    cas, mas, mais amplamente, literrias. Entre parnteses, cabe destacar queJean Michel Massa, falando das preferncias estrangeiras de Machado,adverte para a necessidade de um estudo que contemple tais afinidades16.

    Como tradutor, Machado parece ter tido especial predileo pela poe-sia17. Em prosa, certamente os trabalhos mais relevantes so dois: sua ver-so para o portugus de Os trabalhadores do mar, de Vtor Hugo, e, justa-mente, o folhetim Oliver Twist18. Naturalmente, Machado de Assis no foium tradutor convencional: a traduo que estamos apresentando um ti-mo exemplo disso. Conforme notou Jean Michel Massa, o bruxo no apre-sentou Oliver Twist aos leitores brasileiros em uma traduo a partir daredao em ingls, mas sim segundo uma edio francesa19, idioma que co-nhecia, j poca, perfeitamente.

    Ainda que considere a questo relevante, e atualssima para os estudosliterrios e de teoria da traduo, no vou tentar aqui localizar qual seria,para Machado, o texto original. Cabe destacar que se a traduo de Gerardinj apresentava algumas liberdades com relao ao texto ingls, o trabalhode Machado aumentou-as ainda mais.

    Em alguns momentos, certamente para obedecer lgica do gnerofolhetinesco, o bruxo acrescentou algumas expresses para aguar o espri-to do leitor20. No final do captulo II, depois de apresentar o local onde teria

    16 Massa, inclusive, orienta o trabalho: Une tude sur les Orientations trangres dans le ouvre de Machado de Assisdevrait au moins comprendre linventaire des sources, en prenant ce mot dans son sens le plus large: lectures, rfrences,allusions, rminiscenses. (O grifo do autor.) Cf. Jean Michel Massa, Machado de Assis Traducteur, Mimeo., p. 4.[Um estudo acerca das orientaes estrangeiras na obra de Machado de Assis dever ao menos compreender oinventrio de suas fontes, dando-se a essa palavra seu sentido mais amplo: leitura, referncias, aluses, reminiscncias.] o lugar de agradecer a gentileza com que o crtico John Gledson me enviou a citada monografia.

    17 Sobre isso, excelente exemplo a edio organizada por John Gledson, Machado de Assis & Confrades de Versos,So Paulo, Maiden, 1998.

    18 Na carta em que Machado de Assis comunica aos diretores do Jornal da Tarde que no continuaria o trabalho, noh qualquer justificativa a sua desistncia: Era resoluo minha, de acordo com o recado que de V. Ex. recebi, porintermdio de nosso comum amigo, o doutor Frana, esperar a chegada do sr. Oliveira para nos entendermos todostrs a respeito do trabalho que fao para o Jornal da Tarde como tradutor do folhetim. Nisto atendia eu consideraodevida para com os dignos proprietrios do Jornal da Tarde. Sobreveio porm uma circunstncia que me obriga amodificar aquela resoluo, e a dizer a V. Ex., que no posso continuar a traduzir o folhetim, como at agora fazia.No querendo pr embaraos ao Jornal da Tarde, continuarei a traduo at sbado, 18. No me demorarei em dizera V. Ex. com que pesar sou obrigado a interromper este trabalho que eu fazia com maior vontade que aptido; temoque se possa confundir um sentimento verdadeiro com uma frmula de ocasio. Qualquer que seja porm estemeu pesar, no pode influir nas circunstncias que me determinam. Cf. Galante de Sousa, Bibliografia de Machadode Assis, Rio de Janeiro, MEC/INL, 1955, p. 452.

    19 Cf. Jean Michel Massa, Dispersos de Machado de Assis, Rio de Janeiro, INL, 1965. Machado utilizou a traduo deA . Gerardin, publicada pela Librairie de L. Hachette et Cie em Paris em 1864.

    20 Todos os exemplos citados aqui esto anotados na edio de dispersos organizada por J. M. Massa. O texto datraduo de Machado foi retirado do mesmo livro. Cabe apenas acrescentar que a presente edio completa otrabalho de Massa reconstituindo o texto do captulo VIII, recolhido apenas em parte por ele.

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    crescido o pequeno Oliver, o tradutor agua um pouco a curiosidade do lei-tor, e faz uma matreira advertncia, que no aparece nem no texto em in-gls, nem na traduo francesa que consultamos: caminhemos devagar.

    Da mesma forma, no final do captulo XII, depois de causar certa bulhano centro da cidade, os dois ladres que tinham em seu poder o menino,retornam para o esconderijo e o leitor advertido: Oliver no vinha comeles. No difcil perceber o esforo de Machado para conferir ao textocerta graa e ligeireza prprias ao jornal. Assim, cabe notar que desde 1870,as tradicionais intervenes dirigidas ao leitor j se ensaiavam, muito pro-vavelmente em razo da busca a uma adequao ao gnero folhetinesco,cuja importncia, sublinhe-se, ainda permanece ao largo da crticamachadiana; o que ainda mais espantoso se notarmos que seus principaisromances, se foram depois retrabalhados para publicao em livro, saramtambm sob a forma de folhetim.

    Os cortes realizados por Machado tambm so notveis: s vezes, umafrase ou um pargrafo traduz toda uma pgina de Charles Dickens. No difcil, tal a freqncia com que os cortes ou condensaes ocorreram, en-contrar exemplos. J no captulo III, quando alguns homens discutem odestino de Oliver, o tradutor resume quatro pargrafos de Dickens a merascinco linhas. Vejamos, a princpio, o original dickensiano:

    Mr. Gamfield having lingered behind, to give the donkey another blowon the head, and another wrench of the jaw as a caution not to run away inhis absence, followed the gentleman with the white waistcoat into the roomwhere Oliver had first seen him.

    Its a nasty trade said Mr. Limbkins, when Gamfield had again statedhis wish.

    Young boys have been smothered in chimneys before now saidanother gentleman.

    Thats acause they damped the straw afore they lit it in the chimbleyto make em come down agin, said Gamfield; thats all smoke, and no blaze;vereas smoke aint o no use at all in makin a boy come down, for it onlysinds him to sleep, and thats wot he likes. Boys is wery obstinite, and werelazy, genlmen, and theres nothink like a good hot blaze to make em comedown vith a run. Its humane, too, genlmen, acause, even if theyve stuck inthe chimbley, roasting their feet makes em struggle to hextricate theirselves21.

    21 O trecho retirado da pgina 16 da edio de Oliver Twist publicada em Londres pela Wordsworth Classics em 1992.

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    Antnio Ruas, autor de uma traduo comportada do romance, tomoua seguinte opo:

    Depois de o Sr. Gamfield ter voltado atrs, para ferrar ao burro outra pan-cada na cabea e outro puxo na queixada, como advertncia para que ele noescapasse na ausncia do dono, seguiu o cavalheiro do colete branco at a salaonde Oliver o vira pela primeira vez.

    um ofcio sujo observou o Sr. Limbkins, depois de Gamfield haverrepetido o seu desejo.

    freqente os rapazes ficarem sufocados nas chamins ponderou ooutro cavalheiro.

    porque umedecem a palha antes de a acender na chamin a fim dedescerem explicou o Sr. Gamfield. tudo fumo e nenhuma chama; aopasso que o fumo de nada serve para fazer descer um rapaz, porque apenas ofaz dormir e isso do que ele gosta. Os rapazes so muito teimosos e muitopreguiosos, cavalheiros, e no h nada como uma boa chama quente para osfazer vir abaixo, muito depressa. tambm humano, cavalheiros, porque seeles ficam colados chamin, queimam os ps, o que os faz lutar para se des-vencilharem22.

    Machado, por sua vez, extremamente sumrio:

    Quando o Sr. Gamfield exps ao conselho o que queria, disse o Sr. Limbkins,presidente:

    O ofcio de limpador de chamin bem porco. Tem-se visto morrerem as crianas nas chamins disse outro sujeito23.

    Massa nota que Machado evita passagens muito cruis e reduz, muitasvezes, a violncia do texto de Dickens, s vezes cortando alguns trechos,outras suavizando-os. O crtico interpreta as modificaes realizadas porMachado partindo do encontro de dois anseios: o de corresponder ao gostodo pblico, por um lado; e, por outro, o de abrigar as convices do tradutorque , ao mesmo tempo, um escritor crtico e arguto.

    Muito embora os cortes e outras alteraes sigam certa regra, como beminterpretou Massa, fcil perceber que em alguns momentos Machado,algo apressado pela urgncia do jornal e um pouco tambm por descuido,

    22 Tal passagem est na pgina 22 da traduo lanada pela Melhoramentos de Oliver Twist (So Paulo, s.d.).23 O trecho est na pgina 276 da citada edio de Massa.

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    evidencia certa rapidez na redao. Exemplo disso podem ser os seguintestrechos: O Sr. Grimwig interveio dizendo que desde o princpio os avisaradizendo quem era o menino, e tambm, provvel que, se houvesse per-cebido o sinal, no houvesse nada bom.

    Outras vezes, contudo, Machado parece como alis sempre lhe foicaracterstico preciosista com a linguagem e cunha expresses verda-deiramente brilhantes como o irnico empresrio de enterros, descobertopara traduzir undertaker. Antnio Ruas preferiu o correto agente fu-nerrio, perdendo assim certa matriz cmica que a expresso poderia car-regar.

    A leitura atenta tambm permite o resgate de algumas frases verdadei-ramente saborosas que, infelizmente, caram em desuso. Entre as tantas,pode-se citar a curiosa o mostarda ia subindo ao nariz, utilizada duasvezes por Machado (e outra por mim). Segundo Antenor Nascentes, a ex-presso significa algo como irritar-se ou perder a pacincia, a partirdo engano de levar ao nariz mostarda e no rap24.

    Cabe por fim destacar a necessidade de ateno para algumas faces ain-da pouco refletidas no trabalho de Machado de Assis. certo que a ativida-de de tradutor ajudar a esclarecer as afinidades propriamente literriasde sua obra25 e o trabalho de folhetinista que Machado realizou quaseque durante toda a vida! talvez revele aspectos formais surpreendentes.A traduo de Oliver Twist, ainda que incompleta, pode ser um bom pontode partida para tal reflexo, j que justamente rene o Machado tradutorao folhetinista.

    Se esta breve introduo for concluda no prazo combinado, tero se pas-sado dois anos a partir do momento em que recebi o convite para terminar

    24 Cf. Antenor Nascentes, Tesouro da fraseologia brasileira, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986. Cabe aqui agradecerao escritor Evandro Affonso Ferreira a ateno com que, a partir de seu invejvel conhecimento lexicogrfico,esclareceu diversas questes. No campo da gratido ainda, preciso registrar as oportunas sugestes que FbioFurtado fez na minha parte da traduo. J no terreno dos clichs, bvio que os deslizes so todos de minhainteira responsabilidade.

    25 Massa acredita que o Machado tradutor recebe pouca ateno da crtica brasileira por causa de uma espcie demedo de que isso manche sua originalidade. A afirmao interessante (e o presente ensaio concorda com ela) evale ser transcrita: Il semble que la critique brsilienne ait, presque inconsciemment, refus daborder de front ledbat, comme si elle craignait de dcouvrir une dpendance de Machado de Assis qui porterait ombrage sonoriginalit. Cf. Machado de Assis Traducteur, p. 4. [Parece que a crtica brasileira, mesmo inconscientemente,recusa tratar a questo de forma efetiva com medo de que a descoberta de um dilogo de Machado de Assis pudessemanchar sua originalidade.]

  • O L I V E R T W I S T

    o trabalho de Machado de Assis e, um pouco movido pelo esprito de aven-tura intelectual, ciente dos riscos que ele impunha, decidi aceit-lo. O tra-balho pareceu-me atraente pois, alm do convvio ntimo com a obra de umestilista notvel, permitir-me-ia largas doses de criatividade.

    Em um livro traduzido por duas penas distintas ser inevitvel inconve-niente a diferena entre as partes. Aqui, aproveito para deixar claro que, aoaceitar concluir o trabalho de Machado26, nunca tive a inteno de imi-tar seu estilo. O que houve foi um trabalho de esclarecimento e aproveita-mento dos procedimentos utilizados pelo tradutor da primeira metade dolivro. Assim, os cortes e as modificaes na estrutura do texto que s vezesMachado ousou realizar permitiram-me minha maneira opera-es semelhantes em certos trechos.

    Como exemplo, destaco a verso que realizei para o final do livro. Pro-curando evitar passagens excessivamente sentimentais, como j o fizeraMachado, reduzi os trs pargrafos finais do texto original a apenas umque, economicamente, condensasse a questo principal: a felicidade de Olivere daqueles que o auxiliaram.

    Do mesmo jeito que j fizera Rosa Freire dAguiar que, ao trazer para oportugus o romance Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Cline,procurou utilizar expresses contemporneas redao do livro (no caso,para achar equivalentes em portugus a tradutora percorreu a obra de An-tnio Alcntara Machado, que como a do escritor francs rica em grias etermos orais27), realizei certa apropriao do vocabulrio machadiano e desua maneira gramatical (em outras palavras, tentei seguir-lhe a colocaopronominal particular, as regncias diversas e, entre outros procedimentos,o largo uso do infinitivo). Para tanto, alm do estudo da traduo de Ma-chado, procurei utilizar aqui e ali expresses encontradas em seus livrospublicados ao redor do ano de 1870, data de seu trabalho com o Oliver Twist.Foi-me muito til tambm o estudo de suas crnicas redigidas entre 1859 eo momento da traduo de Oliver Twist. Se certos leitores talvez conside-rem o possvel sabor envelhecido do texto um diletantismo duvidoso, outrosacharo nele justamente o seu mrito.

    26 O captulo 26 foi concludo por mim a partir do 7o pargrafo da pgina 193. Depois, minha traduo se inicia a partirdo meio do captulo 28 (8o pargrafo da pgina 211) e vai at o fim do livro. Diferentemente do que fizera Machado,traduzi Oliver Twist a partir do original ingls, utilizando a edio da Wordsworth Classics publicada em 1992.Recorri muitas vezes tambm edio francesa, Les aventures dOlivier Twist, cuja traduo de Francis Ledoux foipublicada pela Gallimard em 1991. Aqui e ali, ainda, avaliei as solues encontradas por Antnio Ruas para atraduo brasileira de Oliver Twist publicada pela Melhoramentos.

    27 A informao est no Caderno 2 do jornal O Estado de So Paulo do dia 2 de dezembro de 2001.

  • C HAR L ES DI C K E N S

    Entendo a reconstruo do texto, trabalho do tradutor, como uma ativi-dade reflexiva: desenhada por opes, impe restries e necessariamen-te contingente. Assim, no foi apenas o objetivo de trazer a pblico um tra-balho importante e desconhecido do nosso maior escritor que deu flegopara as largas doses de estudo que o desafio exigia; quer-se aqui situar otradutor no como coadjuvante, mas sim como titular de um papel criativoe, sobretudo, crtico.

    Escrito nas primeiras dcadas do sculo dezenove, portanto h poucomenos de duzentos anos, Oliver Twist denunciava, atravs da habilidaderomanesca de Charles Dickens, o miservel cotidiano das camadas maispobres da Inglaterra. A enorme distncia que separa a primeira edio dolivro desta nova traduo, no entanto, no suficiente para tornar estranhoo ambiente dickensiano. Se na Londres de 1830, crianas eram exploradaspor bandidos, mendigos se amontoavam nas ruas e o abismo social era enor-me, os mesmos problemas se repetem em qualquer grande cidade brasilei-ra, com o triste agravante de que hoje parece que j no h mais escritorespreocupados com tal realidade.

    Pois se o trabalho do tradutor necessariamente impe a prtica dareflexo sobre o objeto, cabe ento ultrapassar o tom de manifesto que essaapresentao vinha tomando para encerr-la sob a forma, limitada masveemente, de um protesto.

    Ricardo Lsias, janeiro de 2000 fevereiro de 2002.

  • Captulo I

    Do lugar em que Oliver Twist nasceu e das circunstncias queocorreram nessa ocasio.

    Dentre os vrios monumentos pblicos que enobrecem uma cidade deInglaterra, cujo nome tenho a prudncia de no dizer, e qual no querodar um nome imaginrio, um existe comum maior parte das cidadesgrandes ou pequenas: o asilo da mendicidade.

    L em certo dia, cuja data no necessrio indicar, tanto mais quenenhuma importncia tem, nasceu o pequeno mortal que d nome aeste livro.

    Muito tempo depois de ter o cirurgio dos pobres da parquia introdu-zido o pequeno Oliver neste vale de lgrimas, ainda se duvidava se a po-bre criana viveria ou no; se sucumbisse, mais que provvel que estasmemrias nunca aparecessem, ou ento ocupariam poucas pginas, e destemodo teriam o inaprecivel mrito de ser o modelo de biografia maiscurioso e exato que nenhum pas em nenhuma poca jamais produziu.

    Ainda que eu no esteja disposto a sustentar que seja extraordinrio fa-vor da fortuna nascer a gente num asilo de mendigos, posso afirmar que,nas circunstncias atuais, era o melhor que podia acontecer a Oliver Twist.

    A razo esta. Houve imensa dificuldade em fazer com que Oliverdesempenhasse as funes respiratrias, exerccio fatigante, mas neces-srio nossa existncia. Durante algum tempo ficou o pecurrucho deita-do no colcho de l grosseira, fazendo esforos para respirar, oscilandoentre a vida e a morte e inclinando-se mais para esta. Se durante essetempo Oliver estivesse rodeado de avs solicitados, tias assustadas, amasexperientes e mdicos profundamente sbios, morreria infalivelmente.Mas como no havia ningum, exceto uma pobre velha que havia bebidoum trago demais e um mdico pago por ano para esse trabalho, Oliver ea natureza ficaram sozinhos em face um do outro.

  • O L I V E R T W I S T

    O resultado foi que, aps alguns esforos, Oliver respirou, espirrou edeu notcia aos habitantes do asilo da nova carga que ia pesar par-quia, soltando um grito to agudo quanto se podia esperar de um varoque s desde trs minutos e meio possua este utilssimo presente quese chama voz.

    No momento em que Oliver dava essa primeira prova da fora e da li-berdade de seus pulmes, agitou-se a pequena coberta remendada da camade ferro. Levantou-se com dificuldade o rosto plido de uma moa, e umavoz fraca articulou estas palavras:

    Quero ver meu filho antes de morrer!O mdico estava assentado diante da lareira, aquecendo-se e esfregan-

    do as mos. Ouvindo a voz da moa levantou-se e, aproximando-se dacama, disse com mais doura do que se podia esperar do seu ofcio:

    Oh! No fale de morrer! Deus proteja a pobre mulher! disse a enfermeira, metendo na

    algibeira uma garrafa cujo contedo provava nesse momento com evi-dente satisfao; quando ela tiver vivido tanto como eu e tiver tido trezefilhos e perdido onze, visto que s me restam dois aqui no asilo, ento hde pensar de outra maneira. Ora, vamos, pense na felicidade de serme deste pequeno.

    provvel que essa perspectiva consoladora da ventura maternal noproduzisse grande efeito. A enferma sacudiu tristemente a cabea e es-tendeu as mos para o filho.

    O mdico passou-lhe a criana aos braos; ela aplicou com ternura, natesta do pequeno, os lbios plidos e frios; depois passou as mos peloprprio rosto, caiu na cama e morreu.

    Esfregaram-lhe o peito, as mos, as fontes; mas o sangue estava geladopara sempre; falavam-lhe de esperana e de amparo; mas ela estava tantotempo privada disso que achou melhor expirar.

    Est acabado, Sra. Haingummy disse o mdico. Ah! Pobre moa, verdade disse a enfermeira apanhando a ro-

    lha da garrafa verde, que havia cado na cama, enquanto ela se abaixarapara segurar o pequeno.

    intil mandar-me chamar se a criana berrar disse o mdicocom resoluo. provvel que no fique sossegado. Nesse caso d-lheum pouco de mingau.

    O mdico ps o chapu na cabea e, dirigindo-se para a porta, paroujunto da cama e disse:

  • C HAR L ES DI C K E N S

    Era bonita! De onde veio ela? Trouxeram-na ontem noite respondeu a velha por ordem

    do inspetor; foi achada na rua; fizera um longo trajeto, porque os sapa-tos estavam em frangalhos; mas de onde vinha e para onde ia? Nin-gum sabe dizer.

    O mdico inclinou-se para o corpo e, levantando a mo esquerda dadefunta, disse abanando a cabea:

    Sempre a mesma histria; no tem anel de aliana... No era casa-da... Boa noite!

    O doutor foi jantar, e a enfermeira, depois de levar boca a garrafa,assentou-se numa cadeira junto lareira e entrou a vestir o pequeno.

    Que exemplo da influncia da roupa ofereceu ento o pequeno OliverTwist! Envolvido na coberta que at ento fora sua nica roupa, podia serfilho de um fidalgo ou mendigo; era impossvel ao estranho mais presu-mido dizer qual era a sua classe na sociedade; mas quando o meteramnum vestidinho velho de morim, amarelecido nesse uso, achou logo seulugar; filho da parquia, rfo do asilo de mendigos, vtima da fome,destinado aos maus-tratos, ao desprezo de todos, piedade de ningum.

    Oliver berrava com quantas foras tinha. Se ele soubesse que era rfo,abandonado terna compaixo dos bedis e dos inspetores, talvez berras-se mais alto.

  • Captulo II

    Como Oliver Twist cresceu e foi educado.

    Durante os oito ou dez meses que se seguiram, Oliver Twist foi vtimade um sistema contnuo de trapaas e decepes.

    Foi criado com mamadeira.As autoridades da parquia perguntaram com dignidade s autorida-

    des do asilo se no havia alguma mulher, residente no estabelecimento,que pudesse dar a Oliver Twist a consolao e o alimento de que elecarecia. As autoridades do asilo responderam humildemente que nohavia; vista do qu, as autoridades da parquia tiveram a humanida-de e a magnanimidade de ordenar que Oliver fosse mandado para umacasa dependente do asilo, situada a trs milhas de distncia, onde unsvinte ou trinta infratores da lei dos pobres passavam o dia a rolar pelocho sem medo de comer muito nem andar agasalhados demais. Tratavadeles uma velha que recebia os delinqentes razo de trs tostes porsemana e por cabea.

    Trs tostes fazem uma boa soma para sustentar um pequeno; podecomprar-se muita coisa com trs tostes; quanto baste para abarrotar oestmago de uma criana e alterar-lhe a sade.

    A velha era prudente; sabia o que convinha aos pequenos e o que lheconvinha a ela; em conseqncia disto, gastava consigo a maior parte doauxlio hebdomadrio e reduziu a pequena gerao da parquia a umregime mais escasso do que aquele que se dava na casa onde Oliver nas-ceu. A boa senhora esticava cada vez mais os limites conhecidos da econo-mia e mostrava ter consumada filosofia na prtica da vida.

    Todos conhecem a histria daquele outro filsofo experimental, queimaginara uma bela teoria para fazer com que um cavalo vivesse semcomer e que a aplicou to bem que chegou a dar ao cavalo a rao de fiode palha. Indubitavelmente, ficaria aquele animal gil e ligeiro, se no

  • O L I V E R T W I S T

    tivesse morrido vinte e quatro horas antes de receber pela primeira vezuma forte rao de ar puro.

    No que respeita velha, a cujo cuidado Oliver foi confiado, esse resul-tado era quase sempre a conseqncia natural do seu sistema. Justamentena ocasio em que uma criana conseguia existir com uma escassssimaporo de alimento, acontecia, oito vezes em dez casos, que a infame crian-a tinha a maldade de cair doente de frio e de fome ou deixar-se cair nofogo por descuido; ento partia a desgraada criaturinha para o outromundo, onde ia encontrar os pais que no conhecera neste.

    Fazia-se s vezes uma devassa do caso mais interessante que de costu-me, a respeito de uma criana abafada debaixo de um colcho ou acha-da numa bacia de gua a ferver em dia de varela, posto que este ltimoacidente fosse raro, porque na casa da velha quase nunca se lavava rou-pa. Nessas ocasies o jri fazia algumas perguntas de atrapalhar, ouento os habitantes da parquia tinham a audcia de assinar uma re-clamao; mas estas impertinncias eram logo reprimidas pelo relat-rio do mdico ou pelo testemunho do bedel. O mdico declarava queabrira o corpo e nada achara dentro, o que era muito provvel; e o bedeljurava sempre no sentido das autoridades da parquia o que revelavaadmirvel dedicao.

    Demais, a comisso administrativa fazia excurses peridicas a essesestabelecimentos secundrios, tendo o cuidado de mandar o bedel adian-te para anunciar a visita; as crianas estavam lavadas e assediadas quandoesses senhores chegavam.

    Tal sistema de educao no daria s crianas muita fora nem grossasbanhas. No dia em que completou nove anos, Oliver Twist era um pirralho,amarelo como um defunto e singularmente magro.

    Oliver devia natureza ou a seus pais um esprito vivo e reto, que noteve dificuldade em se desenvolver, apesar das privaes do estabeleci-mento, e foi talvez a isso que ele deveu ter chegado ao seu nono anivers-rio natalcio.

    Fosse como fosse, completava ele nove anos e estava nesse dia no dep-sito de carvo com dois companheiros, que receberam com ele uma dosede bofetes e foram metidos no dito depsito, por terem tido a audcia dedizer que estavam com fome. De repente a Sra. Mann, a excelente dire-tora da casa, foi surpreendida com a apario imprevista do bedel, o Sr.Bumble, que procurava abrir a porta do jardim.

  • C HAR L ES DI C K E N S

    Santo Deus! o Sr. Bumble disse a Sra. Mann, pondo a cabeana janela e simulando uma grande alegria. Suzana, mande c paracima Oliver e os outros dois peraltas e lave-os depressa. Que prazer, queprazer tenho eu em v-lo, Sr. Bumble.

    O Sr. Bumble era gordo e irritadio; em vez de responder polidamentea este cumprimento afetuoso, entrou a sacudir com toda a fora a porta,dando-lhe depois um pontap, mas um verdadeiro pontap de bedel.

    Ser possvel? disse a Sra. Mann correndo a abrir a porta, en-quanto se punham as crianas em liberdade. Esquecia-me que a portaestava fechada! Aqueles queridos pequenos fazem-me esquecer tudo. Queira entrar, Sr. Bumble, queira entrar.

    Posto que este convite fosse feito com uma cortesia que abrandaria ocorao mais duro, no comoveu o Sr. Bumble.

    Acha decoroso, Sra. Mann perguntou ele agitando a bengala ,acha bonito fazer esperar os funcionrios da parquia porta de seu jar-dim, quando eles vm desempenhar as suas funes paroquiais e visitaras crianas da parquia? Esquece acaso que a senhora delegada da par-quia e estipendida por ela?

    Oh! No, Sr. Bumble respondeu a Sra. Mann humildemente. Mas eu ia dizer a um ou dois destes queridinhos meninos que gostamtanto do senhor a honra que iam ter com a sua visita, Sr. Bumble.

    Sr. Bumble tinha uma alta idia do seu talento oratrio e de sua im-portncia; tinha-os ostentado e defendido; acalmou-se.

    Est bom, est bom respondeu ele. possvel; entremos, Sra.Mann; venho tratar de negcios.

    A Sra. Mann introduziu o bedel em uma pequena sala, cujo cho erade tijolos, apresentou-lhe uma cadeira e apressou-se em tirar-lhe dasmos a bengala e o chapu de trs bicos, colocando-os sobre a mesa. OSr. Bumble enxugou a testa coberta de suor, lanou um olharcomplacente ao chapu de trs bicos e sorriu. verdade, sorriu.

    No se zangue com o que lhe vou dizer observou a Sra. Manncom sedutora meiguice. O senhor vem cansado; se no fosse isso nolhe falaria em semelhante coisa; quer tomar uma gota de alguma coisa?

    Nada, absolutamente nada disse o Sr. Bumble recusando comdignidade, mas com brandura.

    No me h de recusar disse a Sra. Mann, que observara o tom dobedel , no me h de recusar uma pingazinha, com gua e acar.

  • O L I V E R T W I S T

    O Sr. Bumble tossiu. Um quase nada disse a Sra. Mann. Que me quer a senhora oferecer? perguntou o Sr. Bumble. Naturalmente hei de ter em casa alguma coisa, para pr no caldo

    dos meninos quando eles esto doentes respondeu a Sra. Mann abrin-do um buf, donde tirou uma garrafa e um copo. genebra.

    A senhora d caldo aos meninos? perguntou o Sr. Bumble acom-panhando com o olhar a operao da mistura.

    Decerto que lhes dou caldo disse ela , posto que custa caro;mas eu no posso ver sofrer; custa-me muito v-los doentes.

    Muito bem disse o Sr. Bumble , muito bem; a senhora umaboa alma. (Ela ps o copo na mesa.) Aproveitarei a primeira ocasio paradizer isso ao conselho paroquial. (Aqui o Sr. Bumble puxou o copo parasi.) Essas crianas tm na senhora uma verdadeira me. (Agitou a aguar-dente e a gua.) Bebo sua sade, Sra. Mann. (Bebeu metade.) Agorafalemos de negcios continuou o bedel tirando da algibeira uma car-teira de couro. A criana que foi mandada com o nome de Oliver Twistfaz hoje nove anos...

    Queridinho! disse a Sra. Mann esfregando o olho esquerdo coma ponta do avental.

    E apesar da oferta de uma recompensa de dez libras esterlinas, su-cessivamente elevada at doze libras; apesar dos esforos incrveis e seouso assim falar, sobrenaturais, da parte da parquia disse o Sr. Bumble, at hoje foi impossvel descobrir quem o pai, nem o nome e a condi-o da me.

    A Sra. Mann levantou as mos em sinal de espanto; depois disse: Mas como que ele tem um nome de famlia?O bedel empertigou-se com certo orgulho. Fui eu que lho inventei disse ele. O senhor? Eu mesmo; ns damos os nomes aos enjeitados por ordem alfabtica: o

    ltimo era da letra S; chamei-lhe Swubble; este era da letra T; chamei-lheTwist; o seguinte ser Unwin, o outro Volkent; tenho nomes prontos deuma ponta a outra do alfabeto; e em chegando ao Z, volto ao A.

    O senhor um grande letrado, Sr. Bumble disse a Sra. Mann. possvel, possvel disse o bedel, evidentemente satisfeito com

    o cumprimento.

  • C HAR L ES DI C K E N S

    Bebeu o resto da genebra e continuou: Como Oliver j no est em idade de c ficar, o conselho paroquial

    resolveu mand-lo buscar para o asilo, e eu vim cumprir essa misso.Mande-o vir.

    Vou mand-lo buscar disse a Sra. Mann saindo da sala.Oliver, que durante esse tempo foi lavado o melhor que pde ser, apa-

    receu da a pouco conduzido pela sua benvola protetora. Oliver, cumprimenta este senhor disse a Sra. Mann.Oliver cumprimentou a um tempo o bedel, que est assentado, e o cha-

    pu de trs bicos que estava na mesa. Quer vir comigo, Oliver? perguntou o Sr. Bumble com majestade.Oliver estava a ponto de dizer que no desejava outra coisa, quando

    deu com os olhos na Sra. Mann, que ficara por trs da cadeira do bedel elhe mostrara a mo em atitude de soco; compreendeu logo o que aquiloqueria dizer, porque o pulso da boa velha tantas vezes lhe fora aplicado scostas que era impossvel deixar de o ter em lembrana.

    A Sra. Mann vai comigo? perguntou o pobre Oliver. No, impossvel respondeu o Sr. Bumble , mas h de ir v-lo

    de vez em quando.No era isto consolador para a criana; mas, apesar da sua tenra idade,

    tinha ele j bastante sagacidade, para fingir um grande pesar de se ir em-bora; no lhe era difcil derramar lgrimas; fome e pancada fresca so muitoteis quando a gente precisa chorar; Oliver chorou naturalmente.

    A Sra. Mann deu-lhe mil beijos e, o que valia mais, uma fatia de pocom manteiga, a fim de que ele no tivesse ar de esfaimado quando che-gasse ao asilo. Com um pedao de po na mo e um bon de pano escuro, foiOliver levado pelo Sr. Bumble para fora daquela humilde casa, onde umolhar ou uma palavra de afeio jamais lhe suavizou os seus tristes anos deinfncia. E contudo rebentaram-lhe os soluos quando a porta se fechou;por mais miserveis que fossem os seus companheiros de infortnio, eramesses os nicos amigos que ele conhecera, e pela primeira vez sentiu ele emseu corao de criana a solido em que se achava neste vasto universo.

    O Sr. Bumble caminhava apressadamente, e o pequeno Oliver, aper-tando nas mos a roupa do bedel, caminhava ao lado dele e perguntava acada instante se estavam perto da casa. O Sr. Bumble respondia por modobreve e duro: j no sentia a influncia benfica que exerce a genebra emcertos coraes.

  • O L I V E R T W I S T

    Chegaram.Mas no havia um quarto de hora que Oliver transpusera a soleira do

    asilo da mendicidade e fizera desaparecer o segundo pedao de po quan-do o Sr. Bumble, que o confiara aos cuidados de uma velha, veio dizer-lheque era dia de conselho e que o conselho o mandara chamar.

    Oliver teve medo de ver tantos homens e no deu resposta. Ficoumuito espantado com a notcia, no sabendo se devia rir ou chorar; masno teve tempo de longas reflexes, porque o Sr. Bumble teve a idia delhe aplicar uma bengalada na cabea para que ficasse atento, outra nascostas para que ficasse esperto, ordenou-lhe que o acompanhasse e o levoupara uma grande sala caiada, onde oito ou dez sujeitos gordos estavam roda de uma mesa, a cuja cabeceira ficava um sujeito de bela corpulncia,caro redondo e vermelho, assentado em cadeira mais alta que as outras.

    Cumprimente o conselho disse o Sr. Bumble.Oliver enxugou duas outras lgrimas que lhe rolavam nos olhos e cum-

    primentou a mesa do conselho. Como se chama voc? perguntou o presidente.Oliver teve medo de ver tantos homens e no deu resposta. O bedel

    aplicou-lhe nova bengalada que o fez chorar; Oliver respondeu baixinhoe com voz trmula; vendo isso, um sujeito de colete branco disse que eleera idiota, meio excelente de tranqilizar e animar o pequeno.

    Oua disse o presidente , voc sabe que rfo? Que ser rfo? perguntou o pobre Oliver. Este pequeno idiota disse peremptoriamente o sujeito do cole-

    te branco. Silncio! disse o presidente. Voc sabe que no tem pai nem

    me e que educado custa da parquia? Sei, sim, senhor respondeu Oliver chorando amargamente. Por que chora voc? perguntou o sujeito do colete branco.Era realmente extraordinrio; por que razo choraria Oliver? Creio que voc no deixa de rezar todas as noites disse outro sujeito

    , e rezar como bom cristo, por aqueles que lhe do de comer e de vestir... Sim, senhor balbuciou a criana.Tinha razo o sujeito que acabava de falar. Efetivamente era preciso

    que Oliver fosse bom cristo, e at um cristo modelo, para rezar poraqueles que lhe davam de comer e de vestir; mas a verdade que norezava, porque lho no haviam ensinado.

  • C HAR L ES DI C K E N S

    Est bem disse o presidente de cara rubicunda. Voc estaqui para ser educado e aprender um ofcio til.

    Amanh s seis horas da manh comear a desfiar estopa disseo sujeito do colete branco.

    Mandar que Oliver desfiasse estopa era combinar de um modo sim-ples os dois benefcios que lhe prometiam; ele os reconheceu amboscom uma profunda cortesia por instigao do bedel, depois foi levadopara uma grande sala do asilo onde, em cama dura, adormeceu soluan-do; prova evidente da brandura das leis do nosso venturoso pas que noimpedem o sono aos pobres.

    Pobre Oliver! Adormeceu na feliz ignorncia do que se passava emroda dele, nem pensava que nesse mesmo dia o conselho adotara umaresoluo que devia exercer em seus destinos uma influncia irresistvel.Mas a deciso estava assentada.

    Vejamos qual ela era.Os membros do conselho da administrao eram homens profundamente

    filsofos. Examinaram o asilo da mendicidade e descobriram repentina-mente aquilo que os espritos vulgares nunca chegaram a descobrir; isto ,que os pobres nadavam em prazer naquele estabelecimento. As classes po-bres, no pensar daqueles senhores, tinham ali uma casa de recreio, umataverna em que no se pagava nada, almoo, jantar, ch e ceia em sumaum verdadeiro paraso de tijolos onde se gozava de tudo sem trabalhar.

    Ol disse o conselho consigo , vamos pr estas coisas em seuslugares; vamos acabar com isto.

    Imediatamente estabeleceram como princpio que os pobres pudes-sem escolher (no se forava ningum) uma destas coisas: ou morrer defome lentamente se ficassem no asilo, ou morrer de repente se sassempara a rua. Para este fim contratou o conselho com a administrao dasguas uma quantidade ilimitada delas e com um mercador de trigo aremessa de um pouco de farinha de aveia em perodos determinados;concederam trs pequenas raes de mingau por dia, uma cebola duasvezes por semana e a metade de um po nos domingos.

    A respeito das mulheres aprovaram outras resolues sbias e huma-nas, que intil mencionar; por simples bondade dalma, resolveram se-parar por uma espcie de divrcio os pobres casados, o que lhes poupavaa despesa enorme de um processo na cmara eclesistica; e em vez deobrigar o marido a sustentar a famlia com o seu trabalho, tiravam-lhe a

  • O L I V E R T W I S T

    famlia e o punham outra vez celibatrio. No se pode dizer bem quantaspessoas em todas as classes da sociedade desejariam aproveitar este bene-fcio; mas os administradores eram homens previdentes e obviaram essadificuldade; para gozar das vantagens do divrcio era preciso morar noasilo e viver de mingau; isto intimidava os outros.

    Seis meses depois da chegada de Oliver Twist, o novo sistema estavaem pleno vigor. A princpio foi um pouco dispendioso o tal sistema; erapreciso pagar mais a empresa funerria e apertar a roupa dos pobres queemagreciam descomunalmente depois de uma semana ou duas de min-gau; mas o nmero dos habitantes do asilo de mendicidade diminuiumuito e os administradores estavam no stimo cu.

    O lugar onde as crianas comiam era uma grande sala, com cho detijolo, tendo ao fundo uma grande caldeira onde o cozinheiro do asilo,de avental cintura e ajudado por duas mulheres, tirava o mingau nashoras de refeio.

    Cada criana recebia uma tigelinha cheia e nada mais, exceto nos diasde festa, em que se lhes dava mais duas onas e um quarto de po. Astigelas nunca precisavam ser lavadas; os pequenos, com as suas colheres,deixavam-nas completamente limpas e lustrosas; e quando acabavam estaoperao, que no durava muito, porque as colheres eram quase do tama-nho das tigelas, ficavam contemplando a caldeira com olhos to vidosque pareciam devor-la e lambiam os dedos para no perderem algumresto do mingau que lhes ficasse.

    Geralmente a criana tem excelente apetite. Oliver Twist e seus com-panheiros sofriam durante meses as torturas de uma lenta consumpo, ea fome acabava por lhe transviar o esprito a ponto que um menino, altodemais para a idade que tinha e pouco acostumado a semelhante existn-cia (seu pai tivera uma casa de pasto), insinuou um dia aos seus compa-nheiros que, se no tivesse maior poro de mingau por dia, receava devorarde noite o pequeno que dormia com ele, o qual era mais criana e dbil;falando assim, tinha ele o olhar desvairado e faminto e os outros acredi-tavam que ele faria realizar a ameaa.

    Deliberaram entre si que um deles fosse nessa mesma noite pedir aocozinheiro segunda poro de mingau.

    A sorte designou Oliver.De noite, as crianas ocuparam os seus lugares; o cozinheiro do asilo

    estava ao p da caldeira; foi servido o mingau; proferiu-se o benedicite.

  • C HAR L ES DI C K E N S

    O mingau desapareceu; as crianas cochichavam, faziam sinais a Oliver,que era acotovelado pelos que lhe ficavam mais perto. A fome exasperavao pobre Oliver, e o excesso de misria tinha-lhe tirado os cuidados; dei-xou o lugar e, caminhando com a tigela e a colher na mo, disse com voztrmula e assustada:

    Eu queria mais um bocado de mingau.O cozinheiro, homem gordo e bojudo, ficou plido como um defunto;

    ps as mos na caldeira para no cair; as velhas que o acompanhavamficaram geladas de espanto e as crianas, de terror.

    Que diz? perguntou o cozinheiro com voz alterada. Eu queria mais um bocadinho respondeu Oliver.O cozinheiro deu com a colher de pau na cabea de Oliver, apertou-o

    nos braos e chamou o bedel em altos gritos.O conselho estava em sesso solene quando o Sr. Bumble, fora de si,

    entrou na sala e, dirigindo-se ao presidente, disse: Sr. Limbkins, peo-lhe perdo; Oliver Twist pediu mais.O pasmo foi geral; pintara-se o horror em todos os semblantes. Pediu mais? disse o Sr. Limbkins. Acalme-se Sr. Bumble e

    responda calmamente: Que ser, o senhor disse que ele pediu maiscomida depois de ter recebido a ceia marcada pelo regulamento?

    Sim, senhor respondeu Bumble. Esse pequeno acaba infalivelmente na forca disse o sujeito do

    colete branco.Ningum se ops a esta profecia. Rompeu logo vivssima discusso; Oliver

    foi preso, e no dia seguinte pregou-se uma carta na porta do asilo oferecen-do cinco libras esterlinas a quem quisesse livrar a parquia de Oliver Twist;por outros termos, dava-se cinco libras esterlinas a Oliver Twist, a quemquer que precisasse de um aprendiz para qualquer ofcio ou negcio.

    Nunca tive mais profunda certeza dizia o sujeito do colete bran-co lendo no dia seguinte o cartaz do que nesta ocasio: aquele rapaz hde acabar na forca!

    Como eu me proponho a mostrar, pela obra adiante, se o sujeito docolete branco tinha ou no razo, prejudicaria agora esta narrao se fi-zesse pressentir desde j o desenlace dela.

    Caminhemos devagar.

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  • C HAR L ES DI C K E N S

    Captulo III

    De como Oliver Twist escapou de um emprego que no era sinecura.

    Depois de haver cometido o crime imperdovel de pedir mais uma dosede mingau, Oliver esteve durante oito dias estreitamente encerrado no cr-cere, a que o mandara a misericrdia do Conselho de administrao.

    primeira vista, podia supor-se que, se houvesse recebido com respei-to a profecia do sujeito do colete branco, Oliver tinha nas mos o meio deplantar a reputao proftica daquele sbio administrador, atando umaponta do seu leno num prego e pendurando-se na outra ponta. S haviaum obstculo para a execuo deste ato: que, por ordem expressa doconselho, assinalada, rubricada e selada por todos os membros, foramproibidos os lenos no asilo por serem objetos de luxo. O segundo obst-culo era a tenra idade de Oliver.

    Oliver chorou amargamente durante dias inteiros; e, quando vinhamas longas e tristes horas da noite, punha as mozinhas diante dos olhospara no ver a escurido. Acocorava-se em um canto para dormir. s ve-zes acordava assustado e trmulo, nessas ocasies encostava-se parede,como se em tocar essa superfcie dura e fria achasse preveno contra astrevas e solido que o rodeavam.

    No imaginem os inimigos do sistema da lei dos pobres que, durante asua priso, Oliver fosse privado do exerccio, da sociedade e das consola-es religiosas.

    Quanto ao exerccio, como o tempo era frio, tinha ele licena para selavar todas as manhs num tanque, em presena do Sr. Bumble. Podiaresultar-lhe daqui algum defluxo; mas o Sr. Bumble removia esse incon-veniente ativando a circulao do sangue do pequeno mediante algumasbengaladas. Quanto sociedade, levavam-no de dois em dois dias ao re-feitrio das crianas e a pregavam-lhe um sermo, para exemplo eedificao dos outros.

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    Longe de lhe recusarem as consolaes religiosas, era ele conduzido apontaps, todas as noites, sala de reza, onde, para maior gosto de suaalma, os outros pequenos repetiam uma orao correta e aumentada peloconselho. Nessa orao, os meninos pediam ao cu que os fizesse bons,virtuosos, contentes e obedientes e que os preservasse dos crimes, vciosde Oliver Twist, protegido e guiado por Satans, amostra direta dos pro-dutos do co tinhoso.

    Ora, aconteceu que um dia de manh o Sr. Gamfield, limpador dechamins, ia descendo a rua e pensando na maneira de pagar uma porode aluguis atrasados. Quanto mais pensava e calculava, tanto menos che-gava soma de cinco libras esterlinas de que precisava. No seu desesperode no poder perfazer aquela soma, batia na besta e no burro, quando deucom os olhos no cartaz que estava pregado na porta do asilo.

    Ah! Ah! disse o Sr. Gamfield ao burro.O burro estava nesse momento inteiramente distrado; provavelmente

    cogitava no almoo e perguntava a si mesmo se no teria um ou dois talosde couve para comer quando o aliviassem dos dois sacos de fuligem quelevava no carrinho. No deu ateno ordem do amo e continuou a andar.

    O Sr. Gamfield dirigiu ao burro uma horrvel praga, correu atrs dele,desfechou-lhe cabea uma tremenda pancada que despedaaria qual-quer outro crnio que no fosse o de um burro. Segurou-lhe na rdea esacudiu-lhe a queixada para lhe recordar seus deveres de obedincia; deuvolta com ele, repetiu a pancada e trepou a uma pedra para ler o cartaz.

    O sujeito do colete branco estava de p porta, com as mos nas costas,depois de ter opinado profundamente na sala do conselho; tinha assistido discusso entre o Sr. Gamfield e o burro; sorriu com satisfao vendo oSr. Gamfield aproximar-se do cartaz, porque viu que era ele o amo queconvinha a Oliver.

    O Sr. Gamfield sorriu tambm, lendo o cartaz, porque eram justamen-te as cinco libras de que ele precisava; e quanto criana, como conheciao regime do asilo, suspeitou que devia ser assaz magra para subir a umachamin. Releu o cartaz e, descobrindo respeitosamente a cabea, aproxi-mou-se do sujeito do colete branco.

    H aqui um menino que a parquia deseja fazer aprendiz de algu-ma coisa? disse ele.

    Sim respondeu o sujeito do colete branco com um benvolosorriso. Que me quer?

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    Se a parquia quiser que ele aprenda um ofcio agradvel como ode limpador de chamins, por exemplo disse o Sr. Gamfield , preci-so de um aprendiz e estou disposto a encarregar-me dele.

    Entre disse o sujeito do colete branco.Quando o Sr. Gamfield exps ao conselho o que queria, disse o Sr.

    Limbkins, presidente: O ofcio de limpador de chamin bem porco. Tem-se visto morrerem as crianas nas chamins disse outro sujeito.O Sr. Gamfield dissipou esta dvida, alegrando muito ao sujeito do

    colete branco, que alis ficou srio depois de um olhar do presidente. Oconselho entrou a deliberar durante alguns minutos, mas em voz to bai-xa que s se ouviam estas palavras: Diminuio de despesa; sejamoseconmicos; pode-se fazer um bom relatrio. Estas mesmas palavras sse ouviam porque eram energicamente repetidas.

    Falou enfim o presidente: Examinamos o seu pedido e no podemos dar-lhe o que deseja. Repelimo-lo completamente disse o sujeito do colete branco. Sem hesitao acrescentaram outros membros do conselho.O Sr. Gamfield tinha sobre si a acusao frvola de ter morto trs ou

    quatro crianas a cacete; lembrou-se de que o conselho, por um caprichosingular, teria em vista esta circunstncia de segunda ordem. No quisaludir a ela e tratou de retirar-se.

    No querem dar-me o pequeno? disse ele na soleira da porta. No disse o presidente , salvo se diminuirmos a recompensa.Depois de alguma discusso ficou assentado que s se dariam trs libras

    e dez shillings. Mandaram buscar Oliver, que estava na priso. Vestiram-lhe uma camisola lavada e deram-lhe uma tigela de mingau acompanhadade duas onas de po, como nos dias de festa.

    O Sr. Bumble avisou o pequeno de que o conselho ia d-lo a uma pes-soa que lhe ensinaria um ofcio e conduziu-o sala onde trabalhava omagistrado que devia lavrar o contrato. Era uma grande sala com umagrande janela. Estavam a uma secretria dois sujeitos velhos, um lendoum jornal, outro examinando um pergaminho com o auxlio de culos detartaruga. Em frente da secretria estava o Sr. Limbkins acompanhadodo Sr. Gamfield. Havia mais umas trs ou quatro pessoas.

    O sujeito dos culos adormeceu a pouco e pouco, e houve um curtosilncio, depois da entrada de Oliver.

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    Aqui est o menino disse o Sr. Bumble. Gostar ele do ofcio de limpar chamins? Morre por isso responde Bumble beliscando o menino. Quer ser limpador de chamins? No pede outra coisa tornou Bumble.O magistrado dos culos que havia feito estas perguntas, tendo acorda-

    do ao aviso do Sr. Bumble, disse: Bem, faamos os contratos.Ps os culos no nariz e procurou o tinteiro.Era o momento crtico do destino de Oliver. Se o tinteiro estivesse no

    lugar onde o juiz o procurava, o contrato ficaria lavrado e Oliver seria en-tregue ao limpa-chamins. Mas quis o acaso que o tinteiro estivesse jus-tamente debaixo do nariz do sujeito, de maneira que ele correu os olhos portoda a parte sem o achar. Durante essa pesquisa, deu ele com os olhos nacara de Oliver Twist, cuja expresso de medo e horror era to visvel queno podia escapar ao juiz, apesar de mope como era.

    Daqui resultou que o juiz perguntou brandamente a Oliver se queriaser limpa-chamins e este ajoelhou-se dizendo que preferia morrer defome. O contrato no foi lavrado. O Sr. Bumble quis intervir.

    Cale-se disse o juiz.O Sr. Bumble ficou assombrado. Recusamos disse o juiz a nossa sano a este contrato. Espero disse o Sr. Limbkins que o testemunho sem valor de

    uma criana no por em dvida o procedimento das autoridades. No temos nada com essa parte disse em tom seco o magistrado.

    Levem esse pequeno para o asilo e tratem-no bem.Na mesma noite, o sujeito do colete branco afirmou formalmente que

    Oliver no s seria enforcado, mas at esquartejado. O Sr. Bumble abanoua cabea com ar sombrio e misterioso e disse que desejava que tal noacontecesse; a isto respondeu o Sr. Gamfield que estimaria bem ter ficadocom o pequeno.

    No dia seguinte, o pblico foi informado de que Oliver continuava emalmoeda e que a pessoa que se encarregasse dele receberia cinco librasesterlinas.

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    Captulo IV

    Oliver acha um emprego e faz a sua entrada no mundo.

    Nas grandes famlias, quando um rapaz se adianta em anos e no sepode arranjar para ele um bom lugar por compra, sucesso ou reversi-bilidade, costuma-se met-lo a bordo. O conselho da administrao, paraseguir to prudente exemplo salutar, deliberou acerca da oportunidadede embarcar Oliver Twist a bordo de algum navio mercante com destinoa algum porto insalubre.

    Pareceu-lhe que isto era o melhor. Era provvel que o mesmo capitodo navio desse cabo do canastro ao terrvel Oliver.

    Quanto mais pensavam nisto, melhor lhes parecia a coisa. A conclusofoi que o nico meio de assegurar o futuro de Oliver era embarc-lo.

    O Sr. Bumble foi mandado em comisso a ver se achava algum capitoque precisasse de um grumete por quem pessoa alguma se interessava.Voltava ao asilo para dar conta da sua misso, quando encontrou porta oempresrio de enterros da parquia, o Sr. Sowerberry em pessoa.

    O Sr. Sowerberry, alto e magro, trajando casaca preta, meias da mes-ma cor remendadas e sapatos primos-irmos das meias. A natureza nolhe dera fisionomia uma expresso risonha; mas como ele achava emseu ofcio ampla matria para rir, tinha o andar por assim dizer elsticoe a cara alegre. O empresrio de enterros apertou cordialmente a mo doSr. Bumble.

    Venho disse ele tomar a medida de duas mulheres que mor-reram a noite passada.

    O senhor h de enriquecer disse o bedel introduzindo o polegare o ndice na boceta que apresenta o empresrio dos enterros, boceta quetinha a forma de um pequeno caixo fnebre privilegiado sem garantiado Governo. Digo-lhe que h de enriquecer repetiu o Sr. Bumblebatendo-lhe amigavelmente no ombro com a bengala.

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    Parece-lhe? disse o Sr. Sowerberry com um tom de quem nodizia sim nem no. Os preos da administrao so muito pequenos.

    E os seus caixes tambm respondeu o bedel com um ar que seaproximava da pilhria, tanto quanto convinha a um funcionrio im-portante.

    O Sr. Sowerberry ficou admirado, como convinha, da finura deste ditoe soltou uma gargalhada.

    verdade, Sr. Bumble disse ele. Cumpre confessar quedesde a adoo de novo sistema de alimentao do asilo os caixes so umpouco mais estreitos e menos profundos que antigamente; mas precisoque a gente ganhe alguma coisa, a madeira custa caro e o ferro vem deBirmingham pelo canal.

    Cada ofcio tem suas vantagens e desvantagens disse o Sr. Bumble, e um bom lucro vale alguma coisa.

    Dir-lhe-ei contudo continuou o Sr. Sowerberry que eu tenhocontra mim uma grande desvantagem; que as pessoas robustas morremprimeiro. Quero dizer que as pessoas que vivem bem durante muito tem-po so as primeiras que espicham a canela quando entram no asilo; e olheque trs ou quatro polegadas mais do que o clculo primitivo de um cai-xo fazem um grande furo nos lucros, principalmente a quem sustentauma famlia como eu.

    O Sr. Sowerberry dizia isto com o tom indignado de um homem quetem direito de se queixar; o Sr. Bumble compreendeu que isto podia pro-duzir algumas reflexes desfavorveis aos interesses da parquia e mu-dou de conversa.

    Oliver Twist foi o novo assunto. Conhecer o senhor por acaso disse o Sr. Bumble algum que

    precise de um aprendiz? um menino do asilo que l temos como umacarga s costas da parquia. Paga-se bem, Sr. Sowerberry, paga-se bem!

    E falando assim, o Sr. Bumble levantava a bengala e apontava para ocartaz, batendo trs pancadinhas nas palavras cinco libras esterlinas queestavam impressas em letras grandes.

    Homem! disse o empresrio de enterros segurando na aba dacasaca do Sr. Bumble. justamente o que eu precisava... Que lindoboto esse seu; no tinha reparado nele.

    Sim, no feio disse o bedel, olhando com orgulho para os gran-des botes de cobre que ornavam a sua casaca. A gravura igual ao

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    selo paroquial: o bom samaritano tratando do viajante ferido. Foi umpresente de festas que me fez o conselho. A primeira vez que usei dacasaca foi para assistir devassa relativa quele mercador sem recursosque morreu de noite debaixo da porta.

    Lembra-me disse o empresrio. O jri declarou que o ho-mem morreu de fome e frio, no?

    O Sr. Bumble fez com a cabea um sinal afirmativo. E a sentena acrescentava, creio eu, por modo especial, que se o

    oficial dos socorros... Tolices! Tolices! disse o bedel. Se o conselho desse ateno a

    quantas coisas dizem os trs jurados ignorantes, teria muito que fazer. verdade disse o empresrio. Mas deixemos l os jurados. O Sr. Bumble tinha-se encolerizado. Tirou o chapu, e do chapu um

    leno, com o qual enxugou o suor que lhe escorria da testa, ps outra vezo chapu; e, voltando-se para o empresrio, disse em tom calmo:

    E o pequeno? Quer o pequeno? O senhor sabe respondeu o fabricante de caixes de defunto

    que eu pago um avultado imposto para os pobres. E ento? disse o Sr. Bumble. Ento, que se eu pago muito para os pobres, tenho o direito de os

    explorar tambm como posso; assim... Creio que esse pequeno pode ficarcomigo.

    O Sr. Bumble segurou no brao do fabricante de caixes de defunto ef-lo entrar no asilo. O Sr. Sowerberry conferenciou com os administra-dores durante cinco minutos e ficou assentado que Oliver iria nesse mesmodia para casa dele e que, se no cabo de certo tempo, Oliver produzisse maiscom o seu trabalho do que gastava com a comida, ficaria com o fabricantedurante certo nmero de anos, com o direito de o empregar sua vontade.

    O pequeno Oliver foi levado nessa mesma noite aos administradores einformado de que ia entrar imediatamente, como aprendiz, na casa deum fabricante de caixes de defunto, e que, se se queixasse de sua posi-o, se volvesse ao asilo, seria embarcado para ser morto no mar ou acacete. Oliver no manifestou nenhuma comoo. Os administradoresdeclararam que ele era um peralta sem alma e deram ordem ao Sr. Bumblepara lev-lo imediatamente.

    Oliver no deixava de ter sensibilidade, mas os maus-tratos que otinham embrutecido tanto. Ouviu a notcia sem dizer palavra, ps a ba-

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    gagem debaixo do brao, e no era pesada, porque no passou de umpequeno embrulho, enterrou o bon nos olhos e, agarrando-se outra vez aba da casaca do Sr. Bumble, foi levado por esse funcionrio casa dofabricante de caixes de defunto.

    Durante algum tempo o Sr. Bumble arrastou Oliver aps si sem lhe prestarateno. Ventava; o pequeno Oliver ia completamente escondido pela casa-ca do bedel, que se abria, deixando ver o colete de rebuo. No momento dechegar, o Sr. Bumble julgou conveniente ver se o pequeno estava capaz deaparecer e o fez com aquele ar prprio de um protetor benvolo.

    Oliver disse ele. Senhor? respondeu a criana com voz fraca e trmula. No enterra assim o bon; levanta a cabea.Oliver obedeceu, passando a mo pelos olhos; mas uma lgrima lhe

    tremia nos olhos quando ele os levantou para o Sr. Bumble e correu pelaface abaixo; atrs dessa veio outra, e outra e outra e outra. A criana noas pde reter, os seus esforos foram vos; largou a aba do bedel, ps asmos na cara e uma torrente de lgrimas correu por entre os seus dedosemagrecidos.

    Bom! disse o Sr. Bumble, parando e lanando um olhar feroz aoseu protegido. De todas as crianas mais ingratas, mais viciosas quetenho visto, voc ...

    No, no senhor disse Oliver soluando e agarrando-se moque empunhava a famosa bengala. No, no senhor; eu quero ser bom;sim eu hei de ter juzo... eu sou criana... eu sou... to... to...

    To o qu? perguntou o Sr. Bumble admirado. To infeliz! disse a criana. Todos me detestam. Oh! senhor,

    eu lhe peo, no se zangue comigo!A criana batia no peito, soluava e olhava para o bedel com angstia e

    terror.Durante alguns instantes, o Sr. Bumble contemplou pasmado a cara as-

    sustada e triste de Oliver; tossiu trs ou quatro vezes, como um homemendefluxado, e disse a Oliver que enxugasse os olhos e tivesse juzo. Depoissegurou-lhe na mo e penetrou na casa do fabricante de caixes de defunto.

    Estava este a preparar-se para lanar algumas entradas no livro dascontas, luz de uma ruim vela, quando o Sr. Bumble entrou.

    Ah! disse ele, erguendo os olhos e parando de escrever. osenhor?

  • C HAR L ES DI C K E N S

    Em pessoa respondeu o bedel. C lhe trago o pequeno.Oliver cumprimentou o Sr. Sowerberry. Ah! O pequeno de que falamos disse o empresrio de enter-

    ros levantando a vela para ver Oliver. minha dona, venha c fora.A Sra. Sowerberry saiu de uma salinha que ficava por trs da loja; era

    uma mulher pequena, magra, arrebatada, uma verdadeira Megera. Minha dona disse o Sr. Sowerberry com deferncia , aqui est

    a criana de quem lhe falei.Oliver fez outro cumprimento. Meu Deus! disse ela. Como est magrinho! Sim, no forte disse o Sr. Bumble olhando severamente para

    Oliver como se a culpa fosse dele , mas h de desenvolver-se. Sim disse ela , h de desenvolver-se com a nova comida. Que

    ganhamos ns com esses filhos da parquia? Custam mais do que valem.Vamos, desce, esqueleto.

    Dizendo isto, abriu uma porta e empurrou Oliver para uma escadangreme que conduzia a uma espcie de adega, sombria e mida, ao p dafogueira, que se chamava cozinha, onde estava uma rapariga suja, comsapatos rotos e grossas meias azuis e rasgadas.

    Carlota disse a Sra. Sowerberry, que acompanhara Oliver , da esse pequeno os restos que se puseram de lado para dar ao co; ele novoltou hoje casa, passar sem comer. E espero que no toras o nariz,meu pecurrucho.

    Oliver, cujos olhos faiscavam com a idia de comer carne e morria devontade de a devorar, respondeu que no, e os restos do jantar forampostos diante dele.

    Eu quisera que algum filsofo de estmago cheio, em quem a boa co-mida no gera blis, algum desses filantropos sem sangue nem alma, visseOliver Twist atirar-se queles restos que nem o co quis comer e contem-plasse a avidez com que ele partia e engolia os pedaos. S h uma coisa queeu preferia a isso; era ver o filsofo comer a mesma com igual prazer.

    Ento disse a mulher, quando Oliver acabou a ceia, que ela assistiucom um horror silencioso, tremendo pelo futuro apetite do pequeno ,acabaste?

    Como no havia mais nada, Oliver respondeu que sim. Anda comigo disse ela.Travou de uma candeia suja e fumegante e o levou ao alto da escada.

  • O L I V E R T W I S T

    Tua cama debaixo do balco. No tens medo de dormir entrecaixes de defunto? E que importa que tenhas medo? No dormirs emoutra parte. Ainda. No me faas estar tua espera.

    Oliver, sem perder tempo, acompanhou docilmente a sua nova ama.

  • C HAR L ES DI C K E N S

    Captulo V

    Oliver trava novos conhecimentos; assiste a um enterroe fica com uma m idia do ofcio.

    Apenas ficou s na loja, Oliver ps a candeia num banco e deitou umolhar tmido roda de si, com um sentimento de terror que muita gentede maior idade podia facilmente compreender.

    Havia no meio da loja um caixo por acabar, e tinha uma aparncia tolgubre que Oliver estremecia sempre que olhava para ele. Esperava versurgir dali a cabea de um espectro horrvel cujo aspecto o faria morrerde medo.

    Ao longo da parede estava uma longa enfiada de tbuas de pinho cor-tadas uniformemente, que pareciam outros tantos espectros de largas es-pduas, com as mos nas algibeiras: placas de metal, argolas, pregos,pedaos de pano preto juncavam o assoalho.

    Por trs do balco, na parede, guisa de adorno, havia dois urubusengravatados e um carro conduzindo um fretro. A loja estava fechada equente; a atmosfera parecia toda impregnada de um cheiro a defunto; ovo do balco onde foi posta a cama de Oliver tinha ares de cova.

    Oliver acordou de manh, ouvindo um grande pontap na porta daloja, pontap que foi repetido vinte e cinco vezes, com clera, enquantoele se vestia s pressas. Quando ele comeou a puxar os ferrolhos, cessa-ram os pontaps e ouviu-se uma voz dizer:

    Abre ou no? Sim, senhor, o quanto antes disse Oliver dando volta chave. Tu s o novo aprendiz? disse a voz pelo buraco da fechadura. Sim, senhor. Quantos anos tem? Dez anos. Bem, vou sacudir-te a preguia disse a voz. Vais ver, bastardo!

  • O L I V E R T W I S T

    Depois desta graciosa promessa, a voz entrou a assobiar.Oliver puxou tremulamente o ferrolho e abriu a porta.Olhou para um lado e outro, pensando que o indivduo que lhe falava

    dera alguns passos para se aquecer; a nica pessoa que viu foi um rapazolaassentado em uma grande pedra em frente da casa, ocupado em comeruma fatia de po com manteiga, que ia cortando em pedaos do tamanhoda boca e engolia com avidez.

    Perdo disse Oliver, no vendo ningum. Seria o senhor quebateu aqui?

    Dei pontaps respondeu o outro. Precisa de algum caixo? perguntou ingenuamente Oliver.O rapazinho pareceu furioso com isto e disse a Oliver que ele que

    precisaria dentro de pouco tempo de um caixo, se tomasse a liberdadede tais gracejos com os seus superiores.

    Naturalmente no sabes quem eu sou? disse ele descendo dofrade de pedra com uma edificante gravidade.

    No, senhor respondeu Oliver. Eu sou o Sr. No Claypole disse o outro , e tu s meu subordi-

    nado. Anda l, tira as trancas das portas, peralta!O Sr. Claypole acompanhou estas palavras com um pontap e entrou

    na loja com um ar de dignidade, que lhe deu muita importncia, postoque seja difcil a um rapaz, de cabea grande, olhos midos e fisionomiaestpida, parecer majestoso em qualquer situao que seja; muito maisquando, alm de tudo isto, tem um nariz de pimento.

    Oliver tirou as trancas da porta e, quando quis levar uma delas para optio que estava ao p da casa, e onde elas ficavam, escorregou e quebrouum vidro; No foi graciosamente ajud-lo, consolou-o dizendo que havia depagar, e dignou-se apertar-lhe a mo. O Sr. Sowerberry desceu logo, e quaseimediatamente apareceu a Sra. Sowerberry; Oliver pagou o vidro, segundoa predio de No, e foi com este para a cozinha a fim de almoar.

    Ande c para perto do fogo, No disse Carlota. Eu tirei doalmoo do amo um pedao de toucinho para voc. Oliver, fecha a porta;tira aqueles pedaos de po; aqui est o teu ch; vai comer l a um cantoe no te demores, porque preciso ir tomar conta da loja.

    Ouves, enjeitado? disse No Claypole. Que traquinas voc! disse Carlota. Deixe aquele pequeno

    sossegado.

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    Deix-lo sossegado! disse No. Creio que o que todos fazem.No tem pai nem me que o incomodem; todos os seus parentes deixamque ele faa o que quer... Que diz voc, Carlota?

    Voc tem coisas, No! disse Carlota rindo s gargalhadas.No fez o mesmo; depois deitaram um olhar desdenhoso para o pobre

    Oliver Twist, que tiritava assentado em uma caixa no fundo da cozinha ecomia os restos de po duro que se lhe reservara especialmente.

    No era pobre, mas no do asilo da mendicidade; no era enjeitado,porque podia remontar a sua genealogia at o pai e a me, que mora-vam perto dali; a me era lavadeira; o pai era ex-soldado e bbado,tinha uma perna de pau e uma penso de dois pence e meio por dia. Oscaixeiros da vizinhana tiveram por muito tempo o costume de chamara No os nomes mais injuriosos, e ele os sofreu sem dizer uma palavra.Mas agora que a sorte lhe pusera no caminho um pobre rfo sem nome,a quem o ente mais vil podia apontar com desprezo, vingava-se comusura. Belo assunto de reflexo este. Vemos assim com que lindo as-pecto se mostra s vezes a natureza humana e com que semelhana asmesmas qualidades amveis se desenvolvem no mais puro fidalgo e maisbaixo pobreto.

    Havia trs semanas ou um ms que Oliver morava em casa do empre-srio de enterros; este com a mulher, estando s portas fechadas, ceavamna salinha do fundo, quando o Sr. Sowerberry, depois de ter contempladoa mulher com o ar mais respeitoso, comeou a conversa.

    Minha cara amiga... Ia continuar, mas a Sra. Sowerberry levan-tou os olhos com to m catadura que ele estacou.

    Que tens? disse ela zangada. Nada, minha dona, nada disse o Sr. Sowerberry. s um asno disse a Sra. Sowerberry. No, no, minha dona disse humildemente o marido , eu pen-

    sava que voc no queria prestar-me ateno; eu queria dizer... Oh! Guarde l para si o que queria dizer interrompeu a esposa.

    Eu nada valho; no me consulte, ouviu? No me quero meter nos seusnegcios.

    Dizendo isto, soltou uma risadinha afetada que fazia supor terrveisconseqncias.

    Mas minha dona disse o Sr. Sowerberry , eu preciso de suaopinio.

  • O L I V E R T W I S T

    Que lhe importa a minha opinio? replicou a mulher com arre-batamento. Pea conselhos a outros.

    E repetiu a risadinha afetada que fazia tremer o Sr. Sowerberry.Nisto, seguia ela a poltica comum das mulheres, e que mais triunfos

    lhes d; obrigava o marido a solicitar como um favor a licena de lhedizer o que ela estava curiosa por saber e, depois de uma discusso de trsquartos de hora, deu a reclamada licena.

    Quero falar disse o Sr. Sowerberry , quero falar do pequenoOliver; tem uma boa cara.

    Grande milagre! Come bastante para ter boa cara! respondeu ela. As suas feies tm uma expresso de tristeza que lhe fica a matar

    continuou o Sr. Sowerberry. Creio que seria um excelente urubu.A Sra. Sowerberry levantou a cabea com ar de pasmo; o marido repa-

    rou nisso e, sem lhe dar tempo de observar nada, continuou: No digo urubu para acompanhar os enterros das pessoas adultas,

    mas s para os enterros das crianas; seria uma novidade haver urubucom a mesma idade do defunto. Acredite que faria grande efeito.

    A Sra. Sowerberry, que tinha apuradssimo gosto para o que diz respei-to a enterros, ficou impressionada com a novidade desta idia; mas, comocomprometeria a sua dignidade aprovando o marido, nas circunstnciasatuais, contentou-se com perguntar desdenhosamente por que razo nolhe tinha acudido a mais tempo aquela idia. O Sr. Sowerberry concluiucom razo que a proposta era bem recebida; decidiu-se logo que Oliverseria iniciado nos mistrios da profisso e que, para isso, acompanharia oamo na primeira ocasio que se oferecesse.

    No tardou a ocasio.No dia seguinte de manh, depois do almoo, o Sr. Bumble entrou na

    loja e, apoiando a bengala no balco, tirou da algibeira uma grande car-teira de couro e deu um papelinho ao Sr. Sowerberry.

    Ah! disse o fabricante de caixes, lendo o papel com olhos ale-gres. uma encomenda de caixo.

    Um caixo em primeiro lugar; depois um enterro paroquial dis-se o Sr. Bumble fechando a carteira, que era bojuda como ele.

    Bayton? disse o empresrio de enterros acabando de ler e olhan-do para o Sr. Bumble. a primeira vez que ouo este nome.

    Uns teimosos respondeu o Sr. Bumble abanando a cabea. Uns teimosos, e creio at que orgulhosos.

  • C HAR L ES DI C K E N S

    Orgulhosos? disse o Sr. Sowerberry com um riso zombeteiro. Esta demais.

    Causa lstima disse o bedel. Causa d. Tem razo respondeu o fabricante de caixes com ar aprobtico. S anteontem de noite ouvimos falar deles disse o bedel. E

    nada saberamos se uma mulher que mora na mesma casa no se dirigis-se comisso paroquial para pedir que mandasse um mdico paroquialassistir uma mulher que est muito mal. O mdico tinha sado para jan-tar; mas o seu ajudante, que um rapaz muito hbil, mandou uma porode remdios em uma garrafa de graxa.

    Isto o que se chama prontido disse o empresrio. Justo disse o bedel , mas qual foi o resultado? Quer saber a que

    ponto foi a ingratido daquele rebelde? Acreditar o senhor que o maridorecambiou o remdio, dizendo que no convinha molstia da mulher? Com-preende isto? Um remdio excelente, enrgico, salutar, que se tinha empre-gado com muito bom xito h oito dias, a dois trabalhadores irlandeses e aum homem do ganho; um remdio que se lhe mandou de graa, com a gar-rafa de quebra; e ele manda dizer que a mulher no toma o remdio!

    Como a atrocidade deste procedimento se apresentava em toda a suafora ao esprito do Sr. Bumble, foi-lhe impossvel deixar de dar umabengalada no balco.

    Estava vermelho de indignao. Oh! disse o Sr. Sowerberry. Nunca vi coisa assim... No! Nunca! disse o bedel. Infmia tal nunca vi eu; mas

    agora que est morta preciso enterr-la; quanto antes melhor.O Sr. Bumble, no seu acesso, ps o chapu de trs bicos atravessado e saiu. Vamos disse o Sr. Sowerberry quando ficou s , vamos acabar

    com este enterro. No, toma conta da loja; Oliver, pe o bon e segue-me.Oliver acompanhou o patro.Caminharam algum tempo pelo mais populoso bairro da cidade; de-

    pois desceram uma viela estreita mais suja e miservel que as outras epararam para procurar a casa em questo. De ambos os lados da rua, ascasas eram altas, mas velhssimas, e ocupadas por gente pobrssima, comoera fcil reconhecer, ainda que no atravessassem s vezes a rua homense mulheres curvados e andrajosos.

    A maior parte das casas tinha lojas hermeticamente fechadas e caindoem runas; mas s os andares superiores eram habitados. Outras ameaa-

  • O L I V E R T W I S T

    vam cair e eram escoradas por grossas estacas de pau que estavam solida-mente presas no cho; mas esses prdios rachados pareciam servir de asi-lo a alguns vagabundos, porque muitas das tbuas grosseiras que tapavama porta tinham sido arrancadas como que era para dar passagem a umcorpo. O rego estava sujo e estagnado. Os prprios ratos que passavam deum lado para o outro eram magros como carapaus.

    No havia cordo de campainha na porta em que pararam Oliver e seuamo; este entrou s apalpadelas num corredor escuro, disse a Oliver que oacompanhasse e no tivesse medo, subiu ao primeiro andar e bateu deva-garinho a uma porta.

    Veio abri-la uma mocinha de 13 para 14 anos. O empresrio de enter-ros viu logo pelo aspecto do quarto que era ali mesmo que ele ia. Entrouacompanhado por Oliver.

    No havia fogo; um homem estava ali encostado lareira vazia; ao pdela havia uma velha sentada em um mocho; a um canto estavam muitascrianas esfrangalhadas, e l num desvo do quarto, em frente porta,jazia no assoalho um objeto envolvido num cobertor. Oliver estremeceulanando os olhos para aquele lado e encostou-se involuntariamente aoamo; apesar da cobertura adivinhou que era um cadver.

    O homem estava plido e descarnado; tinha os olhos injetados, a barba eos cabelos grisalhos; a velha tinha os olhos penetrantes e os dois dentes quelhes restavam pendiam sobre o lbio inferior. Oliver teve medo de olharpara ambas as figuras; lembravam-lhe os r