Os 7 Sapatos Sujos - Mia Couto

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Os 7 sapatos sujos Mia Couto http://www.contioutra.com/os-sete-sapatos-sujos-por-mia-couto/ Os desafios são maiores que esperança? Mas nós não podemos senão ser optimistas e fazer aquilo que os brasileiros chamam de levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. O pessimismo é um luxo para os ricos. A pergunta crucial é esta: o que é que nos separa desse futuro que todos queremos? Alguns acreditam que o que falta são mais quadros, mais escolas, mais hospitais. Outros acreditam que precisamos de mais investidores, mais projectos económicos. Tudo isso é necessário, tudo isso é imprescindível. Mas para mim, há uma outra coisa que é ainda mais importante. Essa coisa tem um nome: é uma nova atitude. Se não mudarmos de atitude não conquistaremos uma condição melhor. Poderemos ter mais técnicos, mais hospitais, mais escolas, mas não seremos construtores de futuro. Falo de uma nova atitude mas a palavra deve ser pronunciada no plural, pois ela compõe um conjunto vasto de posturas, crenças, conceitos e preconceitos. Há muito que venho defendendo que o maior factor de atraso em Moçambique não se localiza na economia mas na incapacidade de gerarmos um pensamento produtivo, ousado e inovador. Um pensamento que não resulte da repetição de lugares comuns, de fórmulas e de receitas já pensadas pelos outros. Às vezes me pergunto: de onde vem a dificuldade em nós pensarmos como sujeitos da História? Vem sobretudo de termos legado sempre aos outros o desenho da nossa própria identidade. Primeiro, os africanos foram negados. O seu território era a ausência, o seu tempo estava fora da História. Depois, os africanos foram estudados como um caso clínico. Agora, são ajudados a sobreviver no quintal da História.

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poesia sobre a vida

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Os 7 sapatos sujos

Mia Couto

http://www.contioutra.com/os-sete-sapatos-sujos-por-mia-couto/

Os desafios so maiores que esperana? Mas ns no podemos seno ser optimistas e fazer aquilo que os brasileiros chamam de levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. O pessimismo um luxo para os ricos.

A pergunta crucial esta: o que que nos separa desse futuro que todos queremos? Alguns acreditam que o que falta so mais quadros, mais escolas, mais hospitais. Outros acreditam que precisamos de mais investidores, mais projectos econmicos. Tudo isso necessrio, tudo isso imprescindvel. Mas para mim, h uma outra coisa que ainda mais importante. Essa coisa tem um nome: uma nova atitude. Se no mudarmos de atitude no conquistaremos uma condio melhor. Poderemos ter mais tcnicos, mais hospitais, mais escolas, mas no seremos construtores de futuro.

Falo de uma nova atitude mas a palavra deve ser pronunciada no plural, pois ela compe um conjunto vasto de posturas, crenas, conceitos e preconceitos. H muito que venho defendendo que o maior factor de atraso em Moambique no se localiza na economia mas na incapacidade de gerarmos um pensamento produtivo, ousado e inovador. Um pensamento que no resulte da repetio de lugares comuns, de frmulas e de receitas j pensadas pelos outros.

s vezes me pergunto: de onde vem a dificuldade em ns pensarmos como sujeitos da Histria? Vem sobretudo de termos legado sempre aos outros o desenho da nossa prpria identidade. Primeiro, os africanos foram negados. O seu territrio era a ausncia, o seu tempo estava fora da Histria. Depois, os africanos foram estudados como um caso clnico. Agora, so ajudados a sobreviver no quintal da Histria.

Estamos todos ns estreando um combate interno para domesticar os nosso antigos fantasmas. No podemos entrar na modernidade com o actual fardo de preconceitos. porta da modernidade precisamos de nos descalar. Eu contei sete sapatos sujos que necessitamos deixar na soleira da porta dos tempos novos. Haver muitos. Mas eu tinah que escolher e sete um nmero mgico.

O primeiro sapato: a ideia que os culpados so sempre os outros e ns somos sempre vtimas

Ns j conhecemos este discurso. A culpa j foi da guerra, do colonialismo, do imperialismo, do apartheid, enfim, de tudo e de todos. Menos nossa. verdade que os outros tiveram a sua dose de culpa no nosso sofrimento. Mas parte da responsabilidade sempre morou dentro de casa.

Estamos sendo vtimas de um longo processo de desresponsabilizao. Esta lavagem de mos tem sido estimulada por algumas elites africanas que querem permanecer na impunidade. Os culpados esto partida encontrados: so os outros, os da outra etnia, os da outra raa, os da outra geografia.

H um tempo atrs fui sacudido por um livro intitulado Capitalist Nigger: The Road to Success de um nigeriano chamado Chika A. Onyeani. Reproduzi num jornal nosso um texto desse economista que um apelo veemente para que os africanos renovem o olhar que mantm sobre si mesmos. Permitam-me que leia aqui um excerto dessa carta.

Caros irmos: Estou completamente cansado de pessoas que s pensam numa coisa: queixar-se e lamentar-se num ritual em que nos fabricamos mentalmente como vtimas. Choramos e lamentamos, lamentamos e choramos. Queixamo-nos at nusea sobre o que os outros nos fizeram e continuam a fazer. E pensamos que o mundo nos deve qualquer coisa. Lamento dizer-vos que isto no passa de uma iluso. Ningum nos deve nada. Ningum est disposto a abdicar daquilo que tem, com a justificao que ns tambm queremos o mesmo. Se quisermos algo temos que o saber conquistar. No podemos continuar a mendigar, meus irmos e minhas irms.

40 anos depois da Independncia continuamos a culpar os patres coloniais por tudo o que acontece na frica dos nossos dias. Os nossos dirigentes nem sempre so suficientemente honestos para aceitar a sua responsabilidade na pobreza dos nossos povos. Acusamos os europeus de roubar e pilhar os recursos naturais de frica. Mas eu pergunto-vos: digam-me, quem est a convidar os europeus para assim procederem, no somos ns? (fim da citao)

Queremos que outros nos olhem com dignidade e sem paternalismo. Mas ao mesmo tempo continuamos olhando para ns mesmos com benevolncia complacente: Somos peritos na criao do discurso desculpabilizante. E dizemos:

Que algum rouba porque, coitado, pobre (esquecendo que h milhares de outros pobres que no roubam)

Que o funcionrio ou o polcia so corruptos porque, coitados, tem um salrio insuficiente (esquecendo que ningum, neste mundo, tem salrio suficiente)

Que o poltico abusou do poder porque, coitado, na tal frica profunda, essas praticas so antropologicamente legitimas

A desresponsabilizao um dos estigmas mais graves que pesa sobre ns, africanos de Norte a Sul. H os que dizem que se trata de uma herana da escravatura, desse tempo em que no se era dono de si mesmo. O patro, muitas vezes longnquo e invisvel, era responsvel pelo nosso destino. Ou pela ausncia de destino.

Hoje, nem sequer simbolicamente, matamos o antigo patro. Uma das formas de tratamento que mais rapidamente emergiu de h uns dez anos para c foi a palavra patro. Foi como se nunca tivesse realmente morrido, como se espreitasse uma oportunidade histrica para se relanar no nosso quotidiano. Pode-se culpar algum desse ressurgimento? No. Mas ns estamos criando uma sociedade que produz desigualdades e que reproduz relaes de poder que acreditvamos estarem j enterradas.

Segundo sapato: a ideia de que o sucesso no nasce do trabalho

Ainda hoje despertei com a notcia que refere que um presidente africano vai mandar exorcizar o seu palcio de 300 quartos porque ele escuta rudos estranhos durante a noite. O palcio to desproporcionado para a riqueza do pas que demorou 20 anos a ser terminado. As insnias do presidente podero nascer no de maus espritos mas de uma certa m conscincia.

O episdio apenas ilustra o modo como, de uma forma dominante, ainda explicamos os fenmenos positivos e negativos. O que explica a desgraa mora junto do que justifica a bem-aventurana. A equipe desportiva ganha, a obra de arte premiada, a empresa tem lucros, o funcionrio foi promovido? Tudo isso se deve a qu? A primeira resposta, meus amigos, todos a conhecemos. O sucesso deve-se boa sorte. E a palavra boa sorte quer dizer duas coisas: a proteco dos antepassados mortos e proteco dos padrinhos vivos.

Nunca ou quase nunca se v o xito como resultado do esforo, do trabalho como um investimento a longo prazo. As causas do que nos sucede (de bom ou mau) so atribudas a foras invisveis que comandam o destino. Para alguns esta viso causal tida como to intrinsecamente africana que perderamos identidade se dela abdicssemos. Os debates sobre as autenticas identidades so sempre escorregadios. Vale a pena debatermos, sim, se no poderemos reforar uma viso mais produtiva e que aponte para uma atitude mais activa e interventiva sobre o curso da Histria.

Infelizmente olhamo-nos mais como consumidores do que produtores. A ideia de que frica pode produzir arte, cincia e pensamento estranha mesmo para muitos africanos. Ate aqui o continente produziu recursos naturais e fora laboral.

Produziu futebolistas, danarinos, escultores. Tudo isso se aceita, tudo isso reside no domnio daquilo eu se entende como natureza. Mas j poucos aceitaro que os africanos possam ser produtores de ideias, de tica e de modernidade. No preciso que os outros desacreditem. Ns prprios nos encarregamos dessa descrena.

O ditado diz. o cabrito come onde est amarrado. Todos conhecemos o lamentvel uso deste aforismo e como ele fundamenta a aco de gente que tira partido das situaes e dos lugares. J triste que nos equiparemos a um cabrito. Mas tambm sintomtico que, nestes provrbios de convenincia nunca nos identificamos como os animais produtores, como por exemplo a formiga. Imaginemos que o ditado muda e passar a ser assim: Cabrito produz onde est amarrado. Eu aposto que, nesse caso, ningum mais queria ser cabrito.

Terceiro sapato- O preconceito de quem critica um inimigo

Muitas acreditam que, com o fim do monopartidarismo, terminaria a intolerncia para com os que pensavam diferente. Mas a intolerncia no apenas fruto de regimes. fruto de culturas, o resultado da Histria. Herdamos da sociedade rural uma noo de lealdade que demasiado paroquial. Esse desencorajar do esprito crtico ainda mais grave quando se trata da juventude. O universo rural fundado na autoridade da idade. Aquele que jovem, aquele que no casou nem teve filhos, esse no tem direitos, no tem voz nem visibilidade. A mesma marginalizao pesa sobre a mulher.

Toda essa herana no ajuda a que se crie uma cultura de discusso frontal e aberta. Muito do debate de ideias , assim, substitudo pela agresso pessoal. Basta diabolizar quem pensa de modo diverso. Existe uma variedade de demnios disposio: uma cor poltica, uma cor de alma, uma cor de pele, uma origem social ou religiosa diversa.

H neste domnio um componente histrico recente que devemos considerar: Moambique nasceu da luta de guerrilha. Essa herana deu-nos um sentido pico da histria e um profundo orgulho no modo como a independncia foi conquistada. Mas a luta armada de libertao nacional tambm cedeu, por inrcia, a ideia de que o povo era uma espcie de exrcito e podia ser comandado por via de disciplina militar. Nos anos ps-independncia, todos ramos militantes, todos tnhamos uma s causa, a nossa alma inteira vergava-se em continncia na presena dos chefes. E havia tantos chefes. Essa herana no ajudou a que nascesse uma capacidade de insubordinao positiva.

Fao-vos agora uma confidncia. No incio da dcada de 80 fiz parte de um grupo de escritores e msicos a quem foi dada a incumbncia de produzir um novo Hino Nacional e um novo Hino para o Partido Frelimo. A forma como recebemos a tarefa era indicadora dessa disciplina: recebemos a misso, fomos requisitados aos nossos servios, e a mando do Presidente Samora Machel fomos fechados numa residncia na Matola, tendo-nos sido dito: s saem da quando tiverem feito os hinos. Esta relao entre o poder e os artistas s pensvel num dado quadro histrico. O que certo que ns aceitmos com dignidade essa incumbncia, essa tarefa surgia como uma honra e um dever patritico. E realmente l nos comportamos mais ou menos bem. Era um momento de grandes dificuldades e as tentaes eram muitas. Nessa residncia na Matola havia comida, empregados, piscina num momento em que tudo isso faltava na cidade. Nos primeiros dias, confesso ns estvamos fascinados com tanta mordomia e ficvamos preguiando e s corramos para o piano quando ouvamos as sirenes dos chefes que chegavam. Esse sentimento de desobedincia adolescente era o nosso modo de exercermos uma pequena vingana contra essa disciplina de regimento.

Na letra de um dos hinos l estava reflectida essa tendncia militarizada, essa aproximao metafrica a que j fiz referncia:

Somos soldados do povo

Marchando em frente

Tudo isto tem que ser olhado no seu contexto sem ressentimento. Afinal, foi assim, que nasceu a Ptria Amada, este hino que nos canta como um s povo, unido por um sonho comum.

Quarto sapato: a ideia que mudar as palavras muda a realidade

Uma vez em Nova Iorque um compatriota nosso fazia uma exposio sobre a situao da nossa economia e, a certo momento, falou de mercado negro. Foi o fim do mundo. Vozes indignadas de protesto se ergueram e o meu pobre amigo teve que interromper sem entender bem o que se estava a passar. No dia seguinte recebamos uma espcie de pequeno dicionrio dos termos politicamente incorrectos. Estavam banidos da lngua termos como cego, surdo, gordo, magro, etc

Ns fomos a reboque destas preocupaes de ordem cosmtica. Estamos reproduzindo um discurso que privilegia o superficial e que sugere que, mudando a cobertura, o bolo passa a ser comestvel. Hoje assistimos, por exemplo, a hesitaes sobre se devemos dizer negro ou preto. Como se o problema estivesse nas palavras, em si mesmas. O curioso que, enquanto nos entretemos com essa escolha, vamos mantendo designaes que so realmente pejorativas como as de mulato e de monh.

H toda uma gerao que est aprendendo uma lngua a lngua dos workshops. uma lngua simples uma espcie de crioulo a meio caminho entre o ingls e o portugus. Na realidade, no uma lngua mas um vocabulrio de pacotilha. Basta saber agitar umas tantas palavras da moda para falarmos como os outros isto , para no dizermos nada. Recomendo-vos fortemente uns tantos termos como, por exemplo:

desenvolvimento sustentvel

awarenesses ou accountability

boa governao

parcerias sejam elas inteligentes ou no

comunidades locais

Estes ingredientes devem ser usados de preferncia num formato powerpoint. Outro segredo para fazer boa figura nos workshops fazer uso de umas tantas siglas. Porque um workshopista de categoria domina esses cdigos. Cito aqui uma possvel frase de um possvel relatrio: Os ODMS do PNUD equiparam-se ao NEPAD da UA e ao PARPA do GOM. Para bom entendedor meia sigla basta.

Sou de um tempo em que o que ramos era medido pelo que fazamos. Hoje o que somos medido pelo espectculo que fazemos de ns mesmos, pelo modo como nos colocamos na montra. O CV, o carto de visitas cheio de requintes e ttulos, a bibliografia de publicaes que quase ningum leu, tudo isso parece sugerir uma coisa: a aparncia passou a valer mais do que a capacidade para fazermos coisas.

Muitas das instituies que deviam produzir ideias esto hoje produzindo papis, atafulhando prateleiras de relatrios condenados a serem arquivo morto. Em lugar de solues encontram-se problemas. Em lugar de aces sugerem-se novos estudos.

Quinto sapato A vergonha de ser pobre e o culto das aparncias

A pressa em mostrar que no se pobre , em si mesma, um atestado de pobreza. A nossa pobreza no pode ser motivo de ocultao. Quem deve sentir vergonha no o pobre mas quem cria pobreza.

Vivemos hoje uma atabalhoada preocupao em exibirmos falsos sinais de riqueza. Criou-se a ideia que o estatuto do cidado nasce dos sinais que o diferenciam dos mais pobres.

Recordo-me que certa vez entendi comprar uma viatura em Maputo. Quando o vendedor reparou no carro que eu tinha escolhido quase lhe deu um ataque. Mas esse, senhor Mia, o senhor necessita de uma viatura compatvel. O termo curioso: compatvel.

Estamos vivendo num palco de teatro e de representaes: uma viatura j no um objecto funcional. um passaporte para um estatuto de importncia, uma fonte de vaidades. O carro converteu-se num motivo de idolatria, numa espcie de santurio, numa verdadeira obsesso promocional.

Esta doena, esta religio que se podia chamar viaturolatria atacou desde o dirigente do Estado ao menino da rua. Um mido que no sabe ler capaz de conhecer a marca e os detalhes todos dos modelos de viaturas. triste que o horizonte de ambies seja to vazio e se reduza ao brilho de uma marca de automvel.

urgente que as nossas escolas exaltem a humildade e a simplicidade como valores positivos.

A arrogncia e o exibicionismo no so, como se pretende, emanaes de alguma essncia da cultura africana do poder. So emanaes de quem toma a embalagem pelo contedo.

Sexto Sapato A passividade perante a injustia

Estarmos dispostos a denunciar injustias quando so cometidas contra a nossa pessoa, o nosso grupo, a nossa etnia, a nossa religio. Estamos menos dispostos quando a injustia praticada contra os outros. Persistem em Moambique zonas silenciosas de injustia, reas onde o crime permanece invisvel. Refiro-me em particular :

violncia domestica (40 por cento dos crimes resultam de agresso domestica contra mulheres, esse um crime invisvel)

violncia contra as vivas

forma aviltante como so tratados muitos dos trabalhadores

aos maus tratos infligidos s crianas

Ainda h dias ficamos escandalizados com o recente anncio que privilegiava candidatos de raa branca. Tomaram-se medidas imediatas e isso foi absolutamente correcto. Contudo, existem convites discriminao que so to ou mais graves e que aceitamos como sendo naturais e inquestionveis.

Tomemos esse anncio do jornal e imaginemos que ele tinha sido redigido de forma correcta e no racial. Ser que tudo estava bem? Eu no sei se todos esto a par de qual a tiragem do jornal Notcias. So 13 mil exemplares. Mesmo se aceitarmos que cada jornal lido por 5 pessoas, temos que o numero de leitores menor que a populao de um bairro de Maputo. dentro deste universo que circulam convites e os acessos a oportunidades. Falei na tiragem mas deixei de lado o problema da circulao. Por que geografia restrita circulam as mensagens dos nossos jornais? Quanto de Moambique deixado de fora ?

verdade que esta discriminao no comparvel do anncio racista porque no no resultado de aco explcita e consciente. Mas os efeitos de discriminao e excluso destas prticas sociais devem ser pensados e no podem cair no saco da normalidade. Esse bairro das 60 000 pessoas hoje uma nao dentro da nao, uma nao que chega primeiro, que troca entre si favores, que vive em portugus e dorme na almofada na escrita.

Um outro exemplo. Estamos administrando anti-retro-virais a cerca de 30 mil doentes com SIDA. Esse nmero poder, nos prximos anos, chegar aos 50 000. Isso significa que cerca de um milho quatrocentos e cinquenta mil doentes ficam excludos de tratamento. Trata-se de uma deciso com implicaes ticas terrveis. Como e quem decide quem fica de fora? aceitvel, pergunto, que a vida de um milho e meio de cidados esteja nas mos de um pequeno grupo tcnico?

Stimo sapato A ideia de que para sermos modernos temos que imitar os outros

Todos os dias recebemos estranhas visitas em nossa casa. Entram por uma caixa mgica chamada televiso. Criam uma relao de virtual familiaridade. Aos poucos passamos a ser ns quem acredita estar vivendo fora, danando nos braos de JanetJackson. O que os vdeos e toda a sub-indstria televisiva nos vem dizer no apenas comprem. H todo um outro convite que este: sejam como ns. Este apelo imitao cai como ouro sobre azul: a vergonha em sermos quem somos um trampolim para vestirmos esta outra mscara.

O resultado que a produo cultural nossa se est convertendo na reproduo macaqueada da cultura dos outros. O futuro da nossa msica poder ser uma espcie de hip-hop tropical, o destino da nossa culinria poder ser o Mac Donalds.

Falamos da eroso dos solos, da deflorestao, mas a eroso das nossas culturas ainda mais preocupante. A secundarizao das lnguas moambicanas (incluindo da lngua portuguesa) e a ideia que s temos identidade naquilo que folclrico so modos de nos soprarem ao ouvido a seguinte mensagem: s somos modernos se formos americanos.

O nosso corpo social tem a uma histria similar a de um indivduo. Somos marcados por rituais de transio: o nascimento, o casamento, o fim da adolescncia, o fim da vida.

Eu olho a nossa sociedade urbana e pergunto-me: ser que queremos realmente ser diferentes ? Porque eu vejo que esses rituais de passagem se reproduzem como fotocpia fiel daquilo que eu sempre conheci na sociedade colonial. Estamos danando a valsa, com vestidos compridos, num baile de finalistas que decalcado daquele do meu tempo. Estamos copiando as cerimnias de final do curso a partir de modelos europeus de Inglaterra medieval. Casamo-nos de vus e grinaldas e atiramos para longe da Julius Nyerere tudo aquilo que possa sugerir uma cerimnia mais enraizada na terra e na tradio moambicanas.

Falei da carga de que nos devemos desembaraar para entrarmos a corpo inteiro na modernidade. Mas a modernidade no uma porta apenas feita pelos outros. Ns somos tambm carpinteiros dessa construo e s nos interessa entrar numa modernidade de que sejamos tambm construtores.

A minha mensagem simples: mais do que uma gerao tecnicamente capaz, ns necessitamos de uma gerao capaz de questionar a tcnica. Uma juventude capaz de repensar o pas e o mundo. Mais do que gente preparada para dar respostas, necessitamos de capacidade para fazer perguntas. Moambique no precisa apenas de caminhar. Necessita de descobrir o seu prprio caminho num tempo enevoado e num mundo sem rumo. A bssola dos outros no serve, o mapa dos outros no ajuda. Necessitamos de inventar os nossos prprios pontos cardeais. Interessa-nos um passado que no esteja carregado de preconceitos, interessa-nos um futuro que no nos venha desenhado como um receita financeira.

A Universidade deve ser um centro de debate, uma fbrica de cidadania activa, uma forja de inquietaes solidrias e de rebeldia construtiva. No podemos treinar jovens profissionais de sucesso num oceano de misria. A Universidade no pode aceitar ser reprodutor da injustia e da desigualdade. Estamos lidando com jovens e com aquilo que deve ser um pensamento jovem, frtil e produtivo. Esse pensamento no se encomenda, no nasce sozinho. Nasce do debate, da pesquisa inovadora, da informao aberta e atenta ao que de melhor est surgindo em frica e no mundo.

A questo esta: fala-se muito dos jovens. Fala-se pouco com os jovens. Ou melhor, fala-se com eles quando se convertem num problema. A juventude vive essa condio ambgua, danando entre a viso romantizada (ela a seiva da Nao) e uma condio maligna, um ninho de riscos e preocupaes (a SIDA, a droga, o desemprego).

No foi apenas a Zmbia a ver na educao aquilo que o naufrago v num barco salva-vidas. Ns tambm depositamos os nossos sonhos nessa conta.

Numa sesso pblica decorrida no ano passado em Maputo um j idoso nacionalista disse, com verdade e com coragem, o que j muitos sabamos. Ele confessou que ele mesmo e muitos dos que, nos anos 60, fugiam para a FRELIMO no eram apenas motivados por dedicao a uma causa independentista. Eles arriscaram-se e saltaram a fronteira do medo para terem possibilidade de estudar. O fascnio pela educao como um passaporte para uma vida melhor estava presente um universo em que quase ningum podia estudar. Essa restrio era comum a toda a frica. At 1940 o nmero de africanos que frequentavam escolas secundrias no chegava a 11 000. Hoje, a situao melhorou e esse nmero foi multiplicado milhares e milhares de vezes. O continente investiu na criao de novas capacidades. E esse investimento produziu, sem dvida, resultados importantes.

Aos poucos se torna claro, porm, que mais quadros tcnicos no resolvem, s por si, a misria de uma nao. Se um pas no possuir estratgias viradas para a produo de solues profundas ento todo esse investimento no produzir a desejada diferena. Se as capacidades de uma nao estiverem viradas para o enriquecimento rpido de uma pequena elite ento de pouco valer termos mais quadros tcnicos.

A escola um meio para querermos o que no temos. A vida, depois, nos ensina a termos aquilo que no queremos. Entre a escola e a vida resta-nos ser verdadeiros e confessar aos mais jovens que ns tambm no sabemos e que, ns, professores e pais, tambm estamos procura de respostas.

Com o novo governo ressurgiu o combate pela auto-estima. Isso correcto e oportuno. Temos que gostar de ns mesmos, temos que acreditar nas nossas capacidades. Mas esse apelo ao amor-prprio no pode ser fundado numa vaidade vazia, numa espcie de narcisismo ftil e sem fundamento. Alguns acreditam que vamos resgatar esse orgulho na visitao do passado. verdade que preciso sentir que temos razes e que essas razes nos honram. Mas a auto-estima no pode ser construda apenas de materiais do passado.

Na realidade, s existe um modo de nos valorizar: pelo trabalho, pela obra que formos capazes de fazer. preciso que saibamos aceitar esta condio sem complexos e sem vergonha: somos pobres. Ou melhor, fomos empobrecidos pela Histria. Mas ns fizemos parte dessa Histria, fomos tambm empobrecidos por ns prprios. A razo dos nossos actuais e futuros fracassos mora tambm dentro de ns.

Mas a fora de superarmos a nossa condio histrica tambm reside dentro de ns. Saberemos como j soubemos antes conquistar certezas que somos produtores do nosso destino. Teremos mais e mais orgulho em sermos quem somos: moambicanos construtores de um tempo e de um lugar onde nascemos todos os dias. por isso que vale a pena aceitarmos descalar no s os setes mas todos os sapatos que atrasam a nossa marcha colectiva. Porque a verdade uma: antes vale andar descalo do que tropear com os sapatos dos outros.