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Decidindo como decidir: os indígenas Munduruku e a participação política no Brasil opendemocracy.net /cristiana-losekann-rodrigo-oliveira/decidindo-como-decidir-os- ind%C3%ADgenas-munduruku-e-participa%C3%A7%C3%A3o-pol Cristiana Losekann and Rodrigo Oliveira Os limites às “políticas participativas” evidenciam a necessidade de se construir instrumentos culturalmente adequados de participação direta e efetiva dos grupos étnicos. English The openMovements series invites leading social scientists to share their research results and perspectives on contemporary social struggles. Tapajos River highlighted. Wikicommons/Kmusser. Some rights reserved. Muito se fala na América Latina sobre os incrementos democráticos que as práticas participativas geram sobre governos. Talvez um dos grandes limites à participação e/ou dos seus resultados efetivos em nossas democracias seja a sua potência transformadora quando estão em questão modelos, interesses e poderes hegemônicos, dos quais são exemplos os projetos associados à expansão da

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  • Decidindo como decidir: os indgenas Munduruku e aparticipao poltica no Brasil

    opendemocracy.net /cristiana-losekann-rodrigo-oliveira/decidindo-como-decidir-os-ind%C3%ADgenas-munduruku-e-participa%C3%A7%C3%A3o-pol

    Cristiana Losekann and Rodrigo Oliveira

    Os limites s polticas participativas evidenciam a necessidade de se construir instrumentosculturalmente adequados de participao direta e efetiva dos grupos tnicos. English

    The openMovements series invites leading social scientists to share their research results andperspectives on contemporary social struggles.

    Tapajos River highlighted. Wikicommons/Kmusser. Some rights reserved.

    Muito se fala na Amrica Latina sobre os incrementos democrticos que as prticas participativasgeram sobre governos. Talvez um dos grandes limites participao e/ou dos seus resultados efetivosem nossas democracias seja a sua potncia transformadora quando esto em questo modelos,interesses e poderes hegemnicos, dos quais so exemplos os projetos associados expanso da

  • fronteira extrativista. Estes projetos trazem tona os limites das democracias representativas liberaise tambm das iniciativas recentes de participao institucional extra eleitoral: o modelo no garantelegitimidade poltica a projetos com impactos concentrados no mbito local, muitos dos quais atingemgrupos etnicamente diferenciados, que no se sentem representados pelas instncias polticasestatais.

    Os limites s polticas participativas evidenciam a necessidade de se construir instrumentosculturalmente adequados de participao direta e efetiva dos grupos tnicos. A consulta prvia foiconcebida como um mecanismo promissor para responder a este desafio. No entanto, para que elano se torne um espao burocrtico e tenha esvaziado seu potencial transformador, preciso quesejam respeitadas a organizao social e poltica e as formas tradicionais de deciso do povoconsultado, da a importncia dos Protocolos, documentos em que o grupo expe ao governo a formacomo quer ser consultado.

    Neste texto, discutiremos a importncia do Protocolo de Consulta Munduruku para a democratizaodas decises relativas implantao de projetos extrativos[1]. O povo Munduruku constitudo porcerca de 13 mil indgenas que vivem em mais de cento e vinte aldeias ao longo da bacia do rioTapajs, um dos principais afluentes da margem direita do rio Amazonas no Brasil. Os Munduruku daregio vivem em trs terras indgenas demarcadas (Sai Cinza, Munduruku e Kayabi) e lutam pelademarcao do territrio Daje Kapap Eypi (Terra Indgena Sawr Muybu). O ato de demarcaorepresenta o reconhecimento formal pelo Estado da ocupao tradicional do povo indgena sobre oterritrio. H pelo menos quatro anos lutam contra o projeto do governo federal de instalar sete usinashidreltricas na bacia do rio Tapajs, que ameaam seus territrios e modos de vida.

    Sugerimos que a importncia desta experincia de participao coloca-se para alm do prprio caso,e pode ser compreendida como um processo exemplar em que a prpria arena pblica de deciso no imposta pelo Estado, mas construda de forma interativa no decorrer do conflito. Os conflitossocioambientais so marcados pela limitao da participao social. Isto porque aquilo que projetadode forma hegemnica como desenvolvimento econmico implica em uma relao de explorao danatureza, compreendida enquanto recurso natural, e na interferncia brutal sobre o ambiente. Oconflito surge justamente do choque dessa forma de significar a economia, com outros aspectos quetambm esto implicados na nossa relao com a natureza, tais como, o lazer, a paisagem, aespiritualidade, o bem viver. Esses conflitos tambm confrontam formas de viver diversas e desenhosde mundo distintos. Em geral, esto contrapostos poderosos interesses poltico-econmicos e grupossocialmente vulnerabilizados.

    Historicamente, as arenas formais de participao, tais como os conselhos gestores e audinciaspblicas, no se mostraram suficientes para a realizao do confronto de forma satisfatria napercepo dos atores em conflito. Mas, as lutas de diversos movimentos, povos, comunidades eorganizaes abriram novas e criativas brechas para a participao. Este o caso da consulta prvia.Criada enquanto acordo internacional entre pases que compem a Organizao das Naes Unidas(ONU), a Conveno n 169 da Organizao Internacional do Trabalho (OIT) formalizou o direito departicipao de povos indgenas e tribais na deciso sobre as mudanas e usos de seus territrios. Aconsulta permite introduzir os grupos possivelmente afetados no processo de deciso.

    O Brasil, que signatrio desta Conveno, nunca realizou nenhuma consulta. Aps forte mobilizaopoltica e por determinao de deciso judicial, a primeira consulta dever ser realizada com o povoMunduruku, ameaado pela construo da Usina Hidreltrica de So Luiz do Tapajs, prevista para omdio curso do rio Tapajs. Contudo, a realizao da consulta em si tambm no garante aparticipao, como dissemos antes, preciso abrir o processo decisrio e discutir seus termos.

    Mesmo com o entusiasmo inicial que as diversas aberturas institucionais de participao socialgeraram a partir da proliferao de conselhos, audincias, conferncias etc., as crticas produzidaspelos prprios atores e pela literatura especializada j ganham vulto. Em vista da decepo com osinmeros processos participativos existentes no Brasil e das experincias de realizao de consultas

  • nos pases vizinhos, os grupos afetados[2] pelos mais diversos empreendimentos temem que aconsulta prvia possa se tornar uma forma de legitimao do empreendimento, esvaziando suapotencial capacidade de deciso.

    nesse contexto que os Munduruku reivindicam "decidir como decidir". Eles elaboraram o Protocolode Consulta Munduruku, (experincia iniciada no Brasil pelo povo indgena Wajpi, no Amap), no qualdizem ao governo como querem ser consultados. Enfatizam que querem ser consultados no prprioterritrio, em aldeias de sua escolha, e reunidos em assembleias com a participao de Munduruku detodas as regies do Tapajs. Esclarecem, ademais, que as decises so tomadas aps longo debate,que leva o tempo necessrio para conseguir a unanimidade entre o povo.

    Os aspectos em discusso e a conduo desta levam em considerao as suas formas de pensar,no querem ser pautados simplesmente pelos problemas dos pariwat (lxico na lngua munduruku quese refere aos no indgenas), mas pelas suas prprias demandas. Eles querem coordenar asreunies, pois produzem seus prprios sistemas participativos e nestes as crianas, jovens e idosostambm so parte. Exigem respeito s temporalidades e dinmicas sociais e, por fim, reivindicam apalavra final sobre a medida proposta. importante mencionar que as aes de resistncia dosMunduruku extrapolam as fronteiras institucionais da legalidade e estas prticas no podem sercriminalizadas, pois so formas tradicionais legtimas de ao poltica.

    O processo constitutivo da deliberao envolve muitos outros elementos que vo alm da elaboraomental e racional da vontade, conforme impem nossos dispositivos democrticos. To importantequanto a fundamentao racional do argumento, so os gestos, as expresses e experimentaes desentimentos e moralidades que se performatizam em dinmicas pblicas de deciso. Antes queinsultos ao bem viver e democracia, as aes diretas e outras formas de expressividade deracionalidades diferenciadas, tais como as protagonizadas pelo povo Munduruku, podem serentendidas como aquilo que Giorgio Agamben chama de "contra-dispositivos" (ou profanao dodispositivo), pois revelam as circunstncias nas quais os dispositivos democrticos tornam-seinsuficientes, ou autoritrios e violentos. No se pode fazer da consulta um dispositivo que ordene asaes em legtimas/ilegtimas, toleradas/criminalizadas.

    Plush-crested jay on the Tapajos River. Flickr/Rennett Stowe. Some rights reserved.

    Igualmente importante o espao estar aberto para a incluso de outros agenciamentos, como por

  • exemplo, a participao da natureza enquanto "agente natural". A construo da natureza em umadimenso social, espiritual e esttica a partir das cosmologias locais precisa estar possvel em taisarenas. A observao da mudana da dinmica das guas ou no comportamento dos peixes, e outrasformas de expresso da natureza podem introduzir elementos significativos para a elaborao dadeciso. Segundo Paul Little o agente natural pode ser considerado como uma espcie de ator queparticipa dos conflitos ambientais e, assim, altera os processos de ao coletiva. Mas esse processoprecisa estar aberto para alm dos agenciamentos naturais compreendidos pela matriz ocidental econsiderar a multiplicidade de conhecimentos e significados inscritos no espao. O ProtocoloMunduruku chama ateno para a importncia do conhecimento tradicional na identificao equestionamento dos impactos (Porque ns que sabemos dos rios, da floresta, dos peixes e daterra, trecho do Protocolo) e rechaa o tecnicismo de feio etnocntrica.

    Os Munduruku esto dando uma oportunidade ao governo de fazer diferente. Dispostos a continuarresistindo contra o projeto que os ameaa, entregaram o Protocolo ao governo em fevereiro de 2015.A este restam duas opes: respeitar a deciso (e a forma de decidir) dos Munduruku ou recrudescera maneira autoritria e antidemocrtica com que vem tratando os grupos culturalmente diferenciados.Como reflete Jacques Rancire, a igualdade na enunciao condio para o exerccio da poltica eda democracia. Frente alteridade, no h democracia em processos regulados unilateralmente pelasnormas e instituies estatais. Os Munduruku esperam que o governo no aja novamente como asucuri gigante[3], que vai apertando devagar, querendo que a gente no tenha mais fora e morrasem ar e deram provas suficientes de que a luta no arrefecer.

    [1] Os projetos extrativos no contexto latino-americano atual foram definidos por Eduardo Gudynasdentro do que seria um modelo econmico neoextrativista, que se caracteriza, entre outros aspectos,pela explorao em larga escala de recursos naturais para a produo de commodities queabastecem o mercado internacional com gros, minrio, petrleo etc. Esses projetos envolvem umacadeia de produo altamente impactante (que vai da extrao em si ao transporte), que usa osrecursos naturais at sua exausto, tomando os territrios de povos indgenas, ribeirinhos,pescadores, camponeses entre outros.

    [2] De um pouco mais de uma dcada para c observa-se, de forma geral na Amrica Latina, umcrescimento de movimentos intitulados como atingidos ou afetados, emergentes em conflitosambientais gerados por megaprojetos de desenvolvimento cujos impactos sobre as populaes locaisso dramticos. Os empreendimentos mais recorrentes so as mineradoras, grandes hidroeltricas,gasodutos, portos, etc.

    [3] Sucuri uma espcie de cobra que vive na Amrica do Sul. A metfora com o governo se deve extenso (chega a 10 metros de cumprimento) e forma como ataca suas presas, enrolando-se nocorpo, sufocando e quebrando os ossos para em seguida com-las.

    Decidindo como decidir: os indgenas Munduruku e a participao poltica no Brasil