Ordem do Templo

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Livro 1 – Em nome do pai... Capítulo 1 – Maldito deserto! O frio mais intenso de Naissos não é, nem de perto, tão prejudicial à existência humana quanto este calor escaldante dos infernos. Até mesmo Cérbero, o guardião do Hades, teria dificuldades em viver aqui. Não me admira este povo ter sido, ao longo da existência, tantas vezes subjugado. Nenhum deus poderia abençoar este interminável conjunto de montanhas secas e mares salgados. Já viram isso, até o mar aqui se chama Morto. O descontentamento de Filipe com sua situação era compreensível e uma característica que o acompanhara por todos os dezenove anos que compunham sua vida. O “velho” Pérdigas, que desde seu nascimento estivera a seu lado, já não tinha mais argumentos para afastar de seu coração aquela constante amargura. – Como falas com tanta convicção de um local que nem conheces meu rapaz? Ao que me lembro, nunca sentistes o rigor do inverno em Naissos e, no curto espaço de tempo que resta de minha vida atribulada, dificilmente sentirás. – Sim, Pérdigas, sei bem disso! É por tua culpa que vivo a tortura de servir a meu inimigo. Se pelo menos meu pai tivesse escolhido melhor seus generais, hoje eu seria um príncipe, ou até mesmo um rei, caso as Moiras fiandeiras confirmassem o destino cruel que reservaram aos meus irmãos nesta vida de infortúnios e cortassem os fios de suas vidas. O outro jovem que compunha o pequeno grupo intercedeu: – Como te atreves a falar assim com meu pai? Agradeças a ele por estares vivo. Foi meu pai quem te tirou do inferno da batalha quando ainda nem nascido eras. É ele que tem te alimentado, educado e protegido estes anos todos. Em honra a um juramento estúpido feito a um moribundo, aturamos tua arrogância e tua pretensão de ser descendente de um deus. Que divindade deixaria um mortal portador de seu sangue sagrado viver neste fim de mundo, como soldado romano, após Roma ter invadido a terra de seus antepassados? – Aléxis, não te aborreça com teu irmão. Muitas vezes já caímos na armadilha desta discussão e muitas outras iremos reincidir. O importante é termos em mente que precisamos permanecer unidos, para que nos mantenhamos em segurança. Afastemos a maldita Discórdia e seus ardis de nossa família. – Irmão?! Filipe não é meu... – Já é tarde. Vamos dormir. Amanhã teremos um longo dia, precisaremos nos dividir e patrulhar uma grande área. Interrompeu Pérdigas, querendo colocar um fim àquele assunto desagradável. Apesar da adolescente rebeldia de Filipe, ele não tinha coragem de afrontar o velho quando este dava sinais de haver perdido a paciência. Virando-se nos calcanhares se dirigiu à tenda onde passara os últimos anos de sua vida. Aléxis, ainda revoltado com as palavras dirigidas contra seu pai, também se retirou. Naquela noite, como em muitas outras, nenhum dos três homens dormiu bem. Cada um deles pensava nas vidas que levavam e o quanto poderiam ser diferentes, não fosse a existência de uma nação poderosa que, tal qual uma loba faminta, se lança à caça constante de presas fáceis para saciar sua fome voraz.

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Livro 1 – Em nome do pai...

Capítulo 1

– Maldito deserto! O frio mais intenso de Naissos não é, nem de perto, tão prejudicial à existência humana quanto este calor escaldante dos infernos. Até mesmo Cérbero, o guardião do Hades, teria dificuldades em viver aqui. Não me admira este povo ter sido, ao longo da existência, tantas vezes subjugado. Nenhum deus poderia abençoar este interminável conjunto de montanhas secas e mares salgados. Já viram isso, até o mar aqui se chama Morto.

O descontentamento de Filipe com sua situação era compreensível e uma característica que o acompanhara por todos os dezenove anos que compunham sua vida.

O “velho” Pérdigas, que desde seu nascimento estivera a seu lado, já não tinha mais argumentos para afastar de seu coração aquela constante amargura.

– Como falas com tanta convicção de um local que nem conheces meu rapaz? Ao que me lembro, nunca sentistes o rigor do inverno em Naissos e, no curto espaço de tempo que resta de minha vida atribulada, dificilmente sentirás.

– Sim, Pérdigas, sei bem disso! É por tua culpa que vivo a tortura de servir a meu inimigo. Se pelo menos meu pai tivesse escolhido melhor seus generais, hoje eu seria um príncipe, ou até mesmo um rei, caso as Moiras fiandeiras confirmassem o destino cruel que reservaram aos meus irmãos nesta vida de infortúnios e cortassem os fios de suas vidas.

O outro jovem que compunha o pequeno grupo intercedeu:– Como te atreves a falar assim com meu pai? Agradeças a ele por estares vivo. Foi

meu pai quem te tirou do inferno da batalha quando ainda nem nascido eras. É ele que tem te alimentado, educado e protegido estes anos todos. Em honra a um juramento estúpido feito a um moribundo, aturamos tua arrogância e tua pretensão de ser descendente de um deus. Que divindade deixaria um mortal portador de seu sangue sagrado viver neste fim de mundo, como soldado romano, após Roma ter invadido a terra de seus antepassados?

– Aléxis, não te aborreça com teu irmão. Muitas vezes já caímos na armadilha desta discussão e muitas outras iremos reincidir. O importante é termos em mente que precisamos permanecer unidos, para que nos mantenhamos em segurança. Afastemos a maldita Discórdia e seus ardis de nossa família.

– Irmão?! Filipe não é meu...– Já é tarde. Vamos dormir. Amanhã teremos um longo dia, precisaremos nos dividir e

patrulhar uma grande área. Interrompeu Pérdigas, querendo colocar um fim àquele assunto desagradável.

Apesar da adolescente rebeldia de Filipe, ele não tinha coragem de afrontar o velho quando este dava sinais de haver perdido a paciência. Virando-se nos calcanhares se dirigiu à tenda onde passara os últimos anos de sua vida.

Aléxis, ainda revoltado com as palavras dirigidas contra seu pai, também se retirou.Naquela noite, como em muitas outras, nenhum dos três homens dormiu bem. Cada um

deles pensava nas vidas que levavam e o quanto poderiam ser diferentes, não fosse a existência de uma nação poderosa que, tal qual uma loba faminta, se lança à caça constante de presas fáceis para saciar sua fome voraz.

Os pensamentos do velho Pérdigas não poderiam ser outros além de suas antigas lembranças de tempos passados, quando era jovem e ainda desfrutava dos prazeres da terra natal – a Ilíria – vivendo entre seu povo, em suas montanhas, nos vales férteis, ou navegando tranquilamente nos rios repletos de vida e belezas que cortavam sua pátria de norte a sul, vindos dos elevados montes e descendo até o mar.

Ao longo dos séculos, estes rios tinham garantido a existência do reino e permitido que algumas de suas cidades se tornassem grandes pólos comerciais, impulsionadas pelo fato de se localizarem em um destacado ponto de ligação entre a Ásia e a Europa e, consequentemente, servindo de entreposto a importantes rotas de mercadores.

Naquele tempo, a prosperidade destas cidades rivalizava com o desenvolvimento das maiores metrópoles da Grécia. Incluindo Atenas.

Durante séculos os ilírios se beneficiaram desta posição estratégica e desenvolveram proveitosas relações comerciais com diversos povos, assimilando aspectos de diferentes culturas, que influenciaram sua língua, sua religião, seus costumes e sua capacidade de conviver e se adaptar a novas idéias. Sem conhecer o termo, Pérdigas concluiu que a Ilíria havia sido em seu tempo uma das primeiras regiões cosmopolitas do mundo, integrando homens e crenças de diversas nações.

Por seus vales passaram gauleses, celtas, fenícios, gregos, persas, macedônios e, por fim, os romanos. Cada novo visitante deixava sua marca, sua contribuição ou, em alguns casos, sua parcela de destruição.

Os ilírios descobriram tardiamente que a dádiva divina responsável pelo enriquecimento de sua sociedade ao longo de diversos séculos havia se tornado o motivo de sua ruína.

Desejosos de controlarem as rotas comerciais entre o ocidente e o oriente cada vez mais rentáveis, diversos povos tentaram subjugar suas defesas.

Durante muito tempo, com bravura e dedicação desmedidas, os guerreiros ilírios lutaram por suas cidades, motivados pelo supremo instinto da sobrevivência. Mas quando o inimigo se mostrara tão mais forte, nada poderiam fazer além de serem vencidos após honrosa resistência.

Quando Roma, em sua ânsia predatória, resolveu voltar-se para o leste e alargar seus domínios ao outro lado do Mar Adriático, os mandatários da Ilíria, incluindo seu velho amigo rei Amintas V, sabiam que o fim dos tempos estava próximo. Pela força das armas havia chegado o fim dos tempos de sua pátria, sua cultura e sua liberdade.

Ao fim da guerra, percebendo que os esforços seriam inúteis, os guerreiros ainda em condições de combater se lançaram em ofensiva contra as armas romanas – que os sobrepujavam em número, mas não em virtudes – como forma de protesto contra a invasão de suas terras sagradas.

Logo em seguida a última esperança do povo ilírio sucumbiu perante a horda romana: a lendária cidade de Naissos estava ocupada, seus homens mortos ou feitos escravos, suas mulheres violentadas e seus templos saqueados. A riqueza da Ilíria pertencia, a partir daquele instante, ao inimigo invasor.

No primeiro ano de reinado de Otávio Augusto, as últimas defesas ilírias haviam caído sob a espada de Marco Licínio Crasso. O general romano lançara-se à perseguição de pobres camponeses com indescritível fúria, parecendo desejar, com seus feitos cruéis, apagar da história o fracasso de seu bisavô de mesmo nome, cujos atos mais notórios haviam sido enriquecer mandando incendiar casas de famílias pobres de Roma e imortalizar

a expressão “erro crasso” em função de sua vergonhosa campanha militar, na qual pagou com a vida a inaptidão para o exercício da liderança em combate.

Ante o ataque perpetrado por Roma, a maior parte da população masculina ilíria morreu. Alguns conseguiram fugir para o norte, buscando abrigo junto aos germânicos, antes que as legiões chegassem lhes trazendo dor e sofrimento.

Outros tantos foram feitos escravos e comercializados como mercadorias de pouco valor. Os mais fortes foram levados para arenas, onde lutavam contra homens ou feras, para diversão de romanos bêbados.

O próprio Pérdigas teria morrido diante das tropas invasoras, não fosse o pedido desesperado de um rei à beira da morte. Na verdade, não tanto por Amintas ser rei, ou por ser seu amigo, mas por motivos bem mais pessoais.

No momento do saque, Amintas já ferido e em desespero, determinou que Pérdigas levasse sua mulher grávida para um lugar seguro. Seus filhos mais velhos, oriundos de outros casamentos, já haviam sido mortos em combates anteriores. Salvar a criança que ainda iria nascer era a única esperança de dar continuidade à sua dinastia.

O velho soldado fez o que os soldados costumam fazer: obedeceu e fugiu com a rainha para uma longínqua região da zona rural.

O menino nasceu, meses depois, em uma humilde casa onde o pequeno grupo de exilados se escondera. A rainha, já fraca e doente, não resistiu ao parto em condições precárias e morreu.

Aléxis era fruto da relação de Pérdigas com a dona da casa onde se abrigaram, sendo que desta mulher, o velho soldado nem sequer o nome pronunciava, desde sua partida para o oriente.

Passados alguns anos de privação e vivendo com o pouco que a natureza lhe ofertava, Pérdigas teve que voltar a fazer a única coisa que sabia: lutar e vencer inimigos.

Situações extremas fizeram com que viajasse para a Judeia e se apresentasse como voluntário ao exército romano. O antigo inimigo era agora o responsável por seu sustento e determinava seus passos.

Porém, não era mais um general. Seu desenvolvido atributo de liderança, sua capacidade tática e suas experiências em combate não compensavam a condição de estrangeiro derrotado. O máximo que conseguira foi ser admitido como comandante de uma decúria, um grupo de dez soldados de cavalaria, todos ilírios, sendo por isso reconhecidos como membros da decúria Ilíria.

A maioria de seus subordinados era fortalecida pelo sonho de um dia retornar a seu país e vê-lo novamente livre, como expresso pelo significado do nome de sua pátria: “Terra de Homens Livres”.

Naquele momento, apesar dos percalços, Pérdigas acreditava que estava indo bem. Sobreviviam razoavelmente bem e ele próprio garantia a educação de Filipe e Aléxis, transmitindo-lhes tudo o que sabia. Os jovens liam, escreviam e falavam, além da língua ancestral, latim e grego, e estudavam os escritos dos sábios e os segredos da religião. Conhecimentos todos repassados pelo próprio Pérdigas, lembranças de sua juventude, quando seu nobre pai lhe oferecia os melhores preceptores vindos da Grécia.

O extremo cansaço que dominava o corpo do soldado a cada noite e o vinho que bebera durante o jantar o conduziram para um mundo de inebriante confusão, que o remeteu aos antigos prazeres do exercício do poder, aos banquetes suntuosos, ao convívio de damas e ricos comerciantes. Intrigas, assassinatos, venenos, ardis... Entre brumas e cantos religiosos, viu erguerem-se, do vazio absoluto, imensos prédios. Dentro deles multidões pareciam

adorar alguém. De onde estava, partícipe e espectador daquelas ações, Pérdigas contemplava uma espécie de altar imenso, onde ele pôde ver um jovem de sangue ilírio, seu descendente, sendo louvado. Não apenas em Naissos, nem somente em Roma, mas no mundo todo como... Um deus!

Pérdigas acordou sobressaltado. O sonho o perturbara. Filipe era o último membro da família real ainda vivo. Se a divindade de um rei está relacionada com a morte, o que significava aquele pesadelo? Estariam por conhecer um outro tormento? Estaria seu príncipe em perigo? E como poderia um ilírio estar no topo do mundo?! Naquela noite o velho não mais dormiu.

Capítulo 2

– Príncipe?! Você é o meu príncipe? E minha princesa, quem será? Aquela camêla que te olha enternecida? Bem que eu percebi certo ar de romance entre vossas altezas...

O provocante era Epídius. Fazia parte do grupo de Pérdigas e, diferente dos demais colegas, considerava divertido conduzir-se a uma rusga com Filipe.

– Se a situação fosse outra eu poderia mandar que te açoitassem até a morte, insolente!– Certamente, meu amigo. E te digo mais: se minha situação fosse outra, eu poderia

voar sobre tua cabeça e alvejar-te com minhas fezes. Já pensaste como poderia ser perigoso a ti se eu fosse uma andorinha ou um elefante com asas?

– Teu nome, apesar de sacrílego, não te oferece nenhuma posição de superioridade. Não estás acima dos deuses, nem de nenhum homem. Já eu descendo diretamente...

– Ah não, de novo não. Esta conversa de Dionísio e nereidas já passou de todos os limites. Acreditarei, prezado colega, em tua ancestralidade imortal quando o próprio deus descer do Olimpo trazendo jarros de bons vinhos e, cercado por lindas bacantes, preparar-nos um delicioso bacanal.

Os demais riram de Filipe. Ele percebeu que sua posição estava indefensável diante da ironia de Epídius, pelo menos com argumentos.

Antes que partisse para uma medida mais drástica, foi interrompido. Pérdigas saiu de sua tenda e determinou:

– Filipe, você e Aléxis peguem dois cavalos bons e patrulhem a trilha até o sul da Idumeia. Os demais virão comigo para o oeste. Estaremos aguardando o retorno de vocês para partirmos. Espero em dois dias estar de volta à civilização. Epídius! Limpe os cavalos.

– Sim, decurião. Responderam ambos em uníssono.As relações de Filipe com seu mentor eram complexas. Em raras oportunidades o jovem

tentava fazer valer sua autoridade nobre, em especial, nas horas de melancolia. Mas, na maior parte do tempo, relacionavam-se bem e, por vezes, quando a saudade de um tempo que ele nem conhecera apertava, chamava-o de pai.

Na frente dos demais soldados, valia a hierarquia militar e o rapaz obedecia às ordens que lhe eram dadas sem demonstrar o menor constrangimento.

Pérdigas sabia que cavalgar algumas horas sob o sol escaldante das áridas regiões ao sul do reino, faria bem ao espírito inquieto de seu protegido. E sabia também que não havia ninguém mais indicado no grupo para fazer-lhe companhia do que Aléxis.

Apesar das rusgas constantes que caracterizavam os relacionamentos de jovens vivendo naquelas condições de desconforto, eles se queriam bem e eram bons amigos. Nos momentos mais amenos eram realmente como irmãos.

Aléxis tinha dois anos menos que Filipe e, aos dezessete anos, conseguira ser admitido na cavalaria romana, não por suas origens nobres, mas por seu porte majestoso, a despeito da pouca idade.

Sua beleza fora do comum, seus cabelos loiros cacheados e seus cintilantes olhos azuis davam-lhe o aspecto de um ser superior, alguém vindo diretamente das histórias de Hesíodo ou Homero.

Em função de seu aspecto atraente e sua pouca idade, muitos prefeitos militares disputaram a convocação de Aléxis para suas fileiras. Mas ficaram frustrados ao saberem que os ilírios não haviam se deixado contaminar pelos vícios sexuais que caracterizavam a promíscua Roma de então.

Aléxis não sonhava com uma Ilíria livre e poderosa. Para ele, isso nada significava. Este ponto se tornara um dos maiores motivos de suas brigas com Filipe e até mesmo com seu pai.

Contudo, em se tratando de dificuldades em seu relacionamento com Pérdigas, havia motivos mais fortes, mágoas mais profundas que, até aquele momento, tinham sido impossíveis de serem superadas.

O jovem nada perdera na guerra contra Roma. Pelo contrário, ganhara a própria vida. Não tivesse seu pai fugido do cerco conduzindo a rainha Lavíncia, não teria conhecido sua mãe e, certamente, Aléxis não teria nascido.

O rapaz tinha poucas recordações de sua mãe. Aos dez anos saíra de casa acompanhando seu pai e Filipe e nunca mais retornara.

Pouco sabia sobre Desantila, além do nome. Mesmo quando habitavam a mesma casa, quase não se viam. Geralmente os meninos brincavam no campo enquanto assistiam Pérdigas trabalhar cultivando pequenas porções de terras afastadas da casa.

Quando o clima impedia o trato do solo, passavam longas horas realizando extensas caminhadas, exercitando táticas de combate ou estudando em antigas tabuletas. Filipe se dedicava mais às lides guerreiras. Ele preferia a ciência dos números e a linguística. Apesar de mais novo, dominara os idiomas estrangeiros bem antes de seu irmão. Sim, em seus pensamentos, Filipe era sempre seu irmão.

Quando voltavam para casa, após o ocaso do sol, encontravam sobre a mesa dois pratos com comida e algumas moedas. Aléxis nunca entendera, ou melhor, nunca quisera entender qual a origem daquele dinheiro e porque somente sua mãe e ele comiam daquela comida.

Um dia, quando caminhavam pelas estradas, percebeu que já passara da hora de retornarem para casa. Percebeu também que seu pai trazia consigo um volume maior de bagagem do que o comum.

– Aonde vamos, papai? Perguntou com inocência.– Vamos para a guerra. Respondeu Pérdigas secamente.– Mas e a mamãe, o que será dela se partirmos?– Para onde vai, saberá se virar sem nós.Nunca mais falaram sobre Desantila. Por vezes tinha a impressão que seu pai, ao contar

suas histórias de guerras e conquistas, amores e lutas, havia simplesmente apagado de sua memória os doze anos que convivera com sua mãe.

Quando a tristeza apertava seu jovem coração, atribuía a culpa de seu destino não à roda da fortuna das Parcas malditas que teciam o fio de sua vida como dos demais mortais, ou a

Roma. Considerava que sua pouca sorte estava vinculada ao juramento que seu pai fizera a Amintas, quando se aproximava o instante de sua morte.

– Juramento idiota.O rei, sentindo a sombra da morte sobre sua cabeça, pediu que Pérdigas jurasse muito

mais que a proteção de sua esposa e de seu filho que estava por nascer. Amintas depositou sobre seu pai toda a responsabilidade pela manutenção de sua dinastia. Pediu a retomada de seu trono por um descendente e a manutenção da glória de seu nome por mil anos.

– Mil anos! Exclamou Aléxis, dando som a seus pensamentos.– O que disse? Perguntou Filipe.– Nada, nada...E continuaram cavalgando rumo ao sul, onde o mar salgado beijava a terra seca, a

procura de rebeldes judeus que buscavam fustigar o poder de Roma com suas ações de guerrilha.

Capítulo 3

A Judeia, apesar de ser uma pequena área dentro do império romano, dominada por desertos e montanhas vermelhas, possuía uma posição estratégica significativa. Era parte de um conjunto de reinos vassalos e províncias que constituíam uma proteção contra poderosas nações do leste, em especial, a Partia que poderia ser considerada facilmente como a arquiinimiga de Roma.

O reino parto estava sob as ordens de um tirano perigoso. Era conhecida a história que, para subir ao trono, Faates IV havia eliminado seu próprio pai e nada menos que trinta irmãos. Fatos assim não eram incomuns nas sociedades daquele tempo. As intrigas palacianas, as conspirações, assassinatos, banimentos e outras tantas atrocidades, eram cometidas em nome do poder. Muitos reis alcançavam seus objetivos após atos parricidas e, para manterem-se no trono, desenvolviam ações paranóicas que muitas vezes os conduziam à absoluta loucura.

Até mesmo ali, na Judeia daquele tempo, exercia o poder o rei Herodes, chamado de o Grande, acusado de matar a esposa Mariene e dois de seus filhos.

Pérdigas sempre conversava sobre estes assuntos com seus meninos e, apesar de nunca terem vivido na corte, os atritos, a traição e o uso de meios pérfidos para a consecução de objetivos, não lhes fugia do conhecimento.

Há três décadas, o triúnviro Marco Antônio havia se aventurado contra os partos, buscando a ampliação de seu poder ao leste do império, quando ainda se imaginava possível a divisão pacífica do poder entre ele e o herdeiro de César, Otávio Augusto.

O resultado desta guerra foi um desastre para a já cambaleante república romana e o princípio do fim de Antônio. Além de representar a perda de enorme soma de dinheiro e a morte de milhares de soldados, forneceu aos inimigos do império a certeza de que o gigante poderia ser derrotado.

O receio de ataques decorrentes deste fracasso militar e a constante instabilidade de algumas províncias, forçavam a manutenção de efetivos militares enormes, obrigando os romanos a, cada vez mais, lançarem mão de tropas tributárias de antigos inimigos subjugados.

Mas ser soldado não era de todo um mau negócio. A reforma conduzida pelo cônsul Cai Mário, que profissionalizou as legiões e aumentou os soldos, havia transformado para melhor o dia-a-dia dos que dedicavam suas vidas à grandeza do império. Dependendo da região onde se ficava designado, era possível viver com certo conforto e, depois de algum tempo, até mesmo tentar estabelecer uma família.

Uma vantagem adicional para os estrangeiros era a possibilidade de se conquistar a cidadania romana após quinze anos de serviço ou a qualquer momento, por ação meritória ou ato de bravura. Este era, sem dúvida, o plano de Aléxis. Queria ser cidadão, ganhar seu anel e, com sorte, arranjar uma ocupação burocrática, algo que lhe possibilitasse tomar uma esposa, ter filhos e dar suporte à sua mãe que, pelas suas contas, já se aproximava da velhice, entrando na casa dos quarenta anos.

Filipe, por sua vez, desejava aventuras maiores. Se o exército romano lhe tirara tudo que poderia ser seu, antes mesmo dele nascer, era justo que, por intermédio do mesmo exército, buscasse retomar seus direitos. Para isso, só tinha uma alternativa: a distinção em combate.

A sociedade romana era dominada por diversas peculiaridades. Uma das principais era que, não importando a origem do homem, se ele servisse aos propósitos de glórias e conquistas a que os romanos se achavam predestinados, ele teria seu valor reconhecido e poderia disputar uma posição de destaque.

O caminho que imaginara para si era muito difícil de ser trilhado. Havia o risco constante de ser interrompido por uma flecha, uma espada inimiga ou uma poção de veneno “amiga”. Mas, como Pérdigas insistia em dizer, a vida é dura para quem é mole e, com certeza, este não era o seu caso. Ele era Filipe da Ilíria, filho de rei, neto de reis e descendente direto de um deus...

– Elefante com asas... Aquele desgraçado me paga. E Filipe riu um riso gostoso, como há muito tempo não fazia.

Capítulo 4

A lenda era conhecida em todas as nações que compartilhavam a crença nos deuses olímpicos. Zeus, chamado Júpiter pelos romanos, era uma divindade adepta de prazeres bem terrenos. Colecionava entre deusas e mortais uma lista infindável de amantes para o desespero de sua divina esposa Juno, a Rainha dos Céus.

Certa vez, quando desfrutava do leito da princesa Sêmele, filha de Cádmo e Harmonia, enganado por um ardil perpetrado por sua ciumenta esposa, o Rei dos deuses tivera que se mostrar em todo o seu esplendor à pobre moça.

Aos humanos, a visão de um deus em sua forma transfigurada era insuportável e, estar na presença de Júpiter nestas circunstâncias, determinou o fim trágico da princesa que caiu fulminada pelas chamas.

Sob os restos mortais ainda fumegantes jazia uma criança em estado gestacional, fruto dos amores adúlteros entre o Pai dos Céus e Sêmele.

O deus, aterrorizado, pensou haver matado mãe e filho, mas aproximando-se, exclamou:

– Ainda vive!

Abrindo um talho em sua coxa, alojou o feto dentro de seu corpo, na intenção de gerá-lo consubstanciado em sua matéria divina, mantendo-o afastado dos olhos vingativos de sua esposa.

Completado o tempo, nasceu Dionísio, chamado Baco em Roma. Única divindade oriunda das relações de Júpiter com uma mortal.

Temendo por sua segurança, o deus supremo determinou a Mercúrio que o conduzisse para ser criado pelas ninfas do rio Nisa, e não pelas nereidas, como dissera Epídius. Os antigos afirmavam que esta região era paradisíaca, com clima ameno e natureza exuberante.

Segundo as conclusões dos mais renomados estudiosos de diversas nações, o rio Nisa corresponderia ao rio Naron, que banhava a cidade de Naissos, a mais sagrada da Ilíria no tempo do rei Amintas V, pai de Filipe.

Baco era um deus alegre, jovial e divertido. Primava pelas brincadeiras, festas e pela liberdade. Faz parte da tradição ilíria que o nome do reino de seus ancestrais teve sua origem naquele deus, pois lá os homens poderiam ser tão livres quanto Baco.

Os cuidados de Júpiter com o filho, porém, não foram suficientes para livrá-lo da odiosa vingança de Juno. Persuadindo dois Titãs, a esposa traída fez com que o deus infante fosse atacado, e levado pela sombria deusa Morte.

Após descer ao Hades, a mansão dos mortos, Baco ressuscitou, por intervenção de seu pai divino, ao fim do terceiro dia e conduziu sua mãe mortal ao monte Olimpo onde ela se tornou também uma deusa.

A lenda dizia também que o primeiro antepassado dos reis da Ilíria era filho de Baco – ou Dionísio, como Filipe costumava chamar, renegando o nome latino – com a mais bela dentre todas as mortais.

Nestes fatos “históricos” residia sua ancestralidade sagrada e o príncipe gastaria todas suas energias fazendo valer seus direitos de poder e glória.

A lenda podia ser questionada, mas a descendência de Filipe de pessoas de enorme beleza era evidenciada pela exuberância de seus traços.

Próximo de completar sua segunda década de vida, já era um homem feito, na concepção total da palavra. Possuía uma elevada e atlética estatura, com bíceps avantajados e peito largo. Sua voz era potente, seu andar altivo. A pele bronzeada pelo sol da Judeia destacava seus olhos azuis possuidores de um brilho totalmente desconhecido naquela região e seus cabelos ruivos se constituíam na desculpa perfeita para seu apelido: Cabeça de Fogo. Na verdade, ao se referirem a ele desta forma, seus companheiros destacavam muito mais seu temperamento explosivo do que qualquer característica física.

Capítulo 5

Após mais de cinco horas cavalgando em direção ao sul, na região mais seca e sem vida daquele fim de mundo escaldante, Filipe e Aléxis chegaram ao destino ordenado por Pérdigas. Estavam no limite do antigo reino idumeu. Um pouco mais ao sul se encontravam as margens do mar Vermelho, no pequeno golfo que abre as portas para a navegação no grande oceano.

Por ser uma área inóspita, de difícil acesso, mas com razoáveis reservatórios de água doce, aquela parte do deserto era vocacionada ao abrigo de rebeldes e foras da lei. A missão da decúria de Pérdigas era exatamente o seu patrulhamento.

Esta não era considerada uma missão nobre. Para apressar a conquista de seus objetivos particulares era necessário que ambos se destacassem em combate e os jovens consideravam que dificilmente progrediriam perseguindo grupos rebeldes que, como formigas, tentavam expulsar os romanos de seus domínios, mordendo os calcanhares do império.

O que ignoravam, era o fato destes rebeldes se guiarem por sentimentos patrióticos tão profundos quanto os que uniam os ilírios aos verdes vales de sua pátria e ainda ampliados por força de uma religião milenar centrada na revelação de um Deus único à nação que defendiam.

Os hebreus daquele tempo haviam nascido em uma região oprimida entre dois vastos impérios rivais. Aquela estreita porção de terra, chamada em suas crenças de “prometida”, possuía divisões internas históricas e antigas lutas pelo poder dominavam seu panorama político.

Marcados por aspectos de uma imensa religiosidade, acreditavam que a fé havia sido o suporte que permitira a sobrevivência do povo por milhares de anos nos quais, várias vezes, enfrentaram com grande sofrimento o jugo de uma nação estrangeira.

A primeira flecha lançada na direção de Aléxis acertou seu cavalo fazendo-o cair no empoeirado solo do deserto. O jovem inexperiente demorou algum tempo para perceber o que se passava. Lançado ao chão, permaneceu paralisado, olhando para o animal que sangrava agonizante.

Foi Filipe quem o trouxe à realidade:– O escudo, rápido... Apanhe o escudo!Adicionando ações às palavras, Filipe pulou de seu cavalo e, procurando se proteger de

novos ataques, correu na direção do companheiro, erguendo-o. Um silvo característico foi ouvido e outras flechas voaram em direção aos soldados. Algumas caíram a poucos centímetros, outras alvejaram seus escudos convenientemente colocados cobrindo as partes mais vitais do corpo.

Aléxis já recobrara o entendimento sobre a situação, mas estava dominado por uma sensação terrível de medo e ansiedade. Sua respiração ofegante, o suor frio nas mãos e uma incerteza de como agir eram as companhias que dispunha para fazer frente a um inimigo que, com certeza, se aproximava.

A trajetória parabólica desenhada pelas ameaçadoras setas, indicava que seus atacantes não se encontravam muito próximos e, consequentemente não tinham grande precisão no lançamento de seus artefatos mortíferos. Pela quantidade de flechas lançadas, Filipe estimou em seis o número de inimigos que teriam que enfrentar.

– Para lá, vamos, depressa...Enquanto levantava Aléxis, empurrou-o para uma pequena trilha, cercada por pesadas

rochas, onde não mais que dois homens poderiam permanecer lado a lado. Aprendera em suas aulas que assim, em um passado remoto, os espartanos haviam imposto elevado número de baixas ao grande exército persa nos desfiladeiros das Termópilas. Era assim que iria buscar sobreviver ao ataque do qual, juntamente com Aléxis, era vítima naquele momento.

Os dois colocaram-se de costas um para o outro e aguardaram seus atacantes, dos quais já se ouviam os passos.

Ao sentir o tremor no corpo de seu companheiro, procurou acalmá-lo:

– Tu és filho do grande general Pérdigas, o sangue guerreiro ilírio corre em tuas veias, não há ameaça mortal que nos faça tremer em combate, Ares, o senhor da guerra, está conosco e nos fará triunfar.

– Marte, Filipe, por todos os céus, o maldito deus se chama Marte!– Que seja.

Então, surgiram seus inimigos.