ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA - fatecc.com.br · Cristiano Almeida Barros Domingas Pereira...

95
ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA Rogério de Andrade Córdova

Transcript of ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA - fatecc.com.br · Cristiano Almeida Barros Domingas Pereira...

O R G A N I Z A Ç Ã O D A E D U C A Ç Ã O B R A S I L E I R A

Rogério de Andrade Córdova

2

Estado do AcreGovernadorArnóbio Marques de Almeida JúniorVice-GovernadorCarlos César Correia de MessiasSecretaria de Estado de Educação do AcreMaria Corrêa da SilvaCoordenadora de Ensino Superior da SEEAMaria José Francisco Parreira

Fundação Universidade de Brasília — FUB/UnBReitorTimothy Martin MulhollandVice-ReitorEdgar Nobuo MamiyaDecano de Ensino e GraduaçãoMurilo Silva de CamargoDecano de Pesquisa e Pós-graduaçãoMárcio Martins Pimentel

Faculdade de Educação — FE/UnBDiretoraInês Maria Marques Zanforlin Pires de AlmeidaVice-Diretora e Coordenadora GeralLaura Maria CoutinhoCoordenadora PedagógicaSílvia Lúcia Soares Coordenador de TecnologiasLúcio França TelesCoordenação PedagógicaMaria Madalena TorresSecretaria do CursoAntonilde Gomes BomfimMaria Cristina Siqueira MelloAdministração da PlataformaJoviniano Rabelo JacobinaSetor FinanceiroFrancisco Fernando dos Santos SilvaCoordenação IntermediáriaAurecília Paiva RuelaJosé Ferreira da SilvaMaria Lucilene Belmiro Melo AcácioNilzete Costa de MeloRobéria Vieira Barreto Gomes

Professores (as) – Mediadores (as)Adima Jafuri MaiaAdriana Araújo de FariasAdriana Martins de OliveiraAleuda Soares Dantas TumaAna Cláudia de Oliveira SouzaAna Maria Agostinho FariasAntonio Aucélio A de AlmeidaAntonio do Socorro da Silva CostaArtemiza Barros PimentelAulenir Souza de AraújoCarmem Cesarina Braga PereiraCátia Maria da Silva SilvanoCristiano Almeida BarrosDomingas Pereira da Costa FerreiraEliana Maia de LimaElizete Maia de LimaÉrica MedeirosGeania Mendonça da Costa

Gercineide Maria da Silveira FernandesHevellin de Figueiredo FélixHilda Jordete MarinhoIvanir Oliveira de LimaJocileia Braga de SouzaJorge Gomes PinheiroJosé Ribamar Gomes AmaralLeidisséia Alves de CastroLuciana Mª Rodrigues de LimaLuciene Nunes CalixtoLucilene de Andrade MoreiraLuiz Augusto da Costa dos SantosMárcia da Silva QueirozMárcia Maria de Assis AlencarMaria Cirlene Pontes de PaivaMaria de Nazaré Ferreira PontesMaria do Carmo de Lima GomesMaria do Rosário Andrade SenaMaria Itamar Isídio de Almeida

Maria Izaunira N.da silvaMaria Mirnes Soariano OliveiraMaria Zenilda de Lima CorreiaMarilza da Silva RodriguesMiracélia Mª Freire de MouraMirna Suelby MartinsNadir Silva de SouzaNorma Mª da Silva Norma Maria Vasconcelos BaladoPedro Lopes da SilvaRenilda Moreira AraújoRita de Cássia Machado MommeratSâmia Gonçalves da SilvaSonja Priscila Vale de F. FernandesUilians Correia CostaVânia Maria Maciel TaveiraVanucia Nunes Valente CalixtoVera Mª de Souza Moll

3

Mo699 Módulo IV: Organização da Educação Brasileira / Ro-gério de Andrade Córdova – Brasília : Universidade de Brasília, 2008. 95 p. 1. Educação a distância. 2. Legislação. 3. Situação demográfica. 4. Programas de Nível Superior para Professores Indígenas. I. Córdova, Rogério de Andrade. II. Universidade de Brasília.

CDD 577ISBN: 978-85-230-0959-5

4

Sumário

Conhecendo o autor _____________________6

Apresentação ___________________________7

Seção 1

Educação e instituição da sociedade ______ 11

1 Os marcos teóricos _________________________________ 12

2 A institucionalização da educação no Brasil ____________ 17

Seção 2

Conceitos, finalidades e organização da educa-ção nacional __________________________ 33

1 Conceito, finalidades, objetivos e macro-organização ___ 34

Seção 3

A escola como instituição _______________ 61

1 A escola como instituição e suas instituições ___________ 62

2 Para que serve a escola? ____________________________ 65

3 A escola única e suas armadilhas _____________________ 76

4 Princípios de formação escolar numa perspectiva institucio-nal _________________________________________________ 77

5 As respostas do sistema ao fracasso ___________________ 79

6 A organização do trabalho educativo no Brasil _________ 81

5

7 A formação dos quadros docentes ____________________ 87

Bibliografia ___________________________ 94

6

Conhecendo o autor Natural do estado de Santa Catarina, nascido no atual municí-

pio de Painel, o Professor Rogério de Andrade Córdova é licencia-do em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FAFI) da antiga FIDENE (Fundação para a integração e Educação do Noro-este do Rio Grande do Sul), atual UNIJUI, universidade localizada na cidade de Ijuí, RS. Realizou mestrado em Administração de Sistemas Educacionais, no extinto IESAE (Instituto de Estudos Superiores em Educação) da Fundação Getúlio Vargas, na cidade do Rio de Janeiro, concluído em 1982. Em 1997 obteve o título de doutor em Educa-ção pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ingressou no magistério em 1965, tendo iniciado como professor do ensino superior; que se expandia no interior de Santa Catarina.

Tendo sido sempre politicamente atuante, esteve sempre en-volvido na vida política dos educandários onde trabalhou, tendo, em virtude disso, passado assumir funções de natureza político-administrativas. Assim exerceu funções administrativas no Colégio Industrial de Lages (onde coordenou a implantação da Lei 5692/71) e, igualmente, na Faculdade de Ciências e Pedagogia, na mesma cidade. Após a conclusão de seus créditos de mestrado no Rio de Janeiro, retornando a sua cidade, integrou a equipe dirigente da Se-cretaria Municipal de Educação, trabalhando as questões ligadas á administração da educação de modo geral, mas, sobretudo, traba-lhando com a educação de jovens e adultos, com a implantação da educação infantil, com educação comunitária e, sobretudo, com os problemas de uma rede municipal de ensino atuando especialmen-te em meio rural e na periferia urbana. A convite de seu orientador, nomeado Diretor Geral da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamen-to de Pessoal de Ensino Superior), órgão do Ministério da Educação responsável pela política de pós-graduação, veio para Brasília em agosto de 1980, integrando sua assessoria. Permaneceu na CAPES até dezembro de 1988. Foi professor das Faculdades Católicas entre 1982 a 1987. Tendo prestado concurso para Professor da Univer-sidade de Brasília em novembro de 1987, e tendo sido nomeado em janeiro de 1988, a partir de 1989 passou a se dedicar exclusi-vamente a suas atividades acadêmicas na Universidade de Brasília, onde igualmente tem ocupado diferentes funções administrativas, concomitantemente às suas atividades de docência e pesquisa. Sua área de maior interesse acadêmico, atualmente é a área de gestão das organizações educativas, abordada dentro da perspectiva de complexidade de considerada numa leitura multirreferencial.

Esta leitura procura considerar as múltiplas determinações que exercem dentro das organizações educativas, levando em con-sideração, num pólo, o indivíduo com suas representações, afetos e intenções e, conseqüentemente, sua preocupação com o sentido de suas ações, e, no outro pólo, o social-histórico, com sua cultura, seus valores, suas significativas imaginárias, em resumo, com suas “instituições”. O trabalho educativo e administrativo resulta de uma ação situada entre esses dois pólos, com mediação de relações in-terpessoais, grupais, com as exigências organizacionais de eficiên-cia, eficácia e produtividade, entretanto, a ser orientado por proje-to, que deve ser ao mesmo tempo projeto de vida para indivíduos,

7

grupos e comunidades e um projeto de sociedade. É dentro de tal contexto de uma tal perspectiva que deve ser feito o estudo e a análise das políticas públicas em educação e das formas que elas assumem na organização concreta dos sistemas de ensino: o que está em jogo é, cada vez, a instituição da sociedade e a instituição dos indivíduos que lhe sejam funcionais. (Ou não!).

8 8

Apresentação

Este trabalho consta de três seções, elaboradas para servirem aos cursos e programas de formação de professores. Visam dar uma visão e uma compreensão, o mais ampla e mais completa possível, da forma como está organizada a educação escolar no Brasil.

Preocupado em dar uma visão atual da estruturação de nos-so sistema de ensino (ou de educação escolarizada), o primeiro módulo faz recordar, num primeiro momento, o conceito de edu-cação e sua função, ou funções, numa dada sociedade. Trata-se de um pressuposto básico do curso, no qual a educação é considerada um momento do processo mais amplo de institucionalização de uma sociedade. Dito em outras palavras: optar por trabalhar com educação, ou na educação, muito mais do que simplesmente dar umas “aulinhas” disto ou daquilo, é se inserir no processo de consti-tuição da sociedade em seus valores mais profundos, contribuindo para formar ou “formatar” os estudantes segundo tais valores ou significações. Nesse mesmo módulo, e logo em seguida, como que exemplificando os conceitos anteriormente apresentados, procura-remos dar uma breve retrospectiva histórica de como esse processo de constituição do sistema de educação escolarizada ocorreu no Brasil. É importante fazê-lo quando estamos em pleno período dos quinhentos anos de construção do Brasil, considerando que Bra-sil, enquanto esta sociedade e não outra, começa a existir a partir da chegada dos portugueses e dos africanos. Os primeiros iniciam uma reeducação dos autóctones, impondo seus valores, suas sig-nificações imaginárias sociais, aos valores e significações imaginá-rias das sociedades aqui existentes, desencadeando o processo de constituição ou de instituição de uma sociedade “outra”, que virá a ser nossa sociedade brasileira. E poderemos ver como a educação escolarizada desempenhará (ou não!) um papel importante nesse processo, de que somos descendentes, herdeiros e continuado-res...

Feitas estas considerações preliminares, mergulhamos no Bra-sil. Como está organizada hoje a educação escolar brasileira? Procu-raremos analisar esta organização e descobrir o que significa o fato de ela estar organizada de tal forma e não de outra. Procuraremos ser sempre fiéis a nossa orientação teórica e política inicial, sendo a educação um momento da instituição de uma sociedade, e sendo a organização da educação escolar brasileira um momento funda-mental dessa instituição, cabe descobrir: a que instituições, ou seja, a que valores, a que significações imaginárias sociais remetem os dispositivos que regem atualmente nossos sistemas de ensino?

Fica evidente que o texto da Lei 9394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, oferecerá o roteiro de nosso estudo atual. Fique bem claro, entretanto, que estamos falando de rotei-ro. Estudar a “organização da educação brasileira” não é “estudar as leis”. É isso também. Mas é mais do que isso. Conhecer e decorar leis, decretos, pareceres, e ficar por isso mesmo, nos formaria como bu-rocratas, amarrando-nos a um formalismo jurídico. Mas se é eviden-te que precisamos conhecer as leis, pois elas são a presentificação da instituição explícita da sociedade tal como a estamos vivendo,

9 9 9

deve ficar entendido que é preciso ir mais a fundo, para interpretá-las, captar o seu “espírito”, ou seja, as tais significações a que reme-tem e que, em última instância, cabe a nós, educadores, difundir e imprimir em nossos educandos. No primeiro caso, ficaríamos estri-tamente presos a uma postura reprodutora e legitimadora, acrítica, do já instituído. No segundo caso, sem desmerecer nossa função de educadores e de responsáveis pela permanência de nossa socie-dade enquanto tal, naquilo que avaliarmos como adequado, fá-lo-emos numa perspectiva crítica e criadora, sem negar a importância das leis, não abdicaremos, igualmente, de analisar a propriedade ou a pertinência, a justeza da lei ou das leis vigentes, tendo em vista o projeto de sociedade que queremos construir. Faremos, então, uma leitura estrutural, mas, igualmente, política e filosófica das normas que regem a organização de nossa educação escolar. Esta leitura, porém, terá dois momentos, ou módulos.

Na segunda Seção, consideraremos a organização macro-po-lítica ou macro-administrativa. Começando pela conceituação de educação, pela determinação das finalidades, dos direitos à educa-ção, pela definição das responsabilidades administrativas relativa-mente à política e gestão da educação, incorporaremos a definição dos níveis e modalidades de educação e ensino, completando-se este módulo pela abordagem do financiamento e da formação dos professores.

A terceira Seção, por sua vez, destaca, de maneira abrangente, os aspectos relativos à organização pedagógica do trabalho educa-tivo. Aquilo que aparece como uma simples seção dentro de um título recheado de capítulos, seria, na verdade, merecedor de um Tí-tulo específico, pois é exatamente em tais tópicos que a instituição se revela com toda sua força. Ao definir as coordenadas de tempo e de espaço do trabalho educativo, ao definir critérios de promoção ou reprovação, e assim por diante, a legislação concretiza as signi-ficações mais efetivas que regem o sistema educativo. Impossível passar ligeiramente sobre tais aspectos, como se fossem simples detalhes. Eles não são simples detalhes, são aspectos fundamentais da organização do trabalho pedagógico, ou do ensino, e, por seu in-termédio, da instituição da educação escolarizada como momento da instituição da sociedade em toda sua profundidade. Sejam, pois, bem-vindos ao curso. E que, durante o desenrolar dele, possamos, dialogicamente, aperfeiçoá-lo.

10

11

1 Educação e instituição da

sociedade

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

- Conceituar instituição, imaginário, educação, alienação, autonomia e cidadania;- Apresentar um retrospecto histórico da institucionalização da educação escolarizada no Brasil.

12

Para saber um pouco mais a respeito do filósofo Cor-nélius Castoriadis, acesse: pt.wikipedia.org/wiki/Cornelius_Castoriadis

1 Os marcos teóricos

1.1 A instituiçãoSegundo Cornélius Castoriadis1, a sociedade humana é auto-

instituição. Isto quer dizer que a sociedade, enquanto sociedade hu-mana, diferenciada das demais sociedades animais, é auto-criação. E esta auto-criação, ou auto-instituição, se realiza num processo efetivado na e pela posição de significações. Tais significações são os valores básicos ou fundamentais que dão o sentido, a orienta-ção básica dessa sociedade, a sua identidade, o amálgama que lhe permite reunir-se e dizer-se. Ser brasileiro, por exemplo, é diferente de ser argentino ou norte-americano. O que é a “brasilidade”? É um “magma” de significações sociais, operantes em nosso agir, como um conjunto de representações da realidade, como um conjunto de afetos, de gostos, de preferências, e de intencionalidades ou de-sejos, ou atrações. Cada povo tem suas características, que deno-minamos “culturais”. Elas são exatamente isso: as marcas identifica-doras e inconfundíveis de cada sociedade. Se pensarmos no Brasil, apenas, ninguém irá confundir um gaúcho com um carioca, ou um mineiro com um cearense, por exemplo.

Há traços fundamentais, distintivos, e por isso mesmo identi-ficadores. Se a seleção de futebol entra em campo, a “pátria de chu-teiras”, na expressão de Nelson Rodrigues, certas diferenças profun-das entre pessoas, por exemplo, de natureza ideológica, muito pro-vavelmente darão lugar a uma profunda identificação, e ninguém, em sã consciência, sobretudo se estiver num ambiente coletivo, irá “torcer contra” ela. Há significações comuns a várias nações ou pa-íses. Assim, o capitalismo. Contemporaneamente, ou desde talvez duzentos anos, ou quinhentos anos, na sociedade ocidental, euro-péia, emergiu uma significação nova, na qual e pela qual as ativida-des econômicas passaram ao primeiro plano, deixando as questões sociais, culturais, religiosas num plano secundário ou complemen-tar. Simplificadamente, podemos dizer que o “ter” passou a preva-lecer sobre o “ser”. E o conjunto das relações em sociedade sofreu uma profunda torção. O capitalismo, na acepção de Castoriadis (IIS: 363), se constituiu, objetivamente, como criação da “empresa como arranjo complexo de homens e máquinas”, apoiado num sem-nú-mero de instituições complementares – máquinas, Estados nacio-nais, escolas, ciências exatas e tecnologia, religiões reformadas – e, subjetivamente, ou seja, no plano da formação das consciências, como “investimento de uma formação específica: uma entidade em expansão e em proliferação incessantes, tendendo a um auto-cres-cimento contínuo e mergulhado numa solução nutritiva, um ‘mer-cado’, onde uma oferta e uma demanda sociais, anônimas, devem surgir e ser exploradas...” O capitalismo emergiu como uma maneira outra de “perceber, sentir, pensar e agir”, na qual, por exemplo, no-vas “necessidades” são continuamente criadas para, artificialmen-te, manter um ritmo de “crescimento” dos “negócios”, esgotando-se para satisfazê-las. E, como todas as significações, são significações, antes de mais nada, “operantes”, ou seja, que se realizam na nossa 1 Filósofo nascido na Grécia em 1922 e falecido na França, onde viveu desde 1945, em dezembro de 1997, autor, entre outras obras, de Instituição imagi-nária da sociedade e Encruzilhadas do Labirinto (coletânea em seis volumes).

13

prática efetiva, antes de se tornarem objeto de consciência e de re-flexão crítica, a realidade das “significações” nunca é captável em si mesma, mas indiretamente, pelas “sombras” que projetam no agir efetivo, individual ou coletivo, a partir de seus resultados, de seus derivados, de suas conseqüências. (Esta concepção será importante para entendermos porquê a educação escolar no Brasil se “instituiu” da maneira como veremos, e não de outra, e porque está, atual-mente, “instituída”, formulada, regulamentada, de tal maneira e não de outra).

1.2 O imaginárioTudo que acabamos de dizer acima, principalmente ao final,

caracteriza o que se pode denominar de “imaginário capitalista”. Que quer dizer imaginário? Neste caso, imaginário quer dizer o conjunto, (Castoriadis prefere falar em “magma”, para caracterizar o caráter de fluidez dessas significações e a profunda imbricação existente entre elas, dificultando separar ‘com precisão’ uma dimensão de outra – pois economia se mescla com política, que se mescla com religião, que se mescla com cultura, e assim sucessivamente, de sorte que se é possível destacar uma de outra, demarcando-as, é difícil tra-çar os limites “precisos” entre uma e outra), das representações, dos gostos, “das preferências”, dos interesses e desejos que caracterizam uma sociedade em determinado período histórico. Então, em dife-rentes momentos, cada sociedade define para si o que é e o que não é, o que pode e o que não pode, o que vale e o que não vale, o que é cer-to e o que é errado. (Leiamos, por exemplo, a Carta de Pedro Vaz de Caminha e observemos, na leitura, o contraste entre as duas cultu-ras, a portuguesa e a autóctone. A carta é um precioso documento que mostra o contraste que está na nossa origem como “sociedade brasileira”). Contemporaneamente, o multiculturalismo atualiza essa problemática, num momento em que o desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação, dos transportes e as-sim por diante, tornam o planeta efetivamente globalizado e põe todos os dias, na tela da televisão ou nos jornais, o contraste entre diferentes culturas ou civilizações. Por que no Irã as mulheres po-dem ou não podem fazer determinadas coisas? E no Afeganistão? E na Nigéria? E entre nossos indígenas? Por que se diferenciam tanto os hábitos alimentares entre nós, sul-americanos? Representações, afetos e intenções que formam o imaginário efetivo de um povo ou nação ou sociedade. Ele é diferente para cada sociedade porque, defende Castoriadis, existe o imaginário radical, entendido como capacidade originária profunda, existente nos indivíduos e nas co-letividades, de fazer ser o que não é, de “criar” efetivamente, de in-ventar formas, figuras, ou figurações de significações e de sentido.

O que faz um artista ser “criativo” e “original”? A resposta é: “a imaginação radical” que existe nele como capacidade de repre-sentação, afeto e intenção nas profundezas da psique. Capacida-de, diga-se de passagem, que existe em todas as pessoas e que se expressa nas diferentes esferas da vida, nas diferentes atividades, independente do grau de escolaridade, insista-se. (Se o pensamen-to tradicional aceita a idéia de criação para a arte, mas a nega para outras esferas do fazer humano, Castoriadis amplia esse conceito, afirmando essa capacidade como constitutiva de cada ser humano,

Multiculturalismo (ou plu-ralismo cultural) é um ter-mo que descreve a exis-tência de muitas culturas numa localidade, cidade ou país, sem que uma de-las predomine, porém se-paradas geograficamente e até convivialmente no que se convencionou cha-mar de “mosaico cultural”.

14

ainda que se expresse de forma diferenciada: uns são músicos, ou-tros pintores, mas outros são inventivos no vestuário, outros na culi-nária, todos na criação das suas instituições sociais, nas suas formas de governo, de realizar a justiça, a educação, e assim por diante).

O que faz um povo, uma sociedade, ou até mesmo comu-nidades (os mineiros e os cariocas, por exemplo) serem diferentes entre si? Resposta: o “imaginário social”. Este imaginário social é a capacidade que tem a sociedade, enquanto coletivo anônimo, ins-tituído, de criar, de inventar, de fazer serem “significações imaginá-rias sociais”, ou seja, coletivas, e assumir uma postura instituinte. Por isso, ainda que inconscientemente, as sociedades também mudam, evoluem (tanto para melhor quanto para pior, infelizmente), nunca permanecem exatamente iguais, tanto em detalhes menos impor-tantes quanto em suas significações centrais. Basta falarmos com nossos pais, tios e avós e ouvirmos comparações sobre os “seus tem-pos”, basta observar a forma de sentir, de pensar e de agir de nossos filhos, ou alunos, e as comparar com as formas do “nosso tempo”, o que nos faz relembrar o filósofo grego Heráclito, conhecido por ter afirmado coisas como a impossibilidade de nos banharmos duas vezes nas mesmas águas de um rio. Ou salientando, a situação de conflito permanente na qual vivemos, lembrando que o conflito – inclusive de significações ou valores – é o pai de todas as coisas...

Resumindo: viver numa sociedade humana é viver imerso num magma de significações imaginárias sociais que dão sentido e orientação a nossas vidas enquanto sociedade. Diante delas, cada um de nós tem de encontrar sentido para sua vida pessoal, cons-truir sua identidade pessoal, constituir-se como sujeito. E é nesse processo que a educação desempenha uma função fundamental.

1.3 A educaçãoSeguindo na mesma linha de exposição teórica, a educação

é um processo pelo qual uma sociedade “fabrica” ou “modela” os indivíduos que a constituem, assegurando sua reprodução ou con-tinuidade histórica enquanto tal. Por esse longo processo de “esco-larização” que dura a vida toda, a sociedade repassa a seus mem-bros as suas instituições, ou seja, suas significações imaginárias, os seus valores, os seus saberes (suas interpretações do mundo, seus conhecimentos, suas “leis”, suas normas), o seu saber fazer (as suas técnicas)2.

Mas o que importa, aqui e agora, é rememorarmos a centra-lidade dos processos educativos na institucionalização de uma so-ciedade, na sua preservação, na sua constituição. E importa termos em conta que todos nós, com ou sem escola, somos “escolarizados” pelo conjunto da sociedade, através de suas múltiplas organiza-ções. Platão dizia que os muros da cidade educam. E nós abemos da importância não dos muros, mas dos out-doors, das fachadas luminosas, da televisão, das rádios, e da própria configuração ur-banística da cidade. Crescemos ouvindo falar de, e vivenciando, uma cidade instituída como “centro” e “periferia”, como áreas mais nobres e áreas menos nobres (no caso brasiliense, em Plano Piloto e cidades-satélites), entre “cidade” e “morro”, entre conjuntos habi-2 É notável, neste particular, a contribuição de Edgar Morin, em sua obra O Paradigma Perdido: a natureza humana. Há uma outa tradução, brasileira, da mes-ma obra, com o título O Enigma do Homem.

15

tacionais e favelas. Em resumo: as formas como as sociedades estão materialmente estabelecidas, presentificam as significações imagi-nárias nas quais e pelas quais a sociedade se auto-institui, se auto-organiza. O “concreto” é o resultado, a sombra de tais significações, derivam delas como suas conseqüências materializadas. E é nestas e por estas realizações concretas que aquelas existem. As institui-ções são redes simbólicas materializadas nas organizações. Basta nos perguntarmos porquê todas as escolas são tão iguais, mundo afora, e porquê todas têm as mesmas salas de aula e cada sala de aula tem exatamente, ou quase exatamente, a mesma configuração espacial. E pensarmos nas dificuldades imensas que um educador ou uma educadora têm quando, por exemplo, procuram implantar uma outra metodologia (baseada, por exemplo, em C. Freinet ou Paulo Freire).

Nascidos, então, numa dada sociedade, somos “modelados” por ela através da introjeção, em nossa psique, das instituições, das significações imaginárias que a constituem, e que nos “ensinaram” o que é e o que não é, o que pode e o que não pode, o que vale e o que não vale, o que é certo e o que é errado. A partir daí constituímos nossa identidade, individual e coletiva, fomos obrigados a investir tais instituições e as respectivas significações num longo processo de sublimação. Encontramos os nossos “lugares” sociais, inclusive. E, ao realizá-lo, mantemos a sociedade em seus pilares fundamentais, reproduzindo suas categorias sociais, seus tipos sociais, em sua tipi-cidade e em sua complementaridade. Numa sociedade capitalista, reproduzem-se as camadas dirigentes e reproduzem-se as camadas dirigidas.

Como uma sociedade capitalista se conservaria se não repro-duzisse os tipos que são fundamentais a sua sobrevivência enquan-to sociedade capitalista, que são os empresários (“os empreende-dores”, os “dirigentes”) e os proletários (os “subordinados”, os “diri-gidos”)? Diante disso, coloca-se o desafio: instituir uma educação “outra”, uma educação que, permitindo a reflexividade e a delibera-ção sobre as instituições (significações, valores, leis, regras, normas) vigentes, permita abrir caminho dentro do instituído para, num pro-cesso instituinte, trabalhar na criação ou institucionalização de uma sociedade “outra”, ou seja, fundamentada em outras significações, em outros valores. Coloca-se o desafio de fazer de um processo re-produtivista um processo transformador, uma educação para a mu-dança e não para a simples e pura reprodução de uma sociedade tal como existe.

1.4 Alienação, autonomia e cidadaniaO processo educativo, pois, dentro da perspectiva assumida,

não é neutro. Ao contrário, ele é momento decisivo da instituição da “polis”, ou seja, da “cidade” ou da sociedade em seu sentido mais amplo e genérico. Por isso, é um processo intrinsecamente político. E isso acontece com a “maior naturalidade”. Como diz uma certa le-tra musical: “não sei como aconteceu, quando notei, eu já era eu”.

Quando ingressamos na escola primária, já falávamos uma certa língua, com todo seu vocabulário (que não escolhemos), cada vocábulo tendo suas significações (que também independem de nós, que as encontramos prontas). Tudo parece, então, muito “natu-

“O homem, diz Casto-riadis, é um animal in-conscientemente filosó-fico, que fez a si mesmo perguntas na filosofia dos fatos, muito tem-po antes que a filosofia existisse como reflexão explícita; e é um animal poético, que fornece, no imaginário, respos-tas a essas perguntas” (IIS:178). Reflita um pou-co sobre isso.

16

ral”. E não nos damos conta de que tudo isso é parte da instituição e que, como tal, tudo foi social-historicamente criado, pela espécie humana, por nós, seres humanos, em nossas relações com o mun-do, com a natureza, com nossos semelhantes.

O fato de termos perdido a noção das origens, leva a uma na-turalização, e até mesmo a uma atribuição de sua origem a fontes extra-sociais, até mesmo divinas, extra-terrestres. Nesse caso, que é o mais comum, ou o habitual, as instituições, os costumes, “auto-nomizam-se”, como se tivessem vida própria. Perdendo a noção de sua origem “real” (de fato: o imaginário radical), mantemos com elas uma relação “imaginária” (aqui no sentido de equivocada, nascida de uma fonte que não a nossa real capacidade imaginária). Eis aí a origem mais ampla e profunda de todas as alienações: o estranha-mento, o não reconhecimento das coisas construídas socialmente como criações nossas. E, se nós, nos desencontros da vida, não gos-tamos da forma como a sociedade está organizada, isto é, instituída, no caso presente, como dilacerada entre ricos e pobres, proprietá-rios e despossuídos, e queremos uma outra sociedade, podemos as-sumir diante da educação uma nova postura: a da indagação crítica sobre os fundamentos das instituições que trazemos dentro de nós e dentro das quais vivemos. Neste caso, passamos de uma postura de educadores reprodutores e mistificadores a uma postura crítica, de educadores que estimulam, explicitamente, a reflexão sobre as instituições, e estimulam, igualmente, o desenvolvimento da capa-cidade deliberativa dos educandos sobre as instituições atuais.

A começar pelas próprias instituições escolares nas quais trabalhamos e convivemos, que “nos educaram e continuam nos educando”, ou seja, nos “modelaram e modelam” para a aceitação acrítica do instituído, ou, ao contrário, optar por uma postura re-ativa e afirmativamente instituinte de outra educação preparató-ria de uma outra sociedade, moldada segundo um outro projeto, fundada em outras significações, e operando o mais possível se-gundo essas outras significações. Nesse caso, a alienação, postura ou condição de quem vê as instituições fora do seu alcance, alheia a seu poder e sua vontade, dá passagem à autonomia, que é uma postura ou uma atitude de apropriação crítica das instituições. Esta apropriação pode resultar ora numa aceitação positiva das leis que considerarmos válidas (é ótimo que nossos filhos e netos nasçam numa sociedade com leis que humanizem o trânsito, por exemplo, e que condenem a prostituição, sobretudo a infantil), ora na rejei-ção das leis e sua substituição por outras, quando considerarmos inadequadas, ou inaceitáveis, ou injustas. E, neste caso, ascedemos, como educadores, e ajudamos aos nossos educandos a ascederem, à cidadania. Então, cidadania deixa de ser um termo esvaziado e mistificador, e recupera seu conteúdo político efetivo e pleno. Te-mos uma educação que avança para uma postura emancipadora. E nos encontramos, de então em diante, na senda aberta por edu-cadores como Celestin Freinet e Paulo Freire, para citar apenas dois, dentre os grandes pedagogos que criaram as pedagogias para a autonomia e a emancipação individual e coletiva. Na história da humanidade, que se instituiu assimetricamente, emergiu a autono-mia como uma significação constatadora da heteronomia. E, desde então, se constituiu num projeto que se tem expressado social-his-

17

toricamente como “movimento democratizante”, um projeto sem-pre tênue (“a democracia, diz Castoriadis, é um regime trágico, pois sempre exposto a ser democraticamente comprometido...”). A histó-ria da constituição dos sistemas de educação escolarizada no Brasil, quer no plano macro, da formulação das grandes políticas, quer no plano micro, da definição do modo de operar na esfera pedagógi-ca, na esfera do trabalho educativo propriamente dito, certamente acompanha e expressa o vaivém desse movimento e dele depende a sorte do projeto de instituição de uma sociedade autônoma, com cidadãos emancipados e solidários.

ATIVIDADES SUGERIDAS

1 A propósito do conceito de “educação”, reveja suas anota-ções de outras disciplinas, notadamente de Filosofia, Psicologia e Sociologia, confronte-as e faça seus comentários, destacando os pontos de convergência e divergência.

2. Ou faça a mesma coisa a propósito do conceito de “aliena-ção” e “autonomia”.

3. Faça uma resenha dos capítulos iniciais de O Paradigma Per-dido: a natureza Humana, de Edgar Morin. Comente as passagens que mais diretamente abordam a função educativa na constituição da humanidade, no processo de hominização.

4. Leia e resenhe o texto Psicanálise e Política, de Cornelius Castoriadis, destacando tudo quanto se aplica à pedagogia e à edu-cação.

5. Leia (ou releia) o livro Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire, e comente-o à luz dos conceitos apresentados neste texto.

2 A institucionalização da educação no Brasil

Missionários de Cristo na Terra dos PapagaiosEste subtílulo foi inspirado no título de um livro recente de um

historiador brasileiro3. Aparentemente jocoso, o teor do título nos alerta para uma significação importante, presente no “descobrimen-to”. É importante registrar, entretanto, que quando os portugueses chegaram ao Brasil, não encontraram um território vazio, nem ape-nas papagaios. O território era ocupado por saudáveis habitantes cuja “formosura” e “pureza” encantou os marinheiros adventícios (é interessante retornar à Carta de Pero Vaz de Caminha). E, desde en-tão, os viajantes e missionários passaram a relatar os costumes, as crenças, os valores, em suma, a cultura ou o “imaginário efetivo” dos povos da terra recém encontrada.

2.1 Educando os curumins e as cunhatãsFlorestan Fernandes, grande sociólogo, educador e militante

político brasileiro, elaborou, com base em tais relatos, uma interes-sante reconstituição do imaginário e do processo educativo através dos quais os tupinambás se perpetuavam4. De uma tal leitura (e de 3 Luiz Felipe de Alencastro.4 FERNANDES, Florestan. Notas sobre a educação na sociedade Tupinambá. In: Educação e

Sociedade no Brasil, São Paulo: Dominus Editora/Editora da Univrsidade de São Paulo, 1966, pp.144 e

ss.

18

outras que o(a) formando(a) interessado(a) poderá fazer), vale des-tacar as seguintes características:

a) Os processos de transmissão da cultura, (tratava-se, no caso, de uma sociedade “tradicionalista”, “sagrada” e “fechada”) pro-cediam por via oral, através de contatos primários, do face a face, segundo as próprias circunstâncias produzidas pelas rotinas da vida diária. Todos aprendiam algo em qualquer tipo de relação so-cial, fazendo de qualquer indivíduo um agente de educação tribal, projetando os papéis de “adestradores” ou de “mestres” em todas as posições da estrutura social. O valor da tradição se impunha, era sagrado, um saber “puro”, capaz de orientar as ações e decisões dos homens em qualquer circunstância, reproduzindo a experiência dos “ancestrais”. Ela definia os mínimos morais e os graus de honorabili-dade das ações e do caráter dos seres humanos. O que contava era o valor da ação e o valor do exemplo. Aprendia-se fazendo, parece ter sido a máxima da “filosofia educacional” entre eles. Os adultos envolviam os menores nas atividades e os estimulavam a repetir situações determinadas, iniciando-os nas atitudes, nos valores, nos comportamentos adequados. O adestramento dos menores não se separava da realização das obrigações. E cada qual devia considerar suas ações como modelo para os demais. Todos eram “mestres” pelo “exemplo”, o comportamento manifesto devia traduzir fielmente o sentido do legado dos antepassados, o conteúdo prático das tradi-ções. A imitação era o processo educativo básico.

b) Quanto às condições de transmissão da cultura, havia va-riações importantes segundo o sexo e a idade dos envolvidos. Até começar a andar, todos dependiam da mãe, esta jamais se afasta-va dos pequenos, de modo a poder socorrer-lhes em caso de ne-cessidade. Os curumins (meninos) aprendiam a fazer arco e flecha, furavam os lábios entre quatro e seis anos, folgavam com os com-panheiros, aprendiam cantos e danças, e, mais tarde, com os pais, aprendiam a caçar, a pescar, a buscar comida para o grupo domés-tico. A partir dos quinze anos tornavam-se “unidades produtivas da economia doméstica”, trabalhando arduamente em todos os setores de atividades masculinas. Eram remadores nas expedições, fabricantes de flexas, pescadores, prestadores de serviços nas reu-niões dos mais velhos. A partir dos vinte e cinco anos tornavam-se guerreiros, sacrificavam a primeira vítima, renomavam-se, casa-vam, entravam no círculo dos adultos, aprendiam as tradições, as instituições, junto aos mais velhos. Já as cunhatãs (meninas) não se afastavam das mães até aos sete anos. Aprendiam a fiar para te-cer as redes e a modelar para fazer vasilhames de barro. Entre sete e quinze anos ficavam apegadas às mães, e aprendiam os servi-ços caseiros, a fiação, o enodamento das redes, a semeadura e o plantio das roças, a preparação do cauim e dos outros alimentos. O grande acontecimento era a iniciação, após a primeira menstru-ação, seguindo-se a perda da virgindade. A partir dos quinze anos de idade, preparavam-se para o matrimônio dominando as prendas domésticas. As jovens eram introduzidas, paulatinamente, nos pa-péis e na concepção de mundo das mulheres. A cada fase da vida correspondiam novos papéis e atribuições. Aos “professores” cabia ensinar pela prática, executando com perfeição as coisas para po-

19

der bem ensiná-las. Não havia formalismo pedagógico, nem disso-ciação entre prática e teoria.

c) Os conteúdos da educação afetavam todas as esferas da vida social organizada.

d) As funções sociais da educação, remetiam às relações e aos controles sociais do ambiente natural, a transmissão da tecnologia levava em conta sexo e idade. O corpo humano era o grande ins-trumento tecnológico, tratava-se de explorar suas possibilidades, trabalhando com o machado de pedra e recursos técnicos corres-pondentes. O mutirão era importante. “O homem era o principal ‘meio’ do próprio homem” (Florestan:162). Nas relações interpes-soais, aprendiam-se as regras de tratamento assimétrico (por idade ou sexo), o companheirismo, a solidariedade, a reciprocidade, os cerimoniais complexos, os ritos, a guerra, a caça, a unidade tribal. Nas relações com o sagrado, aprendiam o conhecimento dos mitos, das técnicas mágico-religiosas, dos ritos (de passagem, de sacrifí-cios), o xamanismo. Em síntese, a educação entre os autóctones era informal e assistemática, comparativamente aos padrões europeus, mas era eficaz e efetiva. Assegurava a perpetuação da “herança so-cial” recebida dos antepassados, perpetuando o “imaginário” tribal e suas significações, ainda que sem técnicas de educação sistemá-tica e sem criação de situações caracteristicamente pedagógicas (Florestan:153).

2.2 A sociedade mercantilistaOs homens que chegaram ao novo mundo, chegaram em ca-

ravelas, e não em canoas. Traziam armas de fogo, não usavam arco e flecha. Cobriam seus corpos com vestimentas. Bebiam algo muito diferente do cauim. Utilizavam muitos equipamentos, sofisticadíssi-mos comparativamente à rusticidade dos locais. Eram representan-tes da mais avançada sociedade européia da época, sua tecnologia era de ponta e tão desenvolvida que lhes permitia aventurar-se nas navegações mar afora, como cinco séculos depois outras nações navegaram pelo espaço sideral. E eram homens que viajavam em busca de mercadorias. A Europa vivia o mercantilismo, que, segundo o Aurélio, significa “tendência para subordinar tudo ao comércio, ao interesse, ao lucro, ao ganho”, ou ainda, “predominância do inte-resse ou do espírito mercantil”. Em outras palavras, a Europa estava criando um outro tipo de sociedade, fundamentada em outros va-lores, em outras significações, que virá a ser conhecida ou batizada como “capitalismo”. Esse é um tipo de sociedade em que o econô-mico prevalece e, a partir dele, tudo tende a ser transformado em “mercadoria”, a assumir a forma mercadoria. E, como tal, a ser ele-mento de troca.

Nossos aborígenes faziam prisioneiros nas suas guerras, que eram motivadas pela necessidade de buscar novos territórios, ha-vendo um esgotamento relativo dos territórios anteriormente ocupados. Os prisioneiros eram sacrificados em rituais próprios, carregados de significações. Mas não eram vendidos. Esta signifi-cação não existia entre eles. Com os portugueses, chega o espírito mercantil, a venda, a exploração mercantil dos recursos naturais (o pau brasil foi devastado, e assim começou a devastação da Mata Atlântica...), pessoas eram feitas prisioneiras e transformadas em

20

mercadorias: escravos eram mercadorias, vendidas e compradas no mercado de escravos...(Há um outro livro interessante e recomen-dável: trata-se de A Nação Mercantilista, de Jorge Caldeira5). Havia uma significação imaginária, operante e pesada, que se expressava como reificação das relações. Segundo C. Castoriadis, é a captação de uma categoria de homens (e mulheres) como assimilável, em todos os sentidos práticos, a animais ou coisas, fazendo deles es-cravos (no caso dos indígenas) ou mercadorias (ou ambas as coisas) no caso dos portugueses... Trata-se de uma relação na qual alguns homens se vêem e agem, uns em relação aos outros, “não como aliados para ajudar, rivais para dominar, inimigos para exterminar ou mesmo comer, mas como objetos para possuir”(IIS:185).

A instituição antagônica e assimétrica das sociedades indí-genas, onde havia escravidão e canibalismo, conhece uma outra forma de desumanização: a reificação mercantilista, que se realiza no anonimato da sociedade. Mais do que a troca de homens por objetos, o que está presente é a “transformação dos homens ‘em objetos’”. E, assim, uma outra pedagogia se instaura.

2.3 A ratio studiorum nos trópicosEvidentemente, os contatos estabelecidos instauraram um

novo processo educativo, ou re-educativo. Os autóctones foram aprendendo novas formas de ser, de se relacionar, de agir, de pen-sar. A educação sistemática, porém, irá começar com os jesuítas. A ocupação sistemática do novo mundo vai requerer a inculcação de nova maneira de ser, de pensar e de agir entre os nativos. O proces-so dito civilizatório visava “dilatar a fé e o império”. Em resumo: visa-va fazer viger uma outra civilização, um outro imaginário. De lá para cá, sabemos o que aconteceu, pois somos herdeiros desse processo dito civilizatório. Processo civilizatório de inspiração cristã, católica, ibérica e capitalista, no qual se reitera, de forma renovada, um sis-tema de poder e de riqueza profundamente assimétrico, no qual, adverte Caldeira (p.7 e ss.), “a formulação de política econômica era deliberadamente pensada como modo de excluir os interesses da maioria dos agentes e satisfazer uma minoria (pouco interessada no progresso). Uma cultura e uma política de exclusão, na qual a maioria dos agentes não deveria aparecer como sujeitos de desejos próprios que devessem ser levados em consideração.”

Pois bem, nossos primeiros educadores formalmente desig-nados como tal, valendo-se de uma pedagogia específica, elabo-rada, formalizada, foram os jesuítas. Eles marcaram sua presença educacional no Brasil de 1549 a 1759. Serão 210 anos de influência religiosa: inculcação dos novos valores, do novo sagrado.

Na Bahia, criaram as Confrarias dos Meninos de Jesus, que mantinham os Colégios dos Meninos de Jesus, onde ensinavam aos filhos dos “principais da terra” e, inicialmente, aos filhos dos caciques indígenas, com os quais interessava manter bons contatos. O siste-ma era financiado pela redízima, norma segundo a qual um percen-tual de dez por cento do quanto ia como tributação ao reino. Eco-nômica e politicamente, instituiu-se a escolarização como extensão do Estado português. Sendo privado, era financiado com recursos públicos. Pedagogicamente, em sentido estrito, apoiava-se na ratio 5 CALDEIRA, Jorge. A Nação Mercantilista – ensaio sobre o Brasil . São Paulo: Ed. 34, 1999.

Conjunto de normas cria-do para regulamentar o ensino nos colégios jesuí-ticos. Sua primeira edição, de 1599, além de susten-tar a educação jesuítica, ganhou status de norma para toda a Companhia de Jesus. Tinha por finalida-de ordenar as atividades, funções e os métodos de avaliação nas escolas je-suíticas.

21

studiorum, que eram as disposições da Companhia de Jesus, ordem religiosa recém-criada para contrapor-se ao protestantismo refor-mista e assegurar a defesa da ortodoxia católica. Esta determinava, além do elementar “ensinar a ler, escrever e contar”, o ensino das Humanidades (Gramática, Literatura (Humanidades) e Retórica), das Artes (Filosofia: Lógica, Metafísica e Filosofia Moral) e da Teo-logia (Ciências Sagradas). Sua base curricular eram o trivium (Gra-mática, Retórica e Dialética) e o quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia), herança medieval de inspiração escolástica e aristotélica, esta profundamente torcionada pelo tomismo. A lín-gua oficial era latim ou grego. A novidade, no Brasil, foi a introdução da língua portuguesa e da própria língua tupi para facilitar a comu-nicação com os nativos6. Mas o interesse maior, senão exclusivo, era o de formar os próprios quadros clericais e os amanuenses para o comércio da época. Ao final do período, estima-se que haveria uma “rede” profissionalizante com cerca de três mil alunos, espalhados pelo Brasil, seguindo as trilhas do processo evangelizador. O que não seria, talvez, de pouca importância se nos lembrarmos do que foi o trabalho “civilizador” dos jesuítas espanhóis que instituíram os Sete Povos das Missões, no noroeste do que hoje é o Rio Grande do Sul, a “região missioneira”. Como quer que seja, igualmente, o ensi-no superior que foi ensaiado pelos jesuítas na Bahia, foi impedido de continuar, ainda no século XVI.

2.4 As vozes da ÁfricaOs portugueses, tendo viajado muito pela África, conheciam

os mouros do norte e os negros do interior do continente. Muitos desses negros viviam em Lisboa. Por isso, quando chegaram ao Bra-sil, chamaram os índios de negros da terra. Por serem diferentes dos europeus, estes os achavam inferiores. Para que tivessem algum va-lor para os europeus, era preciso que se tornassem idênticos a eles. Era preciso catequizar os indígenas, convertendo-os a qualquer cus-to ao cristianismo. E era preciso ensiná-los a viver em aldeias como as da Europa e trabalhar como os europeus. Como não estavam acostumados a viver e trabalhar desse modo, era preciso obrigá-los a trabalhar e viver assim. Era preciso transformá-los em escravos dos colonos brancos portugueses.

Nos primeiros tempos, a plantação da cana-de-açúcar foi toca-da assim, com o trabalho dos índios escravizados. Os bandeirantes, que saíam pelo sertão afora para procurar ouro e pedras preciosas, também buscavam indígenas para apresar e trazer para o trabalho nas plantações. Mas os indígenas, que não estavam acostumados a esse modo de vida, rendiam pouco como mão-de-obra nos enge-nhos de cana. E, depois, os padres jesuítas, que tinham por missão convertê-los à religião dos colonizadores, não se conformavam com essas práticas dos bandeirantes, porque eram um péssimo exemplo da civilização dos brancos cristãos. Foi por isso que os portugueses donos dos engenhos de cana resolveram buscar outra gente para trabalhar em suas terras. Se os negros da terra não serviam, era me-lhor ir buscar os negros da África. E é aqui que começa a história da presença dos africanos negros no Brasil.

Nossos antepassados negros eram pessoas muito diferen-6 CHAGAS, Valnir. A preparação de quatro séculos. In: O Ensino de 1º e 2º Graus – antes, agora, e depois? São Paulo: Saraiva, 1984.

22

tes umas das outras, tal como os indígenas que viviam no Brasil na época do descobrimento. Aqui não havia índios, simplesmente, mas muitos povos indígenas de várias nações, que falavam línguas diferentes e viviam de muitas maneiras diversas. E o mesmo aconte-ceu com os escravos vindos da África. Eles não eram simplesmente negros africanos escravos, mas povos que pertenciam a muitas na-ções. Os primeiros africanos que foram trazidos como escravos para o Brasil vinham da costa da África ocidental. Eram povos que aqui ficaram conhecidos como negros minas, congos, angolas, guinés, ca-bindas, rebolos, benguelas, moçambiques e muitos outros nomes, e todos eles pertenciam ao grupo dos povos bantu e sudaneses. Os países da África que hoje se chamam Angola, Congo, Moçambique ou Guiné receberam esses nomes por causa desses povos que lá viviam há muito tempo e foi dessas regiões que vieram os primeiros escravos. Depois, também vieram como escravos os povos de cul-tura iorubá, da Nigéria e do Benin, e também eles formavam nações distintas, dos nagôs, dos geges, dos ijexás. Muitos deles viviam em civilizações altamente desenvolvidas, como no reino de Oyó, onde havia grandes cidades. Ali, reis poderosos exibiam o luxo de suas cortes e tinham uma cultura muito refinada. Os artesãos sabiam tra-balhar os metais como ninguém e em sua arte as esculturas de ferro e de madeira entalhada eram maravilhosas. Cada um desses povos tinha um modo de vida próprio, com costumes diferentes e crenças religiosas muito elaboradas. Entre os povos bantu, cada grupo de famílias cultuava seus antepassados, pois acreditavam que vinha deles a força que sustentava a vida de todos os membros do gru-po. Os deuses dos iorubá eram os orixás, ligados aos elementos e às forças da natureza. Havia divindades do fogo e do ar, da água e da terra. Havia deuses e deusas das matas e dos rios, da chuva, da tempestade, dos raios, do trovão, do arco-íris. Havia um deus dos metais, da agricultura e das armas de guerra e outro que protegia as pessoas das doenças. Mas, apesar disso tudo, para os brancos europeus eles eram apenas negros que, como os índios da América, era preciso civilizar. Os negros eram capturados na África e depois vendidos aos comerciantes de escravos. De lá, eram embarcados nos navios chamados negreiros e uma enorme quantidade deles morria na travessia do oceano Atlântico, por causa das doenças e dos maus tratos que sofriam. Às vezes, mesmo antes de embarcar, eles eram batizados, recebendo um nome cristão, e isso bastava para que fossem considerados “convertidos” à fé dos seus senhores. Outras vezes, eram batizados assim que desembarcavam nos por-tos do Brasil, em Pernambuco e na Bahia, antes de serem levados ao mercado de escravos.

Os escravos que eram comprados nos mercados de Recife ou Salvador iam trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar do litoral ou nas fazendas de gado do interior. Como a cana não se adaptou bem na capitania de São Vicente, nas terras do litoral de São Paulo, a lavoura ali não foi para frente. Mas ela se deu muito bem com o lito-ral ensolarado de Pernambuco e da Bahia, e foi aí que se instalaram os grandes engenhos de açúcar. E depois, quando o povoamento português entrou pelas terras do sertão, foram surgindo as grandes fazendas de gado.

Na casa-grande do engenho ou da fazenda, os escravos fa-

23

ziam todo tipo de serviços. Era preciso plantar e limpar a cana, de-pois cortar a cana do pé, moer cada uma e ferver o caldo, para fa-zer o açúcar que seria vendido lá fora, o melado e a rapadura para fazer os doces e adoçar os bolos na casa de fazenda. Os escravos faziam as peças da moenda e cuidavam dos bois que faziam a mo-enda girar. Plantavam a mandioca, o milho, o feijão e a abóbora que todos comiam. Nas fazendas do sertão, cuidavam do gado no pasto e o recolhiam ao curral e davam para ele comer o bagaço da cana quando havia por perto um engenho. Cuidavam das crias e aproveitavam o leite das vacas para fazer queijo. Quando o gado já tinha engordado bem no pasto, eles matavam os bois, salgavam e secavam sua carne no sol, para fazer o charque. Era essa carne seca que os escravos levavam para vender nos engenhos e nas cidades do litoral. No terreiro dos engenhos e das fazendas, as escravas cria-vam os frangos que matavam na hora, quando chegava uma visita ou para fazer o caldo que a senhora do engenho tomava, quando estava de resguardo, depois do nascimento de uma criança. Eram elas que engordavam os porcos e com sua carne faziam lingüiça e chouriço, guardando a banha para temperar a comida. Cuidavam do fogão de lenha, do forno de barro, faziam os doces e assavam as broas de milho e os bolos de mandioca que todos comiam na casa-grande. Muitas teciam no tear o pano de suas roupas, que elas pró-prias costuravam. Também cuidavam da roupa de cama que todos usavam na casa grande. E ainda, como mucamas, tinham de cuidar da sinhá. Era preciso lavar, engomar e passar suas roupas, cuidar de seus sapatos, pentear seus cabelos.

As escravas também cuidavam dos filhos pequenos da sinhá. Eram elas que amamentavam as crianças, que davam banho nelas, que cuidavam de suas roupinhas e preparavam sua comida. Mas o filho da escrava já nascia escravo. Assim que crescia um pouco mais, o moleque ia ajudar na plantação ou na lida do gado e fazia todo tipo de pequenos serviços na casa. E quando o sinhô ou a sinhá quisesse, podia vender o moleque, ou dá-lo de presente a algum conhecido, sem se importar com sua mãe escrava, que ficava com a família do senhor para cuidar dos filhos dele.

Os senhores-de-engenho ou das fazendas de gado também costumavam ter uma casa na cidade. Então, era ali que os escravos iam cuidar da família de seus senhores, nos grandes sobrados de Recife, Olinda e Salvador. E também na cidade faziam todos os ser-viços: vendiam, pela rua, frutas, doces, a água que se tomava nas casas. Levavam as pesadas barricas de madeira onde todo dia se despejava a urina e as fezes dos moradores das casas, para esvaziá-las no rio ou no mar. E na cidade também aprendiam todo tipo de ofício. Eram ferreiros, barbeiros, carpinteiros. Aprendiam a construir casas e igrejas, e aprendiam também a entalhar na madeira os alta-res das igrejas, suas colunas, aprendiam a esculpir no barro ou na madeira as imagens dos santos, a pintar de ouro suas roupas. Toda a arte nesse período foi feita com a contribuição do seu trabalho. Era assim a vida dos escravos negros vindos da África, desde os primei-ros tempos em que a colonização portuguesa se dedicou ao cultivo da cana, no final do século XVI. Foi nos engenhos e nas fazendas que os escravos africanos construíram a riqueza do Brasil por todo o século XVII. Mas continuavam a ser desprezados e maltratados

24

pelos senhores brancos, porque eram negros e escravos.O sofrimento dos escravos começava na África e continuava

depois no Brasil. Às vezes, eram capturados na África todos os mem-bros de uma família, mas eles eram separados uns dos outros para serem vendidos como escravos no Brasil. Também os que falavam a mesma língua e vinham de uma mesma região, como os congos, angolas, benguelas ou guinés, por exemplo, eram separados na hora da venda. Isso porque os donos dos engenhos tinham medo. Pois, se eles pudessem se entender uns com os outros e ficassem todos juntos, talvez quisessem defender os parentes e os amigos contra os castigos e maus-tratos que sofriam e poderiam organizar uma revolta.

E sobravam motivos para revoltas, porque maus-tratos não faltavam. Os escravos moravam amontoados nas senzalas e o fei-tor, que os vigiava por conta do senhor-de-engenho, por qualquer coisa dava a eles todo tipo de castigo. Eram presos no tronco, uma grande peça de madeira com buracos onde enfiavam seus pés e suas mãos. Quando andavam de um lugar para outro, iam amarra-dos juntos por uma comprida corrente, chamada libambo. Às vezes tinham que carregar no ombro ou apoiada na cabeça uma pesa-da peça de madeira, o cepo, que era preso no seu tornozelo com uma corrente, para impedir que eles pudessem correr e fugir. Ou-tras vezes, o senhor punha no pescoço do escravo a gargalheira, um pesado colar de ferro com três pontas bem altas para impedir que ele virasse a cabeça, mal podia andar assim. Outras vezes, ainda, os escravos eram castigados com a palmatória, uma prancha de ma-deira cheia de furos que o feitor batia com força na sua mão. Mesmo nas crianças se batia com a palmatória e suas mãozinhas ficavam inchadas e cheias de marcas. Por isso as revoltas eram constantes. E, apesar da vigilância do senhor e do feitor, muitos conseguiam fugir dos engenhos de açúcar e das fazendas. O senhor mandava atrás deles o capitão do mato e, quando eram apanhados e trazi-dos de volta, sofriam ainda maiores castigos. Por isso os escravos precisavam fugir cada vez mais para longe, para lugares onde não pudessem ser alcançados. E, quando conseguiam se reunir nesses lugares, precisavam se organizar muito bem para se defender dos brancos, caso eles chegassem até lá. Essas comunidades criadas pelos negros eram chamadas quilombos e os que ali viviam eram conhecidos como quilombolas. O quilombo mais importante que existiu no Brasil foi Palmares, que se organizou no atual Estado de Alagoas por volta de 1597. Palmares conseguiu resistir aos brancos por quase 100 anos e, no período mais importante de sua história, durante 30 anos, conseguiu manter vivendo ali cerca de 30 mil pes-soas. Os líderes de Palmares que se tornaram mais conhecidos fo-ram Ganga-Zumba e Zumbi e é por causa da resistência heróica dos escravos daquele quilombo que o dia da morte de Zumbi, 20 de novembro, passou a ser comemorado no Brasil desde 1978 como o Dia da Consciência Negra. O quilombo dos Palmares foi destru-ído em 1694 por um bandeirante paulista, Domingos Jorge Velho. E são os bandeirantes e os quilombos que nos fazem chegar mais perto da origem dos atuais remanescentes dos quilombos, espa-lhados por diferentes cantos do território brasileiro, a exemplo do povo Kalunga, em Goiás, território que também foi um quilombo,

Saiba mais sobre o líder Zumbi e o Quilombo dos Palmares em: http://www.historiadobrasil.net/qui-lombos/

25

surgido na época em que os bandeirantes paulistas chegaram até às terras de Goiás7.

2.5 As reformas pombalinasA “rede” jesuíta de ensino, este embrião de “sistema de ensi-

no”, cujas características estão sumariamente reproduzidas, foram eliminadas em 1759 pelo Marquês de Pombal. Era o “Iluminismo” chegando ao Brasil e, entre outras razões de natureza política e econômica, declarando a necessidade de lutar contra o atraso filo-sófico, o aristotelismo, defendo a incorporação de novos ideais filo-sóficos e científicos, um novo sentido de educação que deveria ser implantado por intermédio da escola (nesta época as escolas come-çavam igualmente a serem criadas na Europa8). O Estado português reassume o protagonismo, antes em poder da Igreja, em matéria educacional. Mas obtém resultados desastrosos. Apenas treze anos depois da expulsão dos jesuítas foi criado o “subsídio literário”, para financiar o ensino elementar e de humanidades, que constaria de “aulas régias”, isto é, aulas “avulsas”, de latim, grego ou retórica para evitar a simples e pura ausência de escola.

A população beirava os “três milhões” de habitantes. Socie-dade rígida e escravocrata, nela não poderia haver nem tipografias nem manufaturas, nem sequer oficinas de ourivesaria. Os “profes-sores” passaram a ser improvisados, sem a formação dos jesuítas, que era notável. (Talvez daí decorra a expressão de “professor leigo”, associando o despreparo ao fato de serem não “religiosos”, como até então).

Vale lembrar algumas premissas da reforma pombalina, tal como expressas por Antonio Nunes Ribeiro Sanches (amigo de Luiz Antonio Verney, autor de O Verdadeiro Método de Estudar, inspirador filosófico da reforma), o mentor político das mudanças: no ensino primário, afastar das escolas de ler e escrever os filhos dos pobres e das pessoas do campo, porque se estes se alfabetizassem, deixa-riam o campo, ou quereriam ser outra coisa que não roceiros, pes-cadores ou ocupar ofícios humildes como seus pais. Para evitar isso, deveriam ser eliminadas as escolas, públicas ou particulares, nas aldeias e pequenos vilarejos. Quanto às colônias, no caso o Brasil, dever-se-ia ter presente que seu único objeto deveria ser “a agricul-tura e o comércio”, não podendo nelas existirem instrução, cultura, elevação científica. Pois fariam frutificar honras, cargos, dinheiro e valores humanos que só deveriam frutificar na metrópole. Isso só poderia beneficiar pessoas das Colônias “se frutificassem na corte”.9 Eram proibidas as escolas de latim (ensino médio), pelas mesmas razões. Era importante cultivar expressamente a dependência da colônia em relação à capital, o reino. No Brasil, da nova proposta, apenas no Seminário de Olinda, sob inspiração do bispo D. Azeredo Coutinho, aconteceu alguma coisa de tal reforma do ensino médio, que consistiu em incluir no currículo o estudo das ciências matemá-ticas, físicas e naturais, complementando as matérias tradicionais. E 7 O texto sobre a contribuição trazida da África é de autoria da Prof.ª Dr.ª Maria da Glória Moura, da Universidade de Brasília e do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, e integra um livro em fase de conclusão sob o título Uma História Kalunga, que trata dos quilombos formados pelos povos Kalunga na região de Goiás.8 LOBROT, Michel. Para que serve a escola? 9 SANCHES, Ribeiro. Cartas sobre a Educação da Mocidade, apud José Antônio To-bias, História da Educação Brasileira, São Paulo: Editora Juriscredi, 1972, p. 120.

26

o Seminário de Olinda é considerado um centro importante de re-novação do pensamento filosófico e político no nordeste brasileiro, com influência decisiva na história de Pernambuco e da Revolução Pernambucana de 1817.

2.6 A educação de D. João VIQuando a família real chegou ao Brasil, em 1808, praticamen-

te nada havia em matéria de ensino. Era um total vazio. Ao monarca coube várias iniciativas no campo cultural, tais como a criação da Imprensa Régia, do Jardim botânico, da Biblioteca, do Museu Na-cional. Os interesses do Estado aqui implantado requeria médicos, engenheiros, oficiais militares. Daí a criação da Escola de Cirurgia na Bahia, da cadeira de Ciência Econômica, da Academia de Guardas-Marinha, da cadeira de Medicina Operatória e Arte Obstétrica, da cadeira de Cálculo Integral, Mecânica e Hidrodinâmica em Pernam-buco, da cadeira de Medicina Clínica no Hospital Real Militar e de Marinha, da Academia Real Militar, considerada a primeira faculda-de brasileira oficialmente criada. Implanta-se o sistema de ensino no Brasil, começando pelo ensino superior, instituído em forma de ensino profissionalizante em estabelecimentos ou unidades isola-das.

2.7 O ensino no ImpérioA situação da educação escolarizada no Brasil não sofrerá

grandes alterações ao longo do Império. De um modo geral, o en-sino superior consolida as escolas criadas por D. João VI, acrescen-tando a elas as Faculdades de Direito de São Paulo e do Recife, e já no seu final, a Escola de Minas, de Ouro Preto. No ensino médio, surgem os Liceus, tendo como referência “modelar” o Colégio Pedro II, criado no Município da Corte, com alguns outros espalhando-se pelas províncias.

O setor privado vai construindo também os seus espaços. A grande referência, por exemplo, em Minas Gerais, é o Colégio Ca-raça. Entretanto, nada de uma rede pública respeitável. No ensino primário, então, o panorama é desolador. Com a Independência, a educação do povo se exprime de forma genérica e superficial. Na Constituição de 1823, o artigo 19 determina “a instrução primária gratuita a todos os cidadãos”. Em 1826, surge uma primeira reforma do ensino, promovida pelo Cônego Januário da Cunha Barbosa, pro-pondo a inspeção escolar, e, em 1827, uma lei é promulgada criando as escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugarejos, e estabelecendo o método Lancaster ou de ensino mútuo. Nos con-ventos havia escolas para meninos ou meninas, conforme fosse a congregação masculina ou feminina. A educação feminina era uma raridade. Em 1834, entretanto, o Ato Adicional, estabelecendo uma monarquia federativa e descentralizadora, cria as Assembléias Le-gislativas Provinciais, e descentraliza também a educação, que fica sob responsabilidade das Províncias, a cujas Assembléias competi-ria legislar “sobre a instrução pública e os estabelecimentos próprios a promovê-la”. Esta descentralização prosseguirá com a República, retomando em nossos dias a forma de municipalização do ensino. A escassez de recursos, ou de interesse, deixou o ensino básico a des-coberto. No ensino médio, as reformas seguiram, numa tensão ora

27

estruturante ora desestruturante, haja vista, por exemplo, o caso da reforma Leôncio de Carvalho, que, em 1879, estabeleceu o “ensino livre”, ou seja, ampliou para todo o Império as medidas que estabe-leceram, no mesmo ano, no Município da Corte, os exames vagos e o regime de freqüência livre. Agora abria ao setor privado a possibi-lidade de abrir escolas e cursos de todos os tipos e níveis, podendo conceder graus acadêmicos e vantagens até então concedidos ex-clusivamente pelos estabelecimentos públicos. A responsabilidade pública era apenas quanto à inspeção para garantir as condições “de moralidade e higiene”.10 E é com esse quadro de precariedade que entramos na República.

2.8 A política educacional na Primeira RepúblicaA primeira reforma educacional no período republicano acon-

teceu em 1890, tendo sido criado o Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos. Sua ênfase recaiu sobre o ensino médio, refor-mando o Colégio Pedro II, destacando o ensino das ciências natu-rais e exatas. Em 1901 (Epitácio Pessoa), depois em 1911 (Rivadávia Correia novamente reedita Leôncio de Carvalho desoficializando e privatizando o ensino público), depois em 1915 (Carlos Maximi-liano), depois em 1925 (Luiz Alves/Rocha Vaz) aconteceram novas “reformas”. Para Otaíza Romanelli, entretanto, “todas essas reformas não passaram de tentativas frustradas e, mesmo quando aplicadas, representaram o pensamento isolado e desordenado dos coman-dos políticos, o que estava muito longe de poder comparar-se a uma política nacional de educação”11.

O mais importante dessa fase da história da sociedade brasi-leira e da institucionalização da educação escolarizada é um forte movimento de reforma nascido entre os educadores que em 1924 criaram a Associação Brasileira de Educação e realizaram várias re-formas estaduais, em São Paulo, em Minas Gerais, no Ceará, no Dis-trito Federal e na Bahia. Nesse contexto aconteceu o movimento da Escola Nova e se constituirá o núcleo dos “pioneiros da educação”, que terão muita influência na década seguinte.

2.9 A educação a partir dos anos 30: as leis “orgânicas”

É a partir dos anos 30 do século XX, no bojo de um movimen-to de sociedade que culmina na Revolução de 30, que se começará um sistema de ensino público segundo uma tal política nacional. É a Reforma Francisco Campos que, em 1931, dá a largada do proces-so. Este processo vai desaguar na Constituição de 1934. Nesta, vão se fazer ouvir os ecos do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, que, assinado por ilustres figuras da vida pública e educacional bra-sileira, procurara, em 1932, despertar a nação para a importância da reforma educacional, dirigindo “ao povo e ao governo” uma propos-ta de “reconstrução educacional no Brasil”, afirmando a importância e a gravidade do “problema educacional” dentro da “hierarquia dos problemas nacionais”, afirmando a impossibilidade de “desenvolver as forças econômicas ou de produção sem o preparo intensivo das 10 HAIDAR, Maria de Lourdes Mariotto. O Ensino Secundário no Império Brasileiro. São Paulo: Editorial Grijalbo, 1972, p.189.11 ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 43.

28

forças culturais e o desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa que são os fatores fundamentais do acréscimo de riqueza de uma sociedade”. Na avaliação dos signatários, após 43 anos de República, ainda não se lograra “criar um sistema de organização escolar”, permanecendo “tudo fragmento e desarticulado” na esfe-ra das iniciativas de política educacional. Propunha-se, então, uma política com “visão global do problema, em todos os seus aspec-tos”. Esse “estado antes de inorganização do que de desorganização do aparelho escolar, (tem sua causa principal) na falta, em quase todos os planos e iniciativas, da determinação dos fins da educa-ção (aspecto filosófico e social) e da aplicação (aspecto técnico) dos métodos científicos aos problemas de educação”12. Propunham um “movimento de renovação educacional” para a reconstrução da área, buscando “transferir do terreno administrativo para os planos político-sociais a solução dos problemas escolares”. Essa “campanha de renovação educacional” procurou “formular, em documento público, as bases e diretrizes do movimento”. O docu-mento apresentava, assim, um programa para uma “nova política educacional”, formulada a partir de “uma visão global do problema educativo”. E, na seqüência, abordaram as finalidades da educação, o problema dos valores (valores mutáveis e valores permanentes), o papel do Estado em face da educação, caracterizando a esta como “uma função essencialmente pública”, propondo o “princípio da es-cola para todos” – “escola comum ou única” – de sorte a “não admitir dentro do sistema escolar do Estado, quaisquer classes ou escolas a que só tenha acesso uma minoria, por um privilégio exclusivamen-te econômico”.

Afirmam-se, então, os princípios da laicidade, da gratuidade, da obrigatoriedade e da coeducação (educação conjunta de estu-dantes de ambos os gêneros), da unidade da função educacional, da sua autonomia, da descentralização. Discutem-se, ainda, importan-tes elementos metodológicos, fundamentado o “processo educati-vo” nos conceitos e fundamentos da “educação nova”. Enfatizava-se a importância “do estudo científico e experimental da educação” por oposição do “empirismo” reinante (e é dessa época a criação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Tei-xeira – INEP). Propunha-se um “plano de reconstrução educacional” que representasse uma “radical transformação da educação públi-ca em todos os seus graus”, compreendo “dos jardins de infância à Universidade”, passando por uma escola secundária “unificada para se evitar o divórcio entre os trabalhadores manuais e intelectuais”, tendo “uma sólida base comum de cultura geral”, para “posterior bifurcação em secção de preponderância intelectual (...) e em sec-ção de preferência manual, ramificada por sua vez em ciclos, esco-las ou cursos destinados à preparação às atividades profissionais...” Propunha-se uma vigorosa reforma da Universidade, dando-se es-pecial atenção à formação dos “melhores talentos”, indispensáveis “à formação das elites de pensadores, sábios, cientistas, técnicos e educadores” indispensáveis para “o estudo e solução” dos diferentes problemas nacionais.

Finalmente, enfatizava a importância da formação dos pro-fessores, em todos os níveis, preconizando “o princípio da unidade 12 GHIRAREDELLI JR., Paulo. História da Educação. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1994. p.54 e ss.

29

da função educacional” contra a “tradição das hierarquias docentes baseadas na diferenciação dos graus de ensino”, que diferenciava “mestres, professores e catedráticos”, fundamental para a “liberta-ção espiritual e econômica do professor, mediante uma formação e remuneração equivalentes que lhes permita manter, com a efi-ciência no trabalho, a dignidade e o prestígio indispensáveis aos educadores”.

Após abordar o “papel da escola na vida e a sua função so-cial”, o documento conclui afirmando “a disposição obstinada” de enfrentar as dificuldades apontadas, a disposição de lutar “na defe-sa de nossos ideais educacionais”, para realizar “uma nova política educacional, com sentido unitário e de bases científicas”. Tratava-se, para os signatários, de “uma missão a cumprir”, contra a indiferença e a hostilidade, “em luta aberta contra preconceitos e prevenções enraizadas”, convictos de que “as únicas revoluções fecundas são as que se fazem ou se consolidam pela educação”. Este era, dentre todos os deveres do Estado, ”o que exige maior capacidade de de-dicação e justifica a maior soma de sacrifícios, aquele com que não é possível transigir sem a perda irreparável de algumas gerações...” Trata-se de um texto histórico, riquíssimo, que merece ser conhecido em detalhes. Seus efeitos se farão sentir na Constituição de 1934, que, pela primeira vez, falará em “diretrizes e bases da edu-cação” e proporá a realização de um plano nacional de educação. E então deslancha um processo de reforma e estruturação do sistema educacional brasileiro. Esse processo vai prosseguir durante todo o período Vargas, completando-se em 1946. Na verdade, serão bem quinze anos de reformas, começando com a do ensino superior, em 1931 (mas que acontecerá de fato na criação da USP em 1934), pas-sará pelas Leis Orgânicas do Ensino Secundário, Industrial, Comer-cial e Agrícola entre 1942 e 1943, e terminará com as Leis Orgânicas do Ensino Primário e do Ensino Normal, em 1946. Registre-se, consi-derando o ensino primário, que sua normatização data de 1946, ou seja, tem, no ano de 2001, apenas 55 anos de vigência. Foi na Cons-tituição de 1934 que a expressão “diretrizes e bases da educação nacional”, criada pelos pioneiros, se incorporou definitivamente no vocabulário educacional brasileiro, enquanto expressão que, na re-alidade, vai se efetivar através das leis orgânicas, já mencionadas, e na própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, cujo pro-jeto, de 1948, após a Constituição de 1946, foi aprovada em 1961, para ser reformada em 1971, até chegar à atual Lei 9394/96, sob cuja égide nos encontramos.

A institucionalização, pois, de um sistema nacional de educa-ção, apoiado numa política nacional consistente, democraticamen-te elaborada, tem apenas cerca de 40 anos no Brasil. Pois foi a partir de tal período, 1961, que, efetivamente, se “organizou” o sistema de forma consistente e coerente. Os próximos módulos abordarão a forma e os termos em que este sistema se organizou, tanto no plano filosófico, macro político e administrativo, quanto no plano pedagógico propriamente dito, e na esfera micropolítica, o plano dos estabelecimentos de ensino.

30

ATIVIDADES SUGERIDAS

Em função de seu interesse particular, selecione um artigo em 500 Anos de Educação no Brasil e comente-o, levando em conta os conceitos da primeira parte do módulo.

Procure entrar em contato com a Fundação Cultural Palmares (www.minc.org.br/fcp/) e pesquise sobre as características das culturas africanas que vieram para o Brasil com os escravos.

Atualize seus conhecimentos sobre as culturas indígenas, seus povos, sua sabedoria. Busque em www.cimi.org.br e em www.funai.org.br.

Identifique um tema de seu interesse particular (educação fundamental, média, profissional) e pesquise sobre ela, partindo da bibliografia apresentada, mas sem se limitar a ela.

Estude e compare a evolução da questão educacional nas di-ferentes Constituições brasileiras. Interprete as mudanças em fun-ção dos conceitos apresentados como fundamentação. Comple-mente com outras leituras e teorias, se o desejar.

31

32

33

2 Conceitos, finalidades e orga-

nização da educação nacional

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

- Analisar os objetivos propostos para cada nível de ensino;- Analisar tais formulações numa perspectiva filosófico-crítica;- Identificar a problemática fundamental da organização do sistema de ensino em seus diferentes níveis e modalidades;

34

1 Conceito, finalidades, objetivos e macro-organização

Considerando a institucionalização da educação como par-te do processo de instituição da sociedade, e sendo a sociedade auto-instituição, seu destino depende de nós. Dito de outra forma, a sociedade não é algo pronto, acabado de uma vez por todas. Ao contrário, é algo que se faz e se refaz permanentemente. É algo por-ser, por-fazer. E que cabe aos cidadãos definirem o rumo que deve tomar, antecipando o tipo de sociedade que querem ter, querem construir, pro-jetando, isto é, antecipando o futuro que desejam. Daí a sociedade poder ser considerada um pro-jeto: algo a ser cons-truído segundo nossos interesses, desejos e necessidades. Como se fora nossa casa. Ou talvez, nosso barco comum, na travessia da vida.

Qual educação, então? Bem, isso depende de qual sociedade queiramos. De onde podemos dizer que a cada projeto de sociedade corresponde um projeto de educação. Esta postura define o caráter da educação: uma educação que assume seu caráter radicalmente político, pois que define os valores em torno dos quais a sociedade, ou seja a polis, se organiza? Ou uma educação doméstica, serva da ordem existente, posta exclusivamente a seu serviço, apenas pre-paradora da mão-de-obra funcionalmente necessária e, em tem-pos capitalistas, preocupada com a educabilidade como condição da empregabilidade que depende da produtividade que dispensa critérios de estabilidade no trabalho?

Dentro de tal perspectiva é que vamos recuperar as disposi-ções das leis que regeram nossa educação. São elas, principalmen-te, as leis nº 4024 (de dezembro de 1961), nº 5692 (de agosto de 1971) e nº 9394/96 (de dezembro de 1996).

1.1 O conceito de educaçãoA Lei 9394/96 começa situando a educação escolar dentro

de um quadro no qual aparece a educação como fenômeno an-tropológico fundamental que se desenvolve “na vida familiar, na convivência humana, no trabalho”, nos movimentos sociais, nas or-ganizações da sociedade civil, nas manifestações culturais (art.1º). E, por isso, dispõe que a educação escolar deva estar vinculada ao mundo do trabalho e à prática escolar (§ 2º).

1.2 As finalidades da educação escolarOs últimos cinqüenta anos da educação escolar brasileira

(pois o projeto da LDB apareceu em 1948) assim apresentam as finalidades educacionais. Na Lei n.º 4024/61, nós as encontramos assim formuladas:

“Art.1º: A educação nacional, inspirada nos ideais de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por fim:

a) a compreensão dos direitos e dos deveres da pessoa humana, do cidadão, do estado, da família e dos demais grupos que compõem a comunidade;

35

b) o respeito à dignidade e às liberdades fundamentais do ho-mem;

c) o fortalecimento da unidade nacional e da solidariedade in-ternacional;

d) o desenvolvimento integral da personalidade humana e a sua participação na obra do bem comum;

e) o preparo do indivíduo e da sociedade para o domínio dos re-cursos científicos e tecnológicos que lhes permitam utilizar as possibi-lidades e vencer as dificuldades do meio;

f) a preservação e expansão do patrimônio cultural;g) a condenação a qualquer tratamento desigual por motivo de

convicção filosófica, política ou religiosa, bem como a quaisquer pre-conceitos de classe ou raça.13

O ensino primário, por sua parte, deveria “ter por fim o desen-volvimento do raciocínio e das atividades de expressão da criança, e a sua integração no meio físico e social”. Já a educação de grau médio, “em prosseguimento à ministrada na escola primária, desti-na-se à formação do adolescente”. E ao falar de educação da criança e, logo a seguir, do adolescente, o texto explicita um importante ele-mento: o da consideração do desenvolvimento humano, bio-psico-sociológico.

Em agosto de 1971, surge a Lei nº 5692. Estamos novamente em plena ditadura, o Brasil sendo governado pelo General Emílio G. Médici, no período mais difícil do último regime militar. E o que encontramos? Primeiramente, temos a Constituição outorgada pe-los militares em 1969, cujo artigo 176 dispõe que “a educação, ins-pirada no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e solidariedade humana, é direito de todos e dever do Estado, e será ministrada no lar e na escola”. São mantidos praticamente na ínte-gra os Títulos I a V da lei 4024/61. E se lhes acrescenta o seguinte objetivo geral:

“O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas po-tencialidades como elemento de auto-realização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania” (Lei 5692, art.1º.)

A finalidade da educação, de acordo com a Lei 9394/96, é “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 2º).

1.3 A educação como direito e deverApresentada a grande declaração de intenções, a Lei de Di-

retrizes e Bases da Educação Nacional, n.º 4.024, de dezembro de 1961, passa a tratar do direito à educação, do conceito de liberdade do ensino. Este último item certamente foi o mais polêmico, pois definia a participação do Estado e dos setores privados e, mais que isso, privatistas.

De acordo com a Lei 9394/96, entre os princípios a serem observados no ensino cabe destacar aqueles que dispõem sobre 13 VILLALOBOS, João. Lei de diretrizes e Bases da Educação Nacional. São Paulo: Pio-neira, 1961, p. 225.

36

“igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, o da “garantia do padrão de qualidade”, a “valorização da experiência extra-escolar” e a “vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais” (art. 3º). No artigo 4º cabe destacar, entre os indicadores de cumprimento do dever do Estado para com a edu-cação escolar pública, a garantia de “oferta de ensino noturno re-gular adequado às condições do educando” (inciso VI), “ a oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com características e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola” (inciso VII).

1.4 As atribuições institucionaisPela Lei 4024/61, o item referente à administração do ensi-

no destacava serem do MEC as atribuições do Poder Público em matéria de educação e constituía o Conselho Federal de Educação. Definia os sistemas de ensino, destacando o papel da União, dos Estados e do Distrito Federal na organização dos mesmos. Registre-se, aqui, o aparecimento explícito da competência dos Estados e do Distrito Federal para autorizar o funcionamento dos estabele-cimentos de ensino primário e médio (quando não pertencentes à União), bem como a competência de reconhecê-los e inspecioná-los. A Lei 5692/71 pouco se detém sobre a questão da organização político-administrativa em nível macro.

Em compensação, a Lei 9394/96, elaborada num contexto mais democrático e de maior debate e participação, amplia con-sideravelmente este tópico. O assunto é tratado no Título IV, cujo título é exatamente Da Organização da Educação Nacional. E começa falando das atribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que devem “em regime de colaboração, organizar os respectivos sistemas de ensino”. A constituição de tais sistemas é apresentada nos artigos 16, 17 e 18, e compreendem as respectivas instituições de ensino (estabelecimentos escolares) e os órgãos (instâncias gestoras) de educação. À União cabe “a coorde-nação (grifo meu) da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo a função normativa, redis-tributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais”. Mas os sistemas de ensino, respeitadas as diretrizes da lei, terão li-berdade para organizar-se. No artigo 9º detalha as atribuições da União, cabendo destacar a de elaborar o Plano Nacional de Edu-cação, prestar assistência técnica e financeira às demais instâncias, estabelecer diretrizes para as diferentes modalidades de ensino, manter um sistema de informações sobre a educação, assegurar um processo nacional de avaliação do rendimento escolar em to-dos os níveis de ensino, entre outras. Aos Estados (artigo 10) cabe a responsabilidade de “organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais de seus sistemas de ensino”, definir juntamente com os municípios as formas de cooperação para oferta do ensino fundamental distribuindo as responsabilidades de forma propor-cional, considerando o tamanho da população e a disponibilidade de recursos financeiros disponíveis em cada esfera, “elaborar e exe-cutar políticas e planos educacionais, levando em conta as diretri-zes nacionais e buscando integrar suas ações com as dos municí-

37

pios...”. É explicitamente atribuído aos Estados a responsabilidade por “assegurar o ensino fundamental e oferecer, com prioridade, o ensino médio”. Aos Municípios (artigo 11) cabe a incumbência de cuidar dos órgãos e instituições oficiais de seu sistema de ensino, integrando-se às políticas e planos formulados pela União e pelos Estados, baixar as normas complementares necessárias ao sistema municipal, “exercer a ação redistributiva em relação às suas escolas”, e “oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prio-ridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as ne-cessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manu-tenção e desenvolvimento do ensino”. Registre-se a possibilidade aberta de municípios optarem por se integrar ao sistema estadu-al, compondo “um sistema único de educação básica”. E quanto ao Distrito Federal? “Ao Distrito Federal aplicar-se-ão as competências referentes aos Estados e Municípios”, diz o parágrafo único do arti-go 10.

Novidade importante na atual lei da educação nacional é a consideração, entre os atores do ensino, dos “estabelecimentos de ensino” (artigo 12) e, principalmente, dos “docentes” (artigo 13). Relativamente aos estabelecimentos de ensino, cabe-lhes (sempre respeitadas as normas comuns e as de seu sistema) “elaborar e exe-cutar sua proposta pedagógica”; “administrar seu pessoal e seus re-cursos materiais e financeiros”; “assegurar o cumprimento dos dias letivos e horas-aula estabelecidos”; “velar pelo cumprimento do pla-no de trabalho de cada docente”; “prover meios para a recuperação dos alunos de menor rendimento”; “articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de integração da sociedade com a escola”; “informar os pais e responsáveis sobre a freqüência e o ren-dimento dos alunos, bem como sobre a execução de sua proposta pedagógica”.

Quanto aos docentes, nos termos legais, “incumbir-se-ão de: i) participar da elaboração da proposta pedagógica do estabeleci-mento de ensino; ii) elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; iii) zelar pela aprendizagem dos alunos; iv) estabelecer estratégias de recupera-ção para os alunos de menor rendimento; v) ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidas, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvi-mento profissional; vi) colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade”.

Trata-se, certamente, ainda que se possa imaginar outras for-mas de apresentar o papel dos estabelecimentos e dos docentes, de um reconhecimento de tais atores, institucional e coletivo, e in-dividualizados, como sujeitos do processo, resgatando em parte o ideário dos Pioneiros, no Manifesto de 1932. E certamente condi-zente, em boa parte, com a constituição dos movimentos docentes nos diferentes níveis de ensino, associados em sindicatos e outras formas de representatividade e participação.

Nessa linha deve-se entender o espaço (entre)aberto para a gestão democrática “do ensino público na educação básica” (e não na superior), ainda que “de acordo com as suas peculiaridades” e

38

“conforme os princípios” de participação dos profissionais da edu-cação na elaboração do projeto pedagógico da escola e da partici-pação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes (artigo 14, incisos I e II). Na mesma direção afirma-se que “os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares pú-blicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, ob-servadas as normas gerais de direito financeiro público”(artigo 15). São as marcas do “movimento democrático”, da dinâmica social-histórica pela realização do projeto de autonomia abrindo brechas e caminhos por entre as formas instituídas de formular as políticas educativas e gerir as organizações correspondentes.

A velha e inicial diferenciação entre público e privado, que tanta celeuma provocou quando da discussão da lei 4024/61, nos anos sessenta, permanece intacta. O artigo 19 contempla uma clas-sificação das instituições de ensino, nos diferentes níveis, entre “pú-blicas” (“assim entendidas as criadas ou incorporadas, mantidas e administradas pelo Poder Público”), e “privadas” (“assim entendidas as mantidas e administradas por pessoas físicas ou jurídicas de di-reito privado”). As privadas, por sua vez, (de acordo com o artigo 20, incisos I a IV) se enquadram em diferentes categorias: i) parti-culares em sentido estrito (aquelas instituídas e mantidas por uma ou mais pessoas jurídicas de direito privado); ii) comunitárias (“ins-tituídas por grupos de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas, inclusive cooperativa de professores e alunos que incluam na sua entidade mantenedora representantes da comunidade”); iii) confessionais (“instituídas por grupos de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas que atendem a orientação confessional e ideologia específicas”, além de atenderem ao disposto no inciso anterior, ou seja, incluírem representantes da comunidade em sua entidade mantenedora); iv) filantrópicas (na forma da lei).

As instituições privadas, entretanto, integram os sistemas de ensino. As de ensino superior estão compreendidas no Sistema Fe-deral de Ensino; as de ensino fundamental e médio, aos sistemas de ensino dos Estados e do Distrito Federal; as de educação infan-til, aos sistemas municipais. Como quer que seja, ao final do século XX definem-se as responsabilidades institucionais em matéria de educação, pelo menos no plano político-administrativo. Lembre-mos que apenas com a proclamação da República foi criado o Mi-nistério da Instrução, correios e Telégrafos, de curta duração, tendo os assuntos da educação passado ao Ministério da Justiça. Apenas em 1930 vai ser recriado, como Ministério da Educação e Saúde, desvinculando-se deste apenas depois de 1950, tendo passado por um sem-número de reformas, associando-se ora à Cultura, ora ao Desporto. Resta ver quem paga a conta!

1.5 O financiamento da educaçãoIdéias generosas ficam no papel se não são acompanhadas

de efetiva decisão política. E esta efetividade materializa-se no orçamento: sem dinheiro, nada acontece. Ou muito pouco, pois como adverte um economista muito conhecido, “não há almoço de graça”, muito menos se estrutura uma rede escolar sem fundos financeiros.

39

A educação escolarizada no Brasil começou privatizada, sob responsabilidade dos jesuítas, com recursos providos pelo Rei de Portugal. De início era a redízima, ou uma décima parte dos dízimos, ou impostos, que iam para a Corte. Segundo João Monlevade14, tais recursos logo começaram a faltar, mas os padres da Companhia de Jesus já haviam constituído um patrimônio para a ordem, em terras, gados e produção, que fez dela uma importante companhia comer-cial, representando cerca de 25 por cento do PIB colonial no sécu-lo XVIII, segundo historiadores de nossa economia. A Companhia, portanto, era capaz de sustentar-se enquanto ordem, como as “de-zenas de escolas de primeiras letras” que funcionavam para atender populações de periferias e as missões indígenas (constituindo uma rede por todo o território) e os Colégios principais: Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo. Nosso “sistema educacional” começou privatiza-do e em moldes empresariais... De qualquer modo, havia uma sis-tema em constituição e, lembremos sempre, as reduções jesuíticas das Missões, nos dão uma amostra da qualidade de tal formação.

Com a reforma pombalina, apenas nos anos de 1770, é im-plantado o “subsídio literário” que deverá financiar as famosas “au-las régias”, denominação pomposa para designar “aulas avulsas”, ou seja, o financiamento de professores “leigos”, figura já comentada, que vai abrir classes nos desvãos das igrejas e salões, ensinando a título precário e particular... (Ainda no início dos anos 1950, na mi-nha terra, em Santa Catarina, havia remanescentes dessa categoria, deslocando-se pelas fazendas da região serrana para ensinar aos fazendeiros e seus filhos. Meus antepassados todos foram “escolari-zados” (?!) dessa forma.)

No Império, também já o vimos, o governo Central cuidava do ensino superior e do Colégio Pedro II, situado no município da Corte. Tudo o mais era responsabilidade das províncias, equivalen-do a dizer que nas mais ricas estruturou-se um embrião de sistema, enquanto nas mais pobres praticamente não se estruturou sistema nenhum à míngua de recursos, dando início às “disparidades regio-nais” tão bem conhecidas contemporaneamente. Na Primeira Re-pública, nada de relevante aconteceu. É nos anos 1930, a partir do movimento dos educadores congregados na Associação Brasileira de Educação (ABE) – movimento de que o Manifesto é uma das ex-pressões, pois houve várias Conferências realizadas sob sua égide –, que se busca definir uma política de financiamento, propondo-se a criação de “fundos” especiais para a educação, “para a manuten-ção e o desenvolvimento dos sistemas educacionais”. Começam a surgir as propostas de instituição de índices fixos para tal finalida-de. Assim, a Constituição de 1934 vai determinar que a União e os municípios deveriam reservar um mínimo de 10% do orçamento anual para a educação, devendo os Estados e o Distrito Federal re-servarem 20%. A Constituição ditatorial de 1937, porém, faz disso letra morta, ao desconsiderar o assunto. Ele será retomado na Cons-tituição de 1946, dispondo (artigo 169) que a União aplicaria “nun-ca menos de 10% , e os Estados, o Distrito Federal e os municípios nunca menos de 20% da renda resultante dos impostos...”. O texto da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, apro-vada em 1961, reitera essa responsabilidade, aumentando, porém, 14 MONLEVADE, João. Educação Pública no Brasil: contos e descontos. Ceilândia, DF: Idea Editora, 1997.

40

para 12% a contribuição da União (artigo 92). Este é um capítulo importante na história da política educacional brasileira, cheio de idas e vindas. De 1961 até 1988, data da última Constituinte, outras iniciativas têm ocorrido. Em 1964, foi criado o “salário-educação” (Lei nº 4.420) e, em novembro de 1968, a Lei nº 5.537 cria o Fun-do Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), destinado a captar recursos financeiros para o financiamento de projetos de en-sino e pesquisa, incluindo alimentação escolar e bolsas de ensino. Seus recursos viriam do orçamento da União, de incentivos fiscais, do Fundo Especial da Loteria Esportiva (20%), do salário-educação, e outras fontes. Destaque-se ainda, no período, a instituição da Emenda Calmon, remetendo ao nome de seu autor, o Senador João Calmon, que lutou bravamente, a fim de ampliar os valores para 18%, no caso da União, e 25% nos demais casos. Isso como teto mí-nimo, pois há Estados e municípios que recolhem mais que isso. A atual LDB (Lei nº 9.394/96) dedica dez artigos ao tema do financia-mento, desdobrando o que está contido na Constituição vigente. Assim, há: i) recursos provenientes dos impostos próprios a cada esfera administrativa (União, Estados, Distrito Federal e Municípios); ii) receitas de transferências constitucionais que a União faz às de-mais instâncias; iii) receitas do salário-educação e de outras contri-buições sociais; iv) outros recursos previstos em lei.

Sem nos determos, por ora, nos detalhes das transações fi-nanceiras da movimentação dos recursos (que não é nada trivial), é fundamental estar atento ao que se pode, ou não, considerar como “despesas de ensino”. O artigo 70 explicita o que se considera como “manutenção e desenvolvimento do ensino” (em todos os níveis): “I) remuneração e aperfeiçoamento do pessoal docente e demais profissionais da educação; II) aquisição, manutenção, construção e conservação de instalações e equipamentos necessários ao ensino; III) uso e manutenção de bens e serviços vinculados ao ensino; IV) levantamentos estatísticos, estudos e pesquisas visando precipua-mente ao aprimoramento da qualidade e à expansão do ensino; V) realização de atividades-meio necessárias ao funcionamento dos sistemas de ensino; VI) concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas; VII) amortização e custeio de operações de crédito destinadas a atender ao disposto neste artigo (manuten-ção e desenvolvimento do ensino!!); VIII) aquisição de material di-dático-escolar e manutenção de programas de transporte escolar”. Esta foi uma definição importante, pois até então a Lei 5692 falava em aplicação “preferencialmente na manutenção e desenvolvimen-to do ensino oficial”, deixando margem aos mais estapafúrdios usos dos recursos públicos destinados à educação, em todos os níveis administrativos. Por isso, é igualmente importante a definição, con-tida no artigo 71, daquilo que “não constitui despesas de manuten-ção e desenvolvimento do ensino”:

“I) pesquisa, quando não vinculada às instituições de ensino, ou, quando efetivadas fora dos sistemas de ensino, que não vise, precipua-mente, ao aprimoramento de sua qualidade ou à sua expansão;

II) subvenção a instituições públicas ou privadas de caráter assis-tencial, desportivo ou cultural;

III) formação de quadros especiais para a administração públi-

Acesse: portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdfe leia na íntegra a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

41

ca, sejam militares ou civis, inclusive diplomáticos;IV) programas suplementares de alimentação, assistência mé-

dico-odontológica, farmacêutica e psicológica, e outras formas de as-sistência social;

V) obras de infra-estrutura, ainda que realizada para beneficiar direta ou indiretamente a rede escolar;

VI) pessoal docente e demais trabalhadores da educação, quan-do em desvio de função ou em atividade alheia à manutenção e desen-volvimento do ensino”.

Resta, pois, cumprir as determinações dos artigos 72 e 73, acompanhando os balanços do Poder Público, fiscalizando as pres-tações de conta, acompanhando o estabelecimento dos “padrões mínimos de oportunidades educacionais para o ensino fundamen-tal, baseado no cálculo do custo mínimo por aluno, capaz de asse-gurar ensino de qualidade”. Da mesma forma, define-se a respon-sabilidade redistributiva da União e dos Estados, cabendo a eles exercer uma “ação supletiva e redistributiva (...) de modo a corrigir, progressivamente, as disparidades de acesso e garantir o padrão mínimo de qualidade de ensino”, valendo-se esta ação de uma “fór-mula de domínio público” que deve incluir a capacidade de atendi-mento e a medida do “esforço fiscal” das instâncias administrativas envolvidas.

Quase coincidindo com a promulgação da Lei nº 9394/96, foi promulgada a lei nº 9.424/96, que, viabilizada pela emenda consti-tucional 14/96, criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF). Com a criação do Fundo abre-se para cada Estado e município uma conta especial, a ser utilizada exclusivamente nas finalidades mencionadas: manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental. Deixando também de lado, por ora, todo o complicado processo contábil de operacionalização do FUNDEF, cumpre destacar:

i) a exigência de criação, em cada esfera de governo, de um Con-selho responsável pelo acompanhamento e controle social sobre a re-partição, transferência e aplicação dos recursos do Fundo (deveriam ter sido criados até 30 de julho de 1997);

ii) a exigência de um novo (?!) Plano de Carreira e Remuneração do Magistério igualmente em cada esfera de governo e dentro do mes-mo prazo.

Tais recursos devem estar depositados em “conta bancária específica”, junto ao Banco do Brasil, cada esfera de governo deve “comprovar” o cumprimento da aplicação mínima (25% dos recur-sos previstos na Constituição), deve apresentar o Plano de Carreira e Remuneração do magistério, deve fornecer informações solicita-das pelo Censo Educacional. Quanto à aplicação, 60% dos recursos, “pelo menos”, devem ser aplicados “na remuneração dos profissio-nais do Magistério em efetivo exercício de suas atividades no ensino fundamental público” (parte poderia ser aplicado na formação de professores leigos nos cinco primeiros anos a partir de 1º de janeiro de 1997, ou seja, até 31 de dezembro de 2001), e os restantes 40% devem ser aplicados “na manutenção e desenvolvimento do ensino

42

fundamental”, nos termos da Lei, conforme visto acima. Registra-se a importância do controle social do Fundo, atra-

vés de Conselhos, de composição variável de acordo com a esfera de governo, incluindo, no caso da União, representante do Poder Executivo, do Conselho Nacional de Educação, do Conselho Nacio-nal de Secretários de Educação (CONSED), da Confederação Na-cional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), da União dos diri-gentes Municipais de Educação (UNDIME) e de pais de alunos e de professores das escolas públicas do ensino fundamental. Na esfera Estadual (e do Distrito Federal), além da representação dos poderes executivos estadual e municipais, do Conselho de Educação, das respectivas seccionais da UNDIME e da CNTE, igualmente de pais e alunos e represente do MEC, através da Delegacia no Estado. Na esfera municipal, fazem parte representante da Secretaria Munici-pal de Educação, professores e diretores das escolas públicas, pais de alunos e servidores das escolas, além do conselho Municipal, onde houver. Tais Conselhos têm a competência de acompanhar e controlar a repartição, transferência e aplicação dos recursos do fundo, verificar os registros contábeis e demonstrativos gerenciais mensais e atualizados, além de supervisionar o Censo Educacional Anual. E, além disso, deve haver uma outra fiscalização da aplica-ção dos recursos através de órgãos do respectivo sistema de ensino e dos Tribunais de Conta respectivos. Ao Ministério da Educação cabe realizar avaliação periódica dos resultados da Lei, tendo em vista a adoção de medidas operacionais e político-educacionais. O acompanhamento da imprensa diária mostra que este acompanha-mento tem sido também administrativo e jurídico, desencadeando processos de cassação de autoridades responsabilizadas por mal-versação de tais recursos.

Enfim, no plano das disposições legais, houve um avanço inequívoco. Isto não significa, entretanto, que se tenha alcançado a perfeição quer no plano conceitual, quer no plano operacional. No primeiro, critica-se a exclusão da educação infantil e de jovens e adultos, provocando profundas distorções nas redes, em alguns casos. No segundo, a não definição dos critérios para escolha dos representantes, pode deixar os executivos à vontade para indicar exclusivamente pessoas “de confiança” dos dirigentes, anulando a intenção da legislação. Além disso, há quem critique o plano em seu conjunto, por ter operado apenas um remanejamento dos re-cursos disponíveis, penalizando as unidades mais ricas em benefí-cio de outras menos aquinhoadas, sem se haver preocupado em criar novos recursos. Situação que pode ser sintetizada na expres-são popular, “despe-se um santo para vestir outro”, nivelando-se os sistemas “por baixo”. Daí a existência de projetos alternativos, tra-mitando no Congresso Nacional, como o do FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valoriza-ção dos Profissionais da Educação), propondo mudanças para seu aperfeiçoamento.

Finalmente, cabe um registro: se a educação escolarizada no Brasil foi instituída como um sistema privado, a atualização do sis-tema tem pagado sempre um tributo a essa condição, numa so-ciedade que, além de ser capitalista, é igualmente estamental e patrimonialista. Assim, o artigo 77 da LDB estabelece que “os recur-

43

sos públicos são destinados às escolas públicas, (mas!) podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas que: I) comprovem finalidade não-lucrativa e não distribuam seus resulta-dos, dividendos, bonificações, participações ou parcela de seu patri-mônio sob nenhuma forma ou pretexto; II) apliquem seus excedentes financeiros em educação; III) assegurem a destinação de seu patrimô-nio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Po-der Público, no caso de encerramento de suas atividades; IV) prestem contas ao Poder Público dos recursos recebidos”. Tais recursos podem ser aplicados, ainda nos termos da lei, em bolsas de estudo para a educação básica para quem demonstre insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública de domicílio do educando, ou, ainda, em atividades universitárias de pesquisa e extensão. Uma importante janela permanece aberta ao setor privado. Como quer que seja, o texto da lei é resultado paten-te de um embate vivo e constante entre duas forças em movimen-to: de um lado, os defensores da escola pública, na esteira de Anísio Teixeira, de Florestan Fernandes e dos Pioneiros da Educação Nova; de outro, os arautos da escola privada, da educação livre, que vem dos jesuítas, dos outros educadores privados, de Leôncio de Carva-lho no Império, de Rivadávia Correia na Primeira República, da con-cepção liberal, que persiste entre nós atualizada em sua forma de neo-liberalismo, consentânea com uma sociedade capitalista que faz profissão de fé da “livre iniciativa” e da liberdade de escolha da educação a ser ministrada aos filhos. Um debate aberto e em pleno movimento.

Um capítulo igualmente importante da institucionalização da educação escolarizada é o referente à definição dos níveis e das modalidades de educação e de ensino. É o que consideraremos na próxima seção.

1.6 A definição dos níveis e modalidades de ensinoPara melhor situarmos a análise e a interpretação do que se-

gue, e sem nos determos em maiores elementos históricos, convém situarmos a institucionalização das diferentes modalidades de en-sino a partir das “leis orgânicas”, ordenadas pelo ministro Gustavo Capanema, durante o Estado Novo, na ditadura getulista, todas im-plantadas através de decretos-lei. Daí também a denominação de Reformas Capanema.

O Brasil vivia um período de modernização, de industrializa-ção, de urbanização, constituía-se cada vez mais como nação ca-pitalista moderna, plena. E o Estado brasileiro era figura-chave na implementação de tal processo, juntamente com a organização dos industriais, dos comerciantes , e dos próprios trabalhadores. Pois bem, a essa altura, depois do barulho reformista, mas pouco signifi-cativo de Francisco Campos em 1931, estamos em 1942, quando as ditas leis orgânicas emergem. Por elas teremos o quadro apresenta-do na página seguinte.

Os traços característicos são pelo menos cinco. Primeiramen-te, a estruturação do ensino primário, pela primeira vez em nível federal, um dado muito positivo. Em segundo lugar, a demarcação muito clara entre o ensino secundário (“destinado a formar as in-dividualidades condutoras”, segundo a exposição de motivos do

44

ministro Capanema) e as modalidades técnicas, destinadas aos fi-lhos dos trabalhadores, segundo a mesma exposição. Em terceiro lugar, a restrição à passagem das modalidades técnicas para o se-cundário, bem como a restrição ao acesso á diversidade de cursos superiores. A organização da educação, sob este aspecto, reforçava a institucionalização da dualidade básica da sociedade capitalista: herdeiros legítimos do capital e do capital cultural, para usar termos de Pierre Bourdieu, de um lado, os não legítimos herdeiros, os filhos dos trabalhadores; de outro, reproduzindo a divisão e a assimetria fundamental da sociedade e seus tipos característicos, complemen-tares e necessários, nos termos de C. Castoriadis. Em quarto lugar, a centralização: para todos os níveis e modalidades, as instruções derivavam do Ministério da Educação, no Rio de janeiro. Em quinto lugar, registre-se que a reforma do ensino normal e do ensino pri-mário só saem em 1946, bem depois, portanto, dos demais níveis de ensino, tendo a reforma universitária sido a primeira dentre todas. Assim, o ensino em todos os níveis e modalidades se estruturava no Brasil pela primeira vez e de forma padronizada, homogeneizada para todo o território, apesar de todas as suas variações culturais e históricas. E renasce daí a luta. Num sentido, pela eliminação das barreiras e restrições de fluxo entre níveis e modalidades. Noutro, pela descentralização. Uma lei de 1953 vai eliminando as barreiras entre níveis e modalidades. E em 1948, após a Constituinte de 1946, sai o ante-projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio-nal, propondo mudanças em diferentes pontos, democratizando e descentralizando. Gustavo Capanema, então na Câmara Federal, e na Comissão de Educação, vai dar um parecer sobre o ante-projeto reafirmando uma concepção centralizadora de “sistema” e vai pro-duzir o engavetamento da proposta, que só vai ser aprovada em 1961, treze anos depois.

45

Quadro 1

Organização das modalidades e níveis de ensino confor-me as “leis orgânicas” editadas na Reforma Capanema no período 1942/1946.

1) Ensino primário:a) fundamental: em quatro anosb) complementar: em um anoc) supletivo: dois anos (para adolescentes e adultos).

2) Ensino secundário:a) primeiro ciclo: ginásio (quatro anos);b) segundo ciclo: colégio (três anos), com duas modalidades: i) clássico (ênfase nas humanidades) e ii) científico (ênfase nas ciências naturais e exatas).

3) Ensino industrial:a) primeiro ciclo (em quatro anos) podendo ter os seguintes

níveis:i. ensino industrial básico: formação do artífice;ii. ensino de mestria: formação do mestre;iii. ensino artesanal: aprendizagem inicial, em menos de dois

anos.b) segundo ciclo: ensino técnico (em três anos).

4) Ensino agrícola:a) primeiro ciclo (em quatro anos), tendo os níveis:i. iniciação agrícola (em dois anos);ii. mestria agrícola (em dois anos).b) segundo ciclo: (em três anos): ensino agrotécnico.

5) Ensino comercial:a) primeiro ciclo (em quatro anos): comercial básico;b) segundo ciclo (em três anos): comercial técnico.

6) Ensino normal:a) primeiro ciclo: (em quatro anos): curso normal regional (para

regência do ensino primário);b) segundo ciclo: (em três anos): curso normal (formação do

professor primário).

7) Educação superiora) de acordo com a formação anterior: o ensino secundário

permitia todas as escolhas, o curso normal encaminhava para a Fa-culdade de Filosofia, os cursos técnicos abriam possibilidades nas áreas técnicas correlatas.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promul-gada, finalmente, trinta anos após o Manifesto dos Pioneiros, vai consagrar a organização dos níveis e modalidades de ensino ad-vindo das leis orgânicas, mas eliminando as barreiras de circulação

46

horizontal (entre modalidades) e verticais (entre níveis). Ela intro-duz o conceito de “educação pré-primária” (artigos 23 e 24) a ser ministrada “em escolas maternais ou jardins de infância”, devendo as empresas serem “estimuladas” a organizar e manter tais ativida-des quando empregando mães de menores de sete anos. O ensino primário é mantido com quatro anos, podendo ter mais dois anos de acréscimo, “iniciando os alunos em artes aplicadas adequadas ao sexo e à idade”. Tem por finalidade “o desenvolvimento do racio-cínio e das atividades de expressão da criança, e a sua integração ao meio físico e social” (artigo 25). Segue-se a “educação de grau médio”, que “destina-se à formação do adolescente” (artigo 33), a que se poderia ter acesso mediante “aprovação em exame de ad-missão” (artigo 36). Este ensino médio está estruturado em dois ci-clos, como anteriormente, o ginasial, com quatro anos, e o colegial, com três. Em cada ciclo se mantinha a diversificação entre: secun-dário, técnico (industrial, agrícola e comercial) e de formação do ma-gistério. Porém, houve um esforço por aproximar os currículos ao do secundário, introduzindo-se disciplinas comuns, e permitindo as transferências entre modalidades mediante “adaptação”. Introduz-se o conceito de disciplinas “obrigatórias” (fixadas nacionalmente) e “optativas” (fixadas pelos conselhos estaduais), estas últimas deven-do ser escolhidas pelos estabelecimentos de ensino.

Esta mesma lei trata do ensino superior, atribuindo-lhe os ob-jetivos de “pesquisa, desenvolvimento das ciências, letras e artes e a formação de profissionais de nível universitário” (artigo 66), poden-do ser oferecido em universidades ou estabelecimentos isolados. Poderiam ser oferecidos cursos de “graduação, de pós-graduação, de especialização, aperfeiçoamento e extensão ou quaisquer ou-tros, a juízo do respectivo instituto de ensino...”.

O Título X aborda, ainda que de forma sucinta, a “educação de excepcionais”, dispondo que ela deve, “no que for possível, en-quadrar-se no sistema geral de educação, a fim de integrá-los na comunidade”. As iniciativas “consideradas eficientes” deveriam rece-ber tratamento especial dos poderes públicos, em forma de bolsas de estudo, empréstimo, subvenções.

O “artigo 99”, que ficará muito conhecido e popularizado, dis-porá que “aos maiores de dezesseis anos será permitida a obtenção de certificado de conclusão do curso ginasial, mediante a prestação de exames de madureza (destaque meu) em dois anos, no mínimo, e três anos, no máximo, após estudos realizados sem observância do regime escolar”. E o parágrafo único que lhe segue, acrescenta: “nas mesmas condições permitir-se-á a obtenção do certificado de conclusão de curso colegial aos maiores de dezenove anos”.

A reforma de 1971, com a lei 5692/71, novamente em mo-mento de ditadura política, e de prevalência da tecnocracia como forma de gestão dos negócios públicos, trouxe algumas mudanças. A primeira grande mudança se situa na instituição de novo ordena-mento dos níveis escolares, quando alterou-se a denominação de “ensino primário” e de “ensino médio”, conforme os termos da Cons-tituição de 1967, respectivamente, para “ensino de primeiro grau”, compreendendo oito anos de estudo, e “ensino de 2º grau”, mantida a duração de três anos. A segunda a destacar foi a concepção dos currículos, para ambos os graus, de dois componentes distintos: um

47

núcleo comum e uma parte diversificada. O primeiro, obrigatório em âmbito nacional, e a segunda, diversificada, como diz a expressão, “para atender, conforme as necessidades e possibilidades concretas, às peculiaridades locais, aos planos dos estabelecimentos e às dife-renças individuais dos alunos” (artigo 4º). Instituiu-se, complemen-tarmente, o conceito de “currículo pleno” (artigo 5º, entendido este como a tradução, ao nível de cada estabelecimento, da organização curricular, ordenando “disciplinas, áreas de estudo e atividades” da maneira mais apropriada possível, mas sempre considerando uma outra disposição: aquela que determinava uma composição curricu-lar baseada em “educação geral” e “formação especial”. A “educação geral”, que no primeiro grau deveria ser “exclusiva nas séries iniciais e predominante nas finais”, no segundo grau seria minoritária, pois a este grau deveria ser “preponderante” a “formação especial”. E esta “formação especial” deveria ter, no 1º grau, o caráter de “sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho”, enquanto no 2º grau te-ria como objetivo a “habilitação profissional”. As escolhas, nesta di-mensão, deveriam ser fixadas “em consonância com o mercado de trabalho local ou regional, à vista de levantamentos periodicamen-te renovados”. Estava implantada, dessa forma, através do conceito de “habilitação”, a formação profissional obrigatória para todos os estudantes, numa tentativa de eliminar, por meio da legislação, o tradicional dualismo entre ensino secundário e ensino técnico ou profissional, notadamente no segundo grau, antigo ensino médio. Na argumentação de um dos maiores expoentes dessa reforma, Val-nir Chagas15, tratava-se de um imperativo do projeto nacional, num momento de crescente influência da técnica, estando socialmente apoiada na análise das estatísticas que mostravam as matrículas no conjunto das modalidades de ensino técnico, profissionalizante, crescendo em taxas superiores ao ensino secundário, estrada real preparatória para o ensino superior. Esta certamente terá sido a di-mensão mais polêmica e mais contestada da reforma, a ponto de merecer sucessivos pareceres amenizadores da exigência por par-te do Conselho Federal de Educação, culminando na sua extinção pela Lei nº 7.044, de outubro de 1982, pela qual a preparação para o trabalho “pode(ria) ensejar habilitação profissional, a critério do estabelecimento de ensino” (artigo 4º, parágrafo 2º).

O popular “artigo 99” da Lei 4024 será substituído por um extenso capítulo tratando do “ensino supletivo”. Em quatro longos artigos, trata-se da modalidade de ensino cuja finalidade é “suprir a escolarização regular para os adolescentes e adultos que não a tenham seguido ou concluído na idade própria”, bem como “pro-porcionar, mediante volta à escola, estudos de aperfeiçoamento ou atualização para os que tenham seguido o ensino regular no todo ou em parte” (artigo 24, itens a e b). Ele abrangeria cursos e exames. Para o primeiro grau passou-se a exigir 18 anos para poder concluí-lo e, para o segundo grau, 21 anos.

Não são abordadas a educação infantil, a educação para pes-soas de necessidades educativas especiais. A educação de nível su-perior já fora contemplada em legislação própria, aprovada já em novembro de 1968. É dentro deste quadro que chegamos à atual legislação, aprovada em novembro de 1996. Vejamos de que ma-15 CHAGAS, Valnir. O ensino de 1º e 2º graus: antes, agora e depois? 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1984, ,p. 91 e ss..

48

neira foi (ou está sendo) institucionalizada a educação entre nós ao final do século XX, início do século XXI, entrada do 3º milênio, quan-do está sob nossa responsabilidade direta preparar os destinos da sociedade brasileira, vale dizer, dos nossos descendentes.

No Título V, artigo 21, está definido: “a educação escolar com-põe-se de:

I – educação básica, formada pela educação infantil, ensino

fundamental e ensino médio; II – educação superior.

O texto, pois, apresenta, novamente, a clara concepção de “educação escolar” (e não de ensino!), introduz o conceito de educa-ção básica, ampliando, dessa forma, o entendimento a respeito da “base” educativa que os cidadãos precisam nestes tempos de cons-tituição da sociedade do conhecimento e da informação, mas a di-ferencia segundo três modalidades distintas: infantil, fundamental e média. E usa uma dupla terminologia: ora é educação (escolar, bá-sica, infantil, superior), ora é ensino (fundamental e médio). Certa-mente tal diferença não é gratuita e merece ser comentada.

Ao falar das finalidades da educação básica, o artigo 22 afir-ma serem as de “desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”. Dei-xando de lado a análise das “disposições gerais” relativas a esse ní-vel de educação (que apreciaremos em profundidade no próximo módulo), prosseguiremos nossa análise da “composição” (em nossa perspectiva teórica, “instituição” dos níveis escolares).

A seção II, artigos 29 a 31, trata da educação infantil, nela é definida as finalidades: “o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade”. Dis-põe que ela seja oferecida em creches ou entidades equivalentes para crianças até três anos de idade, e em pré-escolas para as crian-ças de quatro a seis anos. Determina que a “avaliação” deve ser feita “mediante acompanhamento e registro do desenvolvimento (das crianças), sem o objetivo de promoção, mesmo para o ensino funda-mental.” A educação infantil, assim, assume direitos de cidadania, pela primeira vez na legislação, embora acontecendo na prática so-cial desde há pelo menos 70 anos, quando, por exemplo, foram im-plantadas na cidade de São Paulo, pelo escritor Mário de Andrade. E as disposições caracterizam sua dimensão profundamente educa-tiva, e não apenas de ensino, ou “instrutiva”.

A seção III, nos artigos 32 a 34, trata do ensino fundamental. Este, substituindo o anterior 1º grau, deverá ter igualmente dura-ção mínima de oito anos, será obrigatório e gratuito na escola pú-blica. O texto não fala de “finalidades”, mas de “objetivos”. Estes são, pela ordem: “I – o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; II – a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; III – o desenvolvimento da capacidade de

49

aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e ha-bilidades e a formação de atitudes e valores (destaques meus); IV – o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social”. Além de outras disposições referentes à organização do trabalho escolar (que igualmente analisaremos no próximo módulo), o texto estabelece o ensino religioso como de matrícula facultativa nas es-colas, mas como constituindo “disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”, ainda que sendo ofereci-do sem ônus para os cofres públicos e possa ser tanto confessional como inter-confessional, de acordo com as preferências manifesta-das pelos alunos ou por seus responsáveis. Destaquemos, por ora, a determinação de que a jornada escolar deve incluir pelo menos quatro horas de trabalho efetivo “em sala de aula”, devendo ser pro-gressivamente ampliado o período de permanência na escola, bus-cando o tempo integral, segundo os critérios dos sistemas.

O ensino médio é tratado na seção seguinte, a seção IV. Sua duração mínima de três anos é confirmada. E, novamente, volta-se a falar de “finalidades” que são definidas, pela ordem, como: “I – a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiri-dos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento nos estudos; II – a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aper-feiçoamento posteriores; III – o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico; IV – a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina”.

O currículo (artigo 36) deve “destacar a educação tecnológica básica; a compreensão do significado da ciência, das letras e das artes; o processo histórico de transformação da sociedade e da cul-tura; a língua portuguesa como instrumento de comunicação, aces-so ao conhecimento e exercício da cidadania”. Atendida a formação geral do educando, o ensino médio pode igualmente preparar para o exercício de profissões técnicas (parágrafo 2º), tendo todos os cur-sos equivalência legal, habilitando ao prosseguimento nos estudos. Assim, no texto desta lei, o dualismo geral/profissional desaparece, bem como corrigem-se os erros da Lei 5692/71, atuando no sentido da escola única a que os Pioneiros faziam referência nos anos de 1930. A habilitação profissional, bem como outras modalidades de preparação geral para o trabalho “poderão ser desenvolvidas nos próprios estabelecimentos de ensino médio em cooperação com instituições especializadas em educação profissional”. Esta é tratada num capítulo à parte, o capítulo III, do Título V, artigos 39 a 42.

Sob a denominação de educação profissional, é conceitua-da como aquela que “conduz ao permanente desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva” (artigo 39), devendo ser “integrada às diferentes formas de educação, ao trabalho, à ciência e à tecno-logia”. Amplia-se, assim, o entendimento do que seja formação pro-fissional, resgatando a idéia de “aprender fazer”, básica em qualquer sociedade.

O acesso à educação profissional, de acordo com o mesmo

50

artigo, em seu parágrafo único, será possibilitado ao “aluno matri-culado ou egresso do ensino fundamental, médio ou superior, bem como o (a) trabalhador (a) em geral, jovem ou adulto”. Ela pode ser desenvolvida “em articulação com o ensino regular ou por diferen-tes estratégias de educação continuada”, e, ainda mais, “em institui-ções especializadas ou no ambiente de trabalho”. Prevê-se, assim, a existência de escolas técnicas ou profissionais, as quais, de acordo com o artigo 42, “além dos seus cursos regulares, oferecerão cur-sos especiais, abertos à comunidade, condicionada a matrícula à capacidade de aproveitamento e não necessariamente ao nível da escolaridade”.

Mantém-se, desse modo, por outras vias, o dualismo aparen-temente superado nos outros dispositivos. E, mais ainda, uma legis-lação própria, complementar à lei 9394/96, virá certamente acentu-ar tal dualidade. Senão vejamos. De fato, em abril de 1997, quatro meses após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases, o Decreto nº 2208/97, vem regulamentar as disposições referentes à educação profissional, respectivamente o parágrafo 2º do artigo 36 e os arti-gos 39 a 42, que acabamos de analisar. Após definir os objetivos da educação profissional, e o faz retomando os termos da Lei9394/96, determina, no artigo 2º, que “a educação profissional será desenvol-vida em articulação com o ensino regular ou em modalidades que contemplem estratégias de educação continuada, podendo ser re-alizada em escolas do ensino regular, em instituições especializadas ou nos ambientes de trabalho”. E define (artigo 3º) os seus níveis: “I – básico: destinado à qualificação e reprofissionalização de traba-lhadores, independentemente de escolaridade prévia; II – técnico: des-tinado a proporcionar habilitação profissional a alunos matriculados ou egressos do ensino médio (...); III – tecnológico: correspondente a cursos de nível superior na área tecnológica, destinados a egressos do ensino médio e técnico”.

Particularmente importante é a caracterização da educação profissional de nível básico: “modalidade de educação não-for-mal e de duração variável, destinada a proporcionar ao cidadão tra-balhador conhecimentos que lhe permitam reprofissionalizar-se, qualificar-se, atualizar-se para o exercício de funções demandadas pelo mundo do trabalho, compatíveis com a complexidade tecno-lógica do trabalho, o seu grau de conhecimento técnico e o nível de escolaridade do aluno, não estando sujeita à regulamentação cur-ricular”. A conclusão de tais cursos permite conferir o certificado de qualificação profissional. A educação profissional de nível técnico, por sua vez, terá organização curricular “própria e independente do ensino médio, podendo ser oferecida de forma concomitante ou seqüencial a este”. Esta é, porém, uma esfera densamente regula-mentada, diferentemente da anterior, em termos de organização curricular. A expedição do diploma de técnico, porém, requer que o interessado apresente o “certificado de conclusão do ensino mé-dio”. A oferta de tais cursos será feita por “professores, instrutores e monitores selecionados principalmente em função de sua expe-riência profissional, (e) deverão ser preparados para o magistério, previamente ou em serviço, através de cursos regulares de licencia-tura ou de programas especiais de formação pedagógica” (Artigo 8º. Parágrafo 4º).

51

Finalmente, a educação profissional de nível tecnológico deverá ser ministrada em cursos de nível superior, estruturados segundo os diferentes setores da economia, abrangendo áreas especializadas, e oferecendo o diploma de tecnólogo. A Portaria Ministerial n.º 646, de maio de 1997, determina as providências a serem tomadas pelas instituições federais de ensino tecnológico para implantar as determinações do decreto. Uma “Política para a Educação Profissional” foi elabora em conjunto pelo Ministério da Educação (onde há uma Secretaria para o Ensino Médio e Tecnoló-gico - SETEC) e Ministério do Trabalho (onde há uma Secretaria de Formação e Desenvolvimento Profissional). Criou-se um Programa de Reforma da Educação Profissional (PROEP) e um Plano Nacional de Educação Profissional (PLANFOR), que prevê programas nacio-nais, estaduais e emergenciais de formação, a ser financiados com recursos do Fundo de amparo ao Trabalhador (FAT). Registre-se, na oportunidade, a existência continuada do denominado Sistema S (SESI/SENAI, SESC/SENAC, e SENAR) que, desde 1942, desenvolvem sistema de formação profissional em seus diferentes níveis.

Ao concluir os registros sobre a educação profissional, parece oportuno considerar a relevância da matéria. Registre-se uma posi-ção totalmente contrária a todo sistema de profissionalização pre-coce que venha em detrimento da formação básica geral, da “escola única” preconizada pelos Pioneiros. Uma dualidade que seja exclu-dente, apenas perpetua uma situação de dualidade social, enclau-surando as pessoas em estamentos sociais insuperáveis. Por outro lado, cabe lembrar as observações feitas por Georges Snyders16, que enfoca a luta contra os fracassos escolares, a importância de um diálogo cultural, dentro do princípio de continuidade-ruptura, da manutenção inicial e da continuidade da cultura dos alunos, “uma cultura na qual (as crianças das classes operárias) reconhecem seus valores” (p.108). O trabalhador traz uma cultura do trabalho, que faz parte da cultura técnica, que a escola não deve desprezar o trabalho operário e seu saber prático. visto que, este pode ser tomado como ponto de partida, para, a partir dele, realizar as rupturas necessárias e possíveis.

A educação de jovens e adultos é um outro capítulo impor-tante. O poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu, entre tan-tas, uma crônica muito bem-humorada sob o título de Ponto Facul-tativo. E começa a crônica indagando: “saberão os groenlandenses o que é ponto facultativo? Os brasileiros sabem: é feriado obrigatório, no duro”. Não vem ao caso o restante da crônica, interessantíssima. Mas a indagação pode ser parafraseada: saberão os groenlandenses o que é educação de jovens e adultos? Certamente nós, brasileiros, sabemos: é um eufemismo para falar de coisas como o analfabetis-mo crônico, de evasão escolar, de trabalho infantil, de estratégias de sobrevivência dos mais pobres e assim por diante. Senão, veja-mos a conceituação que lhe dá o texto legal: “a educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou conti-nuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade pró-pria” (artigo 37). Trata-se, pois, não de uma concepção de educação continuada ou permanente, a que todos temos direito para con-tinuarmos atualizados face aos desenvolvimentos das tecnologias, 16 SNYDERS, Georges. A Alegria na Escola. São Paulo: Editora Manole, 1988, particu-larmente a segunda parte, capítulo terceiro.

52

às mudanças na sociedade, aos desafios do sistema ocupacional. Trata-se, e o texto é claro, de uma nova (outra?) oportunidade a ser propiciada aos excluídos do sistema, que se encontram nessa con-dição pelas mais diversas razões, muitas delas de responsabilidade da incompetência do próprio sistema escolar, pela sua incapacida-de de adaptação aos diferentes sujeitos-aprendizes. E pela nossa in-capacidade, os docentes, de criarmos uma dinâmica escolar, meto-dológica compatível com esses mesmos sujeitos, freqüentemente vitimados que somos pelas amarras burocráticas e formalistas, fora e dentro de nós mesmos. Por tal razão é fundamental nos atermos ao que dispõe o texto legal, na seqüência:

“Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regu-lar, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as carac-terísticas do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames”(artigo 37, parágrafo 1º).

Os destaques em itálico são meus, evidentemente. E querem realçar que não se trata de oferecer, mais uma vez, a mesma mo-dalidade de escolarização que provavelmente foi responsável pelo afastamento da escola. Estudantes, são alunos, são seres humanos, são sujeitos com direito à palavra, à participação nos projetos pe-dagógicos, dentro das suas condições concretas “de vida e de tra-balho”. Torna-se, evidente, então, a importância de pensar formas alternativas de organização do trabalho educativo (veremos isso no próximo módulo), fugindo ao hábito de repetir pura e simples-mente a programação diária nos cursos noturnos, freqüentemente funcionando de forma extremamente precária. Mais ainda, o texto determina: “o Poder Público viabilizará e estimulará o acesso e a per-manência do trabalhador na escola, mediante ações integradas e complementares entre si” (artigo 37, parágrafo 2º). Este contingen-te de concidadãos deverá ser atendido através de “cursos” e “exa-mes” que, uma vez vencidos, permitirão retomar o curso habitual de escolarização. Para fazer os exames, exigir-se-á, agora, quinze anos para o ensino fundamental e dezoito para o ensino médio, re-tornando ao tradicional, desfazendo a elevação de idade proposta pela Lei 5692. Além disso, registre-se a abertura prevista na legisla-ção para o “reconhecimento” de “conhecimentos e habilidades” ad-quiridos pelos educandos por meios informais, ou seja, no processo educativo que é a vida em sociedade, na família e no trabalho, e não apenas nas organizações escolares (artigo38, parágrafo 2º).

Está posto um grande desafio às unidades escolares, sobre-tudo àquelas comprometidas com um projeto de emancipação hu-mana, de inclusão social dos excluídos, contribuindo para o resgate da dívida social brasileira, pesada herança que trazemos desde, pelo menos, o Marquês de Pombal e sua reforma iluminista que, no caso brasileiro, apagou as poucas luzes que havia. Dentro desta análise, porém, restam ainda quatro aspectos a considerar. O primeiro é o referente à educação especial, o segundo, à educação indígena e o terceiro, à educação a distância e ao ensino superior, às universida-des.

Saiba mais sobre Educa-ção de Jovens e Adultos no portal dos Fóruns de EJA do Brasil:

www.forumeja.org.br

53

A educação inclusiva mereceu três ricos artigos dos legisla-dores (artigos 58, 59 e 60). Inicialmente, ela é conceituada como “a modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessida-des especiais” (artigo 58). O destaque é meu, para enfatizar a idéia de “inclusão”, presente no texto, por oposição a uma concepção es-tigmatizante e marginalizante que talvez prevaleça entre os educa-dores e na própria sociedade. Evidentemente, a legislação prevê a existência, “quando necessário”, de serviços de apoio especializado na escola regular para atender ás peculiaridades dessa clientela. O atendimento fora das classes comuns de ensino regular deverá acontecer em “classes, escolas ou serviços especializados sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possí-vel sua integração nas classes comuns de ensino regular”(parágrafos 1º e 2).

A educação especial é definida como “dever constitucional do Estado”, devendo começar na faixa etária de zero anos, indo até aos seis, ou seja, ainda na educação infantil. O artigo 59 é rico quanto aos dispositivos metodológicos: “I - Currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos, para atender às suas necessidades; II – terminalidade específica para aqueles que não puderam atingir o nível exigido para a conclusão do ensino funda-mental, em virtude de suas deficiências, e aceleração para concluir em menor tempo o programa escolar para os superdotados; III – professores com especialização adequada em nível médio ou su-perior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes mais comuns; IV – educação especial para o trabalho, visan-do sua efetiva integração na sociedade, inclusive condições adequa-das para os que não revelarem capacidade de inserção no trabalho competitivo, mediante articulação com os órgãos oficiais afins, bem como para aqueles que apresentam uma habilidade superior nas áreas artística, intelectual ou psicomotora; V – acesso igualitário aos benefícios dos programas sociais suplementares disponíveis para o respectivo ensino regular”.

Finalmente, ainda que abrindo possibilidade de atuação de instituições privadas “sem fins lucrativos, especializadas e com atu-ação exclusiva em educação especial”, nesse campo de educação, define a lei que “o Poder Público adotará, como alternativa prefe-rencial, a ampliação do atendimento aos educandos com necessi-dades especiais na própria rede pública regular de ensino...”(artigo 60, caput e parágrafo único). Visto em nossa perspectiva histórica, trata-se sem dúvida alguma de um outro notável avanço, uma con-quista importante em termos legais, a ser referendado na prática político-administrativa dos sistemas e na prática pedagógico-admi-nistrativa dos estabelecimentos de ensino, para que o “proclamado” se torne “real”.

A educação indígena e a educação básica do campo foram contempladas na lei. A educação indígena mereceu uma atenção bastante expressiva. Já a educação das comunidades rurais foi tra-tada de maneira mais leve, tendo, por isso, ficado distante do que preconizam os movimentos sociais nessa esfera. A propósito da “educação básica para a população rural”, diz o texto legal, no ar-

54

tigo 28, que “os sistemas de ensino promoverão as adaptações ne-cessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região”, considerando: “I – conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural; II – organização escolar própria, incluindo adequação do ca-lendário escolar ás fases do ciclo agrícola e às condições climáticas; III – adequação à natureza do trabalho na zona rural”. É só isso, mas, convenhamos, não é tão pouco assim, à primeira vista.

Quanto à educação das populações indígenas, ela é mencio-nada obliquamente, quando ao falar do ensino fundamental, no artigo 32, diz, no parágrafo 3º, que o ensino fundamental regular deve ser oferecido em língua portuguesa, “assegurada às comuni-dades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”. E retoma o tema no Título VIII, ao tratar das “disposições gerais” que “o Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assis-tência ao índio, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngüe e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos:

“I – proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recu-peração de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identida-des étnicas; a valorização de suas línguas e ciências;

II – garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso ás informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacio-nal e demais sociedades indígenas e não índias”.

Quinhentos anos após a invasão de sua cultura e de seu espa-ço, os indígenas retomam um movimento de resgate de sua cultura e de sua história, figurando como novos sujeitos social-históricos na sociedade brasileira. E um denso movimento emancipador se constitui em seus meios, com repercussões importantes no campo educativo. Registre-se, entretanto, o movimento “por uma educa-ção básica do campo” que, com apoio da CNBB, do MST, da UnB, da UNESCO e da UNICEF, entre outras entidades, realizou no mês de julho de 1998 uma “Conferência por uma Educação Básica do Cam-po”, tendo como antecedentes preparatórios encontros estaduais onde foram analisados os problemas e as experiências comuns à educação no meio rural. A preocupação, porém, é mais profunda: viabilizar a construção de um novo Projeto Nacional. Um dos com-promissos é o de “colocar os povos do meio rural (por “povos do campo” compreendem-se os indígenas, os quilombolas e os cam-poneses em toda a sua diversidade) na agenda política do país e aprofundar a discussão sobre o lugar do campo em um novo pro-jeto nacional”17.

Uma importante inclusão no texto definidor das diretrizes da educação nacional é aquela que se refere à educação a distância. Ela aprece em múltiplas passagens. A primeira oportunidade é no artigo 32, parágrafo 4º, quando determina que “o ensino fundamen-tal será presencial, sendo o ensino a distância utilizado como comple-mentação da aprendizagem ou em situações emergenciais”. Quando aborda o ensino superior, diz, no parágrafo 3º do artigo 47, que “é 17 KOLLING, Edgar J.; MOLINA, Mônica & NÉRY (Irmão). Por uma educação básica do campo (memória). Brasília: EDUNB/MST/CNBB/UNESCO/UNICEF, s/d., p. 78.

55

obrigatória a freqüência de alunos e professores, salvo nos progra-mas de educação a distância. Depois, já no final, no Título VIII, no-vamente nas “Disposições Gerais”, no artigo 80, diz: “O Poder Públi-co incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada”. Define, na seqüência, que cursos dentro dessa “modalidade” serão organizados com abertura e regime es-peciais, sendo oferecidos “por instituições especificamente creden-ciadas pela União”, a quem cabe regulamentar os requisitos para a realização de exames e registros de diploma relativos a tais cur-sos. Cada sistema de ensino deve, por sua vez, produzir, controlar e avaliar os programas de educação a distância, bem como autorizar sua implementação. E propõe, na seqüência, que tal modalidade receba um tratamento diferenciado em custos de transmissão nos canais comerciais de radiodifusão sonora e de sons e imagens; que lhes sejam concedidos canais com finalidades exclusivamente edu-cativas; que seja reservado tempo mínimo, sem ônus para o Poder Público, pelos concessionários de canais comerciais.

Mais adiante, no Título IX, “Das Disposições Transitórias”, após instituir a Década da Educação, diz, no parágrafo 3º, entre outras coisas, que “cada município e, supletivamente, o Estado e a União, deverá “...prover cursos presenciais ou a distância aos jovens e adul-tos insuficientemente escolarizados”, bem como “realizar programas de capacitação para todos os professores em exercício, utilizando também, para isto, os recursos da educação a distância”.

O quadro legal e o panorama político-administrativo se am-pliaram depois disso. De uma parte, no plano legal, os decretos de nº 2.494/98 e 2.561/98, mais um conjunto de quatro portarias ministeriais e uma resolução da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação buscam explicitar os dispositivos legais, regulamentando-os. O mesmo começa a acontecer ao nível dos Estados e do Distrito Federal. E no plano organizacional e admi-nistrativo, foi criada a Secretaria de Educação a Distância no âmbito do Ministério da Educação, responsável pelo Programa Nacional de Informática na Educação, a partir do qual desencadeou-se uma polí-tica de formação de quadros para integrar os Núcleos de Tecnologia Educativa nas diferentes unidades da Federação, núcleos respon-sáveis pelo apoio às respectivas unidades escolares. O Programa TV Escola mantém uma presença importante no território nacio-nal, equipando as escolas com aparelhos receptores e difundindo uma programação variadíssima para uso dos docentes. Os textos, de modo geral, insistem no papel que a introdução das tecnolo-gias da informação na esfera educativa podem trazer para: ampliar a oferta permanente de programas de formação, sobretudo conti-nuada, tanto no campo da educação formal, quanto a não-formal, em todos os níveis e modalidades, ampliando as oportunidades de educação para todos.

Um aspecto, entretanto, precisa ser salientado: o texto legal pouco fala do desenvolvimento da infovia, da internet. Esta, parti-cularmente, vem produzindo uma revolução fundamental nas or-ganizações, ao mudar nossas habituais coordenadas de espaço e tempo e de acesso às informações. Trata-se uma profunda revolu-ção tecnológica responsável pela constituição de um outro tipo de

Saiba mais sobre Edu-cação a Distância em:

http://www.portal.mec.gov.br/seed/

56

sociedade, a sociedade da informação que, por sua vez, abre cami-nho para a sociedade do conhecimento. Trata-se de um tipo de socie-dade perpassada, em todas as esferas, pelo uso de tecnologias da informação, cujo manejo requer o conhecimento de tais meios para sua adequada utilização. E, certamente, o futuro da sociedade glo-balizada está profundamente ligado ao uso de tais recursos, dele dependendo o tipo de inserção que cada nação pode vir a ter no cenário mundial. Pois bem, o domínio de tais tecnologias, o acesso a tal tipo de sociedade, passa pela competência com que cada es-cola venha a se apropriar e utilizar de tais recursos.

Não se trata, porém, de um uso puramente administrativo, a serviço das direções e das secretarias, como memória burocrática. A informatização nas escolas precisa estar a serviço da formação e da atualização permanente dos docentes e dos estudantes. Enquanto isso não acontecer, as escolas estarão à margem dos novos tempos, da nova sociedade, acumulando atraso. Se tais recursos, notada-mente da informática e internet, não podem, nem devem, ser con-siderados como o atalho da salvação da educação nacional, enver-gonhada por pelo menos quatro séculos e meio de descaso, parece inegável que a adequada utilização pedagógica desses recursos pode ser de grande valia. Por tal razão, os cursos de formação de professores, desde as séries iniciais do ensino fundamental, devem propiciar a iniciação ao uso de tais tecnologias. E cumpre desenca-dear um movimento para equipar as escolas, todas as escolas. Um novo dualismo está acontecendo nas redes: escolas, notadamente da iniciativa privada, que fazem da disponibilidade de tais recursos matéria de atração de uma clientela de classe média e alta, convi-vem – inelutável condição da forma de institucionalização assimé-trica e desigual da sociedade brasileira – com as escolas da rede pública, mal providas em geral de quase todo tipo de equipamento. Impõe-se, pois, um movimento de democratização da informática e da internet, que as faça acessíveis a estudantes e docentes.

A disponibilidade de tais equipamentos ajudará na constitui-ção de uma “cultura técnica” nos docentes, necessária para que não fiquem demasiadamente ultrapassados pelos próprios estudantes, cuja geração, contemporânea de tais recursos, aprende a manejá-los com facilidade. Por outro lado, a introdução das tecnologias cer-tamente abrirá as portas de uma profunda revolução escolar, den-tro e fora das salas de aula. Fora, ignorando os limites de espaço escolar e acessando ao novo mundo das informações globalizadas. Dentro, colocando aos educadores o desafio de buscar uma outra metodologia de trabalho, que ajude a fazer do trabalho educativo uma fonte de prazer e alegria. Vale lembra o grande educador e pe-dagogo Celestin Freinet:

“Uma coisa pelo menos é certa: ao modificar as técnicas de trabalho, modificamos automaticamente as condi-ções da vida escolar e pára-escolar;criamos um novo clima; melhoramos as relações entre as crianças e o meio, entre as crianças e os professores. E é com certe-za o benefício mais importante com que contribuímos para o progresso da educação e da cultura”18

Finalmente, é preciso algumas linhas sobre a educação supe-18 FREINET, Celestin. As Técnicas Freinet da Escola Moderna. Lisboa: Editorial Estam-pa, 1976, p. 46.

57

rior e as universidades. Dentro da perspectiva social-histórica, vale relembrar: os colonizadores portugueses, diferentemente dos es-panhóis em relação à América Espanhola, proibiram a implantação de ensino superior no Brasil. Os primeiros cursos foram criados por D. João VI, e muito pouco aconteceu durante o Império. Na Repú-blica começa um movimento de ampliação nos Estados, surgindo diferentes iniciativas. Entretanto, o termo universidade não corres-pondia ao conceito de “universidade” concebida como instituição de formação e de investigação. Tendo prevalecido a criação de ins-titutos isolados de formação técnico-profissional, era pertinente a crítica dos Pioneiros, tal como examinamos no primeiro módulo.

A sociedade brasileira vai conhecer a primeira universidade propriamente dita em 1934, com a criação da Universidade de São Paulo. E, na esfera federal, a federalização das “universidades” es-taduais nos anos cinqüenta e sessenta, e a criação do CNPq e da CAPES, financiando pesquisas e formando os quadros docentes pós-graduados vão marcar a instituição do espírito universitário e de uma rede universitária de bom nível no país. Trata-se, pois, de uma rede com quase setenta anos, no caso paulista, e com cerca de cinqüenta anos no caso da rede federal. Hoje, uma rede de universi-dades se articula em todo o país, com pelo menos em cada unidade da federação. É disso, pois, que se trata quando se discute a questão do ensino superior e das universidades públicas federais. Interessa a uma sociedade autônoma uma rede assim constituída? É possível uma sociedade autônoma sem uma rede universitária digna de tal nome? E, sem a intervenção e investimento da União, do Poder Pú-blico federal pode ser mantida uma tal rede? E pode ser a rede uni-versitária culpabilizada pela situação de atraso das redes de educa-ção básica? Cabe punir as universidades públicas pelos déficits do ensino básico - fundamental e médio? Será o setor privado capaz de manter uma tal rede, na dimensão e na qualificação que o proje-to de uma sociedade autônoma requer? Feita a introdução, vamos às disposições institucionais.

De início, no artigo 43, cabe destacar a “finalidade” do ensino superior: criação de cultura e desenvolvimento do espírito científi-co e do pensamento reflexivo; formação de diplomados para atu-arem nos diferentes setores profissionais, participarem do desen-volvimento da sociedade e colaborar na sua formação contínua; incentivar a pesquisa e a investigação científica, criar e difundir a cultura; promover a divulgação dos conhecimentos culturais, técni-cos e científicos; suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento cultural e profissional, possibilitar sua concretização; integrar tais conhecimentos numa “estrutura intelectual sistematizadora do co-nhecimento de cada geração”; “estimular o conhecimento dos pro-blemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais”; prestar serviços especializados à comunidade, estabelecendo com ela uma relação de reciprocidade; promover a extensão, aberta à participação da população, visando difundir as conquistas e benefí-cios da criação cultural e da pesquisa.

Deixando, por ora, de lado, algumas definições mais formais, cumpre destacar as seguintes determinações:

“As instituições informarão aos interessados, antes de cada

58

período letivo, os programas dos cursos e demais componentes curriculares, sua duração, requisitos, qualificação dos professores, recursos disponíveis e critérios de avaliação, obrigando-se a cum-prir as respectivas condições”(artigo 47, parágrafo 1º);

As instituições de educação superior oferecerão, no período noturno, cursos de graduação nos mesmos padrões de qualidade mantidos no período diurno, sendo obrigatória a oferta noturna nas instituições públicas, garantida necessária previsão orçamentária”.

Por último, registre-se a reafirmação do princípio da auto-nomia universitária, prevista na Constituição e requisito para que a instituição possa dar conta das finalidades e tarefas que lhe são atribuídas pela sociedade. E, cumpre cuidar para que se cumpra o artigo 55, segundo o qual “Caberá à União assegurar, anualmente, em seu Orçamento Geral, recursos suficientes para manutenção e desenvolvimento das instituições de educação superior por ela mantidas”. Como no que diz respeito aos demais dispositivos, é pre-ciso ter presente que a realização daquilo que é proposto faz parte do processo de institucionalização da sociedade, e este processo remete a conflitos de interesse e supõe a participação ativa dos in-teressados, sem o que pode “as leis não pegarem”.

E se até o momento analisamos a instituição da educação es-colar brasileira em seus traços mais gerais, é preciso, de agora em diante, entrar no mérito dos processos pedagógicos propostos. Estes são momentos fundamentais para assegurar, igualmente, o êxito das políticas educativas. Supondo que os poderes públi-cos façam sua parte, há algo que o “sistema” não faz diretamente: a educação e o ensino propriamente ditos. Estes acontecem num contexto organizacional muito específico: o das escolas. Ou, se qui-sermos, das “instituições escolares”, entendo por isso, tanto os es-tabelecimentos em sua realidade física e política, em seu prestígio social, quanto aos valores, as significações efetivamente operantes em seu seio, materializados nas regras de trabalho, nas normas, nos estatutos e nos regimentos que regulam, orientam a realização do trabalho educativo, do qual, no final de contas, depende em última instância o sucesso das políticas e, sobretudo, dos seres humanos sob a responsabilidade dos profissionais da educação.

59

ATIVIDADES SUGERIDAS

1. Elabore um texto com o resultado de suas leituras e deba-tes sobre o conceito de educação e de educação escolar propostos na lei 9394/96. Comente-os à luz das teorias estudadas nesta e em outras áreas.

2. Faça um levantamento das finalidades e objetivos pro-postos para a educação, no geral e em cada nível e modalidade de ensino. Confronte-os com o artigo Os deficientes cívicos, de Milton Santos (Folha de S. Paulo, 24.01/99) e Robert Kurz A comercialização da alma (FSP, 11.02.2001).

3. Escolha um nível ou modalidade de educação. Procure da-dos estatísticos sobre sua evolução no Brasil. Analise e comente. Em seguida, procure os dados sobre o mesmo nível de ensino refe-rentes a seu município ou Estado (ou Distrito Federal). Compare-os. Comente.

4. Pesquise sobre os parâmetros curriculares do nível de ensi-no em que você atua. Discuta-os com os colegas, do ponto de vista filosófico, técnico-pedagógico e político. Comente-os.

5. Informe-se sobre o Sistema de Avaliação da Educação Bási-ca. Conheça seus fundamentos e sua metodologia. Conheça os re-sultados referentes ao nível de ensino em que você atua. Compare os resultados de seu Estado ou município (ou Distrito Federal) com o restante do País. Comente tais resultados.

6. Procure saber, coletar dados, sobre o funcionamento do FUNDEB em sua cidade. Comente sua organização e seus resulta-dos.

60

61

3 A escola como instituição

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

- Conceituar a instituição escolar;- Rever critica e historicamente o papel das organizações escolares;- Conhecer os dispositivos legais referentes à organização do trabalho educativo nas orga-nizações escolares;

62

1 A escola como instituição e suas ins-tituições

1.1 O papel da escolaExiste o pressuposto, e a convicção, de que nada vai mudar

em educação, no final de contas, se não houver mudanças na esco-la e, mais ainda, dentro das salas de aula. E é por isso que existe na legislação um conjunto de disposições normativas determinando procedimentos e atitudes dentro das escolas e das salas de aula, na organização do trabalho educativo. Neste módulo se quer trabalhar sobre essa questão, especificamente. Pois ela não pode ser confun-dida com as discussões macro-políticas. Ao contrário, é neste plano micro-político que a instituição educativa se revela e se realiza na-quilo que tem de mais tradicional e efetivo. Por isso é preciso lan-çar os holofotes sobre este plano. E fá-lo-emos guiados por alguns elementos colhidos no movimento da Pedagogia Institucional. Este movimento, forte nos anos sessenta do século XX, teve em Michel Lobrot um de seus mais importantes líderes. Entendo ser correto afirmar que Paulo Freire terá sido, no Brasil, a grande figura da peda-gogia institucional, ainda que não seja conhecido sob esse prisma. Trata-se de um prisma que amplia a análise da instituição educativa em seus diferentes planos, não se contentando nem com a dimen-são macro, nem com a dimensão micro. Mas articula ambas as di-mensões, levando em conta a “transversalidade” da instituição.

1.2 Uma abordagem institucionalDe acordo com a escolha teórica que preside a este trabalho,

assume-se o pressuposto de que a “instituição” da escola e de suas “instituições” é momento de um processo mais amplo e envolvente de “instituição” da própria sociedade, enquanto tal, determinada, tendo, desse modo, em foco “esta” sociedade e não outra. Para Cor-nelius Castoriadis, lembremos, a sociedade é auto-instituição, auto-criação. E as organizações que a compõem são instituições deriva-das, são a encarnação de instituições centrais, originárias, constituí-das como magma de significações imaginárias sociais.

A escola em nossa sociedade é uma dessas organizações fun-damentais. Nesta linha encontramos elementos capazes de nos orientar na interpretação desse fenômeno que é a natureza do pro-cesso de institucionalização de nosso sistema de ensino. Como e por que se manifesta e persiste, no caso brasileiro em específico, a distância entre os “valores proclamados” e os “valores reais”? O que significam os dados referentes ao renitente “fracasso escolar”, repetência e evasão? Uma significação, relembremos, longe de ser apenas um conceito ou representação abstrata, é uma significação operante, com suas conseqüências sociais e históricas. Ela age no fazer e na prática de uma sociedade, vale dizer, dos indivíduos que a compõem, “como sentido organizador do comportamento humano e das relações sociais, independentemente de sua existência ‘para a consciência’ dessa sociedade”. Os dados estatísticos são as conse-qüências, os resultados, os derivados da ação dessas significações sociais profundas. Os dados estatísticos são conseqüência da ação do nosso “imaginário efetivo”, que presentifica as significações nas

Instituições são organi-zações ou mecanismos sociais que controlam o funcionamento da sociedade e dos indiví-duos. São produtos do interesse social que re-fletem as experiências quantitativas e qualita-tivas dos processos so-cioeconômicos. Orga-nizadas sob a forma de regras e normas, visam à ordenação das inte-rações entre os indiví-duos e suas respectivas formas organizacionais.Fonte: Wikipédia

63

quais e pelas quais agimos. Assim, quem produz o fracasso é, sim, o “sistema”. Mas quem é o sistema? O sistema somos nós. O “sistema” é a instituição que articula uma sociedade, pela sua encarnação nas normas, escritas ou não, que regem a sociedade. Nas instituições que fazem essa sociedade. E os indivíduos são igualmente institui-ções, pois foram instituídos pela sociedade que instituem. No caso brasileiro, somos uma sociedade excludente e profundamente assi-métrica, simbolizada e sancionada por regras profundas, mais pro-fundas que as leis positivas. São significações articuladas entre si, caracterizando a forma típica de ser de uma tal sociedade.

As disposições legais acima referidas representam um es-forço, talvez tímido, de decantar o imaginário subjacente à orga-nização do trabalho escolar, uma tentativa de fissurar o imaginário instituído. Duas dimensões estão presentes no caso: as finalidades proclamadas para a educação e a organização do trabalho escolar. Cabe, agora, um mergulho nessa organização chamada escola e perguntar: para que serve, afinal, a escola? Qual sua função?

A organização da educação, do trabalho escolar com todas as suas diretrizes metodológicas, que se pode mencionar como orga-nização curricular, num sentido bem amplo, é uma questão cen-tral, senão a questão central quando se trata da educação escolar. Com efeito, é nessa organização do trabalho escolar – na definição das atividades a serem desenvolvidas, na seleção dos conteúdos programáticos, das “disciplinas” ou das atividades, na escolha das metodologias de aprendizagem e de ensino, nas estratégias de ava-liação, na organização dos tempos e dos espaços, que os ditos siste-mas de ensino em geral, e cada estabelecimento em particular, con-cretizam aquilo a que se denomina “projeto político-pedagógico”.

Como vimos na análise da LDB, o texto fala de “proposta pe-dagógica”, correspondendo à expressão “projeto pedagógico” em uso nos meios educativos. Este projeto, expressão pro-jetada ou diferida daquilo que a educação escolar quer alcançar, tem uma dupla dimensão. De um lado, lembra J. Ardoino, remete a um pro-jeto intencionalidade, expressão do projeto de sociedade que de-sejamos construir. E um projeto de sociedade remete aos valores, às significações centrais, às regras fundamentais sobre as quais se erige a vida humana associada, na expressão de Guerreiro Ramos. É neste plano que a sociedade afirma o que é e o que não é, o que vale e o que não vale, o que pode e o que não pode, o que é “certo” e o que é “errado” (Castoriadis). Estes valores costumam ser expres-sos , legalmente, pela explicitação ou declaração das finalidades da educação, em especial da educação escolar. Complementarmente, os desdobramentos normativos entram pela organização da edu-cação escolar. Entram naquilo que se pode denominar de “currículo” com todas as dimensões mencionadas há pouco. Nos termos de J. Ardoino, entra-se no plano do projeto-programa. Este é a tradução organizacional daquele. É o seu equacionamento operacional. Quais metas? Quais conteúdos? Quais metodologias? Qual a duração das atividades? Qual seqüenciação das atividades? Quais critérios de progressão e de avaliação? Aqui aparecem termos tais como: pro-moção, reprovação, aproveitamento de estudos, seriação, organi-zação por ciclos ou por fases, certificação, aproveitamento ou ren-dimento escolar, matrícula, repetência, dependência e outros. E é

64

exatamente nesta tradução da teoria na prática, das intenções num programa de trabalho, da praxis em poiesis 19(F. Imbert) que se joga a sorte dos princípios e ideais formulados nas finalidades gerais, fi-losófica, política e eticamente, no geral, bastante bem formulados. É na escolha e na organização dos meios que reside um mo-mento crucial, no sentido mais originário do termo, da educação escolar. Assim como, de resto, de outras tantas atividades humanas interativas. É importante, então, retomarmos a verificação de am-bos os momentos na legislação educacional brasileira. De um lado, a declaração das finalidades. De outro, a tradução organizacional de tais finalidades no currículo dos estabelecimentos de ensino. Mas, antes, vamos fazer mais uma incursão no plano da teoria da instituição e das organizações escolares.

1.3 A educação e a escolaA escola é tipicamente aquilo que se denomina de organiza-

ção. Para Castoriadis, as organizações são instituições secundárias, ou derivadas. Isso não quer dizer que sejam entidades de segunda importância. Não é disso que se trata. Ao contrário, as instituições secundárias são exatamente aquelas nas quais e pelas quais as ins-tituições primeiras – as significações fundamentais – se realizam concretamente, materialmente. Não existiria capitalismo sem as empresas capitalistas, organizações que são as portadoras de suas significações. Assim, igualmente, as escolas.

René Lourau20 caracteriza as organizações como “formas so-ciais”, dotadas de uma unidade “funcional”, marcadas pela negativi-dade, no sentido hegeliano. Isto quer dizer que elas freqüentemen-te proclamam suas finalidades “operatórias”, aquelas mais evidentes ou mais esperadas, as funções “oficiais”, que podem ser explicitadas, mas deixam esquecido o fato de que essas finalidades operatórias explícitas estão ligadas a outras finalidades criadas pela existência de relações contínuas entre determinada organização (como a es-colar) e outras com funções diferentes, bem como por suas relações “com o conjunto do sistema social” (LOURAU:12). Por isso, diz ele, julgar uma organização pelos serviços que presta, ou julga pres-tar, não é suficiente. “A unidade de uma organização é feita, de um lado, por uma disposição específica das funções sociais em redor de uma função oficialmente privilegiada e, de outro lado, pela exclu-são oficial de um certo número de outras funções, que se tornam então latentes, acidentais ou informais” (LOURAU:13). Há um siste-ma como totalidade de relações entre elementos compreendidos numa instituição territorial ou numa área de influência política que a transcende. A positividade, oficialmente proclamada, esconde a negatividade em ação, esconde a transversalidade das instituições, o seu ser permeado pelo econômico, pelo social, pelo político, pelo ideológico e assim por diante. Há o proclamado. E há o não procla-mado. Há o positivo. E há o negativo. Daí que o quantitativo possa 19 IMBERT, Francis. Vers une clinique du pedagogique: um itinéraire em sciences de l´education Vigneux: Matrice/PI, 1992. Para o autor, “práxis” designa o projeto no seu momento filosófico, amplo, genérico, conceitual. Mas para se tornar realidade esse projeto, essa concepção filosófica, precisa ser traduzida numa proposta con-creta de trabalho. A essa proposta o autor denomina de “poiesis”. 20 LOURAU, René. Análise Institucional. Petrópolis: Vozes, 1995. Trata-se de um so-ciólogo e educador francês, falecido em janeiro de 2000, notabilizado por ser um dos fundadores do movimento de “análise institucional”.

65

esconder elementos qualitativos importantes, proclamando fun-ções “nobres” (crescimento, desenvolvimento, cidadania e outros) “a expensas das funções não confessadas ou inconfessáveis, mas inteiramente objetivas, das organizações” (LOURAU:14). No caso da escola, ela proclama a integração, mas na verdade os resultados es-tatísticos indicam que ela, de fato, realiza a seleção e a exclusão, que são traduzidas por “fracasso escolar”. E esses processos, conforme vimos no primeiro módulo, são perfeitamente compatíveis com a história da instituição da sociedade brasileira, escravista, colonial, dependente, excludente, genocida, capitalista, patrimonial, esta-mental. Os dados estatísticos sobre a exclusão escolar são perfei-tamente compatíveis com o quadro de uma sociedade excludente. Expressam a forma como essa sociedade se auto-reproduz.

Voltando a Castoriadis, propõe ele que o processo educati-vo acontece como socialização da psique, pelo que ele denomina, seguindo Freud, de “sublimação”. É por esse processo que a psique retoma as formas socialmente instituídas e as significações que as acompanham. A psique se apropria do social pela constituição de uma interface de contato entre o mundo privado e o mundo públi-co ou comum. Do ponto de vista dos indivíduos, é preciso que eles criem modelos identificatórios. Da parte da sociedade, é preciso que ela ofereça objetos a serem investidos. E para que haja socieda-de, é preciso que os objetos de sublimação sejam, ao mesmo tem-po, típicos, categorizados e complementares uns dos outros. Assim, por exemplo, ao pólo identificador “senhor” deve necessariamente corresponder o pólo identificador “servo” e, no mundo capitalista, ao pólo “capitalista” deve corresponder o pólo “proletário”, que se devem produzir e multiplicar nas proporções devidas para a manu-tenção do sistema.

Este sistema se expressa como um conjunto de instituições solidárias, formando um magma de significações operantes, de ins-tituições secundárias: capitalistas, proletários, máquinas, Estado, ciência e tecnologia, educação, religião e assim por diante. Um ou-tro autor, Michel Lobrot21, em “Para que serve a escola” retoma essa questão, já dentro da perspectiva da organização escolar.

2 Para que serve a escola? Para Michel Lobrot, a escola é uma instituição a serviço da cul-

tura. Cultura, para ele, entretanto, não significa o mesmo que para os antropólogos. Para estes, cultura é “o conjunto de condutas, de comportamentos e de costumes praticados por uma comunidade...” (LOBROT:1995, p. 6). Ele prefere conceituar cultura como “conjunto de atividades ‘imanentes’ a uma população”. “Imanentes”, neste qua-dro conceitual, significam atividades internas às pessoas, se opõem a “transitivas”. As atividades imanentes são aquelas que o sujeito vive no seu interior e que englobam um determinado número de mecanismos de ordem psicológica: reconhecimento, percepções, representações, elaborações, recordações, projetos, aspirações, 21 LOBROT, Michel. Para que serve a escola? Lisboa: Terramar, 1995. Lobrot se nota-bilizou também pela obra Pedagogia Institucional, que fez dele um dos mais ex-pressivos membros do movimento institucionalista francês, no qual realiza uma profunda crítica da escola como instituição burocrática e retoma a concepção de uma organização escolar profundamente renovada, auto-gerida.

Você considera que a escola cumpri seu pa-pel da melhor forma?Para você, qual papel a escola deve cumprir?

66

imaginação, etc. E são atividades que, “além de seus efeitos exte-riores, suscitam por si próprias, necessariamente, prazeres, dores, frustrações, angústias, esperanças”. Mas, por outro lado, “têm suas leis e mecanismos próprios que não se confundem com os dos fe-nômenos acionados exteriormente”, ainda que dificilmente fiquem reduzidas à dimensão interior, e possam vir a ter traduções e mani-festações exteriores de suma importância. As atividades transitivas passam a ser o lado objetivo, exteriorizado, das atividades imanen-tes, que são percebidas através daquelas. São exteriorizadas nos “comportamentos”. As atividades imanentes, porém, ainda que sus-citem atividades transitivas, não se confundem com elas. Elas têm eficácia, utilidade e interesses próprios e distintos. Lobrot quer cha-mar a atenção para a importante dimensão psicológica da cultura, por contraponto a uma leitura sociológica, exterior e objetivante. Sendo assim, a escola teria surgido como uma criação das grandes civilizações para propiciar um lugar que desse oportunidade aos processos de caráter imanente: as aprendizagens. Estas são, para ele, e apesar de seus impactos utilitários, transitivos, fenômenos imanentes.

Uma aprendizagem, então, para ser durável, precisa ir além do caráter utilitário, instrumental, passageiro e circunstancial. Para ser durável, é importante que ela se debruce sobre si mesma e vise seus próprios mecanismos. Há um êxito na realização dessas atividades que vai além da realização de um objetivo extrínseco: “Neste caso, o que se torna interessante já não é o resultado, mas sim o próprio processo, a saber, a descoberta dos meios que permitem atingir de-terminados objetivos. Isto implica que esta descoberta suscite pra-zer e satisfação. Isto também é válido para a memória, fenômeno estreitamente ligado à cultura” (LOBROT:1990, p. 8). Dentro de tal perspectiva, a retenção na memória acontece quando se põem em prática operações imanentes interessantes por si próprias.

A escola nasceu na humanidade, foi criada, para dar lugar às exigências de aprendizagem, instituindo-se um período da infân-cia centrado sobre ela, consagrando-lhe tempo, destinando-lhe adultos para ajudar os indivíduos nesse processo, construíram-se indivíduos para acolhê-los, destinou-se montantes de recursos fi-nanceiros. Seu nascimento se dá com o aparecimento da escrita, na Mesopotâmia, nos III e IV milênios antes de nossa era, e isto tem a ver com o processo de simbolização que lhe permite produzir dire-tamente, e quase sem intermediários, “efeitos psicológicos de cará-ter permanente”. Com ela, toda a literatura se constitui num corpus, entre o espaço existencial, faz entrar na humanidade um conjunto de realidades e valores, um grande desenvolvimento cultural.

A escola, pois, desde suas origens, se articula com a cultura, com essa “realidade essencialmente exterior, gratuita e que, sob determinados pontos de vista, pode parecer inútil”. E aí começam também seus problemas. Como as sociedades tratarão o problema da articulação na escola entre o desenvolvimento do indivíduo e a utilidade social? A história da escolarização oscilará, pois, entre dois pêndulos: ora a utilidade social será a referência básica, ora a cultura, enquanto atividade imanente, será desvalorizada em si e será considerada por sua função socialmente instrumental. Se na civilização greco-romana, com a paidéia, essas duas dimensões

67

chegaram a coexistir mais ou menos bem, sem que uma dimen-são elimine a outra, dava-se grande valor à cultura do corpo e do espírito sob todas as formas possíveis (filosofia, retórica, ginástica, música, desenho, etc.). Mas, com o surgimento, na alta idade média, do imperialismo, do espírito de dominação, a generalização da es-cravatura, o totalitarismo imperial, a burocracia, a exploração social, tudo isso vai propiciar um “desvio” da escola.

2.1 O desvio da escolaO desvio da escola, segundo Lobrot, ocorre a partir do mo-

mento em que a sociedade no seu todo – particularmente suas instâncias dirigentes – decide que a escola não tem por objetivo a transmissão e difusão da cultura, mas uma outra função de natureza transitiva e utilitária que varia consoante as épocas (LOBROT:1990, p.12). Assim, no período que vai dos séculos VII e VIII ao século XIV (a grosso modo, o período da Idade Média no ocidente), à escola é atribuída a finalidade exclusiva de dar a conhecer a doutrina cristã, os dogmas cristãos, os grandes textos do cristianismo, os padres e os teólogos cristãos. O ensino da “cultura profana” é interditado e o papel de mentalização, de espiritualização, que foram funda-mentais na origem do cristianismo, e de todas as grandes religiões, deixa de ter um papel central, sendo remetido a um segundo pla-no. Reprime-se a libido sciendi (desejo de saber) e a libido legendi (desejo de ler). Tudo que é ligado ao corpo, ao mundo, aos prazeres terrestres se torna suspeito, há que evitar os perigos do mundo, de que faz parte a cultura.

Do século XV ao século XVIII, período clássico, com a invenção da imprensa, as grandes descobertas, as grandes revoluções, não chega a desaparecer a finalidade religiosa. Mas esta encontra uma grande concorrente na finalidade de socialização do indivíduo. Não se trata mais de ver a escola a partir de um referente religioso a transmitir ou veicular. Os valores agora postos em evidência são a civilidade, a decência, a moderação, a honestidade, o trabalho, a adaptação social, a conformidade. É preciso pôr um prática, para que a sociedade exista, a organização. E isso acontecerá por inter-médio dos colégios, da constituição de hábitos sociais. A escola do humanismo é, contraditoriamente, uma escola em que prevalece o instrumental social. O terceiro período, que segundo Lobrot perdu-ra até nossos dias, é o “período tecnicista”. Neste período, os ideais e objetivos humanistas são quase totalmente deixados de lado, e vem a prevalecer o lado das ciências e da tecnologia. O primeiro lugar é ocupado pela aquisição do conhecimento no sentido res-trito, e todas as demais disciplinas são vistas através dele. Estuda-se antes a história da literatura ou a história a mergulhar na literatura, a fazê-la. Desde então passa a vigir a concepção de que “a escola é feita para transmitir sabedoria”, ou seja, conhecimento. Fica em se-gundo plano que esta sabedoria, que também é cultura, por certo, é um produto da vida psicológica, que ela precisa ter um sentido, que ela produz dor ou prazer ou angústia, que ela é susceptível de blo-queios libidinosos. A sabedoria se restringe a “um conjunto de con-teúdos que nos podemos contentar em expor” e que “é necessário assimilar”. Por outro lado, os conteúdos são eles próprios fatores de socialização por permitirem, graças aos exames e diplomas, indicar

68

quem os possuem e posicioná-los no sistema produtivo.(LOBROT: 1990, p. 14). A aprendizagem gratuita deixou de existir.

2.2 A sobrevida da escolaComo e por que a escola continuou existindo ao longo de

todas essas profundas mutações? Se é impossível haver ato de aprendizagem sem desejá-lo ou sem gostar dele, como atesta a psicologia contemporânea, se a escola continuou funcionando, foi porque “na realidade o princípio cultural (imanente) continuou de-terminando nela um papel principal, um papel primordial, apenas de uma forma dissimulada, clandestina, não reconhecida. O que teria mantido a escola, e o seu sucesso, onde e quando houve, te-ria sido a dimensão cultural imanente. A montante, garantida pela presença de um corpus cultural utilizado como suporte e como ma-terial, e que se mostrou fascinante. Esse corpus era constituído pela leitura dos clássicos, dos grandes pensadores e literatos, gregos e latinos. Essa cultura impregnava certos estratos sociais e garantia o sucesso das escolas na medida em que elas a dispensava. A cultu-ra, oficialmente rejeitada e desfigurada, e os processos psicológicos menosprezados, eram, clandestinamente, os fatores de sucesso da escola. Paradoxalmente, as crianças que têm êxito na escola, e por isso penetram nos estratos superiores da classificação social, são aquelas que tiverem melhor contato com essa cultura. Cumprem-se assim os desígnios hierárquicos do sistema social. Paradoxalmente, os que mergulharem a fundo na cultura e a ela aderirem se torna-rão os revolucionários e os reformadores. Contudo, a maioria tal-vez, abandonará, renegará essa cultura, neutralizarão seus efeitos para melhor se integrarem nas estruturas de poder da vida social. O problema é duplo. De um lado, o que funciona, no sistema, funcio-na por dissimulação. Mas, sobretudo, o problema reside em que o sistema não funciona: ele é predominantemente travado, e produz disfunções, efeitos perversos e catastróficos. E, sobretudo, ele impe-de o acesso das classes pobres à cultura, de então até nossos dias. A cultura decididamente não se democratiza, as massas não têm acesso a ela.

O desvio da escola resulta de um fenômeno de dominação e continua ligado a ele. E se vem agravando a cada período, a par-tir da Renascença, tendo destaque, além da obediência do grupo social e sua submissão, a produtividade e a rentabilidade. Desde então, aquilo que se tem em mente é assegurar o crescimento coletivo através da produção, sob a direção de uma elite técnica e burocrática detentora dos instrumentos de comando. O grande problema se coloca: como levar ao sucesso as crianças das classes populares, que não trazem “do berço” os elementos iniciais dessa cultura? De uma cultura que lhes é apresentada com determinadas finalidades e sob condições especiais que definem os quadros, o tempo, o ritmo, o momento, o lugar onde aprendê-la, desde fora? Como desencadear nos filhos dos operários o aprender a gostar de ler, a gostar de aprender?

2.3 A organização da escola modernaA escola moderna emerge, como tal, juntamente com a ex-

plosão da cultura humanista propiciada pela invenção da imprensa

69

e, com esta, a difusão dos livros. A esta altura, prossegue Lobrot, apoiado em Chartier e Neveu, as escolas se multiplicam por todo lado a partir de iniciativas provenientes das cidades, das comunas e de particulares. Mas, se na Idade Média a expansão das escolas monásticas, em si um fenômeno interessante, se fez ás custas da autoridade religiosa, agora o processo acontece sob a autoridade civil.

As cidades descobrem o dever educativo, instituem fiscaliza-ção municipal nos estabelecimentos onde se dá educação, e fisca-lizam sem restrições. Surgem as escolas, geralmente gratuitas, sur-gem, os colégios:

“O Colégio é uma realidade nova que vai servir de en-quadramento a uma nova concepção de educação. O que antes tinha sido uma instituição para bolsei-ros que estudam na Universidade, torna-se um lugar onde se faculta o ensino. O que o caracteriza e dis-tingue da Universidade medieval é a sua organização do tempo e simultaneamente do espaço, com siste-ma de turmas. Os alunos estão submetidos a uma forte disciplina. Montaigne fala de uma ‘juventude cativa’ evocando a disciplina reinante nos colégios” (LOBROT:1992, p. 24).

E prossegue:

“O fenômeno a que se vai assistir é a substituição progressiva do contido pelo conteúdo, nos objetivos destinados ao ensino. [...] No entanto, os métodos não são em nada diferentes do de hoje em dia. Essencial-mente magistrais e ‘simultâneos’, não deixam muito lugar à individualização e à iniciativa do aluno”. E a ratio studiorum, dos jesuítas, fala das finalidades: edu-car os jovens de maneira a que se formem nas belas-letras e ao mesmo tempo nos bons costumes (dignos de um cristão).

A escolaridade que ora se propunha se destinava a assegurar o destino social dos filhos dos seus fundadores e administradores, constituindo a elite citadina destinada a partilhar os encargos reais e municipais, os senhoris que viviam de renda e aspiravam à nobre-za. A educação clássica deveria permitir a esta nova classe subir os degraus da hierarquia social, formando-se num modo de vida sen-sato e erudito, diferenciando-se da antiga nobreza e da burguesia mercantil.

Os colégios cumpriam tal finalidade admiravelmente: cons-tituíam-se em coletividades hierarquizadas e disciplinadas, ensina-vam a civilidade, a honestidade, o decoro, a cortesia, a moderação, a pureza dos costumes. E, no fundo, criavam o homem social: o ho-mem em conformidade com a sociedade e seus valores. Além dos Colégios, surgiam as pequenas escolas onde se ensinava a gramáti-ca, e que são as precursoras do atual ensino elementar. Estas, patro-cinadas por múltiplos atores sociais, visavam policiar e cristianizar a cidade através da educação. Gratuitas em boa parte dos casos – ca-ritativas–, atendiam também aos filhos dos grupos sociais desfavo-recidos, tirando-os das ruas. A escola continuava, entretanto, uma instituição citadina, dela ficando excluída a população campesina. A religião influenciava-a profundamente, dando-lhe um caráter profundamente moralizante. A civilidade que aí se ensinava era um

70

conjunto de regras de boas maneiras e de cortesia, buscando uma conformidade profunda, interiorizada, com os princípios da vida social, com uma crítica acentuada a todas as formas de hipocrisia a que aquela dá lugar (LOBROT:1990, p. 28).

A aplicação de tal concepção às classes populares, todavia, faziam-na permanecer excluída da cultura (no sentido imanente). Assim, apenas as classes superiores se beneficiavam de tal cultura, na medida em que eram as detentoras do “capital intelectual” ne-cessário para dela tirar proveito, por possuírem livros em suas casas, criando um ambiente propício a seu aproveitamento. Era uma bur-guesia “técnica” que se constituía: médicos, advogados, oficiais, no-tários, parlamentares, procuradores, escrivães, dentre outros. Daí, e do acúmulo de livros onde a história passa a substituir a teologia, emergem as sociedades literárias, as sociedades dos pensadores, de hipnotismo, as sociedades maçônicas e outras que vão ter papel fundamental na Revolução Francesa.

A Revolução Francesa marca uma ruptura e, ao mesmo tem-po, uma continuidade. Dela nasce uma escola diferenciada da do Antigo Regime, mas subsiste uma continuidade relacionada à con-cepção de uma escola estatal e tecnocrática, que emergira com for-ça anteriormente a ela. Data de antes da Revolução a concepção de que a educação deveria ser nacional e controlada pelo Estado, tendo as instituições educativas definidas com clareza sua natureza política e jurídica. A Revolução traz consigo a idéia de generalização da instrução, que deveria ser o motor do progresso social e huma-no. No caso francês, a escola assume, outra vez com maior ênfase, o papel de disseminar a “sabedoria” (os conhecimentos), prepon-derantemente à doutrina religiosa e aos bons costumes. É a escola propugnada pelos enciclopedistas. Ela é tributária da concepção do século XVIII relativamente ao desenvolvimento da ciência e da técnica:

“Agora a sociedade é concebida como uma gran-de máquina que os dirigentes políticos conduzem à prosperidade. Nesta máquina é importante que cada qual ocupe seu lugar e trabalhe, o que implica aptidões e capacidades. Estas adquirem-se na escola e, entre elas, a aprendizagem da leitura – a alfabeti-zação – constitui a base. Assim, a escola assume um papel principal” (LOBROT:1990, p. 31).

E o ensino elementar assume papel de destaque – pilar de toda a construção social. As escolas elementares se multiplicam como acontecera com os colégios na Renascença (no caso brasi-leiro, houve um movimento que começou de cima – das Univer-sidades –, desceu ao nível médio – os Colégios –, para finalmente chegar á base: as escolas elementares).

2.4 Os objetivos da escola moderna e as condições de seu sucesso/fracasso

Para M. Lobrot, não é possível haver aquisição do domínio da aprendizagem se não se passa pelo que ele denomina de opera-ção cultural (imanente). Não há pesquisa sem desejo de fazer pes-quisa, não há observação acurada de um fenômeno sem o desejo de fazê-la. A aprendizagem é, antes de tudo, um ato interiorizado,

71

imanente, que depois se traduz exteriormente e serve a outras ins-tituições sociais. “É um ato capital no domínio humano que, neces-sariamente, comporta uma boa dose de criatividade, de prazer, de esforço, de elaboração” (LOBROT:1990, p. 35). Não obstante, registra ele, isto pode parecer supérfluo, ou incômodo, ou inútil, num “siste-ma centrado exclusivamente sobre um efeito útil, sobre uma dada vantagem bem delimitada”. E, de fato, desde o século XIX, a escola segue o objetivo de “aquisição da sabedoria” (conhecimentos). Pois é ela que permitirá aos indivíduos agirem sobre o mundo, sobre si próprios, sobre os outros. Que permite modificar seu destino, so-breviver e progredir, viver ou morrer. É um fator de adaptação e de sucesso. É, para Lobrot, uma visão pragmática que prevalece, por conta dos processos de dominação e controle sociais. E que deixa na obscuridade uma outra dimensão fundamental: a da sabedoria como ato psicológico á base de representação, contendo uma dose variável de abstração e susceptível de investimento afetivo (“desejo de sabedoria”). Esta remete à preocupação com a felicidade e com o desenvolvimento humano. E não se trata de escolher entre um ou outro, porquanto um e outro são inelimináveis e devem ser indisso-ciáveis. Mas isto traz conseqüências decisivas para a organização da escola e o alcance dos resultados que declara buscar.

A ênfase na dimensão pragmática e utilitária da sabedoria deixa na obscuridade o discente em sua dimensão psicológica, em sua subjetividade, com seus sentimentos e aspirações, passando a acentuar a dimensão do agente eficaz capaz de efetuar determina-dos atos e alcançar determinados resultados. É isto que se afirma, que se reivindica, pois é disso que depende “o progresso social e a prosperidade coletiva”. Decorre daí que a escola seja um lugar de “trabalho”, no qual as crianças devem “trabalhar”, pois a criança que não “trabalha” põe em risco o sucesso, o futuro de sua sociedade. A criança que não trabalha “põe em risco” seu futuro, o de sua fa-mília, o de seu grupo social, o da nação... Então, levar em conta a psicologia dos sujeitos, seus desejos, suas reflexões interiores, suas revoltas, suas deformações perceptivas, suas necessidades, espe-ranças e desesperos, eis algo que incomoda a escola, que deixou de ser seu eixo fundamental, seu postulado essencial. A felicidade e o êxito pessoal dos indivíduos enquanto sujeitos são contrapos-tos ao “bem da sociedade como um todo”. E desta concepção de bens concorrentes, nasce a coação como instrumento pedagógico. É preciso realizar os objetivos sociais a qualquer custo. Como diz Augusto Matraga, personagem guimarãesroseano, ao missionário que o buscava converter: “No céu eu hei de entrar nem que seja a porrete”.

O ensino se torna, sem hesitação, mas com toda legitimida-de institucional, um exercício de coação: é-se obrigado a aprender isto, isso e aquilo. E alcançamos o âmago do problema: “Esta coação nada seria se se limitasse à pressão de um indivíduo sobre outro, de um professor sobre um aluno. De fato é muito mais que isto. É um sistema altamente organizado. Está de tal maneira presente nas sociedades modernas que já não é possível vê-lo. Quase nunca é analisado, nem sequer descrito. Paradoxalmente, nas sociedades democráticas em que a palavra é dada a todos, aparece como um gigantesco corporativismo” (LOBROT: 1990, p. 37). Isso significa que

72

as sociedades modernas, democráticas, que afirmam ter abolido o corporativismo, na verdade continuam a praticá-lo, aperfeiçoan-do-o agora, é o Estado que, em lugar das antigas corporações, de-termina quais são os diplomas exigidos para exercer as profissões diferentes, quais os níveis exigidos, os exames que permitem obtê-los: “qualquer indivíduo deve, necessariamente, estar certificado, rotulado, verificado, para poder trabalhar e até para poder existir socialmente (a carteira de identidade é apenas uma entre outras formas de certificação. A finalidade do sistema é essencialmente, e antes de tudo, preparar isto” (LOBROT: 1990, p. 37). E Lobrot cita R. Boudon que, por sua vez, citando P. Sorokin, afirma: “A escola não tem apenas a função de fornecer as competências necessárias às sociedades; tem, também, a função de selecionar os indivíduos e de os orientar na direção das posições sociais existentes”.

As exigências do sistema são realizadas pelas escolas e, con-cretamente, pelos docentes singular e coletivamente considerados. Quando ensinam e preparam os indivíduos para exercerem deter-minadas tarefas, são os docentes que os selecionam, aceitando ou não a entrada deles numa ou noutra atividade, são os docentes que atestam a competência para receberem (ou não) os diplomas. O exercício docente é uma resposta às exigências da sociedade. E dificilmente, senão nunca, é uma resposta às exigências e interes-ses dos alunos (ainda que os documentos oficiais proclamem que o aluno é o centro das atividades escolares). Se por vezes os inte-resses e exigências podem coincidir, muitas vezes mal se articulam, outras vezes estarão em plena contradição.

A finalidade principal da escola é a transmissão de conheci-mentos (sabedoria), desse modo, esta define suas escolhas peda-gógicas. E aquilo que em si é bom – transmitir sabedoria/conheci-mentos – desvinculado das imposições ou determinações subjeti-vas (culturais ou imanentes) –, produz uma abordagem tecnicista do processo de ensino-aprendizagem: “organiza-se, pois, segundo estruturas de caráter funcional. Cria-se um sistema possuidor de uma forte racionalidade, tanto ao nível dos suportes (turmas, dis-tribuição e encaminhamento dos alunos, etc...), como ao nível dos conteúdos (programas, cursos, etc.)”. Mas o pior de tudo consiste no fato de que a escola não faz seriamente a verificação quanto à viabilidade de suas finalidades e de sua organização, pois, quando o faz, o faz igualmente em termos técnicos, ou seja, ao invés de de-finir suas finalidades como “formação real dos espíritos”, o faz em termos formais: sucesso nos exames, obtenção de diplomas e assim por diante: “Ora, os exames mais não são do que provas que medem a inculcação, e não uma determinada formação; e os diplomas são a expressão social e utilitária desse sucesso (registro escrito e oficial de um determinado sucesso, um documento destinado a ser mos-trado. Portanto, a escola se fecha sobre si mesma, como determi-nadas pessoas que ficam solteiras. Torna-se um universo fechado, incapaz de compreender e de se controlar a si próprio, condenado a seguir cega e indefinidamente a sua louca corrida. Instala-se na rigidez, torna-se incapaz de evoluir” (LOBROT: 1990, p. 39).

A opção pela alternativa técnica, mata a alternativa pedagó-gica. A preocupação com o conhecimento (os programas!), funda-mentais para a ciência e a tecnologia, encoberta a preocupação

73

com os sujeitos e sua formação humana. É uma instituição centrada na transmissão do conhecimento, que esquece o sujeito psicológi-co ao qual o conhecimento se destina, concretamente. Resulta, na prática, que “a conseqüência da opção tecnicista é uma evolução muito clara para a opressão, o enquadramento, o autoritarismo, a centralização” (LOBROT: 1990, p.39). E este é um movimento que data do século XVI, quando da criação dos colégios:

“Passa-se, assim, [na criação dos colégios] de uma regra que estabelece os princípios diretores de uma moral e de um gênero de vida, para uma regra que determina com rigor cada ocupação do dia. Passa-se de uma administração colegiada para um regime de autoridade; [passa-se] de uma comunidade de mestres e alunos, para uma administração rigorosa dos alunos feita pelos mestres [...] antes do século XV o estudante não se encontrava submetido a uma autoridade disciplinar extracorporativa, a uma hierarquia es-colar [...] Simultaneamente aparecem duas novas idéias: a noção de enfermidade da infância e o sentimento de responsabilidade moral dos mestres [...] Para definir este sistema, distinguir-se-ão as suas três características principais: o vigiar constante, a delação – eleva-da a princípio de governo e de instituição–, e a aplicação alargada de castigos corporais (...) Doravante os educadores reconhecem um valor moral nos uniformes e na disciplina militar” (citação extraída de Philippe Ariés: L´enfant et la vie familiale sous l´Ancien Régime).

Tais características irão se acentuando até ao liceu napoleôni-co e, a partir daí, o castigo corporal sendo aos poucos substituído pela ameaça: o insucesso nos exames como antecipação do insu-cesso na vida. A escola assume um caráter militarizado e moraliza-dor. A organização escolar se torna a organização da submissão e da normalização.

E então se coloca o problema fundamental: qual é o resulta-do, do ponto de vista da aquisição cultural imanente, verdadeira, desta supressão da liberdade entre os jovens, dessa opressão ge-neralizada, deste isolamento cego? Qual é o impacto dessa escolha tecnicista sobre as próprias finalidades da escola? Qual a diferença que separa a instituição escolar projetada em suas finalidades e a instituição realmente existente, a partir de seus resultados? O siste-ma escolar, e suas escolas:

1) Tornam-se incapazes, em todos os níveis, de criar o gosto e o desejo da sabedoria, a profunda disposição psicológica para a pesquisa e o conhecimento (que dependem sobretudo das famílias e do meio ambiente, notadamente dos meios de comunicação so-cial);

2) A escola, pelas razões acima, não existe solta no espaço, mas num contexto social-histórico específico, e se diferencia forte-mente daqueles que acolhe em função de suas origens geográficas e culturais;

3) Num meio cultural e economicamente pobre, a escola não pode ter outro efeito, em razão disso, que o de levar ao insucesso e à ignorância, reforçando as resistências à sabedoria que poderiam existir de início, criando verdadeiras desvantagens culturais;

4) Num meio cultural e economicamente rico, a escola tem uma certa utilidade, devido ao fato de facultar às elites o contato

74

com numerosos canais de informação, de sorte que a escola as aju-da a progredirem, apesar do quadro opressor que ela cria, pois que o apetite cultural já vem de casa...

Tais hipóteses sustentam uma explicação para o fracasso es-colar, que consiste exatamente nisto: ainda que aumentem vertigi-nosamente as taxas de escolarização – como é o caso brasileiro –, as taxas de alfabetização e de aproveitamento não acompanham tal crescimento (se coloca o problema da “qualidade” do sistema). Ao contrário, os dados estatísticos apenas corroboram esse insucesso. Da mesma forma testemunham-no as diferentes proposições que, ao longo das leis, são sugeridas para alterar o quadro, alterando a organização do trabalho escolar: seriação, não seriação, ciclos, fases, exames de segunda época, atividades e períodos de recuperação (que são a tortura de professores e estudantes), turmas de acelera-ção, matrículas por dependência, formação de turmas por nível de aproveitamento, e todo um arsenal de medidas pontuais, buscando alterar os sintomas de um mal profundo: a incapacidade de a escola ser uma verdadeira agência de motivação cultural imanente.

O sistema escolar, organizando burocraticamente o tempo, os espaços e as convivências, é um sistema opressor e irrealista. A atividade de aquisição da sabedoria, programada, obrigatória, defi-nida desde “fora”, deixa de levar em conta que a aquisição do desejo da sabedoria requer uma experiência positiva no ato de aprender. A organização do trabalho escolar – os conteúdos, os tempos, os es-paços, as convivências (turmas) – é fonte de frustração intelectual, e não de desenvolvimento. E é dessa forma que a escola contribui para a diferenciação social, mantendo o corte que separa dominantes e dominados. Isso é tão mais grave quanto, a partir da Revolução In-dustrial, e agora na sociedade da informação ou do conhecimento, a sabedoria técnica e científica assume papel central, é condição de progresso individual e social. As novas tecnologias requerem cada vez maior qualificação, sendo esta a chave do segredo para todos. O que se impõe, então, segundo Lobrot, é a superação dos equívocos organizacionais da escola: o despotismo tecnocrático e burocrático não conduz à sabedoria, ao domínio da ciência e da tecnologia. An-tes afasta dessa meta as grandes massas de alunos, notadamente os das classes populares. A organização não pode ser o único valor e a única realidade, deixando em segundo plano os valores huma-nos. A organização escolar contém e anuncia a organização fabril: espaço de alienação, superorganização que neutraliza as iniciativas e a autonomia. Ao tecnicismo em que mergulham as classes diri-gentes, pode muito bem corresponder, nas classes subalternas, o afundamento no anti-tecnicismo, no desprezo pela cultura erudita, pelo progresso social tal como apresentado, produzindo uma des-qualificação radical, uma desculturação, uma hostilidade contra a escola, favorecendo uma degradação cultural que os espetáculos televisivos saciam, mais que promovem.

A cultura, a leitura, convertida em instrumento, desconside-rada enquanto valor em si, não é capaz de motivar os estudantes. A escola se converte em espaço/tempo de tédio e ceticismo. E, ao invés de estimular a criação de outras formas de organização do trabalho, de outras relações humanas, de outros tipos de participa-ção, a escola estimula o oportunismo: ao invés de estimular a ca-

75

pacidade de empreendimento (e nesta época tanto se fala do em-preendedorismo), a educação escolar estimula a espera da salvação vinda do Estado ou dos organismos públicos, cria as “rãs à espera de um rei”, abrindo caminho a todas as investidas demagógicas de es-querda e de direita, sendo capazes de eleger democraticamente os regimes políticos mais tirânicos, reeditando o Dezoito Brumário em várias latitudes e longitudes. A escola contribui para isso ao dividir a sociedade em classes sócio-culturais antagônicas, ao produzir a desculturação das classes populares, sob um discurso que promete exatamente o contrário. O insucesso da escola passa pela sua in-capacidade de propor desenvolvimento no plano das relações e, assim, encontrar soluções humanas para os problemas humanos. A violência escolar encontra aqui muitos elementos explicativos.

O insucesso da escola, a incapacidade de alcançar suas fina-lidades e sua missão declarada, é tanto mais grave quanto atinge a todas as camadas da população, ainda que em proporção menor: “Defino essa impotência como uma incapacidade de levar em con-ta o desejo do estudante – aluno, escolar, etc.– seja ele de um meio social elevado ou baixo [...]. Por desejo é preciso entender duas coisas. Em primeiríssimo lugar, trata-se do desejo que o estudante leva para a escola e que se construiu nele, no seio de sua família e em contato com o seu meio. Em seguida, é necessário entender o desejo que nasce, ou que pode nascer, a partir deste desejo inicial, devido aos contatos que suscita e permite [...]. O desejo gera o de-sejo. O desejo não nasce do nada, mas sim de um desejo anterior, que cria uma situação favorável ao aparecimento de outro desejo. A escola não se enquadra na dinâmica dos desejos. Prefere prever programas e avanços a priori, que normalmente não se adaptam aos desejos concretos [...]. O fenômeno central é que a escola não cria o incentivo centrado na sabedoria” (LOBROT: 1999, p. 60).

2.5 A escola que é preciso criarA escola burocrática deriva da opção tecnicista que leva a re-

jeitar, de fato, os valores humanistas, entendidos como todas as ati-tudes que conduzem ao respeito da liberdade e da autonomia dos seres humanos e favorecem sua relacionalidade.

O tecnicismo se caracteriza pela opção pelas estruturas opres-sivas e hierarquizadas, pela disciplina (as relações quotidianas) e pelos estudos que propõe. Estes são dominados pelos programas, pelos exames. E estes estão associados a sanções do sistema: apro-vação, reprovação. Os exames são convertidos no elemento supos-tamente mobilizador para o trabalho escolar dos estudantes. Eles obrigam, eles oprimem: os estudantes “passam”, são promovidos, ou “rodam”, são reprovados, não são promovidos. Que escola criar para ser capaz de realizar sua missão, inclusive a de promover a sa-bedoria?

A escola que os institucionalistas22 propõem precisa estar, te-órica e praticamente, estruturada segundo os princípios de liber-dade, de autonomia, de democracia, de relacionamento (Dewey,

22 Os institucionalistas, no caso, são uma corrente pedagógica bem caracterizada, na França, em torno de M. Lobrot, G. Lapassade, R. Lourau, mas igualmente Fer-nand. Oury e Aída Vasquez. De M. Lobrot, cite-se A Pedagogia Institucional. E de F. Oury e A . Vasquez, “Vers une pédagogie institutionnelle”.(este último sem tradução brasileira, anunciada há tempos pela Editora Perspectiva, mas não realizada).

76

Montessori, Freinet, Decroly, Paulo Freire, Oliveira Lima e outros). Trata-se de uma escola redefinida: ela abre espaços à subjetivida-de, à afetividade (e à sexualidade), aos incentivos, à relação com os outros, bem como ao conhecimento, à sabedoria. É uma escola vol-tada à formação. Os professores deixam de ser apenas peritos em determinados saberes, mas passam a ser, sobretudo, animadores de grupos, e até mesmo terapeutas23. Que assumem a dimensão relacional de suas atividades, respeitando a personalidade dos es-tudantes, não afastando o problema, recalcando-o. Esta escola se redefine pela sua missão educativa, formativa, não apenas instruti-va. É um espaço de desenvolvimento humano multirreferenciado, e não apenas intelectual, atuando como um meio social formador.

A escola moderna, na perspectiva institucionalista de M. Lo-brot e outros, é filha da burguesia técnica, caracterizada pela capa-cidade de gestão-informação-direção. Tem um poder direto sobre os homens e as instituições, mediados pela organização. É claro que a organização é fundamental, da mesma forma que o é o es-pírito organizativo. Como ser de outra maneira para gerir uma rede que envolve toda a população, milhões de estudantes, milhares de docentes e de técnico-administrativos? Mas ela não pode matar a formação, atividade voltada para a interioridade: aprender é uma atividade interior, de assimilação, que depende da vontade profun-da dos sujeitos, de suas motivações e de seus fantasmas. É ato sub-jetivo, difícil de objetivar, medir, planificar, organizar. É atividade da práxis. E tudo passa a dar errado se a primazia passa da pedagogia (práxis) para a organização e os organizadores e o espírito de or-ganização (poiesis). Pois a educação não pode ser reduzida a um problema de técnica, no qual se decide, se impõe, se resolve tecno-craticamente, ainda que citando pedagogos ilustres. As exigências da formação não são redutíveis a critérios simples como sucesso em exames, pois objetivos demasiadamente simplificados não são atingidos e impedem o alcance de outros, diz Lobrot.

3 A escola única e suas armadilhasPara Lobrot, a ideologia democrática (e vale acrescentar: libe-

ral) propõe a igualdade de todos perante a sabedoria e a promo-ção, igualdade de oportunidades independentemente das origens sociais, desejando que a escola não seja reprodutora das desigual-dades sociais e assim por diante. Prega-se, então, a escola única, a escola do povo, livre e igualitária. Tais postulados, entretanto, são extraordinariamente compatíveis com a tecnocracia organizativa quando impelem a que se sujeitem as crianças ao mesmo tipo de tratamento, ao mesmo ritmo, ao mesmo regime, aos mesmos qua-dros, mesmo tipo de estabelecimentos, de regime administrativo, (há até uma tipologia escolar entre nós), a única diferença ficando por conta das aptidões inatas, trazidas para a escola, dons da nature-za. Aí se encontram igualmente as escolhas curriculares. Afirma-se a 23 Vale registrar uma importante linha de elaboração teórica e metodológica reco-nhece uma dimensão clínica á Pedagogia. Ver, por exemplo, F. Imbert, “Vers une cli-nique du pédagogique: um itinéraire em sciences de l´éducation”, Vigneux:Matrice/PI, 1992. Ou ainda, do mesmo autor, e do Groupe de Recherche em Pédagogie Institutionnelle,”Médiations, institutions et loi dans la classe: pratioques de ppeda-gogie institutionnelle”, Paris: ESF éditeur, 1994). Trata-se de um conjunto de obras que precisam de urgente tradução e divulgação, para acrescerem-se ao movi-mento que existe com a preocupação de pensar a escola e sua organização.

77

existência de uma sabedoria universal, de conhecimentos de base, de corpus propedêuticos universalizados, busca-se o elemento co-mum a todas as disciplinas e a todas as ciências, busca-se então a “cultura geral”, métodos, linguagens e instrumentos comuns. Há os troncos comuns e as especializações, definidos num contexto neu-tro e desprovido de interesse, pois definido sem os interessados. O acesso à instituição escolar é gratuito, a freqüência é obrigató-ria: não se concebe a escolaridade como uma escolha pessoal, mas como uma imposição social, fenômeno tipicamente tecnocrático: “é necessário que se tenha instrução”. É um princípio de base que afasta muito o desejo de aprender. E, de quebra, definem-se des-de fora as ações a realizar, os programas, os cursos. Ao pretender regras extremamente rigorosas, forma-se um verdadeiro arquéti-po no plano dos objetivos pretendidos: para além da igualdade, se busca uma igualização, uma indiferenciação, uma nivelação. Busca-se um “sistema”. Propõe-se um ideal inatingível para muitas crian-ças, colocando-as numa situação de insucesso, de inferiorização relativamente aos demais colegas.

A busca da igualdade a todo preço gera uma hierarquização maciça, uma seleção impiedosa, pois é o meio social que está na origem da incapacidade de atingir as normas. E o sistema suposta-mente democrático se converte num sistema profundamente an-ti-democrático, em razão da seletividade que opera. Ela amplia as diferenças sociais. Quando o processo termina, ele classifica e hie-rarquiza a futura vida social (LOBROT:1990, p. 76-77). A lógica pro-duz resultados perversos, o arquétipo imposto desde cima, pelas exigências planificadoras, conduz a uma média. Então, proclamam-se os objetivos: ler, escrever e contar, ter conhecimentos, ser cida-dão honesto, profissional competente. Mas os resultados não são alcançados, porque não operacionalizáveis pedagogicamente. Daí resulta o fracasso. As diferenças sociais iniciais se transformam em inferioridade, em exclusão, em seletividade.

Os processos pedagógicos são psicológicos e sociais, não sus-cetíveis de abordagens mecanicistas. Submeter todo mundo a uma igualdade inicial, ao mesmo regime, não assegura que se chegue à igualdade no fim do processo. Esta é a grande ilusão tecnocrática. As desigualdades devem ser tratadas desigualmente.

4 Princípios de formação escolar numa perspectiva institucional

A perspectiva institucionalista propõe que um autêntico sis-tema de formação considere:

1) máxima diferenciação dos ramos e carreiras, desde o iní-cio;

2) individualização do trabalho de aprendizagem;3) autodeterminação do aluno perante os ramos e carreiras e

os métodos que lhe são oferecidos.Ao não se levar em consideração tais pressupostos, ter-se-á

muita organização e pouca pedagogia. De resto, a análise dos docu-mentos e planos oficiais, de política educacional, revela uma busca de diferenciações, individualizações e autodeterminações, impos-tas pelas circunstâncias e pelos fracassos. Há uma luta incessante entre o espírito pedagógico e o espírito organizador, aquele bus-

78

cando espaços de diferenciação, este reiterando a uniformidade, a padronização. O espírito organizador é burocraticamente igualiza-dor a qualquer preço, desconsiderando a subjetividade, o ser hu-mano com seus interesses e necessidades, como ator e co-autor de seu processo formativo, a formação como autorização.

Ao contrário, a diferenciação proposta pelos institucionalis-tas, far-se-ia a partir de grupos de base, grupos de animação e de relacionamento, a partir dos quais se fariam as escolhas. A individu-alização se faz pelo desafio da autonomia, do aprender a trabalhar sozinho, da aprendizagem de métodos de trabalho, de pesquisa, de informação, de reflexão sobre determinado assunto. E pelo uso dos recursos materiais disponíveis: as novas tecnologias em particular.

O desenvolvimento pessoal, finalmente, tornará possível o alcance das finalidades sociais: a aquisição bem sucedida de co-nhecimentos, indispensáveis ao domínio científico e tecnológico. O desenvolvimento pessoal torna-se meio para a inserção social. A formação abre os caminhos para a instrução, a profissionalização. E não o contrário!

Para Lobrot, referindo-se a seu país, a escola (francesa) atual não responde a uma missão de desenvolvimento que poderia de-sempenhar porque é apenas a continuidade de antigas estruturas escolares. Ela é a generalização dessas estruturas, através de plane-jamento, ampliando sua influência, sua cobertura. A isso se limitou o conceito de democratização, que não entrou no mérito dessas estruturas enquanto forma social heterônoma. As escolas generali-zaram-se, tornaram-se gratuitas, mais ou menos melhor equipadas, foram laicizadas em grande parte. Permanecem, entretanto, centra-das na aquisição de um certo número de conhecimentos e hábitos, deixando de lado as aptidões profundas, buscam “fazer aprender”, não se preocupam adequadamente com levar a “aprender a apren-der”. Não despertam o gosto pela reflexão, pela investigação, não chegam ao desejo, ao mundo afetivo. Elas se inspiram no princípio autoritário que consiste “em pretender fazer o bem às pessoas con-tra a sua vontade”. Trata-se de um princípio administrativo que de-sapropria as pessoas de seu ser-sujeito, da responsabilidade sobre si mesmo, tornando-o um objeto manipulável nas mãos dos mestres. Trata-se de uma adaptação das pessoas à sociedade, se necessário à revelia delas (“nem que seja a porrete”, como nosso personagem literário). A organização do trabalho educativo, nesta perspectiva, se torna padronizado: procedimentos idênticos para todo mundo, planificação para todos sem atendimento às características indivi-duais, com seus interesses, desvantagens ou diferenças sociais. Pre-valece o princípio da indiferenciação na definição dos programas, instruções, métodos e materiais educativos. Denominar-se-á de de-mocratização, em tais casos, o não-respeito pela diferença.

Daí que o sistema, criado pelas elites para si própria, continue sendo elitista. A natureza, por conseguinte, superficial da ação exer-cida pela escola, deixa intactas as influências estruturais anteriores e exteriores à escola, que continuam a determinar as possibilida-des de aquisição, os gostos, o dinamismo intelectual, as aspirações e os objetivos finais do indivíduo, quer se trate de vantagens, ou desvantagens. A estruturação da escola é a grande vilã da histó-ria: a escola mantém, contra tudo e contra todos, a obrigação de

79

aprender certas coisas – a ler, por exemplo –, em certo período de tempo (apesar de a maioria fracassar). É que a escola fabrica seus programas, seus ritmos, seus métodos, seus objetivos não levando em conta os estudantes, suas bagagens e interesses, mas refletindo, ao nível institucional, os programas e os empregos do tempo que são os da sociedade em geral. “Não há qualquer vontade diabóli-ca nisso, mas apenas a mania planificadora que não leva em conta nem os indivíduos, nem as suas diferenças. As crianças do povo não podem adaptar-se a essas normas porque são normas ideais, abs-tratas, que se dirigem a um aluno teórico, espécie de protótipo, que possuiria, à partida, todas as qualidades exigidas para realizar as normas. O mecanismo é o mesmo quando se impõe aos operários na cadeia de produção um certo ritmo, sob o pretexto de que os cronometradores calcularam que este corresponderia ao tempo de um indivíduo médio. Não se procura, ao fazer isso, perseguir aquele que não se pode adaptar a estas normas, mas procura-se assegurar a produção num esquema mecanicista e desumano” (LOBROT: 1990, p. 106-107). E nós, professores, ao aceitarmos as normas burocrati-zadoras, contribuímos, ainda que involuntariamente, ao processo elitizante. Somos os perfeitos agentes do sistema, que cumpre seus desígnios com nossa mediação.

Lobrot encaminha para a conclusão de sua tese: “...a escola atual está obcecada pelo igualitarismo e pela homogeneidade por-que é de essência burocrática. Em vez de considerar a criança como um ser humano integral, considera-a como um objeto escolarizável, idêntico em tudo às outras crianças que, também elas, não passam de objetos escolarizáveis. Feito isso ela responde a outro esquema de dominação [...] no qual certos indivíduos, em posição adminis-trativa, pretendem fazer o bem de todos pela coerção e pela ser-vidão de cada um, o que lhes atrai a simpatia e o apoio daqueles que, possuídos pelo medo do outro, procuram a sua salvação nesse processo. O constrangimento operado sobre a criança satisfaz, com efeito, os pais e a sociedade inteira, que vêem nele o seu futuro mais precioso. A escola é a instituição encarregada de aplicar este cons-trangimento. A seleção que daí resulta [...] é, de preferência, uma rejeição por não-conformidade” (LOBROT: 1990, p. 113).

5 As respostas do sistema ao fracasso Os fracassos deixam o sistema e seus dirigentes desolados.

Ninguém gostaria de tal seleção. Ela é detestável e detestada. E então se desencadeiam iniciativas de reparo: turmas de aperfeiço-amento, turmas de aceleração, turmas de transição, turmas de re-pescagem e assim por diante. De que se trata? Trata-se, em última instância, de fazer as turmas voltarem à “norma”, ao padrão, acabar com as distorções (entre elas a tão falada “distorção idade-série”). Trata-se de tentar conseguir fazer com que as crianças, todas elas, voltem a entrar no circuito comum, mas não escapem a esta edu-cação geral, âncora do funcionamento social burocrático e heterô-nomo. E graças ao sistema de exames – pilar do sistema escolar –, aos programas, ao emprego do tempo cronometrado, ao controle dos professores, todo mundo é submetido, cria-se a sociedade dócil, submissa, dependente, heterônoma. E se assegura a continuida-de de uma sociedade tecnocrática. Entretanto, se se quer instaurar

80

uma nova sociedade, uma sociedade outra, no sentido que Casto-riadis empresta ao termo “outro”, referindo-se a uma outra forma/figura de sociedade (e que no fundo consiste em tornar realidade as finalidades proclamadas pela sociedade liberal), deve-se criar uma outra escola (ou uma escola outra) como parte integrante de criação dessa nova sociedade. Esta nova escola (ou escola “outra”) deverá ter em conta:

1) a diversidade dos estudantes, adaptando-se a todos, a to-das as mentalidades, a todos os níveis sociais, a todas as psicologias, a todas as desvantagens e vantagens, a todos os ritmos, a todos os indivíduos;

2) o ponto comum é a formação máxima: oferecer os meios materiais e humanos para o máximo desenvolvimento pessoal, no sentido que cada um escolher, respeitada a soberania de cada indi-víduo, sem que ninguém se substitua a ele dizendo-lhe o que lhe interessa, o que o preocupa, o que ele procura, o que ele deve ob-ter;

3) considerar o “princípio da livre disposição”: não há enrique-cimento interior possível se este não for verdadeiramente desejado pelo seu autor. Esta é a lei da aprendizagem;

4) permitir reformas institucionais que facultem uma liber-dade de movimentos suficiente, suprimindo a “canga dos exames”, que ocupam o espaço da avaliação e que servem apenas como ele-mento de pressão para “trabalhar” escolarmente;

5) criar dispositivos pedagógicos e estruturais adequados, tais como:

i) princípio de imersão: deixar aos indivíduos possibilidades de se porem em contato com certos tipos de objetos ou atividades du-rante tempos extremamente longos, meses ou anos, pois é assim que se fazem as grandes aquisições, superando a dispersão dos cur-rículos e programas oficiais padronizados e desconectados;

ii) princípio do desenvolvimento “primal”: o ingresso numa ati-vidade requer permanecer durante muito tempo num nível extre-mamente baixo, primário, infantil, embrionário, que constitui a ma-triz de qualquer desenvolvimento. A aprendizagem pressupõe um apelo para a aquisição, um gosto, uma aspiração que são de ordem afetiva. É preciso criar a motivação, fazer nascer os interesses. É uma função iniciática, como na educação infantil;

iii) princípio do dualismo: articular animação e ensino. Fazer conviver uma dualidade: de um lado, estruturas e objetos relativa-mente rígido e fixos, portadores da informação e, de outro, estru-turas e objetos que suportam e reforçam a atividade subjetiva. “O essencial está num processo de suporte da própria atividade que foi aceita, encorajada, prolongada, valorizada e que pode afirmar-se e ir até ao fim”. A escola viva, centrada nas pessoas em formação, terá uma estrutura centrada inteiramente sobre o saber e os conhe-cimentos (bibliotecas, laboratórios e outros) e uma estrutura para ajudar os alunos a desenvolverem a comunicação, a viverem expe-riências desejadas, a afirmarem seus objetivos, a elaborarem seus fins, a falarem de seus problemas, estrutura esta, evidentemente, apoiada em animadores competentes. Os alunos circulariam entre essas duas estruturas: entre animação e saber, saber e animação.

Esta leitura institucionalista da organização escolar deve pro-

81

curar aguçar nossa capacidade de reler atenta e criticamente os di-positivos legais que regem nossas escolas, sua organização e seus processos. Isso é o que faremos a seguir.

6 A organização do trabalho educati-vo no Brasil

6.1 As disposições legaisEntre os artigos 22 e 28 da Lei 9394/96, encontram-se as prin-

cipais disposições normativas em função das quais a escola “institui” seu trabalho, e se “organiza” pedagogicamente. Entretanto, este “có-digo pedagógico” tem entre nós, também, uma história. E podemos começar pela Lei 4024/61, isto é, a primeira lelgislação “democráti-ca” que tivemos. De particular interesse são, no caso, dois artigos. O primeiro deles é o artigo 18. Ele estabelece:

“Nos estabelecimentos oficiais de ensino médio e superior será recusada a matrícula ao aluno reprovado mais de uma vez em qual-quer série ou conjunto de disciplinas”.

Nesse artigo aparecem dois conceitos centrais: o de reprova-ção, e o de “recusa de matrícula”. Já o artigo 20 fala da “organização do ensino primário e médio”, dispondo que:

“na organização do ensino primário e médio, a lei federal ou es-tadual atenderá:

a) à variedade de métodos de ensino e formas de atividade esco-lar, tendo-se em vista as peculiaridades da região e de grupos sociais;

b) ao estímulo de experiências pedagógicas com o fim de aper-feiçoar os processos educativos” (VILLALOBOS, p. 230).

No Título VI são apresentadas as finalidades dos diferentes ní-veis de educação:

a) “A educação pré-primária se destina aos menores ou até sete anos, e será ministrada em escolas maternais ou jardim de infância”(artigo 23);

b) “O ensino primário tem por fim o desenvolvimento do racio-cínio e das atividades de expressão da criança, e a sua integração no meio físico e social” (artigo 25);

c) “A educação de grau médio, em prosseguimento à ministrada na escola primária, destina-se à formação do adolescente”.

Tem-se, então, ora “ensino”, ora “educação”, às vezes, são indi-cados os destinatários, mas não as finalidades. Apenas ao referir-se à educação de grau médio é usado o termo “formação” (do adoles-cente), sem que seja conceituado o que se entende por tal. E pas-sa logo a tratar dos “ciclos” e das modalidades de ensino, para, em seguida, definir que, em cada um deles, haveria “disciplinas” e “prá-ticas educativas”, “obrigatórias e optativas”, definindo as competên-cias institucionais (Conselhos Federal e estaduais) para indicar tais disciplinas, inclusive as optativas dentre as quais a “escolha” pelos

82

estabelecimentos de ensino poderia ser feita. Aos Conselhos cabia “definir a amplitude e o desenvolvimento dos seus programas em cada ciclo” (artigo 35, parágrafos1º e 2º). E fala em “currículo” – o das duas primeiras séries do 1º ciclo deveria ser comum a todos os cursos de ensino médio no que se refere às matérias obrigatórias (parágrafo 3º).

O Capítulo I do Título VII é o mais rico da Lei 4024 no que se refere à organização do trabalho educativo propriamente falan-do. O artigo 36 estabelece a necessidade de aprovação em “exame de admissão” para se poder ingressar “na primeira série do primeiro ciclo dos cursos de ensino médio”, devendo ficar devidamente “de-monstrada satisfatória educação primária”, além de o candidato ter “onze anos completos ou (vir) a alcançar essa idade no correr do ano letivo”. O artigo 38, ao dispor sobre a “organização do ensino de grau médio”, é todo feito de “ normas”, que definem:

a) duração mínima do período escolar (180 dias de trabalho escolar efetivo, não incluído o tempo reservado a “provas” e “ exa-mes” e “24 horas semanais de aulas para o ensino de disciplinas e práticas educativas”);

b) cumprimento dos “programas” elaborados para o período de trabalho escolar;

c) formação moral e cívica do educando;d) atividades complementares de educação artística;e) instituição da orientação educativa e vocacional;f ) “freqüência obrigatória só podendo prestar exame final, em

primeira época, o aluno que houver comparecido a no mínimo 75% das aulas dadas”.

O artigo 39 trata da “apuração do rendimento escolar”, a cargo dos estabelecimentos de ensino, responsáveis pela expedição de “certificados de conclusão de séries e ciclos e diplomas de conclusão de cursos”. A “avaliação do aproveitamento do aluno” deveria levar em conta os resultados obtidos ao longo do ano escolar, “assegura-das ao professor, nos exames e provas, liberdade de formulação de questões e autoridade de julgamento”. Estes exames, por sua vez, deveriam ser “prestados perante comissão examinadora, formada por professores do próprio estabelecimento, e, se este fosse parti-cular, sob fiscalização da autoridade competente”. Em todo o Título VII aparecem os termos “séries” e “ciclos”, determinado que “o ensino primário será ministrado, no mínimo, em quatro séries anuais” (art. 26), podendo durar até seis anos e iniciando os alunos “em artes aplicadas, adequadas ao sexo e à idade”. Quanto ao ensino médio, lembremos, seria divido em dois “ciclos”, o “ginasial” e o “colegial”. O colegial abrangeria o curso “secundário”.

Uma preocupação comum a todas as leis, concebidas como “sistemas” normativos, é aquela com a “transferência” dos alunos. No caso de ela acontecer, seriam permitidas “adaptações”. Final-mente, o artigo 43 dispõe que “cada estabelecimento de ensino médio disporá em regimento ou estatutos sobre a sua organização, a constituição dos seus cursos e o seu regime administrativo, disci-plinar e didático”. Era o espaço de autonomia concedido aos esta-belecimentos.

83

A Lei 5.692/71 traz interessantes e sugestivos elementos ino-vadores quanto à organização do trabalho escolar. É importante ter presente que, àquela época, estava em voga a teoria do capital humano, e segundo ela se apregoava a importância da educação para o desenvolvimento econômico – era a época do denominado “milagre brasileiro” e as estatísticas educacionais eram pouco ani-madoras. Elevadas taxas de analfabetismo, insuficiência de cober-tura escolar, elevados índices de evasão e repetência –com seus custos muito bem calculados – faziam a preocupação dos siste-mas. Assim, por exemplo, no Estado de Santa Catarina, em 1969, se implantou uma nova legislação de ensino que propunha o fim das reprovações e repetências, introduzindo o “avanço progressivo”, modalidade de organização em que não mais haveria reprovação, a avaliação dos alunos devendo ser feita mais qualitativamente, seu histórico sendo registrado numa ampla folha corrida de avaliação escolar. Dentro deste espírito, podem-se registrar no texto da lei as seguintes disposições:

1) Os estabelecimentos de ensino deveriam ser criados ou reorganizados “sob critérios que assegurem a plena utilização dos seus recursos materiais e humanos, sem duplicação de meios para fins idênticos ou equivalentes”(artigo 2º);

2) “A organização administrativa, didática e disciplinar de cada estabelecimento de ensino será regulada no respectivo regimento, a ser aprovado pelo órgão próprio do sistema, observadas as nor-mas fixadas pelo respectivo Conselho de Educação (parágrafo úni-co do artigo 2º);

3) A composição curricular, ao nível dos estabelecimentos, deveria levar em conta um “núcleo comum”, obrigatório nacional-mente, e uma “parte diversificada”, fixada regionalmente, que deve-ria atender às peculiaridades locais, aos planos dos estabelecimen-tos, inclusive “às diferenças individuais”, “conforme as necessidades e possibilidades concretas” (artigo 4º );

4) Instituía o conceito de “currículo pleno”, significando com isso a articulação, ao nível de cada unidade de ensino, das “discipli-nas, áreas de estudo e atividades”, nas quais as matérias de ensino fossem traduzidas didática ou pedagogicamente, tratando do seu “relacionamento, ordenação e seqüência” (artigo 5º);

5) O currículo deveria ser ordenado “por séries anuais de dis-ciplinas ou áreas de estudo organizadas de forma a permitir, con-forme o plano e as possibilidades do estabelecimento, a inclusão de opções que atendam às diferenças individuais dos alunos e, no ensino de 2º grau, ensejem variedade de habilitações”(artigo 8º );

6) Admitia-se a organização semestral no ensino, tanto de 1º quanto de 2º graus, a matrícula por disciplina no 2º grau e, inclusive, que, em qualquer grau, pudessem se organizar “classes que reúnam alunos de diferentes séries e de equivalentes níveis de adiantamen-to, “para o ensino de línguas estrangeiras e de outras disciplinas, áre-as de estudo ou atividades em que tal solução se aconselhe”(artigo 8º, parágrafos 1º e 2º);

7) Poder-se-ia dispensar “tratamento especial” aos portadores de deficiências físicas ou mentais, aos “que se encontrem em atraso considerável quanto à idade regular de matrícula” e aos superdo-

84

tados, respeitadas as normas dos respectivos Conselhos de Educa-ção;

8) Mantida a duração do ano e do semestre letivos em 180 e 90 dias, respectivamente, instituíam-se os períodos de “recupe-ração” para os alunos de aproveitamento irregular e, inclusive po-dem-se ministrar disciplinas, áreas de estudo ou atividades “em ca-ráter intensivo” nos períodos de férias ou “entre os períodos letivos regulares”;

9) A verificação do rendimento escolar, sob responsabilidade dos estabelecimentos de ensino, deveria considerar a “avaliação do aproveitamento e a apuração da assiduidade”, sendo que, re-lativamente ao aproveitamento, “aspectos qualitativos” deveriam prevalecer sobre os “quantitativos”, introduzindo-se a expressão da avaliação por “menções” e não apenas “notas” e, mais importante talvez,

10) Poder-se-ia admitir, “verificadas as condições necessárias”, “a adoção de critérios que permitam avanços progressivos dos alu-nos pela conjugação dos elementos de idade e aproveitamento”;

11) Admitia-se a matrícula “com dependência de uma ou duas disciplinas” a partir da 7ª série;

12) Explicitava-se que o ensino de 1º grau se destinava à “for-mação da criança e do pré-adolescente, variando em conteúdo e métodos segundo as fases de desenvolvimento dos alunos”, en-quanto o ensino de 2º grau era destinado “à formação integral do adolescente”;

13) Finalmente, o artigo 64, talvez o menos utilizado da lei, dispunha que os Conselhos de Educação poderiam autorizar “expe-riências pedagógicas, com regimes diversos dos prescritos na pre-sente lei, assegurando a validade dos estudos assim realizados”.

A leitura do texto legal sugere um esforço dos pedagogos responsáveis pela sua elaboração, por uma flexibilização das ins-tituições educativas, de sorte a torná-las mais adaptáveis às neces-sidades e características dos formandos, em que pese uma grande ambivalência entre desenvolvimento integral e valoração dos as-pectos cognitivos, pois não há uma definição do que sejam “aspec-tos qualitativos” a avaliar.

Este quadro de busca de “flexibilização” da organização do trabalho escolar se repete na Lei n.º 9394/96, no Título V, capítulo II, Seção I, nas “disposições gerais” relativas à organização do trabalho escolar. Essas disposições são antecedidas por uma reafirmação da finalidade da educação básica: “desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos pos-teriores” (art. 22). Quanto à organização do trabalho escolar, cabe destacar as seguintes disposições:

1) Possibilidade de organização por séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, gru-pos não-seriados “com base na idade, na competência e em outros critérios, sempre que o interesse do processo de aprendizagem as-sim o recomendar” (art.23);

2) Classificação dos alunos em qualquer série ou etapa, exce-

85

to a primeira do ensino fundamental, considerando promoção com aproveitamento na série ou fase anterior; por transferência para os alunos procedentes de outras escolas e até independentemente de escolarização anterior mediante avaliação feita pela escola, consi-derando o grau de desenvolvimento e experiência do candidato;

3) Formas de progressão parcial, quando seriada;4) Organização de turmas ou classes com alunos de séries dis-

tintas, segundo o adiantamento na matéria;5) Verificação do rendimento escolar com base em avaliação

contínua e cumulativa, prevalência de aspectos qualitativos, pos-sibilidade de aceleração de estudos, possibilidade de avanço nos cursos e nas séries mediante a verificação do aprendizado, obriga-toriedade de estudos de recuperação.

Registre-se, finalmente, que ao dispor sobre o ensino fun-damental de maneira específica, a lei reitera o objetivo de “forma-ção básica do cidadão”, através da “capacidade de aprender” pelo domínio da leitura, da escrita e do cálculo, o “desenvolvimento da capacidade de aprendizagem tendo em vista a aquisição de conhe-cimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores”, reiteran-do, igualmente, a possibilidade de desdobrar o ensino fundamental em ciclos e o regime de progressão continuada (art.32, incisos I e III, e § 1º).

Este foi um inventário das disposições normativas, materia-lizadas nos textos legais, referentes à organização do trabalho es-colar. Um texto de jornal (FSP, 18/9/97) traz matéria sucinta, mas ilustrativa. Nela são transcritas críticas aos artigos 23 e 24 da LDB, feitas pelo presidente do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensi-no do Estado de São Paulo (SINDEEESP) que se refere aos disposi-tivos liberalizantes como a “lei de Gérson da educação”. Trata-se de uma reação a duas resoluções do Conselho Estadual de Educação daquela unidade da federação regulamentando a introdução dos ciclos e dando às escolas a possibilidade de classificar e reclassificar os alunos, com base em seu projeto pedagógico. Na matéria, o críti-co se refere à LDB como a “constituição” da área educacional.

Expostos os dispositivos “constitucionais” explicitados na lei, cumpre, então, aos cursistas, aprofundar a análise do tema, comen-tando os tópicos à luz das teorias pedagógicas apropriadas. Mas resta ainda um registro a fazer.

6.2 As portas da inovaçãoEm todas as leis aparece uma disposição que merece, a meu

ver, ser mais considerada. É a que trata da “experimentação”. Na Lei 4024/61 ela aparece assim:

“Será permitida a organização de cursos ou escolas experimen-tais, com currículos, métodos e períodos escolares próprios, dependen-do o seu funcionamento, para fins de validade legal, da autorização do Conselho Estadual de Educação, quando se tratar de cursos primários e médios, e do Conselho Federal de Educação, quando de cursos supe-riores ou de estabelecimentos de ensino primário e médio sob a jurisdi-ção do Governo Federal”(Artigo 104).

86

A Lei 6692/71 se expressa assim:

“Os Conselhos de Educação poderão autorizar experiências pe-dagógicas, com regimes diversos dos prescritos na presente lei, asse-gurando a validade dos estudos assim realizados” (Artigo 64).

Esta possibilidade permanece na Lei 9394/96 com o seguin-te teor:

“É permitida a organização de cursos ou instituições de ensino experimentais, desde que obedecidas as disposições desta lei” (Artigo 81).

Não estará aqui um caminho a ser melhor explorado, rumo a uma mudança mais profunda da organização do trabalho, levando às últimas conseqüências as possibilidades de elaborar uma “pro-posta pedagógica” que leve em conta a singularidade de cada esta-belecimento, situado social-historicamente em contextos sempre específicos? E não conduziria, esse caminho, a um conceito de “rede de ensino”, em substituição ao conceito de “sistema”, carregado de um peso burocratizante e homogeneizador inegável?

ATIVIDADES SUGERIDAS

1. Releia atentamente a primeira parte deste módulo. Levante todos os pontos com os quais você está de acordo. Faça o mesmo com os pontos com os quais está em desacordo. Debata-os com seus colegas de trabalho e/ou de curso. Destaque os pontos que gostaria de ver numa lista de discussão (via internet).

2. Comente as disposições sobre a organização do trabalho educativo, tais como propostos pela atual LDB à luz das propostas avançadas por Michel Lobrot.

3. Faça uma pesquisa sobre experiências de mudança em educação. Levante bibliografia a respeito. Por exemplo: Paulo Freire em “A Educação na Cidade”, ou os livros de Celestin Freinet, ou os exemplares da coleção publicada pelo Ministério da Educação e do Desporto, na série “INOVAÇÕES”, como, por exemplo, o volume inti-tulado Escola Plural: proposta político-pedagógica.

4. Troque idéias com seus colegas sobre as diferentes mudan-ças vividas por cada um em sua rede de ensino. Quantas experiên-cias de mudança já foram vividas? Quais as características de cada uma delas? Quais, de seu ponto de vista, as mudanças aceitáveis e as não aceitáveis? Por quê?

5. Faça uma relação das mudanças que você recomendaria em sua escola, notadamente nas relações entre professores e alu-nos, no processo de aprendizagem e ensino. Faça um balanço da sua experiência como educador(a), destacando, se for o caso, as di-ferenças em cada nível ou modalidade de ensino ou educação.

7 A formação dos quadros docentes

7.1 Os docentes: protagonistas de um novo projeto

87

ou força-auxiliar do sistema?Certamente um dos ramos mais antigos do sistema de ensino

brasileiro seja o da formação de “normalistas”. As escolas normais, de fato, vêm do século XIX, e as “normalistas” são decantadas em prosa e verso. Há até um romance de Inglês de Sousa cujo título é A Normalista. Mas, deixando de lado uma certa visão romanceada da profissão e de suas (ou seus) profissionais, elas e eles exercem uma função vital na sociedade: a formação das gerações.

O crescimento das redes, sua expansão espetacular trouxe professoras e professores a uma situação sócio-econômica tipica-mente proletarizada. Longe está a época em que “chopim” era a denominação maliciosa de marido de professora (invejavelmente remunerada, em termos relativos!). Como quer que seja, a categoria se ampliou, se proletarizou (ou foi proletarizada), ao mesmo tempo em que se organizou, se associou, se sindicalizou, e passou a ser um ator coletivo dentro do “sistema educacional”.

Já foi visto, na segunda parte deste trabalho, como, no Títu-lo IV, ao dispor sobre a “organização da educação nacional”, a Lei 9394/96 inicia pelas responsabilidades da União, desce pelos Es-tados, Distrito Federal e Municípios, para “aterrissar” nos estabele-cimentos (Artigo 12) e, dentro deles, desembocar nos professores (Artigo 13). O texto da lei, plenamente verticalista, isto é, situando numa posição “de cima para baixo”, passa aos professores as atribui-ções operativas de:

1) “participar da elaboração da proposta pedagógica do estabe-lecimento de ensino;

2) elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pe-dagógica do estabelecimento de ensino;

3) zelar pela aprendizagem do aluno;4) estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de me-

nor rendimento;5)ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de

participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional;

6) colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade”.

Registre-se, entretanto, que, através de suas entidades repre-sentativas, os professores estiveram presentes em todos os mo-mentos da elaboração da atual legislação, dentro do Fórum das Entidades, combatendo pelo seu projeto de lei, contrapondo-se ao projeto oficial que, ao termo, acabou prevalecendo. Mas o objetivo desta unidade é tratar da formação dos docentes. Lembremo-nos de que a primeira Lei Orgânica do Ensino Normal saiu em 1946, ao término da ditadura varguista, juntamente com a Lei Orgânica do Ensino Primário. Uma coisa e outra estiveram, desde então, associa-das.

7.2 A formação docente na primeira LDBNa Lei 4024/61, a formação docente é tratada no Capítulo IV,

do Titulo VII que, vale lembrar, tratava do ensino médio. Sob o título “Da formação do Magistério para o Ensino Primário e Médio” dispu-

88

nha que:

I) a formação de professores, orientadores, supervisores e ad-ministradores escolares destinados ao ensino primário, bem como o “desenvolvimento dos conhecimentos técnicos ”relativos à edu-cação da infância seriam a finalidade do ensino normal;

II) essa formação poder-se-ia dar em “escola normal de grau ginasial”, com quatro anos, com disciplinas próprias do ginásio acrescidas de “preparação pedagógica”, ou em “escola normal de grau colegial”, estas com três séries anuais, “no mínimo”, em prosse-guimento ao ginasial;

III) as escolas normais de grau ginasial formariam os “regen-tes de ensino primário”, enquanto as de grau colegial formariam os “professores primários”;

IV) os “institutos de educação” (instituição importante na his-tória da educação brasileira) poderiam oferecer, além dos cursos de formação acima mencionados (de regente e de professor primário), cursos de especialização, de administradores escolares e de aper-feiçoamento, abertos aos graduados em escolas normais de grau colegial;

V) a formação dos professores para o ensino médio seria feita nas “faculdades de filosofia, ciências e letras”, enquanto os profes-sores para as disciplinas específicas do ensino médio técnico seria feita em “cursos especiais de formação técnica”;

VI) finalmente, dispunha que “nos institutos de educação poder(iam) funcionar cursos de formação de professores para o en-sino normal, dentro das normas estabelecidas para os cursos peda-gógicos das faculdades de filosofia, ciências e letras”.

A formação dos “orientadores de educação” e dos “inspetores” era tratada à parte. E foi nesse contexto que começaram a surgir as Faculdades de Educação e os Cursos de Pedagogia (mas, isto é outra história).

7.3 A era dos “especialistas”A lei 5692/71 trata da formação docente no Capítulo 5, “Dos

Professores e Especialistas”. E dispunha que tal formação:

I) fosse feita “em níveis que se elev(ass)em progressivamente,II) ajustando-se as diferenças culturais de cada região;III) com orientação que atende(sse) aos objetivos específicos

de cada grau, às características das disciplinas, áreas de estudo ou atividades e “as fases de desenvolvimento dos educandos”;

IV) requeria-se mínimo de 2º grau para atuar de 1ª a 4ª séries do 1º grau, e habilitação específica para atuar no 2º;

V) previa-se a possibilidade de uma “licenciatura de primeiro grau” (para atuar da 1º à 8ª série, a ser ministrada em “cursos de cur-ta duração);

VI) finalmente, “habilitação específica obtida em curso supe-rior de graduação”, correspondente a “licenciatura plena”, em todo o ensino de 1º e de 2º graus.

As licenciaturas deveriam ser ministradas “nas universidades

Especialistas ou genera-listas: O que você pensa sobre essa questão?

89

e demais instituições que mantenham cursos de duração plena”. Os especialistas, entendendo-se como tais “administradores, plane-jadores, orientadores, inspetores, supervisores de demais...”, eram formados em curso superior de graduação, com duração curta ou plena, ou de pós-graduação. Completam o quadro geral (afora de-talhes que não vêm ao caso, neste momento) as seguintes disposi-ções:

I) os sistemas de ensino deveriam estimular, mediante plane-jamento apropriado, o aperfeiçoamento e atualização constantes dos seus professores e especialistas de Educação;

II) a remuneração dos professores e especialistas deveria ser fixada “tendo em vista a maior qualificação em cursos e estágios de formação, aperfeiçoamento ou especialização, sem distinção de graus escolares”;

III) os formados em grau superior deveriam, para poder exer-cer o magistério ou a especialidade pedagógica, obter o “registro profissional” em órgão do Ministério da Educação.

7.4 Na república dos professoresA Lei 9394/96 atualiza essa temática. E o faz destacando-a

num título específico, o Título VI, onde dispõe sobre “os profissio-nais da educação”, designação já por si sugestiva, ao apelar para o “profissionalismo”, por contraste com o romantismo pregresso. Esta Lei (Artigo 61) deve “atender aos objetivos dos diferentes níveis e modalidades de ensino e às características de cada fase do desen-volvimento do educando”, tendo como fundamentos:

I – a associação entre teorias e práticas, inclusive mediante a capacitação em serviço;

II – aproveitamento da formação e experiências anteriores em instituições de ensino e outras atividades.

O nível da formação docente para atuar na “formação básica” (ou seja: na educação infantil, fundamental e média) “far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação in-fantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a ofere-cida em nível médio, na modalidade Normal” (art. 62).

De acordo com a lei (a prática é outra história), portanto, a for-mação “na modalidade Normal” passa a ter seus dias contados, uma vez que se preconiza, clara e abertamente, a “formação em nível su-perior”. Por outro lado, essa formação “em nível superior” pode-se dar tanto em universidades (e por conseqüência, nas Faculdades de Educação e seus cursos de Pedagogia) quanto em “institutos supe-riores de educação”. A lei, portanto, resgata a figura dos Institutos de Educação, porém, não mais ao nível médio. Agora, ao “nível su-perior”. E cria uma figura institucional para concorrer com as Facul-dades de Educação e com os cursos de Pedagogia. As disposições legais (artigos 64, 65 e 66) determinam ainda que:

I) a formação de profissionais da educação para a administra-

90

ção, planejamento, inspeção, supervisão e orientação educacional para a educação básica, seja feita em cursos de graduação em Pe-dagogia, ou em nível de pós-graduação, a critério da instituição de ensino;

II) essa formação deve ter “uma base comum nacional”;III) deve incluir “prática de ensino” de no mínimo trezentas ho-

ras;IV) a preparação para o magistério superior deve se fazer em

nível de pós-graduação, prioritariamente em mestrado ou douto-rado.

E se reitera a necessidade de “valorização dos profissionais da educação” (artigo 67). Esta se concretizará pela inserção, nos planos de carreira e nos estatutos, das seguintes disposições:

I) ingresso “exclusivo” por concurso público de provas e títu-los;

II) aperfeiçoamento profissional continuado, “inclusive com licenciamento remunerado para esse fim”;

III) progressão funcional baseada na titulação ou habilitação “E” na “avaliação do desempenho”;

IV) período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho;

V) condições adequadas de trabalho;VI) exigência da experiência docente ”como pré-requisito para

o exercício profissional de quaisquer outras funções de magistério.”

Certamente tem-se, no caso, o reflexo das lutas dos “profissio-nais da educação” auto-instituídos, no processo social-histórico bra-sileiro, como atores e co-autores das instituições educativas, mais que meros agentes ou executantes das disposições da burocracia educacional e estatal. O que, evidentemente, não significa que se haja chegado à perfeição, situação social-histórica jamais realizável, mas sempre a ser buscada e conquistada como projeto de cada ca-tegoria profissional, atenta certamente a seus interesses corporati-vos legítimos, e sem perder de vista os interesses e as condições da sociedade como um todo, para evitar cair no “materialismo sórdido” de um corporativismo cego e carreirista que K. Marx tanto critica na sua crítica à teoria do Estado de Hegel. Mas, voltemos ainda um pouco à problemática da formação docente.

7.5 O conflito, a violência e o que está em jogo A preocupação com as condições precárias do sistema esco-

lar brasileiro, com seus déficits de quantidade e, agora, sobretudo, de qualidade, levou os legisladores a instituírem a Década da Edu-cação (Título IX – Das Disposições Transitórias). E entre outras dis-posições (elaboração de um Plano Nacional de Educação; recense-amento dos educandos no ensino fundamental especialmente os grupos de sete a quatorze e quinze a dezesseis anos; prover cursos presenciais ou a distância para jovens e adultos insuficientemente escolarizados; integração de todos os estabelecimentos de ensino fundamental do território brasileiro ao sistema nacional de avalia-ção do rendimento escolar; progressão das redes escolares públicas

91

urbanas de ensino fundamental para o regime de escolas de tempo integral), determina:

I – A determinação de que a formação dos profissionais da educação básica aconteça em nível superior deve, certamente, ser saudada como um avanço. A instituição dos Institutos Superiores de Educação, porém, tem causado polêmica. E, em particular, a criação dos Cursos Normais Superiores e a imposição de sua “exclusivida-de” na formação, conforme o texto inicialmente editado do Decre-to presidencial24. “Realizar programas de capacitação para todos os professores em exercício, utilizando também, para isto, os recursos da educação a distância” (artigo 87, parágrafo 3º, item III); e

II – “até o fim da década da Educação somente serão admiti-dos professores habilitados em nível superior ou formados por trei-namento em serviço”. (parágrafo 5º).

Criou-se assim um compromisso de grande envergadura, pois o número de “funções docentes” no ensino fundamental (1ª a 8ª) era, em 1998, equivalente a 2.129.274. E tomando por base que a cada função docente corresponderia um professor, as estimativas são de que haveria 29.458 professores em educação infantil preci-sando de formação de nível médio (e/ou superior); para as quatro primeiras séries, seriam 94.976 docentes precisando de formação de nível médio (normal) ou superior; nas últimas quatro séries, se-riam 159.883 os docentes carecendo de formação em nível supe-rior.25 Trata-se de um contingente superior a 300.000 docentes. E como não pode haver mágica que dispensa a formação, o compro-misso implica investimentos maciços nos programas de formação de professores, nas Faculdades de Educação, nos cursos de Peda-gogia, notadamente nas universidades públicas, onde se concen-tram os maiores contingentes de especialistas pós-graduados, ao longo de cinqüenta anos de pós-graduação. Evidentemente, esse custo diminui se a formação for “barateada” e, sobretudo, se for re-alizada pelas instituições privadas, evidentemente custeadas pelos próprios professores do ensino fundamental com seus salários. Isso representaria, por certo, uma reedição, ao final do século, da estra-tégia dos governos militares, que consistiu em viabilizar a expansão das matrículas no ensino superior incentivando o setor privado a in-vestir nesse nível de ensino, privatizando-o em 60% das matrículas, conforme os dados do Plano Nacional de Educação, já citado.24 No bojo do processo de democratização da sociedade, e da própria educação, foi uma violência sem par a subtração da elaboração das normas sobre a for-mação docente e os Instututos Superiores de Educação, das Comissões de Es-pecialistas que o MEC costuma consultar, e, mais que isso, sua subtração ao Con-selho Nacional de Educação, onde estavam para ser estabelecidas, nos termos das competências institucionais, e indo diretamente à Presidência da República para ser implantada por decreto, o Decreto nº 3.276 de 06/12/99. E exatamente na véspera de sua apreciação pelo plenário do Conselho Nacional de Educação, diante dos educadores de todo o país e de toda a sociedade. A posterior corre-ção, substituindo o termo “exclusivamente” por “preferencialmente”, corrige uma injustiça, mas não desfaz a mancha autoritária que continua marcando o docu-mento e sua legitimidade. O que este em jogo? Para a contundência da ação go-vernamental, certamente não é pouca coisa. Não basta a atenção ao “dizer” da lei, é sempre preciso estar atendo ao “fazer” dos administradores e intérpretes da lei, pois conhecemos a cruel separação entre “valores proclamados” e “valores reais”, ou executados.25 Plano Nacional de Educação, apresentação de Vital didonet. Brasília: Editora Pla-no, 2001, p. 152.

92

A criação dos Institutos Superiores de Educação certamente não precisa ser apenas isso, pois os espaços de formação docente podem ser repensados, recriados, reestruturados, ainda há muitos desafios a superar. Pode-se aceitar a idéia de “constituição de todo um novo ambiente institucional, mais propício à renovação das práticas necessárias à formação dos docentes”26, mas não podem ser inferiores em instalações e quadros docentes às Faculdades de Educação e seus cursos de Pedagogia, com tradição e experiência acumuladas historicamente.

Entretanto, a Resolução CP nº 1, de 30 de setembro de 1999, admite um corpo docente com “pelo menos 10% (dez por cento) com titulação de mestre ou doutor” e “1/3 (um terço) em regime de tempo integral”. (artigo 4°, parágrafo 1º, itens I e II). Pelo Parecer n.º CP 10/2000, de maio de 2000, o Conselho Nacional de Educação aprovou a substituição da expressão “exclusivamente” por “prefe-rencialmente”, mitigando a situação criada pelo Decreto nº 3.276, de dezembro de 1999. Mas não marcou posição contra a iniciativa do decreto que, autoritário, usurpou as competências do próprio Conselho e feriu de morte o conceito de democracia no processo formativo, dando um exemplo de educação autoritária exatamente aos futuros formadores. O gesto autoritário do Presidente da Repú-blica valeu, por enquanto, apenas para aquela categoria que mais se tem afirmado como sujeito social-histórico na instituição da so-ciedade e da educação brasileiras...

Será possível, algum dia, uma educação democrática sem formar os docentes para tal sociedade e tal educação? Um projeto legislativo, negociado com as bancadas oposicionistas, tramita no Congresso Nacional objetivando desfazer tamanho acinte à demo-cracia e à formação. Seu resultado certamente depende da mobili-zação da categoria que está desafiada a “educar o educador presi-dente”. Estes esclarecimentos são importantes, pois os educadores e educandos não podem estar alienados em relação a tais questões, vitais para seu próprio processo “formativo”, e não apenas “qualifica-tivo” ou “certificativo”.

Mas, para não destacar apenas o lado negativo, é importante ressaltar o que se destaca nos trabalhos sobre a formação docente, como ponto, a meu ver, positivo:

i) a instituição de mecanismos de entendimento das institui-ções formadoras com os sistemas de ensino para assegurar o de-senvolvimento da parte prática da formação em escolas de educa-ção básica;

ii) a organização da parte prática da formação com base no projeto pedagógico da escola em que vier a ser desenvolvida (pro-piciando o diálogo entre ambas as instituições);

iii) a supervisão da parte prática da formação através de semi-nários multidisciplinares;

iv) a participação da escola na avaliação dos formandos em sua parte prática;

v) a preocupação com a articulação entre teoria e prática, va-lorizando o exercício da docência;

vi) a preocupação com a articulação entre as áreas de conhe-cimento ou disciplinas;26 Diretrizes Gerais para os Institutos Superiores de Educação. Parecer n.º CP 53/99, do Conselho Nacional de Educação.

93

vii) o aproveitamento da formação e experiências anteriores em instituições de ensino e na prática profissional;

viii) a preocupação com a ampliação dos horizontes culturais e o desenvolvimento da sensibilidade para as transformações do mundo contemporâneo.

Abre-se uma nova perspectiva para a formação docente, ape-sar dos pesares. Resta exigir que os Poderes Públicos não passem essa responsabilidade ao setor privado, deixando os docentes à mercê dos interesses do capital lucrativo. E resta que as instituições formadoras públicas sejam corajosas no enfrentamento das inova-ções propostas e de seus desafios, assumindo a iniciativa e a lide-rança do processo, ocupando os espaços que são seus e, a partir deles, lutando pelos recursos indispensáveis.

ATIVIDADES SUGERIDAS

1. Leia os Pareceres CP 53/99; CP 115/99; CP 10/2000. Desta-que os pontos com os quais você concorda e com os quais discorda. Debata-os com colegas de trabalho. Elabore um texto com a expo-sição de suas considerações e conclusões. (Você encontra os textos na internet: <http;//www.mec.gov.br>, e, a partir daí, localizando o Conselho Federal de Educação.

2. Leia o Plano Nacional de Educação, no item IV –MAGISTÉ-RIO DA EDUCAÇÃO BÁSICA. Elabore um texto com suas análises e seus comentários, após discutir com colegas de trabalho.

3. Aprofunde o estudo e a discussão sobre os conceitos de “qualificação” e “formação” docente. Que significa cada um dos ter-mos quando considerados na sua profundidade conceitual?

4. Apanhe os documentos com o currículo do seu curso de formação, analise-o, considerando, por um lado, sua concepção te-órica e, por outro, a maneira como vem sendo realizado.

5. Procure repensar sua formação, desde seu início. Faça uma espécie de “memorial”, destacando aquilo que você considera ines-quecível, por ter gostado e/ou por ter desgostado profundamen-te. O que te fez crescer, o que te feriu, apequenou. Qual seria, para você, o perfil do “professor(a) inesquecível”?

94

Bibliografia

BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto nº 3.276, de 06.12.1999. Dispõe sobre a formação em nível superior de professores para atuar na educação básica, e dá outras providências.BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CP nº 1, de 30.09.99. Dispõe sobre os Institutos Superiores de Educação, conside-rados os artigos 62 e 63 da Lei 9.394/96 e o artigo 9º, parágrafo 2º, alí-neas “c” e “h” da Lei 4.024/61, com a redação dada pela Lei 9.131/95.BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer nº CP 115/99, apro-vado em 10/08/99. Diretrizes Gerais para os Institutos Superiores de Educação”.BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Proposta de Diretrizes para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica, em Cursos de Ní-vel Superior. Brasília: MEC, maio/2000. (Endereço eletrônico: www.mec.gov.br).BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer CEB nº /2001, de ../../...(Processo). Diretrizes Curriculares para a Formação de Professo-res da Educação Básica em Nível Superior (Relator: Carlos Roberto Ja-mil Cury).BRZEZINSKI, Iria. A formação do Professor para o Início da Escolariza-ção. Goiânia: Editora UCG, 1987.MARQUES, Mário Osório. Formação do Profissional da Educação. 3. ed. At. Ijuí, RS: Ed. UNIJUÍ, 2000.NÓVOA, Antonio (org.). Profissão: professor. Porto: Porto Editora, 1991.RIBEIRO, Antônio Carrilho. Formar professores: elementos para uma teoria e prática da formação. 4. ed. Lisboa: Texto Editora, 1993.BERNARDO, Maristela Veloso Campos (et al.). Pensando a educação: ensaios sobre a formação do professor e a política educacional. São Paulo: Editora da UNESP, 1989.SILVA, Waldeck Carneiro da. (org.). Formação dos Profissionais da Educação: o novo contexto legal e os labirintos do real. Niterói, RJ: EdUFF, 1998.

95