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RDS VI (2014), 3‑4, 565‑588 Organização e supervisão dos mercados financeiros * PROF. DOUTOR A. BARRETO MENEZES CORDEIRO, LLM Sumário: 1. Enquadramento. § 1.º Banca universal e Direito dos mercados financeiros: 2. Estados Unidos da América; 3. Europa Continental; 4. Vantagens e desvantagens dos dois sistemas: breve análise. § 2.º Supervisão dos mercados financeiros: situação atual: 5. Aspetos introdutórios; 6. Banco de Portugal; 7. Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários; 8. Insti‑ tuto de Seguros de Portugal; 9. Complementaridade dos três supervisores. § 3.º Modelos de supervisão: 10. Enquadramento; 11. Sistema especializado; 12. Sistema monista; 13. Sistema funcional; 14. Conclusões. 1. Enquadramento I. A crise financeira iniciada em 2007 e que ainda hoje, sete anos volvidos, parece não ter sido ultrapassada, levantou sérias dúvidas sobre a adequação dos sistemas de supervisão nacionais e supranacionais vigentes – pense-se no caso paradigmático da realidade europeia –, espoletando, pelo caminho, o interesse das Ciências económicas e jurídicas pelo tema. De resto, está demonstrado que as crises financeiras assumem, classicamente, um papel decisivo na transformação dos sistemas de supervisão 1 . No seio da União Europeia, a discussão assume duas dimensões: (i) integração horizontal – aprofundamento das relações institucionais entre as entidades nacio- nais; e (ii) integração vertical – integração entre as entidades nacionais e as institui- ções europeias 2 . Ao nível dos mercados financeiros, os avanços comunitários têm * O presente artigo tem na sua origem a conferência proferida no âmbito das I Jornadas Bancárias, organizadas pelo Centro de Investigação de Direito Privado, que se realizaram na Faculdade de Direito de Lisboa, no dia 16 de dezembro de 2014. 1 Ian Begg, Regulation and Supervision of Financial Intermediaries in the EU: The Aftermath of the Financial Crisis, 47 JCMS, 2009, 1107-1128, 1108: a evolução regulatória tende a acompanhar o ritmo cíclico das crises financeiras. 2 Niamh Moloney, EU Financial Market Regulation after the Global Financial Crisis: “More Europe” or More Risks? , CML Rev, 2010, 1317-1383 e Peter O. Mülbert e Alexander Wilhelm, Reforms of EU Banking and Securities after the Financial Crisis, 26 Bank & Fin L Rev, 2011, 187-231: especialmente focados nas transformações operadas ao nível horizontal.

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Organização e supervisão dos mercados financeiros*

PRoF. doUtoR a. BaRReto Menezes coRdeiRo, LLM

sumário: 1. Enquadramento. § 1.º Banca universal e Direito dos mercados financeiros: 2. Estados Unidos da América; 3. Europa Continental; 4. Vantagens e desvantagens dos dois sistemas: breve análise. § 2.º Supervisão dos mercados financeiros: situação atual: 5. Aspetos introdutórios; 6. Banco de Portugal; 7. Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários; 8. Insti‑tuto de Seguros de Portugal; 9. Complementaridade dos três supervisores. § 3.º Modelos de supervisão: 10. Enquadramento; 11. Sistema especializado; 12. Sistema monista; 13. Sistema funcional; 14. Conclusões.

1. Enquadramento

i. a crise financeira iniciada em 2007 e que ainda hoje, sete anos volvidos, parece não ter sido ultrapassada, levantou sérias dúvidas sobre a adequação dos sistemas de supervisão nacionais e supranacionais vigentes – pense -se no caso paradigmático da realidade europeia –, espoletando, pelo caminho, o interesse das ciências económicas e jurídicas pelo tema. de resto, está demonstrado que as crises financeiras assumem, classicamente, um papel decisivo na transformação dos sistemas de supervisão1.

no seio da União europeia, a discussão assume duas dimensões: (i) integração horizontal – aprofundamento das relações institucionais entre as entidades nacio-nais; e (ii) integração vertical – integração entre as entidades nacionais e as institui-ções europeias2. ao nível dos mercados financeiros, os avanços comunitários têm

* o presente artigo tem na sua origem a conferência proferida no âmbito das i Jornadas Bancárias, organizadas pelo centro de investigação de direito Privado, que se realizaram na Faculdade de direito de Lisboa, no dia 16 de dezembro de 2014.1 ian Begg, Regulation and Supervision of Financial Intermediaries in the EU: The Aftermath of the Financial Crisis, 47 JcMs, 2009, 1107 -1128, 1108: a evolução regulatória tende a acompanhar o ritmo cíclico das crises financeiras. 2 niamh Moloney, EU Financial Market Regulation after the Global Financial Crisis: “More Europe” or More Risks?, cML Rev, 2010, 1317 -1383 e Peter o. Mülbert e alexander Wilhelm, Reforms of EU Banking and Securities after the Financial Crisis, 26 Bank & Fin L Rev, 2011, 187 -231: especialmente focados nas transformações operadas ao nível horizontal.

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manifestado uma feição primordialmente bancária, com a criação da moeda única a representar um marco decisivo em todo o movimento3. no campo mobiliário, o caminho percorrido está muito aquém do que seria exigido e necessário. deve, contudo, saudar -se a constituição da esMa (european securities and Markets authority/autoridade europeia dos valores Mobiliários e dos Mercados)4 e os esforços de aproximação horizontal e vertical que acompanharam o processo5.

o caminho percorrido ao nível europeu reflete os debates internos, em torno da necessidade de maior integração, material ou formal, entre as entidades secto-riais nacionais.

ii. no presente estudo, estamos particularmente interessados nas movimen-tações locais tendo em vista a reunião, debaixo da alçada da mesma instituição, das áreas da Banca, dos seguros e dos valores Mobiliários.

a complementaridade real e jurídica dos mercados financeiros e a aparente derrota da visão dicotómica anglófona banca de investimento/banca comercial veio favorecer uma interpretação unitária de toda a matéria.

numa perspetiva científica e dogmática, uma regulação unitária abre uma nova frente na discussão em torno da agregação conceitual e pedagógica destes três ramos do direito comercial6.

iii. Uma análise aos diferentes modelos de supervisão hoje disponíveis apenas poderá ser seriamente desenvolvida depois de conhecido o modelo bancário atual-mente em vigor. as vantagens e as desvantagens de cada sistema apenas poderão ser averiguadas em concreto, subsumidas à organização e estrutura bancária dominante.

§ 1.º Banca universal e Direito dos mercados financeiros

2. Estados Unidos da América

i. a separação entre a Banca comercial e a Banca de investimento foi, durante longas décadas, um dos elementos mais característicos do mercado

3 sobre a integração bancária, antónio Menezes cordeiro, Direito bancário, 5.ª ed., almedina, coimbra, 2014, 113 e 146: extensa lista bibliográfica nacional.4 criada através do Regulamento n.º 1095/2010, de 24 de novembro. Para um apanhado geral, vide niamh Moloney, The European Securities and Markets Authority and Institutional Design for the EU Financial Market – A Tale of Two Competences: Part 1: Rule ‑Making, 12 eBoR, 2011, 41 -86 e Parte 2: Rules in Action, 12 eBoR, 2011, 177 -225. 5 nota 3. 6 como ponto de partida, antónio Menezes cordeiro, Direito comercial, 3.ª ed., almedina, coimbra, 2012, 41 ss. e 156 ss.

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financeiro estado -unidense7. estas barreiras, instituídas pelo Glass ‑Steagall Act 1933, foram sendo paulatinamente derrubadas, culminando com a sua revo-gação, pelo Gramm ‑Leach ‑Bliley Act 1999. a mudança do paradigma norte--americano tem sido apontada, por alguns autores, como estando na origem da crise financeira mundial8.

curiosamente, com o acalmar das águas, os poderes legislativos e acadé-micos colocaram em cima da mesa a possibilidade de ser regressar ao modelo de 1933. as conclusões chegadas, de certa forma previsíveis, apontaram para um enorme desequilíbrio ente os benefícios que poderiam ser alcançados e os custos inerentes9.

ii. a emissão de obrigações pelo Governo dos estados -Unidos, aquando da 1.ª Guerra Mundial, deu a conhecer ao público em geral o mercado dos valores mobiliários, incentivando inúmeras empresas, a partir da década de 20 do século passado, a procurarem este tipo de financiamento, em desfavor dos mais tradi-cionais empréstimos bancários.

esta viragem, com impacto direto nas suas receitas, impeliu as instituições de crédito a penetrarem na pujante área dos instrumentos financeiros10. Quanto às proibições impostas pelo Banking Act 186411, que vedava à banca nacional – ou seja, como uma implementação não meramente estadual – a prossecução de negócios que extravasassem o núcleo bancário, e pela doutrina ultra vires, então fortemente

7 o sistema bancário estado -unidense não conhecia, historicamente, esta distinção, sendo ambas as funções desempenhadas pelas mesmas instituições, cf., George G. Kaufman e Larry R. Mote, Glass ‑Steagall: Repeal by Regulatory and Judicial Reinterpretation, 107 Banking LJ, 1990, 388 -421, 391.8 arthur e. Wilmarth, Jr., The Dark Side of Universal Banking: Financial Conglomerates and the Origins of the Subprime Financial Crisis, 41 conn L Rev, 2009, 963 -1050. 9 anthony saunders e ingo Walter, Financial Architecture, Systemic Risk, and Universal Banking, 26 Financ Mark Portf Manag, 2012, 39 -59. a influência política e económica das grandes instituições financeiras contribuiu, certamente, para as conclusões alcançadas. 10 charles W. calomiris, Corporate ‑Finance Benefits from Universal Banking: Germany and the United States, 1870 ‑1914, national Bureau of economic Research, Working Paper no. 4408, julho de 1993, 12: durante este período, o número de bancos de investimento associados a bancos comerciais cresceu exponencialmente; Randall s. Kroszner e Raghuram G. Rajan, Is the Glass ‑Steagall Act Justified? A Study of the U.S. Experience with Universal Banking Before 1933, 84 am econ Rev, 1994, 810 -832, 812; carlos d. Ramírez, Did Banks’ Security Affiliates Add Value? Evidence from the Commercial Banking Industry during the 1920s, 34 J Money credit Bank, 2002, 393 -411. 11 o diploma foi decisivo para a estabilização financeira após a Guerra da secessão e para a criação de um sistema bancário nacional, cf., Richard sylla, Federal Policy Market Structure, and Capital Mobilization in the United States, 1863 ‑1913, 29 J econ Hist, 1969, 657 -686 e eugene nelson White, The Political Economy of Banking Regulation, 1864 ‑1933, 42 J econ Hist, 1982, 33 -40; Jeffrey d. dunn, Expansion of National Bank Powers: Regulatory and Judicial Precedent Under the National Bank Act, Glass ‑Steagall Act, and Bank Holding Company Act, 36 sw LJ, 1982, 765 -792, 767 -779.

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implementada12, estas foram ultrapassadas com a constituição de entidades direta ou indiretamente controladas pelos grandes bancos13.

a entrada das instituições de crédito nacionais no mundo dos valores mobiliários foi apontada como uma das causas que espoletaram a quinta -feira negra14. o racio-cínio então assumido assentava no pressuposto de que estas entidades, violando o mais elementar dever de não conflito de interesses15, incentivaram os seus clientes, regra geral pequenos aforradores com reduzidos conhecimentos sobre o funcio-namento das bolsas, a adquirirem instrumentos financeiros que fossem favoráveis às necessidades e projetos dos próprios bancos. o exemplo perfeito, conquanto na realidade não se tenha mostrado tão frequente, consistia na aquisição de obrigações emitidas por empresas que haviam contratado empréstimos com os próprios bancos e que se encontravam em grandes dificuldades em cumprir os prazos acordados16.

iii. Partindo precisamente do pressuposto de que esta interligação era prejudicial para a economia – ao ponto de ser apontada como uma das causas da Grande depressão17 –, o legislador estado -unidense18, através do Banking Act

12 Para uma compreensão de todo o percurso levado a conduzido pela doutrina, vide, a título meramente exemplificativo e introdutório, stephen J. Leacock, The Rise and Fall of the Ultra Vires Doctrine in United States, United Kingdom, and Commonwealth Caribbean Corporate Common Law: A Triumph of Experience Over Logic, 5 de Paul Buss comm LJ, 2006, 67 -104.13 Quanto aos modelos adotados, vide Randall s. Kroszner e Raghuram G. Rajan, Organization Structure and Credibility: Evidence from Commercial Bank Securities Activities Before the Glass ‑Steagall Act, national Bureau of economic Research, Working Paper 5256, setembro de 1995.14 os dados de que atualmente dispomos apontam para outras justificações, cf., William F. shughart ii, A Public Choice Perspective of the Banking Act 1933, 7 cato J, 1988, 595 -619, 600 ss: com relevantes elementos e bibliografia.15 sobre o dever de não conflito nas relações fiduciárias, vide o nosso Do trust no Direito civil, almedina, coimbra, 2014, 519 ss.16 Kroszner e Rajan, Is the Glass ‑Steagall Act Justified?, cit., 829 ss.: os autores, contrariando a posição clássica, consideram que estes bancos nacionais foram mais cuidadosos no aconselhamento prestado do que as entidades financeiras especializadas. idêntica conclusão havia, de resto, sido assumida por alguma doutrina da época: terris Moore, Security Affiliate versus Private Investment Banker – A Study in Security Originations, 12 Harv Bus Rev, 1934, 478 -484.17 este ponto foi posto em evidência pela Pecora Commission – presidida por Ferdinand Pecora –, comissão criada para investigar as causas que originaram a crise bolsita de 1929. atente -se às esclarecedoras palavras proferidas pelo Presidente da comissão: “a shocking corruption in our banking system, a widespread repudiation of old ‑fashioned standards of honesty and fair dealing in the creation and sale of securities, and a merciless exploitation of the vicious possibilities of intricate corporate chicanery”, apud. Roberta s. Karmel, Glass ‑Steagall: Some Critical Reflections, 97 Banking LJ, 1980, 631 -641, 631. antes da eclosão da Grande depressão, o congresso norte -americano recusou -se, em inúmeras ocasiões, a passar qualquer legislação no sentido de separar a banca comercial da banca de investimento, cf., George J. Benston, Universal Banking, J econ Perspec, 1994, 121 -143, 122.18 a família Rockefeller, através dos importantes contactos que detinha junto dos poderes governativo e legislativo, apoiou a separação das duas bancas, pretendendo, assim, diminuir a influência e riqueza da família Morgan, cf., alexander tabarrok, The Separation of Commercial and investment Banking: The Morgans vs. The Rockefellers, 1 Quart J austrian econ, 1998, 1 -18.

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193319 – o diploma ficou também conhecido por Glass ‑Steagall Act, em decorrência dos políticos que o promoveram: o senador carter Glass (d) e o representante Henry B. steagall (d) – vedou às instituições de crédito qualquer atividade rela-cionada com a bolsa e com os instrumentos financeiros, salvo no que respeitava à aquisição e venda de valores em nome dos seus clientes; consagrando, assim, um sistema dicotómico assente num afastamento entre a banca comercial e a banca de investimento; chegando ao ponto de impedir que administradores e traba-lhadores de uma das áreas desenvolvessem qualquer tipo de atividade na outra20.

s. 16. The business of dealing in securities and stock by [a national bank] shall be limited to purchasing and selling such securities and stock without recourse, solely upon the order, and for the account of, customers, and in no case for its own account, and the association shall not underwrite any issue of securities or stock.

s. 20. After a year from the date of the enactment of this Act, no member bank shall be affiliated in any manner described in section 2 (b) hereof with any corporation, association, business trust, or other similar organization engaged principally in the issue, flotation, underwriting, public sale, or distribution at wholesale or retail or through syndicate participation of stocks, bonds, debentures, notes, or other securities.

s. 21. (a) After the expiration of one year after the date of enactment of this Act it shall be unlawful –

(1) For any person, firm, corporation, association, business trust, or other similar organization, engaged in the business of issuing, underwriting, selling, or distributing, at wholesale or retail, or through syndicate participation, stocks, bonds, debentures, notes, or other securities, to engage at the same time to any extent whatever in the business of receiving deposits subject to check or to repayment upon presentation of a passbook, certificate of deposit, or other evidence of debt, or upon request of the depositor; or

(2) For any person, firm, corporation, association, business trust, or other similar organization, other than a financial institution or private banker subject to examination and regulation under State or Federal law, to engage to any extent whatever in the business of receiving deposits subject to check or to repayment upon presentation of a passbook, certificate of deposit, or other evidence of debt, or upon request of the depositor (…).

19 Quanto ao processo legislativo e toda a envolvência política, vide Ray B. Westerfield, The Banking Act of 1933, 41 J Polit economy, 1933, 721 -749; Howard H. Preston, The Banking Act of 1933, 23 am econ Rev, 1933, 585 -607, 587 ss: a banca opôs -se em peso, embora sem sucesso, à entrada em vigor do diploma; H. Parker Willis, The Banking Act of 1933 in Operation, 45 colum L Rev, 1935, 697 -724: com um resumo das mais relevantes disposições do diploma.20 o sentimento antimonopolista então vivido terá ainda contribuído para esta evolução, cf., Miguel cantillo simon, The Rise and Fall of Bank Control in the United States: 1890 ‑1939, am econ Rev, 1077 -1093, 1089.

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s. 32. No officer, director, or employee of any corporation or unincorporated association, no partner or employee of any partnership, and no individual, primarily engaged in the issue, flotation, underwriting, public sale, or distribution, at wholesale or retail, or through syndicate participation, of stocks, bonds, or other similar securities, shall serve the same time as an officer, director, or employee of any member bank except in limited classes of cases in which the Board of Governors of the Federal Reserve System may allow such service by general regulations when in the judgment of the said Board it would not unduly influence the investment policies of such member bank or the advice it gives its customers regarding investments.

o cerco voltou a apertar duas décadas volvidas, com o Bank Holding Company Act 1956. atente -se ao disposto na sua s. 4:

(a) Except as otherwise provided in this Act, no bank holding company shall – (1) after the date of enactment of this Act acquire direct or indirect ownership or control of any voting shares of any company which is not a bank, or(2) after two years from the date of enactment of this Act or from the date as of which it becomes a bank holding company, whichever is later, retain direct or indirect ownership or control of any voting shares of any company which is not a bank or a bank holding company or engage in any business other than that of banking or of managing or controlling banks or of furnishing services to or performing services for any bank of which it owns or controls 25 per centum or more of the voting shares.

iv. a partir da década de 60, as fortes restrições introduzidas em 1933 come-çaram paulatinamente a ceder, com a banca a combater nos tribunais e a nos corredores de Washington por maior liberdade de ação21. o movimento recebeu o importante apoio de James J. saxon, nomeado em 1961 para o importante cargo de Comptroller of the Currency22 – com competências para supervisionar os bancos com implementação nacional –, partidário da expansão das atividades das insti-tuições por si supervisionadas, com o propósito deliberado de favorecer um clima de concorrência e de inovação23.

21 Robert s. Plotkin, What Meaning Does Glass ‑Steagall Have for Today’s Financial World?, 95 Banking LJ, 1978, 404 -418, 405: atribui estas movimentações à expansão das seguradoras e de outras empresas financeiras; Matthew clark e anthony saunders, Glass ‑Steagall Revised: The Impact on Banks, Capital Markets, and the Small Investor, 97 Banking LJ, 1980, 811 -840, 812: nos finais da década de 70, os partidários da revisão completa do diploma exerciam uma pressão constante.22 sobre o cargo e sua importância nas transformações operadas na economia estado -unidense nas últimas décadas, vide eugene n. White, The Comptroller and the Transformation of American Banking, 1960 ‑1990, comptroller of the currency, Washington, 1992.23 as suas ideias foram expostas num artigo de sua autoria: James J. saxon, Bank Expansion and Economic Growth: A New Expansion, 8 antitrust Bull, 1963, 597 -605.

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a subscrição de obrigações emitidas por entidades públicas ocupou, durante vários anos, o centro de toda a discussão24. em 1963, o supervisor (saxon), defen-dendo uma interpretação menos restritiva, decide liberalizar o segmento dos valores emitidos pelas entidades municipais. a abertura foi, como seria expectável, discutida judicialmente pela banca de investimento25. seria necessário esperar cinco anos para que o legislador, assumindo idêntica interpretação, desbloqueasse os constrangimentos legais26.

v. as inovações financeiras das décadas de 70 e de 80 alargaram a discussão27: a emergência de mecanismos de investimento coletivo e a multiplicação de novos tipos de papel comercial impunham, tanto mais pela concorrência que represen-tavam à atividade bancária clássica, novos esclarecimentos.

as primeiras decisões estaduais mostraram -se favoráveis à entrada da banca comercial neste novo mundo. todavia, o supremo tribunal assumiu uma visão oposta. no célebre acórdão ICI v Camp., o mais alto órgão jurisprudencial estado--unidense mostrou -se contrário às pretensões do citibank em assumir a gestão direta de fundos de investimento28 -29. o tribunal viria a assumir, sobre esta questão, uma posição mais liberal na década de 8030.

vi. a personalidade jurídica própria das subsidiárias e das holdings financeiras abriu uma segunda frente de batalha.

na decisão Board of Governors of the Federal Reserve System v Investment Company Institute31, datada de 1981, o supremo tribunal considerou que as limitações previstas nas secções 16 e 21, acima transcritas, não eram extensíveis, recorrendo a uma linguagem que nos é mais próxima, às sociedades gestoras de participa-ções sociais, argumentando que não só não consubstanciavam instituições de crédito como não tinham capacidade para receber depósitos32. Partindo do mesmo

24 clark e saunders, Glass ‑Steagall Revised, cit., 820 ss.25 dunn, Expansion of National Bank Powers, cit., 780.26 Roger W. Mehle, Bank Underwriting of Municipal Revenue Bonds: Preserving Free and Fair Competition, 26 syracuse L Rev, 1975, 1117 -1156; Kaufman e Mote, Glass ‑Steagall, cit., 396.27 Jill M. Hendrickson, The Long and Bumpy Road to Glass ‑Steagall Reform: A Historical and Evolutionary Analysis of Banking Legislation, 60 aJes, 2001, 849 -879, 860 ss.28 401 Us 617 -645 (Us dist col, 1971).29 Para um apanhado geral deste período, vide Matthew clark e anthony saunders, Judicial Interpretation of Glass ‑Steagall: The Need for Legislative Action, 97 Banking LJ, 1980, 721 -740.30 Frank M. tavelman, American Banks or the Glass ‑Steagall Act – which Will Go First, 21 sw U L Rev, 1992, 1511 -1527, 1514 ss.31 450 Us 46 -78 (Us dist col, 1981).32 cit., 59, n. 24: “Section 21 prohibits firms engaged in the securities business from also receiving deposits. Bank holding companies do not receive deposits, and the language of § 21 cannot be read to include within its prohibition separate organizations related by ownership with a bank, which does not receive deposits”.

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raciocínio, é igualmente defendido que as subsidiárias das instituições de crédito poderiam exercer atividades financeiras, mesmo se estas não pudessem ser pros-seguidas pela “sociedade mãe” 33.

Finalmente, em 1984, o supremo tribunal, opondo -se à posição assumida previamente pelo regulador, valida a aquisição, por parte do Bankamerica, de uma sociedade vendedora de instrumentos financeiros, alegando que essa entidade não atuava em nome próprio, mas sempre em nome e no interesse dos clientes34.

vii. os avanços jurisprudenciais e regulatórios mereceram, também a partir dos anos 80, o apoio decisivo do Federal Reserve Board: (i) em 1987, autoriza as subsidiárias das instituições de crédito a subscreverem os mais variados tipos de valores mobiliários, desde que as receitas daí decorrentes não ultrapassassem 5 por cento do total faturado pelo grupo – o impacto nos lucros da banca comercial foi imediato35; (ii) em 1990, autoriza as sociedades gestoras de participações sociais em instituições de crédito a subscreverem dívidas de outras sociedades; e (iii) também em 1990, autoriza a J. P. Morgan a adquirir ações em nome próprio36.

os anos 90 trouxeram importantes novidades. no campo da autorização da subscrição de valores mobiliários pelas subsidiárias, o limite dos 5 por cento foi sendo sucessivamente aumentado: em 1989, a percentagem passou para os 10 por cento e, em 1997, para os 25 por cento37.

viii. ao longo de todo este período, sucederam -se os projetos lei para revogar as limitações impostas pelo Glass ‑Steagall Act38, o que viria a acontecer, em 1999, com a entrada em vigor do Gramm ‑Leach ‑Bliley Act. o diploma não deixa margens para dúvidas, indicando, logo no seu primeiro preceito, a revogação expressa das secções mais significativas do Glass ‑Steagall Act39.

33 cit., 60.34 Securities Industry Association v Board of Governors of the Federal Reserve System, 469 Us 207 -221 (Us, 1984). 35 Marcia Millon cornett, evren ors e Hassan tehranian, Bank Performance Around the Introduction of a Section 20 Subsidiary, 57 J Finance, 2002, 501 -521: os autores centram -se nos três primeiros anos que se seguiram à entrada em vigor do diploma.36 tavelman, American Banks, cit., 1518.37 James R. Barth, R. dan Brumbaugh Jr. e James a. Wilcox, Policy Watch: The Repeal of Glass ‑Steagall and the Advent of Broad Banking, 14 J econ Perspect, 2000, 191 -204, 196 ss.38 Hendrickson, The Long and Bumpy Road, cit., 862 ss: apanhado geral de todas as tentativas legislativas de alteração ao diploma.39 Sec. 1010. Glass ‑Steagall Act Repeals.

(a) Section 20 Repealed. – Section 20 of the Banking Act of 1933 (12 U.S.C. 377) (commonly referred to as the “Glass ‑Steagall Act”) is repealed.

(b) Section 32 Repealed. – Section 32 of the Banking Act of 1933 (12 U.S.C. 78) is repealed.

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o Gramm ‑Leach ‑Bliley Act pôs termo à separação, de mais de seis décadas, entre a banca comercial e a de investimento, abrindo as portas da economia estado--unidense aos grandes conglomerados financeiros40.

3. Europa Continental

i. ao contrário do que se verificou durante longas décadas nos estados Unidos, o sistema bancário dos países europeus continentais caracteriza -se pela inexistência de barreiras que vedem, aos bancos comerciais, a prossecução de atividades ditas de investimento, quer seja a aquisição de participações sociais a título próprio, quer seja a gestão de carteiras dos seus clientes ou a constituição de fundos de investimento.

ii. o sistema bancário universal encontra em terra alemãs o seu exemplo mais perfeito e influente41. estudado por alguns autores estado -unidenses, aquando das profundas reformas do final do século passado42, o sistema germânico tem uma ascen-dência clássica sobre os modelos europeus do sul da europa. Mais recentemente, a visão foi seguida pelos países do leste europeu, após a queda do muro de Berlim43.

Historicamente, as raízes do modelo universal alemão remontam aos finais do século XiX, período de intensa industrialização e marcado por fortes neces-sidades de financiamento44.

curiosamente, à época da Grande depressão, e de modo oposto ao sentido nos estado Unidos, não se gerou, no seio da sociedade civil e dos meios gover-nativos, a ideia de que a união das duas bancas estivesse na origem da crise45.

40 Robert W. dixon, The Gramm ‑Leach ‑Bliley Financial Modernization Act: Why Reform in the Financial Services Industry Was Necessary and the Act’s Projected Effects on Community Banking, 49 drake L Rev, 2001, 671 -688; Keith R. Fisher, Orphan of Invention: Why the Gramm ‑Leach ‑Bliley Act Was Unnecessary, 80 or L Rev, 2001, 1301 -1421; Jolina c. cuaresma, The Gramm ‑Leach ‑Bliley Act, 17 Berkeley tech LJ, 2002, 497 -517; Kathleen a. Hardee, The Gramm ‑Leach ‑Bliley Act: Five Years after Implementation, Does the Emperor Wear Clothes, 39 creighton L Rev, 2006, 915 -937. 41 Jonathan R. Macey, The Inevitability of Universal Banking, 19 Brook J int’l L, 1993, 203 -227: arquétipo do sistema da banca universal.42 J. a. Kregel, German “Universal Banking” as a Model for US Banking Reform, Bolonha, 1992.43 William L. Horton, Jr., The Perils of Universal Banking in Central and Eastern Europe, 35 vaj int’l L, 1995, 683 -718.44 Jeremy edwards e sheilagh ogilvie, Universal Banks and German Industrialization: A Reappraisal, 49 ec H R, 1996, 427 -446; caroline Fohlin, Regulation, Taxation, and the Development of the German Universal Banking System, 1884 ‑1913, cit, social science Working Paper 1065R, maio de 2011.45 os dados disponíveis demonstram, de resto, que nenhuma das três grandes crises da primeira metade do século passado – 1923/24, 1931/1932 e pós -segunda Grande Guerra – podem ser reconduzidas a esta interligação, cf., Benston, Universal Banking, cit., 125.

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iii. Juridicamente, as fundações da banca universal germânica decorrem do § 1 do Kreditwesengesetz, que, logo no seu primeiro número, elenca o conjunto de atividades que podem ser exercidas pelas instituições de crédito: (1) aceitação de depósitos; (2) concessão de empréstimos; (3) desconto bancário; (4) aquisição de instrumentos financeiros, em nome próprio ou de terceiros; (5) depósito e gestão de instrumentos financeiros; ou (6) constituição de fundos de investimento. esta lista, não exaustiva, permite -nos ter uma ideia mais precisa do real alcance das atividades exercidas pela denominada banca universal.

iv. o conteúdo do § 1 do Kreditwesengesetz é, de resto, bastante próximo do disposto no artigo 4.º/1 do nosso RGic:

1. Os bancos podem efetuar as operações seguintes:a) Receção de depósitos ou outros fundos reembolsáveis;b) Operações de crédito, incluindo concessão de garantias e outros compromissos, locação

financeira e factoring;c) Serviços de pagamento, tal como definidos no artigo 4.º do regime jurídico dos serviços de

pagamento e de moeda eletrónica;d) Emissão e gestão de outros meios de pagamento, não abrangidos pela alínea anterior, tais

como cheques em suporte de papel, cheques de viagem em suporte de papel e cartas de crédito;

e) Transações, por conta própria ou da clientela, sobre instrumentos do mercado monetário e cambial, instrumentos financeiros a prazo, opções e operações sobre divisas, taxas de juro, mercadorias e valores mobiliários;

f) Participações em emissões e colocações de valores mobiliários e prestações de serviços correlativos;

g) Atuação nos mercados interbancários;h) Consultoria, guarda, administração e gestão de carteiras de valores mobiliários;i) Gestão e consultoria em gestão de outros patrimónios;j) Consultoria das empresas em matéria de estrutura do capital, de estratégia empresarial

e de questões conexas, bem como consultoria e serviços no domínio da fusão e compra de empresas;

k) Operações sobre pedras e metais preciosos;l) Tomada de participações no capital de sociedades;m) Mediação de seguros;n) Prestação de informações comerciais;o) Aluguer de cofres e guarda de valores;p) Locação de bens móveis, nos termos permitidos às sociedades de locação financeiras;q) Prestação dos serviços e exercício das atividades de investimento a que se refere o

artigo 199.º ‑A, não abrangidos pelas alíneas anteriores;r) Emissão de moeda eletrónica;s) Outras operações análogas e que a lei lhes não proíba.

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o artigo 4.º/1 do RGic, em face do seu extenso conteúdo, torna -se parti-cularmente útil na análise e compreensão dos sistemas bancários universais. Um interessante exercício passa pela recondução das diversas atividades aí mencio-nadas ao universo da banca comercial ou da banca de investimento. a título meramente exemplificativo: (i) banca comercial: a), b), c), d) ou g); e (ii) banca de investimento: e), f ), h) ou i).

4. Vantagens e desvantagens dos dois sistemas: breve análise

i. Uma comparação entre o sistema universal e o sistema dicotómico, assente numa perspetiva simples de “vantagens e desvantagens”, tende a ser incompleta: apenas em concreto, i. e., à luz de um exato contexto económico e regulatório, é possível chegar a conclusões precisas.

embora se reconheça esta fragilidade, a apresentação sintética dos argumentos esgrimidos permite -nos ter uma ideia mais precisa sobre os contornos em que o debate usualmente decorre46.

ii. a inexistência de obstáculos à aglutinação das duas bancas facilita a emer-gência de instituições tentaculares, com forte presença nos diversos mercados financeiros.

as proporções assumidas por estas entidades são vistas com enorme descon-fiança pelos partidários da separação das duas bancas, em face do suposto risco sistémico que pode advir do seu colapso.

em resposta a este argumento, é contraposto que o risco poderá sempre ser minorado se as reservas exigidas forem ajustadas às dimensões das entidades e se a atividade financeira for devidamente acompanhada pelo supervisor47.

iii. do ponto de vista das instituições de crédito, a abertura dos restantes sectores financeiros – valores mobiliários e seguros – contribui para a diversificação dos investimentos e, consequentemente, para uma dispersão do risco incorrido48.

46 na célebre decisão ICI v Camp., o supremo tribunal elencou um conjunto de situações que desaconselham, do ponto de vista da banca comercial, a união dos dois mundos: “(1) The temptation to shore up affiliates with unsound loans; (2) The temptation to make credit facilities more readily available to companies whose stock the affiliates have invested in; (3) The potential loss of goodwill of depositors from losses in investments recommended by the bank; (4) The temptation to make unsound loans to costumers to purchase securities recommended by the bank; and (5) The inherent conflict between the promotional interest of the investment banker and the obligation of the commercial banker to render disinterested investment advice”, cf., 401 Us 617 -645 (Us dist col, 1971). 47 Benston, Universal Banking, cit., 124. 48 abdullah al Mamum, M. Kabir Hassan e van son Lai, The Impact of the Gramm ‑Leach‑‑Bliley Act on the Financial Services Industry, 28 J econ & Fin, 2004, 333 -347.

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esta visão clássica, suportada por um certo senso comum, foi recentemente posta em causa em alguns estudos: o impacto real da disseminação é reduzido; o seu interesse tende a circunscrever -se aos lucros obtidos, mas já não confere especial proteção em momentos de crise ou de maiores dificuldades49. na realidade, é possível encontrar estudos com as mais diferentes conclusões e resultados, tudo depende dos elementos recolhidos, da perspectiva assumida e das próprias conce-ções defendidas: a economia, diferentemente do que muitos dos seus cientistas alegam, está muito longe de ser uma ciência exata.

internamente, os grandes conglomerados têm ainda a seu favor todas as vanta-gens associadas à economia de escala, pense -se no caso evidente da redução dos custos, tanto numa perspetiva operacional como em relação a um maior aprovei-tamento das redes de clientes ou dos conhecimentos dos trabalhadores50.

iv. na perspectiva dos clientes, a diversificação dos serviços prestados pelo seu banco é particularmente aliciante, evitando -se, assim, uma multiplicação de contas, com todas as desvantagens reconhecidas: aumento de custos, comissões, burocracias e partilha de dados pessoais51.

v. a imposição da separação das duas bancas esteve, desde o início, muito associada à necessidade de proteger os clientes, enquanto parte mais fraca nas relações bancárias.

À época da Grande depressão, gerou -se a convicção, no seio da sociedade civil e política, de que uma prestação conjunta de todos os serviços financeiros desaguaria em recorrentes situações de conflitos de interesses. alguns exemplos clássicos permitem ilustrar as preocupações sentidas52: (i) facilitação na concessão de crédito a empresas em que o banco detenha participações sociais, subalterni-zando os riscos decorrentes da própria operação – prática particularmente lesiva dos interesses da própria instituição de crédito e, consequentemente, dos seus

49 Linda allen e Julapa Jagtiani, The Risk Effects of Combining Banking, Securities, and Insurance Activies, 52 J econ Bus, 2000, 485 -49; victoria Geyfman e timothy J. Yeager, On the Riskiness of Universal Banking: Evidence from Banks in the Investment Banking Business Pre ‑ and Post ‑GLBA, 41 J Money credit Bank, 2009, 1649 -1669: o autor concluiu que a banca universal foi mais prejudicada pela crise atual do que as instituições que prosseguiram uma especialização. 50 Rudi vander vennet, Cost and Profit Efficiency of Financial Conglomerates and Universal Banks in Europe, 34 J Money credit Bank, 2002, 254 -282. 51 James R. Barth, R. dan Brumbaugh Jr. e James a. Wilcox, The Repeal of Glass ‑Steagall and the Advent of Broad Banking, occ economics Working Paper 2000 -5, abril de 2000, 10 -11.52 este aspeto foi especialmente sublinhado pelo legislador e pelos autores da época, cf., Ken B. cyree, The Erosion of the Glass ‑Steagall Act: Winners and Losers in the Banking Industry, 52 J econ Bus, 2000, 343 -363, 344.

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acionistas; (ii) incentivo aos clientes para que adquiram valores mobiliários de empresas em que o banco detenha participações sociais, desconsiderando, também aqui, os riscos inerentes à operação, neste caso concreto em prejuízo dos inte-resses dos clientes; ou (iii) concessão de empréstimos a clientes condicionando ou incentivando a sua canalização para a aquisição de instrumentos específicos53.

esta visão é criticada por alguns autores, com o argumento de que, fosse esse conflito real e os investidores seriam levados a recorrer aos préstimos de institui-ções especializadas, em detrimento da banca universal; ora, a realidade fáctica mostra -nos precisamente o oposto: os clientes têm uma tendência natural para concentrar as suas atividades numa mesma instituição54.

vi. outros argumentos têm sido brandidos, por exemplo: a entrada da banca comercial no mundo especulativo das bolsas traduz -se numa perda do bom nome ou da confiança depositada pelos clientes na instituição55 – não temos, porém, dados suficientes que comprovem uma relação tão direta; ou a inexistência de barreiras sectoriais leva a uma concentração com contornos oligárquicos, em torno de um conjunto restrito de instituições com meios para influenciar ou mesmo controlar os mercados financeiros e a atividade política56.

vii. as críticas formuladas ao sistema bancário universal podem ser reunidas em torno de dois grandes receios: (i) riscos sistémicos, em resultado das grandes dimensões que as instituições de crédito tendem a assumir nestes modelos; e (ii) fragilização da posição dos clientes/investidores, que se encontram sujeitos a que os seus bancos subalternizem os seus interesses em benefício próprio.

o combate ao primeiro dos referidos receios poderá ser feito conjuntamente, quer impondo estritas regras concorrenciais, quer fornecendo ao supervisor os mecanismos e poderes necessários para que exerçam eficazmente a atividade prudencial. Por sua vez, a proteção da posição jurídica dos clientes/investidores poderá sempre ser melhorada através de um regime que vede o aconselhamento e a prestação de qualquer serviço que origine situações conflituosas. também aqui, o supervisor desempenha um papel decisivo57.

53 curtis J. Polk, Banking and Securities Law: The Glass ‑Steagall Act – Has it Outlived Its Usefulness? 55 Geo Wash L Rev, 1987, 812 -827, 814.54 tabarrok, The Separation of Commercial and Investment Banking, cit., 2.55 Polk, Banking and Securities Law, cit., 814.56 clark e saunders, Glass ‑Steagall Revised, cit., 822.57 John R. evans, Regulation of Bank Securities Activities, 91 Banking LJ, 1974, 611 -623, 617: considera que apenas no caso de essa regulação não ser possível fará sentido limitar a atividade da banca comercial.

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§ 2.º Supervisão dos mercados financeiros: situação atual

5. Aspetos introdutórios

i. antes de centrarmos a nossa atenção nos diferentes modelos de supervisão existentes, importa explorar alguns aspetos introdutórios: (i) o que se entende por supervisão e por regulação; (ii) o que se entende por mercados financeiros; (iii) que modalidades de supervisão se conhecem; (iv) a aproximação dos diferentes sectores financeiros; e (v) o panorama geral do sistema atualmente vigente em Portugal. em face da maior densidade do último ponto, optámos por autonomizá -lo; centremo -nos, por ora, nos quatro primeiros.

ii. as expressões supervisão e regulação são muitas vezes utilizadas como sinónimas58. Mais recentemente, e por influência anglo -saxónica, os termos têm vindo a assumir um preenchimento díspar: como regulação, entende -se o conjunto sistematizado de princípios, normas e institutos que regem uma determinada ativi-dade económica ou mercado financeiro – a atribuição de uma função primária à regulação, conquanto correspondendo a uma prática comum, não nos parece benéfica; e como supervisão, a atividade desenvolvida pela entidade responsável pelo cumprimento dessa mesma regulação59.

este exercício de separação não é pacífico, os conceitos assumem áreas próximas e por vezes indiferenciadas: a supervisão pode pressupor – o que acon-tece na maioria dos casos – poderes de regulação, num sentido mais nobre da palavra, ou seja, de criação de novo direito60; e a regulação confunde -se com a supervisão, na medida em que os poderes da entidade fiscalizadora terão sempre de ter um fundamento jurídico positivado61.

iii. a locução mercado financeiro apresenta -se de preenchimento difuso, assumindo diferentes conteúdos, consoante o contexto em que é invocada. É possível identificar, pelo menos, três sentidos: estrito, amplo e amplíssimo.

58 entre nós, a expressão supervisão é também empregue numa aceção ampla, englobando o conceito de supervisão em sentido estrito e o de regulação, cf., sofia nascimentos Rodrigues, A reforma do sistema português de supervisão financeira, 10 dvM, 2011, 537 -565, 544.59 sobre o conceito e evolução conceitual, vide antónio Menezes cordeiro, Direito bancário, 5.ª ed., almedina, coimbra, 2014, 1044 ss; eddy Wymeersch, The Future of Financial Regulation and Supervision in Europe, 42 cML Rev, 2005, 987 -1010, 988: esta distinção é particularmente recente, mesmo no seio das ciências anglófonas. 60 Pense -se nos incontornáveis regulamentos da cMvM – artigo 369.º do cvM. 61 eddy Wymeersch, The Structure of Financial Services in Europe: About Single Financial Supervisors, Twin Peaks and Multiple Financial Supervision, eBoR, 2007, 237 -306, 242.

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em sentido estrito, a expressão assume um conteúdo próximo da de mercado de capitais – que, por sua vez, assume duas dimensões: (i) estrita, abrangendo os valores mobiliários clássicos, e (ii) ampla, congregando os mecanismos hoje recon-duzidos ao ainda impreciso termo “instrumento financeiro”62.

em sentido amplo, congrega o mercado monetário, o mercado dos instru-mentos financeiros e o mercado dos seguros; correspondendo, na prática, ao direito bancário, direito dos valores mobiliários e direito dos seguros.

em sentido amplíssimo, o termo reúne, ainda, algumas áreas ditas de fron-teira, cuja recondução ao universo dos três ditos mercados base não é pacífica ou evidente63.

Para efeitos do presente estudo, interessa -nos o sentido amplo e, porventura, o sentido amplíssimo.

iv. de entre as inúmeras categorizações possíveis, no que à atividade de supervisão respeita, interessa -nos estudar duas em especial: a que opõe a super-visão subjetiva à objetiva; e a que se divide em prudencial e comportamental64 -65.

a dicotomia subjetiva/objetiva, mais do que uma classificação de super-visão, corresponde ao método pelo qual se verifica se determina situação jurídica ou instituição está ou não sujeita à supervisão de uma entidade de supervisão em concreto. a supervisão subjetiva preocupa -se com sujeitos e a objetiva com situações jurídicas.

a segunda classificação está já relacionada com a atividade de supervisão per se. a modalidade prudencial é por natureza preventiva e contínua, focada da estabilidade do mercado, enquanto a modalidade comportamental encontra -se mais focada na atuação concreta das instituições supervisionadas, em especial nas relações estabelecidas como os sujeitos mais desprotegidos: clientes, consumidores ou investidores, consoante o sector.

v. a complementaridade dos mercados financeiros e a emergência de uma Banca universal tem levado a uma aproximação jurídica dos seus três ramos clás-sicos: banca, bolsa e seguros. o panorama atual caracteriza -se por uma sobrepo-sição que desaconselha uma catalogação singular. claro que a conceção clássica que remete os valores mobiliários/instrumentos financeiros para o direito dos

62 oliver seiler e Martin Kniehase, Grundlagen des Kapitalmarktrechts em Schimansky/Bunte/Lwowski Bankrechts ‑Handbuch, vol. ii, 4.ª ed., Beck, Munique, 2011, Rn. 6 ss.63 Wymeersch, The Structure of Financial Services, cit., 242.64 Luís Guilherme catarino, Regulação e supervisão dos mercados de instrumentos financeiros: fundamento e limites do Governo e jurisdição das Autoridades Independentes, almedina, coimbra, 2010, 296: com indicações bibliográficas. 65 Para um leque alargado e sistematizado, vide Menezes cordeiro, Direito bancário, cit., 1049 ss.

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valores mobiliários e para cMvM, o dinheiro para o direito bancário e para o BP e os seguros para o direito dos seguros e para o isP continua a poder ser assumida como ponto de partida. todavia, é hoje insuficiente: a emergência da banca universal e o desenvolvimento de instrumentos híbridos exigem uma abor-dagem mais flexível66.

6. Banco de Portugal

i. numa perspetiva genérica, as seguintes entidades estão sujeitas à supervisão do Banco de Portugal: (i) as instituições de crédito, as sociedades financeiras, as sucursais e os escritórios de representação, enquanto entidades primárias; (ii) as sociedades gestoras de participações sociais – “quando as participações detidas, direta ou indiretamente, lhes confiram a maioria dos direitos de votos em uma ou mais instituições de crédito ou sociedades financeiras”, artigo 117.º –, as insti-tuições de pagamento e as instituições de moeda electrónica67, artigo 117.º -a e as sociedades relevantes para o funcionamento dos sistemas de pagamento, artigo 117.º -B, todos do RGic; e (iii) as entidades que detenham participações qualificadas em instituições de crédito e que não sejam reconduzidas a nenhuma das categorias elencadas em (ii) estão também obrigadas a prestar todas as infor-mações que o Banco de Portugal julgue necessário, artigo 120.º/5. ainda dentro da supervisão subjetiva, conquanto o critério assuma feições objetivas, refira -se a autoridade do Banco de Portugal perante entidades que, não estando autorizadas a exercer atividades ditas bancárias, o fazem de facto, artigo 126.º, todos do RGic.

no que respeita à designada supervisão objetiva, atenda -se ao supra transcrito artigo 4.º/1 do RGic.

ii. originariamente, a supervisão do Banco de Portugal68 assumia feições essencialmente profiláticas. Genericamente prevista nos artigos 94.º e seguintes

66 Um apanhado geral desta aproximação pode ser confrontado em Paulo câmara, Manual de Direito dos valores mobiliários, 2.ª ed., almedina, coimbra, 2011, 15 ss. 67 Regime jurídico dos serviços de pagamento e de moeda electrónica: decreto -Lei n.º 317/2009, de 30 de outubro. Vide, ainda, o aviso n.º 10/2009, do Banco de Portugal, de 10 de novembro de 2009, que Define o enquadramento regulamentar quanto às matérias relativamente às quais as instituições de pagamento ficam sujeitas à supervisão do Banco de Portugal e a instrução n,.º 27/2009, do Banco de Portugal, de 15 de janeiro, que Determina, sem prejuízo da aplicação de outras normas, que Instruções são aplicáveis às instituições de pagamento. 68 sobre a regulação bancária em geral, vide Menezes cordeiro, Direito bancário, cit., 1023 ss. e Regulação económica e supervisão bancária, 138 dir, 2006, 245 -276; armindo saraiva Matias, Supervisão bancária: situação actual e perspectiva de evolução em EH Inocêncio Galvão Telles, vol. v, almedina, coimbra, 2002, 565 -592.

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do RGic, a supervisão prudencial bancária tem como principal objetivo assegurar que as instituições de crédito dispõem, a todo no tempo, de níveis adequados de liquidez e solvabilidade (artigo 94.º do RGic). É no seu seio que todas as questões relacionadas com o capital das instituições de crédito, os seus fundos próprios e as reservas (artigos 95.º, 96.º e 97.º do RGic) encontram resposta69.

a supervisão comportamental apenas veio a assumir uma consagração expressa com a reforma de 2008, introduzida pelo decreto -Lei n.º 1/2008, de 3 de janeiro, que veio moldar o regime então existente, embrionário e parcelar, e atribuiu competências mais precisas ao supervisor70.

a atenção do Banco de Portugal centra -se, agora, no cumprimento das regras de conduta que regem a atuação das entidades supervisionadas, em espe-cial no âmbito das relações estabelecidas com os clientes: parte mais fraca, com menos informação, conhecimentos e reduzida, senão mesmo nula, capacidade de negociação; a verificação do cumprimento dos deveres de informação e de sigilo apresenta -se como a face mais visível desta modalidade de supervisão.

7. Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários

i. numa perspetiva objetiva, os poderes de supervisão da cMvM surgem intimamente associados ao conceito de instrumento financeiro. atente -se ao disposto na alínea a) do artigo 353.º/1 do cvM:

1. são atribuições da cMvM, além de outras constantes do seu estatuto:a) a supervisão das formas organizadas de negociação de instrumentos finan-

ceiros, das ofertas públicas relativas a valores mobiliários, da compensação e da liquidação de operações àquelas respeitantes, dos sistemas centralizados de valores mobiliários e das entidades referidas no artigo 359.º;

a capacidade subjetiva da cMvM varia consoante estejamos no campo da supervisão comportamental (artigo 359.º do cvM) ou prudencial (361.º/1 do cvM), assumindo a última modalidade uma extensão mais significativa.

69 Manuel Magalhães, A evolução do Direito prudencial bancário no pós ‑crise: Basileia III e CRD IV em O novo Direito bancário, coordenação Paulo câmara e Manuel Magalhães, almedina, coimbra, 2012, 285 -371.70 alexandra Gonçalves Marques, Supervisão comportamental bancária: da supervisão da proteção do cliente bancário, 70 RB, 2010, 5 -56, 48 ss.; Joana Pinto Monteiro, O desenvolvimento recente da supervisão bancária comportamental em o novo Direito bancário, cit., 227 -284.

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ii. originariamente, a supervisão da cMvM assumia uma natureza essen-cialmente comportamental71. o cvM trouxe, em parte por influência euro-peia, alguma inovação, quando confrontamos o regime atual com o previsto no antigo cdMvM72: o supervisor atua hoje como garante do equilíbrio do mercado dos valores mobiliários, o que exige, necessariamente, uma vigilância contínua e presente (artigo 362.º do cvM). ainda dentro da modalidade prudencial, a atuação da cMvM está sujeita a três grandes princípios, devidamente enun-ciados no artigo 363.º/2 do cvM: (i) preservação da solvabilidade e liquidez das instituições supervisionadas; (ii) prevenção de riscos sistémicos; e (iii) controlo da idoneidade dos titulares dos órgãos de gestão e dos titulares de participações qualificadas das instituições supervisionadas.

8. Instituto de Seguros de Portugal

i. a atividade seguradora está sujeita à supervisão do instituto de seguros de Portugal. com competências para fiscalizar toda a atividade seguradora e resseguradora (supervisão objetiva) prosseguida pelas empresas de seguros e de resseguros (supervisão subjetiva), o isP encontra nos seus estatutos (decreto -Lei n.º 289/2001, de 13 de novembro) e no Regime Geral da atividade seguradora (republicado pelo decreto -Lei n.º 2/2009, de 5 de janeiro) as fontes da inter-venção que lhe é exigida.

ii. a matéria da supervisão per se vem genericamente tratada nos artigos 156.º e seguintes do RGas.

a dimensão prudencial da atividade do isP assume especial relevância, tendo o supervisor poderes para exigir todo o tipo de informação necessária [157.º/1, b)] que lhe permita conhecer o grau de liquidez e de solvabilidade das entidades supervisionadas (157.º/2, ambos do RGas)73.

9. Complementaridade dos três supervisores

i. a aproximação e integração crescentes dos mercados financeiros tem moti-vado uma aproximação horizontal, assente numa cooperação institucional entre

71 sobre a supervisão da cMvM em geral, vide Paulo câmara, Manual, cit., 245 ss. e Supervisão e regulação do mercado de valores mobiliários, viii dvM, 2008, 38 -64. 72 Frederico costa Pinto, A supervisão no novo Código dos Valores Mobiliários, 7 cadMvM, 2000, 89 -103, 96: sublinhando precisamente este aspeto.73 sobre a supervisão do isP, vide, como ponto de partida, antónio Menezes cordeiro, Direito dos seguros, almedina, coimbra, 2013, 273 ss.

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os três supervisores, em especial no que respeita à troca de informações – BP74, cMvM75 e isP76 – e numa aproximação vertical, através da criação de entidades com competências próprias.

o processo foi impulsionado pela crise financeira, que pôs em cheque os esforços até então desenvolvidos77.

ii. no topo do sistema financeiro nacional, encontramos hoje o conselho nacional de supervisores Financeiros. instituído pelo decreto -Lei n.º 228/2000, de 23 de setembro, o conselho, composto, no seu núcleo, pelo governador do BdP, que preside, pelo administrador do BdP com o pelouro da supervisão bancária, pelo presidente do isP e pelo presidente da cMvM (artigo 4.º), tem como propósito último coordenar a atividade das diferentes autoridades de supervisão78.

em 2007, foi instituído o comité nacional para a estabilidade Financeira (cneF). constituído pelo BdP, a cMvM, o isP e o Ministério das Finanças, o cneF foi criado com o intento de facilitar a troca de informações, de forma a evitar a propagação de crises que pudessem afetar os mercados financeiros.

Finalmente, através do decreto -Lei n.º 225/2008, de 20 de novembro, que transpôs para a ordem jurídica interna a diretriz n.º 2006/43/ce, de 17 de maio, foi criado o conselho nacional de supervisão de auditoria, composto pelo BdP, a cMvM, o isP, a ordem dos Revisores oficiais de contas e a inspeção -Geral de Finanças, que supervisiona todas as questões jurídicas que envolvam os revi-sores oficiais de contas, desde a sua constituição e registo até ao fornecimento das informações legalmente exigidas.

74 artigo 81.º/1 da Lei orgânica: “o disposto nos artigos anteriores (dever de sigilo) não obsta, igualmente, a que o Banco de Portugal troque informações com a comissão do Mercado de valores Mobiliários, o instituto de Portugal. . .”75 artigo 355.º/1, a) do cvM: “Quando seja necessário para o exercício das respetivas funções, a cMvM pode trocar informações sobre factos e elementos sujeitos a segredo com as seguintes entidades, que ficam igualmente sujeitas ao dever de segredo: Banco de Portugal e instituto de seguros de Portugal”.76 artigo 14.º, 1), dos respetivos estatutos: “compete ao conselho diretivo, no âmbito das relações com outras instituições e no das relações internacionais colaborar com todas as autoridades nacionais e comunitárias nas matérias da sua competência e, em especial, colaborar com o Banco de Portugal e com a comissão do Mercado de valores Mobiliários, com vista a assegurar a eficácia e a coerência global da supervisão do sistema financeiro”. 77 Paulo câmara, Medidas regulatórias adoptadas em reposta à crise financeira: em exame crítico, iX dvM, 2009, 71 -113.78 o cnsF viu as suas competências aumentadas pouco após o início da crise, com o decreto--Lei n.º 211 -a/2008, de 3 de novembro.

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§ 3.º Modelos de supervisão

10. Enquadramento

i. a crise financeira mundial iniciada em 2007 despertou o interesse acadé-mico e governativo pela estrutura de supervisão dos mercados financeiros. entre nós, o debate encontrou no Ministério das Finanças um natural interlocutor, tendo, em 2009, divulgado, para consulta pública, um documento intitulado Reforma da supervisão financeira em Portugal. o Ministério das Finanças pretendia recolher observações em torno de quatro pontos específicos, indicativos das pretensões prosseguidas:

i. o alargamento do perímetro e reforço da supervisão nos domínios macro e micro prudencial;

ii. o reforço da supervisão comportamental; iii. a reformulação e reforço dos poderes do conselho nacional de super-

visores Financeiros; iv. a atribuição de estatuto legal ao conselho nacional de estabilidade

Financeira, reforçando igualmente a sua responsabilidade.

Paralelamente, o Governo Português pretendia, ainda, reformular o modelo de supervisão nacional, adotando o sistema funcional de base dual, conhecido pela designação anglo -saxónica Twin Peaks, estruturado em torno de uma divisão transversal, entre (i) a supervisão prudencial – a cargo do BdP – e (ii) a supervisão comportamental – a cargo de uma nova entidade criada para o efeito. esta reforma representaria uma reestruturação sem paralelo, no sistema português, implicando a extinção da cMvM e do isP e a reformulação do BdP. a cooperação entre as duas entidades seria feita através do também remodelado cnsF79.

Por razões que nunca foram explicadas ao público, a reforma não chegou a ver a luz do dia80.

ii. atualmente, reconhecem -se três grandes modelos de supervisão: (i) o modelo especializado; (ii) o modelo monista; e (iii) o modelo funcional81.

79 nascimentos Rodrigues, A reforma, cit.80 câmara, Manual, cit., 281.81 como bibliografia base, recomendamos: charles Goodhart, The Organisational Structure of Banking Supervision, Fsi occasional Papers no. 1 – november 2000 -10 -25, Financial stability institute, Bank for international settlements, Basel; david t. Llewllyn, Institutional Structure of Financial Regulation and Supervision: the Basic Issues, 2006; eddy Wymeersch, The Structure of Financial Services in Europe: About Single Financial Supervisors, Twin Peaks and Multiple Financial Supervision, eBoR, 2007, 237 -306, 242.

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Uma análise pormenorizada de cada um permite perceber os méritos e deméritos da solução então defendida pelo nosso Governo, bem como o sistema que melhor se adequa à realidade nacional.

11. Sistema especializado

i. o sistema especializado, também dito institucional (por influência angló-fona) ou tripartido, assenta numa separação da atividade de supervisão em torno dos três grandes mercados financeiros: banca, seguros e valores mobiliários. corresponde ao modelo clássico, historicamente assumido pela maioria dos países – reconhece -se, contudo, que vivemos um período de viragem, sendo notória uma tendência para assumir caminhos mais integrados – e seguido pelo legis-lador europeu82.

no seu estado mais puro, o sistema institucional é alheio às atividades efeti-vamente prosseguidas pela instituição supervisionada, i.e., com o seu registo junto do supervisor, a entidade passa a estar sujeita à sua fiscalização, independentemente de, posteriormente, estender as atividade prosseguidas, mesmo para além do sector financeiro original. na prática, uma instituição de crédito estaria sempre sujeita à supervisão do Banco de Portugal, mesmo quando atuasse no campo dos valores mobiliários ou dos seguros.

ii. as críticas dirigidas ao sistema tripartido do modelo institucional assumem duas feições: (i) desadequação à realidade moderna; e (ii) desarmonização regu-latória.

o sistema especializado é por muitos apresentado como desajustado ao percurso contemporâneo dos mercados financeiros, caracterizados pela supre-macia da banca universal, pelos grandes grupos financeiros, congregadores dos três sectores, e pela emergência de instrumentos financeiros híbridos. na prática, o modelo mantém uma separação que já não corresponde à realidade que pretende regular.

a coexistência de distintos supervisores traduz -se numa multiplicação de códigos deontológicos e regras de conduta, de modelos de gestão autónomos e numa visão de intervenção desarmonizada e sectorial.

iii. Pese embora as críticas apontadas, o modelo possui relevantes vantagens: permite uma maior conformação da supervisão à realidade específica de cada um dos sectores; incentiva a concorrência entre os diversos supervisores; e tende

82 a intervenção europeia nos mercados financeiros assume, tradicionalmente, contornos sectoriais.

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a agilizar, pelo menos em abstrato, a intervenção das entidades de supervisão, estruturalmente mais leves.

iv. o modelo tripartido encontra -se em franca regressão, com a maioria dos países europeus a adotarem formas mais concentradas. de entre os países que atualmente seguem este modelo, destacamos, para além, evidentemente, de Portugal, a espanha: Comisión Nacional del Mercado de Valores – mercado dos valores mobiliários; Banco de España – mercado monetário; e Dirección General de Seguros – mercado dos seguros.

12. Sistema monista

i. o sistema monista, também dito integrado ou unitário, procura responder as críticas que são dirigidas ao sistema especializado, em especial à sua desade-quação em face da realidade económico -financeira dos grandes conglomerados e da desarmonização das políticas adotadas pelos diferentes super visores.

o modelo integrado está, contudo, longe de assumir um conteúdo padro-nizado: o nível de integração é variável. Poderá ser total, pense -se na realidade germânica, assente apenas numa entidade – Bafin: Bundesanstalt für Finanzdiens‑tleistungsaufsicht –, com competência para supervisionar a atividade de instituições de crédito, instituições financeiras e seguradoras; ou parcial, caso do modelo atualmente seguido em terras franceses, surgindo a acPR – Autorité de contrôle prudentiel et de résolution – como supervisora do sector bancário e do sector dos seguros e a aMF – Autorité des Marchés Financiers – como responsável pelo sector dos valores mobiliários.

ii. as vantagens abstratas do sistema especializado correspondem às desvan-tagens do sistema integrado.

com a institucionalização de um supervisor único corre -se o risco de estagna-ção. as entidades omnipresentes tendem a burocratizar -se e a desenvolver estru-turas rígidas e pouco flexíveis. ora, a supervisão dos mercados financeiros quer-se moderna, mais não seja pelas constantes transformações a que se encontram sujeitos.

13. Sistema funcional

i. o sistema funcional é, por natureza, um modelo especializado. a sua individualização não tem, contudo, na sua base, uma separação sectorial, mas a atividade de supervisão exercida.

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a solução mais divulgada – conhecida pela já mencionada designação anglo--saxónica Twin Peaks – recebeu o importante contributo de Michael taylor, sendo a expressão da sua autoria.

em meados da década de 90 do século passado, taylor propôs um sistema alternativo, institucionalmente alicerçado em duas entidades: um supervisor prudencial e um supervisor comportamental, ambos com competências transver-sais a todos os mercados financeiros, independentemente do sector em questão83.

o sistema foi acolhido pelos Países Baixos, estando a supervisão pruden-cial sujeita ao De Nederlandsche Bank e a comportamental à Autoriteit Financiële Markten84.

ii. de entre as críticas formuladas à solução funcional e, em especial, ao modelo Twin Peaks, duas destacam -se pela sua pertinência: (i) duplicação de estru-turas; e (ii) artificialidade da distinção85.

a primeira fragilidade apontada é, na realidade, extensível a todas as soluções especializadas: num sistema tripartido como o português, a separação sectorial traduz -se, precisamente, numa sobreposição de cargos e funções. em compen-sação, poder -se -á sempre argumentar que, na organização interna dos supervisores, quer seja no modelo integrado, quer seja no modelo especializado, recorre -se, regra geral, a uma separação departamental das duas dimensões, o que leva a um esvaziamento da própria objeção.

o segundo ponto merece um maior cuidado, não sendo muitas vezes claro se uma determina atividade deverá ser incluída no campo prudencial ou remetida para o comportamental. estas dúvidas poderão ser ultrapassadas com um minu-cioso elencar das atividades sujeitas a cada uma das entidades.

14. Conclusões

i. a realidade financeira nacional caracteriza -se pela proeminência de insti-tuições de crédito ditas universais. as pessoas comuns recorrem aos seus bancos comerciais para investir em produtos financeiros.

esta procura levou ao desenvolvimento, dentro das instituições de crédito clássicas, de departamentos altamente especializados, preparados para fazer face às exigências e pedidos de investidores mais exigentes ou profissionalizados.

83 Para uma visão atual da posição atualmente defendida pelo autor, vide, Michael W. taylor, The Road form “Twin Peaks” – and the Way Back, 16 conn ins LJ, 2009, 61 -95.84 Jeroen Kremers e dirk schoenmaker, Twin Peaks: Experiences in the Netherlands, Lse Financial Markets Group Paper series, dezembro 2000.85 câmara, Manual, cit., 280 e nascimento Rodrigues, A reforma, cit., 556 -557.

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o reduzido tamanho do nosso país e a consolidação da prática bancária inte-grada desaconselham qualquer tipo de alteração que vise uma separação dos dois mundos. os riscos associados aos modelos universais são sobejamente conhecidos, não se vislumbrando qualquer razão para que os nossos supervisores não estejam munidos de todos os mecanismos indispensáveis a um correto e atempado acom-panhamento dos mercados.

ii. o modelo de supervisão adotado por cada país deve refletir a realidade concreta dos seus mercados financeiros. À partida, num sistema como o português, caracterizado pela supremacia da banca universal, uma distinção dos três sectores, para efeitos de supervisão, tende a assumir contornos artificiais. em abstrato, seria vantajoso aderirmos à solução unitária.

não podemos, todavia, ignorar os riscos tradicionalmente apontados aos sistemas monistas, em especial num país como o nosso em que, fruto das parti-cularidades demográficas, sociais e culturais, permite, historicamente, a emergência de instituições públicas controladas pelas grandes forças políticas e económicas.

as vantagens integrativas, devidamente conjugadas com as particularidades nacionais, apontam para o aprofundamento da solução híbrida hoje instaurada, com uma aproximação material dos três supervisores através da densificação dos poderes do cnsF.