Ornamento e Crime [Loos_1908

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autor: Adolf Loos data do original: 1908 título: Ornamento e Delito tradução: Anja Pratschke revisão: Fernando Atique data da tradução: 2001-2002 equipe: Carlos Roberto Monteiro de Andrade José Tavares Correia de Lira Fernando Atique Renata Campello Cabral Giselle Rocha Zardini Nora Cappello www.eesc.sc.usp.br/babel Ornamento e Delito O embrião humano atravessa na barriga da mãe todas as fases evolutivas do reino animal. Quando nasce o ser humano, suas impressões sensitivas são iguais às de um cachorro recém-nascido. Sua infância atravessa todas as transformações que correspondem à história da humanidade. Com dois anos enxerga como um papua 1 , com quatro anos como um germânico, com seis anos como socrates 2 , com oito anos como Voltaire. Quando faz oito anos, se torna consciente do roxo, a cor que o século dezoito descobriu, porque antes as violetas eram azuis e o caramujo púrpuro, vermelho. Hoje, o físico mostra cores no espectro da luz que já tem nomes, mas seu reconhecimento fica reservado para os homens futuros. A criança é amoral. Para nós o papua é também. O papua estripa seus inimigos e os come. Ele não é criminoso. Porém, quando o homem moderno estripa alguém e o come é, então, um criminoso ou um degenerado. O papua tatua sua pele, seu barco, seu remo, resumindo, tudo que está ao seu alcance. Ele não é criminoso. O homem moderno que se tatua é um criminoso ou um degenerado. Existem prisões onde oitenta por cento dos detidos possuem tatuagens. Os tatuados que não estão na prisão, são criminosos latentes ou

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autor:

Adolf Loos data do original:

1908 título:

Ornamento e Delito tradução:

Anja Pratschke revisão:

Fernando Atique data da tradução:

2001-2002 equipe:

Carlos Roberto Monteiro de Andrade José Tavares Correia de Lira Fernando Atique Renata Campello Cabral Giselle Rocha Zardini Nora Cappello

www.eesc.sc.usp.br/babel

Ornamento e Delito

O embrião humano atravessa na barriga da mãe todas as fases evolutivas do

reino animal. Quando nasce o ser humano, suas impressões sensitivas são iguais

às de um cachorro recém-nascido. Sua infância atravessa todas as

transformações que correspondem à história da humanidade. Com dois anos

enxerga como um papua1, com quatro anos como um germânico, com seis anos

como socrates2, com oito anos como Voltaire. Quando faz oito anos, se torna

consciente do roxo, a cor que o século dezoito descobriu, porque antes as violetas

eram azuis e o caramujo púrpuro, vermelho. Hoje, o físico mostra cores no

espectro da luz que já tem nomes, mas seu reconhecimento fica reservado para

os homens futuros.

A criança é amoral. Para nós o papua é também. O papua estripa seus

inimigos e os come. Ele não é criminoso. Porém, quando o homem moderno

estripa alguém e o come é, então, um criminoso ou um degenerado. O papua

tatua sua pele, seu barco, seu remo, resumindo, tudo que está ao seu alcance. Ele

não é criminoso. O homem moderno que se tatua é um criminoso ou um

degenerado. Existem prisões onde oitenta por cento dos detidos possuem

tatuagens. Os tatuados que não estão na prisão, são criminosos latentes ou

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aristocratas degenerados. Quando um tatuado morre em liberdade, é porque

precisamente morreu alguns anos antes de ter realizado um assassinato.

A vontade de ornamentar seu rosto e tudo que está ao alcance, é a origem

das artes plásticas. É o balbuciar da pintura. Toda arte é erótica.

O primeiro ornamento que nasceu, a cruz, tem origem erótica. A primeira

obra de arte, o primeiro ato que o primeiro artista pichava na parede, foi para se

livrar de seus excessos. Um risco horizontal: a mulher deitada. Um risco vertical: o

homem a atravessando. O homem que a criou, sentia o mesmo ímpeto criativo

como Beethoven; estava no mesmo céu, no qual Beethoven criou a nona.3

Mas o homem do nosso tempo, que picha as paredes com símbolos

eróticos, motivado por seu próprio ímpeto é um criminoso ou degenerado. É

evidente que tal ímpeto transparece com maior força em homens com esses

sintomas degenerados, nos banheiros públicos. Pode-se medir a cultura de um

país pelo grau de pichação das paredes dos banheiros públicos. Na criança esse

é um aspecto natural: sua primeira expressão artística é o rabiscar das paredes

com símbolos eróticos. Mas, o que é natural na criança ou no papua, é no homem

moderno um aspecto de degeneração. Encontrei a seguinte compreensão e

ofereci ao mundo: evolução da cultura é equivalente à retirada de ornamentos dos

objetos usuais. Acreditava, assim, trazer novas alegrias ao mundo; ele não me

agradeceu. A gente ficou triste e andava amuada. O que perturbava era a

compreensão de que não poderia mais ser produzido um novo ornamento. Como,

já que cada negro pode, já que todos os povos e todos os tempos sabiam fazer

antes de nós, somente nós, os homens do século dezenove, não poderíamos? O

que a humanidade conseguiu sem ornamentos em séculos anteriores, foi

descuidadamente rejeitado e abandonado para sua destruição. Não possuímos

bancadas de carpintaria do tempo dos carolíngios, mas cada nada, que

apresentava o mais ínfimo ornamento, foi colecionado e limpo, e para abrigá-lo

foram construídos palacetes pomposos. Tristes, então passeavam os homens

entre as vitrines e ficavam envergonhados de sua impotência. Cada época tinha

seu estilo e somente à nossa deve ser negado um estilo? Com estilo se queria

dizer ornamento. Cá, falava eu: não chorem. Olhem, é isso que faz a grandeza do

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nosso século, pois ela não é capaz de produzir um novo ornamento. Vencemos o

ornamento, decidimos nos desprender dos ornamentos. Olhem, o tempo está

perto, a concretização nos espera. Logo, brilharão as ruas das cidades como

muros brancos. Como Sião, a cidade sagrada, a capital do céu. Assim, chega a

concretização.

Mas existem maus espíritos que não queriam permitir isso. A humanidade

deveria continuar ofegante na escravidão do ornamento. Os homens estavam

suficientemente longe para que o ornamento não trouxesse mais sentimentos de

prazer, suficientemente longe, para que a face tatuada, como era o caso com os

papuas, não aumentasse a sensibilidade estética, mas a reduzisse.

Suficientemente longe para sentir alegria com uma lisa caixa de cigarros,

enquanto uma ornamentada, ainda que com o mesmo preço, não fosse comprada.

Estavam felizes em suas roupas e contentes de não precisar flanar, como

macacos de feiras, com calças de cetim vermelho com cordões dourados.4 E eu

dizia: olhem, o quarto onde morreu Goethe é mais magnífico que toda pompa do

renascimento, e um móvel liso é mais bonito que qualquer peça de museu

marchetada ou entalhada. A língua de Goethe é mais bonita que todos os

ornamentos dos pastores de ovelhas de pegnitz.5

Isso os maus espíritos ouviam com desagrado, e o estado, cuja tarefa é

deter os povos nos seus desenvolvimentos culturais, fazia a questão do

desenvolvimento e da retomada do ornamento, como sua. Pobre do estado, cujas

revoluções são realizados pelos conselheiros da corte. Logo se viu no museu de

artes decorativas de Viena um aparador que se chamava "a rica pesca"; logo

havia armários que carregavam o nome "a princesa desaparecida" ou qualquer

coisa semelhante, que se referia ao ornamento, com o qual esse móvel infeliz foi

coberto. O estado austríaco leva tão a sério sua tarefa que se preocupa que as

polainas de pano não desapareçam das fronteiras da monarquia austro-húngara.

Obriga cada homem culto de vinte anos, usar durante três anos, polainas no lugar

de calçados eficientes. Porque, finalmente, cada estado parte da suposição que

um povo de nível inferior é mais fácil de governar.

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Pois é, a epidemia do ornamento é reconhecida nacionalmente e é

subvencionada com dinheiro da nação. Mas, vejo nisso um retrocesso. Não

admito o argumento de que o ornamento aumenta a alegria de viver de um

homem culto, não admito o argumento que se traveste nas palavras: “mas se o

ornamento é bonito...!”. Para mim e para todos os homens cultos o ornamento não

aumenta a alegria de viver. Quando quero comer um pfefferkuchen6, escolho um

que é completamente liso e não uma peça que quer representar um coração, ou

um bebê enfaixado, ou um cavaleiro que é completamente coberto por

ornamentos. O homem do século quinze não vai me entender. Mas todos os

homens modernos vão. O representante do ornamento acredita que meu ímpeto

para a simplicidade se iguala a uma flagelação. Não, prezado senhor professor da

escola de artes decorativas, eu não me flagelo. Para mim, é mais saboroso assim.

Os pratos pomposos de séculos passados, que apresentam todos os ornamentos

para fazer parecer os pavões, os faisões e as lagostas mais saborosos, produzem

em mim o efeito contrário. Com horror, atravesso uma exposição de arte culinária,

quando eu penso que deveria comer esses cadáveres de animais recheados. Eu

como roastbeaf.

O imenso dano e as destruições que a ressurreição do ornamento ocasiona

no desenvolvimento estético, poderiam ser facilmente suportados, porque

ninguém, nem nenhum poder supremo pode deter a evolução da humanidade.

Somente pode ser retardada. Podemos esperar. Mas é um crime para a

economia, pois por causa disso o trabalho humano, o dinheiro e a matéria são

arruinados. Esse dano, o tempo não poderia reequilibrar.

O ritmo do desenvolvimento cultural sofre por causa dos atrasados. Eu

talvez viva no ano de 1908, mas meu vizinho vive por volta de 1900, e aquele lá,

vive no ano de 1880. É uma tragédia para um estado, quando a cultura de seus

habitantes se divide em um espaço de tempo tão grande. O camponês de kalser7

vive no século doze. E na procissão da festa do jubileu havia um populacho que

mesmo durante a migração dos povos8 seriam sentidos como atrasados. Feliz o

país que não tem tais atrasados e aproveitadores. Feliz América! Aqui mesmo nas

cidades existem tais homens antiquados, atrasados do século dezoito, que se

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horrorizam com uma pintura com sombras roxas, porque não enxergam ainda o

roxo. Para eles é mais saboroso o faisão, no qual o cozinheiro trabalhou vários

dias, e gostam mais da caixa de cigarros com ornamentos renascentistas do que

da lisa. E como é no campo? Roupas e coisas de casa pertencem absolutamente

a séculos passados. O agricultor não é cristão, é ainda pagão.

Os atrasados retardam o desenvolvimento cultural dos povos e da

humanidade, porque o ornamento não é somente produzido por criminosos, mas

ele comete um crime, danificando bastante a saúde do homem, o patrimônio

nacional e como resultado, seu desenvolvimento cultural. Quando duas pessoas

moram lado ao lado com as mesmas necessidades, as mesmas reivindicações

para a vida e o mesmo rendimento, mas pertencem a culturas diferentes, pode ser

observado, do ponto de vista econômico, o seguinte processo: o homem do século

vinte fica mais e mais rico e o homem do século dezoito fica mais e mais pobre.

Eu suponho que os dois vivem seguindo suas inclinações. O homem do século

vinte pode cobrir suas necessidades com um capital bem menor e por isso fazer

economia. O legume que ele saboreia é simplesmente cozido na água e regado

com um pouco de manteiga. Para o outro homem somente é igualmente saboroso

quando tem mel e nozes juntos, e quando um homem cozinhou horas a fio. Pratos

ornamentados são muito caros, enquanto louça branca, na qual o homem

moderno saboreia, é barata. Um faz economia, o outro faz dívidas. Assim é com a

nação inteira. Pobre do povo, que fica atrás no desenvolvimento cultural. Os

ingleses ficam mais ricos e nós mais pobres...

Maior ainda é o estrago que o povo produtivo sofre através do ornamento.

Como o ornamento não é mais um produto natural de nossa cultura, assim

representando ou um atraso ou uma degeneração, o trabalho do ornamentista não

é mais devidamente pago.

As condições nos estabelecimentos de escultores de madeira ou de

torneiros, os preços criminosamente baixos que são pagos para as bordadeiras e

as que realizam bilro, são conhecidos. O ornamentista tem que trabalhar vinte

horas para alcançar o rendimento de um trabalhador moderno, que trabalha oito

horas. O ornamento encarece geralmente o objeto, mesmo assim acontece que

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um objeto ornamentado, com o mesmo preço de material e de tempo de trabalho

comprovadamente três vezes maior, é oferecido pela metade do preço de um

objeto liso. A ausência do ornamento tem como resultado a diminuição do tempo

de trabalho e um aumento de rendimento. O entalhador chinês trabalha dezesseis

horas, o americano trabalha oito. Quando eu pago por uma caixa lisa tanto quanto

por uma ornamentada, a diferença do tempo de trabalho pertence ao trabalhador.

E se não existisse nenhum ornamento, - algo que talvez acontece em milênios - o

homem precisaria trabalhar ao invés de oito horas somente quatro, porque a

metade do trabalho cabe hoje ainda ao ornamento.

Ornamento é força de trabalho desperdiçado e assim saúde desperdiçada.

Foi sempre assim. Mas hoje também significa material desperdiçado e ambos

significam capital desperdiçado.

Como o ornamento não está mais relacionado organicamente com a nossa

cultura, ele não é mais também a expressão da nossa cultura. O ornamento que é

criado hoje, não tem nenhuma relação conosco, não tem de modo nenhum uma

relação humana, nenhuma relação com a ordem mundial. Não é suscetível ao

desenvolvimento. O que aconteceu com a ornamentik de Otto Eckmann, o que

acontece com a de Van de Velde? Sempre o artista cheio de força e saúde estava

na frente da humanidade. Mas o ornamentista moderno é um atrasado ou um

fenômeno patológico. Já depois de três anos seus produtos são negados por ele

mesmo. Para homens cultos eles são imediatamente insuportáveis, para outros

essa insuportabilidade só se torna consciente depois alguns anos. Onde estão

hoje os trabalhos de Otto Eckmann? Onde estarão os trabalhos de Olbrich depois

de dez anos? O ornamento moderno não tem nenhum pai e nenhum descendente,

não tem nenhum passado e nenhum futuro. É saudado com alegria e logo depois

negado por homens não-cultos, para os quais o tamanho do nosso é com um livro

fechado a sete chaves.

A humanidade está mais saudável do que nunca, doentes são apenas

alguns. Mas esses poucos tiranizam o trabalhador, que é tão saudável, que não

pode inventar nenhum ornamento. Obrigam-no a realizar nos mais diversos

materiais os ornamentos inventados por eles.

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A troca do ornamento tem com resultado uma desvalorização precoce do

produto de trabalho. O tempo do trabalhador, o material utilizado são capitais que

são desperdiçados. Estabeleci uma frase: a forma de um objeto dura tanto, isso

quer dizer, ela é tão suportável tanto quanto o objeto dura fisicamente. Eu vou

tentar explicar isso: um traje vai mudar sua forma mais que um casaco de pele

precioso. O traje de baile de uma mulher, destinada somente por uma noite, vai

mudar mais depressa sua forma que uma escrivaninha. Que penúria ter de

modificar a escrivaninha tão depressa quanto ao traje de baile, porque a sua forma

antiga se tornou insuportável, assim se perdeu o dinheiro usado para a

escrivaninha.

Pois isso é bem conhecido do ornamentista e os ornamentistas austríacos

tentam tirar dessa falha o melhor proveito. Dizem: preferimos um consumidor que

tem uma mobília, que depois de dez anos se torna insuportável para ele e, que é,

por causa disso, obrigado a cada dez anos comprar mobílias novamente, a um

que somente compra um objeto novo quando o velho é gasto. A indústria ordena

isso. Milhões são ocupados por causa da mudança rápida. Parece que isso é o

segredo da economia nacional austríaca; quantas vezes se ouve depois de um

incêndio: "Graças a Deus, agora as pessoas tem, de novo, algo para fazer." Lá eu

conheço um bom recurso! Incendeia-se uma cidade, incendeia-se um império e

tudo nada em dinheiro e prosperidade. Fabricam-se móveis que são queimados

para aquecimento depois de três anos, ferraduras, que são depois de quatro anos

fundidas, porque mesmo no leilão público não se consegue nem a décima parte

do custo do trabalho e do material, e ficaremos mais e mais ricos. O prejuízo não

atinge somente o consumidor, mas atinge principalmente o fabricante. Hoje, o

ornamento, naquelas coisas que, graça aos desenvolvimentos, foram privadas de

serem ornamentadas, significa força de trabalho desperdiçado e material

profanado. Se todos os objetos durassem esteticamente o tanto quanto duram

fisicamente, o consumidor poderia estabelecer para eles um preço, que

possibilitaria para o trabalhador ganhar mais dinheiro e trabalhar menos tempo.

Para um objeto que eu tenho certeza que vou aproveitar e usar completamente,

pago voluntariamente quatro vezes mais, do que por um, cuja forma e material são

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inferiores. Pago com bom grado quarenta coroas por minhas botas, embora,

poderia conseguir em outra loja botas por dez coroas. Mas, em tais carreiras que

definharam sob a tirania dos ornamentistas, não se avalia trabalho bom ou ruim.

O trabalho sofre, porque ninguém é disposto a pagar seu valor verdadeiro.

E isso é bom assim, porque essas coisas ornamentadas somente parecem

suportáveis na sua realização mais sórdida. Eu consigo agüentar mais facilmente

um incêndio, quando eu fico sabendo que, somente futilidades foram queimadas.

Posso ser feliz com o lixo na casa dos artistas, sabendo, sim, que será montado

em poucos dias, demolido em um dia. Mas o atirar de moedas de ouro no lugar de

cascalho, o acender de um cigarro com uma nota de dinheiro, a pulverização e o

beber de uma pérola, parece antiestético.

Verdadeiramente as coisas ornamentadas parecem antiestéticas só quando

são executadas com o melhor material, com o maior cuidado e requerendo muito

tempo de trabalho. Não posso me absolver de ter primeiro almejado trabalho de

qualidade, mas, é evidente que não para coisas deste tipo.

O homem moderno que preserva o ornamento como signo de um excesso

artístico de épocas passadas como sagrado, reconhece de imediato o

atormentado, o penoso e o doentio do ornamento moderno. Nenhum ornamento

pode nascer hoje de alguém, que vive no nosso nível cultural.

É diferente com as pessoas e com os povos que ainda não alcançaram

esse nível.

Prego aos aristocratas, quero dizer, às pessoas que estão acima da

humanidade e que tem a mais alta compreensão das vontades e da miséria dos

que estão abaixo. O cafre,9 que entretece ornamentos nos tecidos num certo ritmo

que somente aparecem quando são descosturados; o persa, que ata seu tapete; a

agricultora eslovena, que borda sua renda; a senhora idosa, que faz do croché

coisas maravilhosas em pérolas de vidro, desses ele entende bem. O aristocrata

lhes deixa fazer, sabe que para eles, as horas de trabalho são suas horas

sagradas. O revolucionário iria lá e falaria: "É tudo tolice". Como ele também

arrancaria a mulherzinha idosa do altar e diria: "não existe nenhum deus". Mas o

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ateísta entre os aristocratas levanta o chapéu, quando passa ao lado de uma

igreja.

Meus sapatos são completamente cobertos por ornamentos constituídos de

pontas e furos. Trabalho que o sapateiro realizou, que não lhe foi pago. Vou ao

sapateiro e lhe digo:" Você pede por um par de sapatos trinta coroas. Eu vou

pagar quarenta coroas." Com isso eu levei esse homem a seu estado anímico de

felicidade, que ele vai me agradecer através de trabalho e de material, que de tão

bom não tem nenhuma relação com o excedente. Ele é feliz. Raramente entra na

sua casa a felicidade. Aqui está um homem defronte a ele, que o entende, que

aprecia seu trabalho e que não duvida da sua honestidade. Pensativo já avista os

sapatos acabados em frente dele. Sabe onde encontrar atualmente o melhor

couro, sabe a qual trabalhador confiar os sapatos e os sapatos vão ter pontas e

furos, tantos, que só caberiam em cima de um sapato elegante. E então eu disse:

"Mas ponho uma condição. O sapato tem que ser completamente liso”. Aí o atirei

de seu maior estado anímico de felicidade para o Tártaro.10 Ele tem menos

trabalho mas eu tomei todo o seu prazer.

Prego aos aristocratas. Suporto ornamentos no próprio corpo, se fazem a

alegria dos meus próximos. Assim eles se tornam também a minha alegria.

Suporto os ornamentos dos cafres, dos persas, da agricultora eslovena, os

ornamentos do meu sapateiro porque eles todos não tem nenhum outro meio para

chegar ao auge de suas existências. Nós temos a arte que substituiu o ornamento.

Depois do esforço do dia nós vamos ao encontro de Beethoven ou de Tristão. Isso

meu sapateiro não pode. Não posso tomar seu prazer, porque não tenho outro

para lhe dar. Mas quem vai para a nona sinfonia e, depois senta para desenhar

um padrão de tapeçaria, ou é um vigarista, ou um degenerado.

A falta do ornamento levantou as demais artes para uma altura inesperada.

As sinfonias de Beethoven nunca teriam sido escritas por um homem, que deveria

andar com seda, cetim e renda. Quem passeia hoje com paletó de cetim, não é

nenhum artista, mas um palhaço ou um pintor de paredes. Tornamo-nos mais

refinados, mas sutis. Os homens que andavam em trupes precisavam se distinguir

através de cores diferentes, o homem moderno precisa de sua roupa como

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máscara. Tão exacerbadamente forte é sua individualidade, que não se deixa

mais expressar em peças de roupa. O não ornamentar é um signo de força

mental. O homem moderno usa dos ornamentos de culturas anteriores e

estranhos segundo seus critérios. Suas próprias invenções ele concentra para

outras coisas.

1 NT – Segundo a nova versão do Dicionário Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, publicada em 1999, papua é um “[do mal. puwa puwa.] Indivíduo dos papuas, povo negro da Oceania que habita a Nova Guiné, Novas Hébridas, Fiji, etc.” Os papua são pessoas que têm nos desenhos uma forma de comunicação importante, por isso eles estão presentes em vários elementos da vida cotidiana, inclusive em seu próprio corpo. 2 NT – Com este texto, Adolf Loos parece demonstrar sua vinculação a um movimento austríaco, de finais do século XIX, que propunha uma manifestação quase política frente à sociedade da época, através da escrita. Tal postura é a que melhor explica a grafia diferenciada de várias palavras ao longo do texto, como, por exemplo, a grafia de substantivos e nomes próprios com letras minúsculas, o rechaço à estruturação gramatical de frases – principalmente ao uso de artigos definidos – e à pontuação. Tal texto, assim, pretendia-se capaz de chocar não apenas por seu conteúdo ideológico, mas, também por sua própria forma de escrita. Ressalta-se que alguns nomes, - talvez os que Loos considerava mais importantes e dignos, mas também, aos que ele queria demarcar seu rechaço -, preservam sua grafia tradicional, com letras maiúsculas, como, por exemplo, respectivamente, Beethoven e Otto Eckmann. O texto de Loos apresenta, ainda, referências diversas à região norte da Europa, quer na forma de grafia arcaica de palavras, quer nas citações de tradições e de lugares. A tradução procurou, sempre que possível, utilizar-se de palavras do mesmo período de tempo, existentes na Língua Portuguesa. 3 NT - Nona Sinfonia. Loos refere-se à obra sinfônica de Ludwig van Beethoven, escrita entre 1817 e 1823 e apresentada, pela primeira vez, em Viena, em 1824. 4 NT - A expressão utilizada no original tem uma conotação popular que pode ser considerada equivalente à expressão brasileira “macaco de auditório”, ou seja, designa a pessoa que se faz presente em toda e qualquer aglomeração pública. 5 NT – Designa a região banhada pelo rio homônimo, na Alemanha, ao sul de Nuremberg. 6 NT - Biscoito doce comido no Natal, feito com um pouco de pimenta e outras especiarias. Não há uma palavra próxima ao significado original em português. 7 NT - habitantes da cidade de Kals am Grossgloeckner, situado no Tirol Leste, Áustria. 8 NT – A expressão “migração dos povos antigos” faz referência à época em que os povos nórdicos, tradicionalmente denominados ‘bárbaros’ deixaram suas regiões originais e rumaram em encontro da civilização romana, no período que demarca o fim do Império Romano e o início do feudalismo na Europa, ou seja, por volta dos séculos IV aC a V da era cristã. 9 NT - Segundo a nova versão do Dicionário de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, publicada em 1999, a palavra cafre pode ser entendida como: “[do ár. Kafr ou Kufr, ‘infiel’.] 1. Nome dado pelos islamitas aos gentios e idólatras, e por ext., aos negros pagãos da África oriental; aplica-se, sobretudo, às populações bantas de Moçambique, da África do Sul e dos demais países do sudeste da África.” Loos usa a palavra para tentar expressar uma espécie de produção de artesanal típica deste povo.

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10 NT - Tártaro: palavra que se origina do grego tártaro e que, em latim, era tartaru. Exprime a parte mais profunda do inferno e se opõe à noção de céu para os cristãos.