ORLANDO NEVES, "Meão, pálido e calvo"

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ORLANDO NEVES (1935 2005) A.A. ~ 2010-2011 Prof.ª eli Orlando Neves: aqui

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ORLANDO NEVES, "Meão, pálido e calvo", in Rua do Sol ~ leitura complementar para o 12.º ano ~ e.e. ~ António Arroio ~ Prof.ª eli

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ORLANDO NEVES

(1935 – 2005)

A.A. ~ 2010-2011

Prof.ª eli

Orlando Neves: aqui

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MEÃO, PÁLIDO E CALVO

O que mais esvoaça é um par de meias azuis.

Na corda, esticada a todo o comprimento da varanda, trinta e

nove peças de roupa miúda são batidas pelo vento que vem do norte

e é agreste no fim da manhã parda.

Uma das meias, a certa altura, dobra-se por cima da corda, fica a

formar um toco de coxo, ao lado da outra.

O que a Rosa, proprietária das meias, não é, é coxa.

Tem dezassete anos e um corpo espectacular no qual sobressaem

as pernas altas e bem modeladas. Cabelos castanhos de casca de

árvore, livres até à cintura, um peito saliente e proporcionado, ancas

curvas, costas direitas e longas. Quanto ao rosto, um pouco largo,

uma boca grossa e vermelha, um nariz pequeno e uns olhos entre o

verde e o castanho deve, provavelmente, ser o mais fotogénico da

rua. Tudo isto e um ar mocetão e camponês propõem a sua figura

para o cinema, tanto recorda as mulheres romanas da tela.

Vejamos se é possível descrever o resto, ou seja, como vive a

Rosa.

Em primeiro lugar, o cenário.

Vive com os pais num prédio intruso na rua. Recuado, no passeio

das casas velhas, o prédio da Rosa (que é, aliás, o da Maria das

Dores) é relativamente moderno. Faz parte da esboçada

regularização da rua. A Câmara, há vinte anos, decidiu alargá-la e

cada novo edifício que se constrói, ao substituir os caducos, tem de

recuar uns bons cinco metros. Desse lado apenas há dois desvãos do

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género. O resto continua a ser de casas baixas e velhíssimas,

apoiadas num passeio de cinquenta centímetros à boca do piso onde

os automóveis circulam.

A frontaria do prédio é composta por varandas, duas curtas às

pontas e uma comprida, aquela onde está a roupa a secar, a roupa

da Rosa e da família. É nesta varanda que ela vive. Muito mais do

que no quarto, na sala ou na cozinha cujas portas abrem para a

sacada.

Logo pela manhã, a Rosa surge. Vem ainda estremunhada, em

camisa de dormir, os seios saltando soltos, os braços carnudos, ao

léu. Percorre o espaço desviando-se de caixotes, baldes e bancos que

atravancam a varanda para se dirigir a um extremo. Curva-se e, do

fundo, levanta um cão preto, pequeno, rafeiro do Alentejo que, tudo

leva a crer, ali dorme as noites mais quentes. Soergue-o à altura da

boca e começa uma via-sacra de beijos no animal, ensonado, sem

reacções dignas. Embala-o no sensual do colo, até que o fraldiqueiro

retoma vida, late, pula para o chão e some-se pela porta da cozinha

aberta.

- Tá aqui, Toni! – grita a rapariga.

Não se sabe se o cão regressa, mas ela baixa-se, ouve-se um

raspar de pratos e, de novo erguida, Rosa pousa os belos braços no

varandim e o rego dos seios surge, esplêndido.

Os olhos gulosos do Ramos, cá em baixo, grudam-se ao

espectáculo. Que dura pouco. Com um sacão forte, a Rosa atira para

trás a cabeleira que lhe começava a fechar o rosto, dá costas à rua e

volta para dentro.

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Demorará uma hora até regressar ao seu palco de marioneta. De

facto, ao longo do dia, ela será vista da cintura para cima girando

para cá e para lá ao longo da varanda.

O que ela faz: senta-se (só a cabeça se lhe vê), penteia-se, lê o

«Tio Patinhas» ou a «D. Xepa» (à tarde), o «Diário Popular»), escova

o Toni, cose; levanta-se, lava a roupa (raramente), estende-a (disso

gosta), limpa os azulejos do prédio, os vidros das portadas ou os

caixilhos das janelas, muda água aos vasos de plantas; debruça-se e

conversa; para o lado, com a Maria das Dores, se ela aparece à

varanda, o que é pouco vulgar; para cima, com a D. Conceição, mãe

de dois catraios que, às vezes, vão estadiar para casa da Rosa,

ambas esticadas no parapeito em posições opostas, uma por cima da

outra, para se verem as caras; e, finalmente, para baixo, com os da

rua.

O principal interlocutor da Rosa, nessa posição, é o pai.

Entramos, agora, nos figurantes.

O pai da Rosa.

É um sujeito baixinho, mais baixo do que a filha que, por sua vez

é mais alta do que a mãe, esta ainda mais baixa do que o marido.

Usa um bigodinho hitleriano, deve ter chegado agora aos quarenta e

trabalha num armazém de mobílias feitas instalado no mesmo prédio

onde habita, precisamente sob a sua varanda.

A mãe da Rosa.

Pequenina, magra, vestida sempre de escuro, deve ter sido uma

bonita rapariga e tem uma idade próxima da do marido. Poucas vezes

vem à varanda. Vê-se na sala e no quarto, em arrumações e, mais

frequentemente, na cozinha.

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É de lá que transmite à filha:

- Pergunta ao teu pai se quer carapaus fritos ou assados.

A Rosa inclina-se toda, os cabelos caídos, e grita:

- Pai!

Saindo a porta do armazém o homem espreita para cima:

- O que é?

- Quer os carapaus fritos ou assados, pergunta a mãe.

- Assados.

E, logo a segui, recuperando os cabelos, a Rosa vira-se para a

janela da cozinha e diz:

- Assados, mãe.

Mas não demora muito que a Rosa não volte a debruçar-se e os

cabelos não atinjam a base da varanda:

- Pai!

Mesma cena.

- Que é?

A Rosa:

- Onde é que o pai pôs a escova do fato?

- Não sei. Procurem.

Além do progenitor, a Rosa conversa da varanda com: o velhote

dos jornais a quem devolve o vespertino do dia anterior e que, em

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troca, lhe empresta a «D. Xepa»; o sr. Mendes, colega-chefe do pai;

a Nicas e o Manuel, filho da D. Teresa, mulher do único taberneiro

desta zona da rua, dois miúdos que jogam eternamente às

escondidas que a Rosa arbitra lá de cima: a D. Margarida, a porteira,

sempre a depositar saquinhos de lixo na berma da rua, apesar do

caixote alto postado, inútil, à porta; a Cândida, de dezassete anos

também, feia, escanzelada, de um prédio mais acima que, ao

contrário da Rosa, anda sempre na rua a fazer recados, entontecendo

o Ramos que lhe aprecia o rabo, de facto bolachudo e saltitante; a D.

Justina, velha de sessenta anos que, cinco vezes por dia, vem

passear um cão trôpego, tão antigo como ela e sobre cujo estado de

saúde a Rosa inquire, interessada, vê-se, em fazer extrapolações que

digam respeito ao seu Toni; o Artur, do restaurante, que sugere que

ela vá beber uma bica depois do almoço, retorquindo a Rosa, de má

cara, que não gosta do café do sr. Pinto, sem dizer que não gosta é

do Artur por ser louro; outros habitantes menos fixos durante o dia e,

actualmente, o Joaquim.

Desde os 13 anos que a vida da Rosa tem como tablado aquela

varanda. Lá de vez em quando mas muito, muito raramente, vem à

rua e traz o Toni. Quando sai, tem a noção do que é. Por isso, põe

saltos altos, calças justas de veludo ou saia travada por cima das

meias azuis e dá curtas corridas atrás do cão. O Ramos vê que tudo

nela mexe e inquieta-se. Já tentou meter conversa – o pretexto é

sempre o animal. Mas a Rosa responde-lhe secamente e o Ramos não

insiste porque, atrás do vidro do armazém, o pai vigia.

Apenas há quatro anos ali moram. Nessa altura a Rosa era uma

garota desenvolta, que cantarolava toda a tarde na varanda.

Desistiu, certamente, de estudar. A vida do pai, com um pequeno

automóvel à porta, uma enorme televisão a entrever-se na sala,

alguns móveis caros provavelmente descontados pela fábrica, a

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razoável forma como os três vestem, não pressupõe que a rapariga

deixasse de estudar por absoluta falta de meios. De resto, notam-se

duas coisas: por um lado, a Rosa está interessada em exibir o corpo

embora não extraia ainda dele todas as potencialidades porque há

muito nela de criança, por outro, mesmo quando manuseia o «Tio

Patinhas», a sua capacidade de concentração é fugaz porque

abandona a leitura num abrir e fechar de olhos.

A estranha vida da jovem prolonga-se mesmo em períodos de

férias. Na casa, a única coisa que se altera é o número de ocupantes.

Vindos da província há sempre parentes no Verão: casais velhos,

casais de meia-idade e crianças.

Nessa altura, fazem-se algumas modificações na varanda.

Percebe-se que ela foi esvaziada dos apetrechos de limpeza porque,

todos os dias, a família alongada, ali assa sardinhas ou frita fêveras

que come, também ali, entre risadas e copos tilintantes.

Tudo parece indicar que a Rosa não vai à praia. No Inverno ou no

Verão, ela mantém-se branca e carnosa. Às vezes, de calções e

soutien, senta-se numa cadeira, encosta-se à parede e estende as

esplendorosas pernas nuas sobre o varandim, saboreando o sol da

rua.

Conclui-se que a Rosa espera marido. Mas, até ao Joaquim,

ninguém dera conta de qualquer namorico.

O Joaquim é o comparsa com quem mais tempo fala para a rua a

seguir ao pai. Mas apenas duas vezes por dia.

Por volta das 11 da manhã, o Joaquim pára a furgoneta de artigos

de papelaria em cima da reentrância do passeio, entra no armazém

de mobílias e fica à conversa com o pai da Rosa durante alguns

minutos. Depois, toca à campainha e a rapariga espreita. Os dois

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iniciam uma conversa que, apesar do andar ser alto, ninguém ouve.

Actualmente, a Rosa já desce à porta da rua que abre, o Joaquim

entra e no átrio representam o namoro.

Ela parece ser a mais estimulada e empreendedora, acariciando a

face e o peito do homem, metendo-lhe a mão por dentro da camisa e

rodeando-lhe o pescoço. Ele aperta-a e beija-lhe o cabelo não muito

tempo que está sempre gente a entrar e a sair. À tarde, por volta das

seis, sete horas, estaciona a furgoneta. Dantes trocava breves

palavras com a Rosa, cá de baixo, e partia. Agora, fecha o veículo,

toca à porta e entra.

Os dois arrulham, apoiados na varanda. Ela enlaça-o, encosta a

cabeça no braço dele, ri muito quando o cabelo tapa a cara do

namorado. Se o escuro se faz, começam a deslizar ao longo da

sacada até ao extremo onde dorme o Toni e, nesse local, sem a

vigilância que podia vir da cozinha ou da sala, beijam-se

atabalhoadamente mas com uma fúria que se desprende da rapariga

como água livre de represa.

Nem sempre o Joaquim parte. Às vezes, fica para jantar e, nessas

alturas, conversa mais com o pai do que com ela. São amigos, talvez

parentes, porque ele não é da rua e apareceu a namorar a Rosa de

um momento para o outro.

Nada disto espanta.

O que já talvez possa causar alguma estranheza é o Joaquim.

Meão, ligeiramente mais baixo do que a Rosa, de cara redonda,

mesmo gorducha, pálido e quase calvo, embora fortemente moreno,

o Joaquim tem, quase de certeza, a mesma idade do pai da Rosa.

Orlando Neves, Rua do Sol