Os Acervos, o Meio Digital, o Intelectual Das Letras

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Manuscrítica § n. 24 • 2013 revista de crítica genética Os acervos, o meio digital, o intelectual das Letras Ateliê 129 Os acervos, o meio digital, o intelectual das Letras Alckmar Luiz dos Santos / NuPILL/UFSC/CNPq Vou começar enunciando algumas obviedades, atitude que me parece a mais prudente para, a seguir, poder formular algumas hipóteses e chegar a conclusões que não são, ambas, nada óbvias. Solicito, então, a paciência do meu leitor, de maneira a que eu possa tentar ser o mais convincente possível. Embora eu não seja propriamente um pesquisador de acervos, de manuscritos, de docu- mentos, tenho trabalhado, há bastante tempo, com fontes de informação literária na internet, assim como com estratégias e ferramentas digitais para localização, organização, digitaliza- ção e disponibilização (para posterior busca e leitura) dessas informações. Nos últimos cinco anos, isso tem incluído também o trabalho com acervos físicos e virtuais de escritores. É assim, meio de fora e meio de dentro, que tenho refletido sobre esse campo de pesquisas. A partir dessa experiência, então, creio poder enunciar alguns juízos mais gerais sobre o trabalho com acervos literários (e, por extensão, também sobre o trabalho do intelectual das Letras). Para partir do que, ao menos para mim, parece óbvio (e sem pretender reinventar a roda), eu diria que, no todo, há duas estratégias básicas aí. Uma pressupõe o compartilha- mento aberto de informações que foram coletadas e organizadas previamente. É o que se faz, por exemplo, nos acervos sob a guarda do Instituto Moreira Salles, ou nos que estão disponíveis na Fundação Casa de Rui Barbosa. Em outras palavras, o que se faz, nesse caso, é trazer a públi- co massas de dados que, posteriormente, poderão ser trabalhados por outros pesquisadores, mesmo por aqueles que não tiveram nenhum acesso direto ao acervo do escritor. O foco desse tipo de trabalho está posto, sobretudo, em outros pesquisadores, não necessariamente na- queles que tiveram ou têm ainda contato direto e físico com os documentos e que, por vezes, detêm até mesmo os direitos de divulgação deles. É a partir desse trabalho inicial e altruísta que gente como Brito Broca pôde fazer as pesquisas que fez em acervos documentais, como os da Biblioteca Nacional. Nesse caso, uma massa de informações já organizadas e catalogadas é convertida em instrutivas e percucientes leituras da literatura brasileira, de seus escritores, de suas obras. Há uma segunda estratégia, em que o trabalho com as informações coletadas e organizadas fica restrito ao pesquisador ou ao grupo de pesquisadores que teve acesso ao acervo. Nes- se caso, às atividades de organização e catalogação do material, soma-se a pesquisa literária propriamente dita, em que se busca ler a obra e o escritor ao mesmo tempo, estabelecendo uma espécie de diálogo entre este e aquela. O foco, aqui, parece não estar mais nos outros pesquisadores em geral, mas, sobretudo, no limitado grupo que tem acesso direto ao acervo. Contudo, pode ocorrer que, após a divulgação dos resultados da pesquisa desses primeiros pesquisadores, as informações fiquem disponíveis para outras leituras, outras interpretações, estabelecendo-se o desejado debate intelectual (ou seja, teórico e crítico) entre diferentes pes- quisadores, com distintas perspectivas e concepções. Mesmo aí, de certa forma, o foco final desse tipo de trabalho com acervos estará também nos outros pesquisadores, já que seu obje- tivo é, não apenas, apresentar sua própria leitura do material do acervo, como possibilitar que outros leitores se apropriem, por assim dizer, das informações tornadas disponíveis. Uma deriva (ou derrapagem) dessa segunda estratégia está justamente no pesquisador ou grupo de pesquisadores que apenas divulgam seus resultados de leitura, sem permitir que ou- tros também tenham acesso mais livre ao acervo. Não é difícil perceber que, assim procedendo,

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Manuscrtican. 24 2013revista de crtica genticaOs acervos, o meio digital, o intelectual das LetrasAteli129Os acervos, o meio digital, o intelectual das LetrasAlckmar Luiz dos Santos / NuPILL/UFSC/CNPqVoucomearenunciandoalgumasobviedades,atitudequemepareceamaisprudente para, a seguir, poder formular algumas hipteses e chegar a concluses que no so, ambas, nada bvias. Solicito, ento, a pacincia do meu leitor, de maneira a que eu possa tentar ser o mais convincente possvel.Embora eu no seja propriamente um pesquisador de acervos, de manuscritos, de docu-mentos, tenho trabalhado, h bastante tempo, com fontes de informao literria na internet, assim como com estratgias e ferramentas digitais para localizao, organizao, digitaliza-o e disponibilizao (para posterior busca e leitura) dessas informaes. Nos ltimos cinco anos,issotemincludotambmotrabalhocomacervosfsicosevirtuaisdeescritores. assim, meio de fora e meio de dentro, que tenho refletido sobre esse campo de pesquisas.A partir dessa experincia, ento, creio poder enunciar alguns juzos mais gerais sobre o trabalho com acervos literrios (e, por extenso, tambm sobre o trabalho do intelectual das Letras). Para partir do que, ao menos para mim, parece bvio (e sem pretender reinventar a roda), eu diria que, no todo, h duas estratgias bsicas a. Uma pressupe o compartilha-mento aberto de informaes que foram coletadas e organizadas previamente. o que se faz, por exemplo, nos acervos sob a guarda do Instituto Moreira Salles, ou nos que esto disponveis na Fundao Casa de Rui Barbosa. Em outras palavras, o que se faz, nesse caso, trazer a pbli-co massas de dados que, posteriormente, podero ser trabalhados por outros pesquisadores, mesmo por aqueles que no tiveram nenhum acesso direto ao acervo do escritor. O foco desse tipodetrabalhoestposto,sobretudo,emoutrospesquisadores,nonecessariamentena-queles que tiveram ou tm ainda contato direto e fsico com os documentos e que, por vezes, detm at mesmo os direitos de divulgao deles. a partir desse trabalho inicial e altrusta que gente como Brito Broca pde fazer as pesquisas que fez em acervos documentais, como os da Biblioteca Nacional. Nesse caso, uma massa de informaes j organizadas e catalogadas convertida em instrutivas e percucientes leituras da literatura brasileira, de seus escritores, de suas obras.H uma segunda estratgia, em que o trabalho com as informaes coletadas e organizadas ficarestritoaopesquisadorouaogrupodepesquisadoresqueteveacessoaoacervo.Nes-se caso, s atividades de organizao e catalogao do material, soma-se a pesquisa literria propriamente dita, em que se busca ler a obra e o escritor ao mesmo tempo, estabelecendo umaespciededilogoentreesteeaquela.Ofoco,aqui,parecenoestarmaisnosoutros pesquisadores em geral, mas, sobretudo, no limitado grupo que tem acesso direto ao acervo. Contudo,podeocorrerque,apsadivulgaodosresultadosdapesquisadessesprimeiros pesquisadores, as informaes fiquem disponveis para outras leituras, outras interpretaes, estabelecendo-se o desejado debate intelectual (ou seja, terico e crtico) entre diferentes pes-quisadores, com distintas perspectivas e concepes. Mesmo a, de certa forma, o foco final desse tipo de trabalho com acervos estar tambm nos outros pesquisadores, j que seu obje-tivo , no apenas, apresentar sua prpria leitura do material do acervo, como possibilitar que outros leitores se apropriem, por assim dizer, das informaes tornadas disponveis.Uma deriva (ou derrapagem) dessa segunda estratgia est justamente no pesquisador ou grupo de pesquisadores que apenas divulgam seus resultados de leitura, sem permitir que ou-tros tambm tenham acesso mais livre ao acervo. No difcil perceber que, assim procedendo, Manuscrtican. 24 2013revista de crtica genticaOs acervos, o meio digital, o intelectual das LetrasAteli130eles pem o foco em si mesmos. E um caso ainda mais extremo aquele em que algum (no necessariamente pesquisador) dificulta ou impossibilita qualquer acesso s informaes. Por exemplo, o que est ocorrendo, atualmente, com o que ainda resta do precioso acervo da antiga Editora Garnier. Seus direitos esto hoje sob controle do proprietrio da Editora Ita-tiaia, de Belo Horizonte, que no permite praticamente nenhum tipo de trabalho com ele. H alguns anos, por um golpe de sorte, conseguimos autorizao para fotografar digitalmente o que l est, mas no houve meio de convenc-lo a permitir a divulgao desse material. Ao que parece, se est esperando que a acidez do papel, as pragas e o descaso deem cabo da memria da Garnier, isto , de parte importante e fundamental de nossa histria literria.Acima,eufalavadepesquisadoresquepemofocoemsiprprios.Isso,aindahoje, infelizmente, uma caracterstica de nossa rea, zelosamente preservada pela maioria de ns: o trabalho feito de modo isolado, individual, muitas vezes fechado. Por ter tido uma formao bsica inicial distante das Letras, posso perceber algumas vantagens e as muitas desvantagens desse hbito de trabalho intelectual, certamente de maneira um pouco mais clara do que os pesquisadores que tiveram toda a sua formao dentro de nossa rea. H vrias explicaes paraisso,mas,parecem-me,poucasjustificativas,enenhumadelasconvincente.Abordar, aqui, brevemente, umas e outras, pode ser importante para fundamentar melhor o que pre-tendo discutir: a postura do intelectual das Letras, que trabalha com informaes sobre obje-tos literrios, em tempos de cultura digital.Acomear,norara,entrens,certatendnciaemobservaracriaodasobraslite-rriasporumvismaisindividualizante,sobretudonoquedizrespeitoaoescritor.Nesse caso, centra-se o esforo de leitura em acompanhar, de perto ou de longe, de modo aberto ou disfarado, uma intencionalidade da escrita, com frequncia perdendo de vista a dimen-so intersubjetiva de todo gesto expressivo de linguagem. Com isso, compe-se uma figura de escritor, uma dinmica de autor, um sentido de obra que so apenas representantes de si prprios e no algo expresso dentro de um campo coletivo, plural de sentidos. Isso significa que, por vezes, obra, autor e escritor so lidos para apenas acentuar suas especificidades e no para, tambm, insert-los num espao plural de construo de sentidos. Mesmo a crtica his-toricista ou sociolgica, com alguma frequncia, no escapou a essa visada individualizante; no so numerosos aqueles que entendem e aplicam o que ensinou Adorno.1 E, se entramos nocampodosestudosps-estruturalistas,asituaoficaaindapior.Talvezcertacrtica,a exemplo daquela de extrao francesa que trabalhou e tem trabalhado com as noes de in-tertextualidadeoudehipertextualidade,tenhaescapado,porvezes,aessaconstruomais fechada e individualizante.Ora, bvio que todo objeto tem de ser construdo na sua especificidade, na sua individu-alidade, sob pena de no se tornar um objeto colocado diante de um mtodo de reflexo e de anlise. No disso que falamos. No est a o problema. O problema est em transplantar-mos, acrtica ou inconscientemente, essa necessria individualizao do objeto para o mtodo de investigao e de anlise. Em nenhuma cincia, parte os estudos literrios, vejo ocorrer essa confuso entre a especificao de seus objetos e a fundamentao de seus mtodos de tra-balho intelectual. Se aqueles so necessariamente singulares, estes devem, sempre, se pautar por um esforo de universalizao, de abertura, de pluralizao. Portanto, tambm nos Estu-dos Literrios necessrio um dilogo constante com outros mtodos, com outras perspec-tivas, com outros pesquisadores. Isso no apenas no a posteriori dos ensaios, dos artigos, dos livros, das conferncias, mas, sobretudo, no a priori da coleta de informaes, na organizao dosdados,nacatalogaodosdocumentos,noplanejamentodasleiturasedasreflexes. 1 [...] o contedo de um poema no mera expresso de emoes e experincias indivi-duais. Pelo contrrio, estas s se tornam artsticas quando, exatamente em virtude da especificao de seu tomar-forma esttico, adquirem participa-o no universal. (Benjamin; Habermas; Horkheimer; Adorno, 1993, p. 193-194 [Cl. Os pensadores]).Manuscrtican. 24 2013revista de crtica genticaOs acervos, o meio digital, o intelectual das LetrasAteli131importante perceber que, depois de o trabalho intelectual ser organizado e efetivamente rea-lizado, o esforo de abertura e de pluralizao j chega demasiado tarde.De outro lado, cabe tambm observar uma tendncia (que no de agora) da crtica de to-mar emprestados hbitos e estratgias da criao literria. imagem de um escritor moldan-do seu gnio individual e criando solitariamente, estabeleceu-se a estratgia do leitor crtico ocupado em dar forma sua erudio pretensamente individual e, portanto, lendo tambm en solitaire. No , ento, surpreendente que haja surgido um conceito como o de escritura crtica, que tem feito sucesso e estabelecido o renome de muito intelectual das Letras. Tanto neste ltimo caso, quanto no anterior, o foco colocado no trabalho individual, at fechado em si, doleitor.Nonaquiloque,corretamente,Todorovdefendeunasualtimaobradeteoria literria (Critique de la critique), isto , a necessidade de construirmos uma crtica literria dia-lgica.2 O que ele defende, com outras palavras, o mesmo princpio que, acima, caracterizei comoespaopluraldeconstruodesentidos,ouseja,adimensointersubjetivadequalquer gesto de linguagem, incluindo a a expresso do leitor-crtico.Quando voltamos os olhos para outra dimenso de nossa cultura atual, a tecnolgica, talvez fique mais fcil compreender, mas no justificar, tais escolhas (melhor seria dizer equvocos metodolgicos). Por vezes, creio poder distinguir com clareza, na maneira como muitos crti-cos e tericos se expressam, aquela mesma escrita caligrfica que Antonio Candido associou ao romance Vida ociosa de Godofredo Rangel. Nos dois casos, trata-se de resistir, atravs do ritmo da escrita, ficcional ou terico-crtica, a uma acelerao tecnolgica da vida contempornea. Em ambas as situaes, temos uma atitude tecnfoba, tendendo ao luddismo. Se, do lado da criao literria, tal postura resultou num romance admirvel, do lado da crtica e da teoria, ela tem sido ocasio de grandes equvocos. Sobretudo o de apostar na individualidade do terico ou do crtico, hipertrofiando sua presena, sua figura, sua expresso, suas reflexes, em detri-mento de um dilogo aberto, franco e produtivo com outros literatos, com outros campos de conhecimento, com outras instncias de nossa cultura (como o caso da informtica).No segredo para ningum a dificuldade das Letras, ainda nos dias de hoje, mesmo com as novas geraes, de dialogar com as cincias exatas e com as tecnologias, particularmente com as digitais. Talvez as novssimas geraes possam escapar a tais limitaes, mas no creio quedevamosesperaratqueelassetornemhegemnicas.Elassoeseroaindaformadas por ns e justamente nessa formao que no podemos continuar cometendo esses erros. Assim, quando se reflete sobre o trabalho com acervos literrios, necessrio pensar numa sociedadesubmetidaagrausvariveis,mascadavezmaisaltos,dedigitalizao.preciso esboar as condies de contorno desse trabalho com acervos, dispondo-se a reconhecer, a conhecer e a dominar instrumentalmente certa quantidade de tecnologias oriundas da Infor-mtica, das Cincias da Informao, do meio digital. Mas, para isso, necessrio superar os at hoje difceis dilogos com as cincias exatas. No caso das pesquisas com acervos, preciso entender as lgicas dos bancos de dados, as estratgias de catalogao, armazenamento e busca de informaes, a necessidade e os perigos da digitalizao e de seus formatos de arquivos eletrnicos (HTML, XML, PDF, etc.). Sobre-tudo, preciso no apenas saber se orientar em meio a essa salada de siglas e de letras, mas compreender o que est por trs delas, no que elas podem ser teis, no que elas podem ser nocivas. Em outras palavras, necessrio que os pesquisadores de acervos faam o que qual-quer adolescente j sabe fazer, quando organiza as msicas que quer ouvir ou os filmes a que deseja assistir em formato digital, escolhendo, com alguma eficincia, os meios, os aparelhos, as estratgias de seleo, armazenamento, de disponibilizao e de busca das informaes.2 No muito animador saber que, pouco aps publicar esse livro, o crtico blgaro passou a renegar sua obra de crtico e de terico da Literatura, caracterizando-se mais como um filsofo, ou, como ele mesmo disse, um moralista.Manuscrtican. 24 2013revista de crtica genticaOs acervos, o meio digital, o intelectual das LetrasAteli132A continuarmos assim, corremos o risco de perder cada vez mais clareza quanto ao papel do intelectual das Letras na sociedade atual. Alis, se cada um de ns se questionasse sobre esse papel, quem, honestamente, formularia alguma explicao que convencesse totalmente a si prprio?! Outra (m) consequncia disso, isto , da falta de capacidade mnima na manipu-lao de instrumentos e de processos do meio digital, estarmos forjando, para o pblico no literrio, uma imagem nossa que descamba facilmente para o descartvel. E isso extrema-mente grave: no s nos consideram descartveis (isso nunca foi novidade), mas ns prprios nos assumimos como descartveis. Como se no fssemos deste tempo, como se esse tempo nofosseonosso!Vamosevenhamos,somosmesmoindivduosdequepocahistrica?! Alis, enquanto nos paralisamos discutindo o que contemporaneidade, sem defini-la efetiva-mente, deixamos muitas vezes de participar diretamente de sua formatao. E a, amigos, na faltadeumaaodiretanossaconformandoparcialmentenossacontemporaneidade,ela que nos envolve e nos formata. Ou que nos define a ns e tira cada vez mais nossa capacidade de defini-la a ela!Infelizmente, no mais das vezes, os homens das Letras tm sucumbido diante das dificul-dades de dialogar com as tecnologias, em particular as digitais. Com frequncia, tm lanado mo dessa atitude caligrfica a que me referi acima. Trata-se, em resumo, de uma hipertrofia do indivduo, convertido em protagonista de um espetculo por meio de que nossos intelec-tuais tentam escapar da armadilha que criaram para si prprios. Todavia, sem perceber, caem em outra, ainda mais insidiosa, ainda mais deletria.Quando falo dessa segunda armadilha, refiro-me ao que talvez seja o ponto central deste trabalho, isto a fetichizao e a espetacularizao que, desde vrias dcadas, assolam o ce-nrio literrio. Certamente, elas no foram causadas, ao incio, pelo uso do meio digital, mas so,semsombradedvida,muitopotencializadasporele.Usemos,contudo,deprudncia metodolgica: antecipo uma frase que j expe algo das concluses a que quero chegar; volto, ento, aos princpios, para melhor expor e analisar seus fundamentos.Oqueentendoporfetichizaoestmaisoumenosexplicadonumtrabalhoquepubli-quei h pouco tempo. Contudo, me parece relevante, neste momento, retomar e aprofundar alguns elementos fulcrais desse conceito, no modo como eu o utilizo aqui. A base para essas reflexes est ancorada no que muitos talvez considerem uma antiqualha de museu: um cap-tulo dO capital, de Marx, intitulado A mercadoria, especificamente sua parte IV, O carter fetiche da mercadoria e seu segredo.3 Ora, no preciso ser marxista (eu mesmo no o sou) para compreender o alcance e a importncia de vrias de suas postulaes. A primeira distin-o importante que se estabelece a, no citado captulo, aquela que se d entre a utilidade de um objeto e sua dimenso de mercadoria. o que se resume com as expresses valor de uso e valor de troca, respectivamente. A primeira no acarreta muita dificuldade de compreenso, dado o carter imediatamente emprico para que ela aponta. segunda, Marx associa um carter mstico e que, de fato, no provm de modo algum daquilo que determina o valor. As palavras de Marx so claras e exatas: De onde provm o carter enigmtico do produto do trabalho, a partir do momento em que ele se apresenta em forma de mercadoria? Evidentemente dessa prpria forma. Devemos entender, ento, que as relaes entre os trabalhos humanos so imediatas, mas asrelaesentreosobjetosproduzidosporessestrabalhosnooso.Aindanodizerde Marx, apenas uma relao social determinada dos homens entre si que aparece aqui, para eles, na forma fantstica de uma relao das coisas entre elas. E, para compreender como isso se d, seria preciso apelar para a regio nebulosa do mundo religioso. Em outra passagem, Marx fala de uma fantasmagoria que faz aparecer o carter social do trabalho como um carter das coisas, dos prprios 3 A traduo minha.Manuscrtican. 24 2013revista de crtica genticaOs acervos, o meio digital, o intelectual das LetrasAteli133produtos.Misticismo,religio,fantasmagoria,ostermosempregadospeloautordOcapital no deixam margem a dvidas quanto ao carter absolutamente metafrico e, mais impor-tante do que isso, arbitrrio desses fenmenos e desses objetos. Uma passagem, ao final desse captulo, bastante reveladora. Nela, Marx afirma: As mercadorias diriam, se elas pudessem falar: nosso valor de uso at pode in-teressar ao homem; para ns, como objetos, isso no importa nada. O que nos in-teressa nosso valor. Nossa relao entre ns como coisa de venda e de compra o comprova. Ns consideramos tudo como valores de troca.Em outras palavras, Marx est falando de um processo que no casual nem desprovido designificadosquevoalmdaquelesquesuaaparnciaexternaexibe.Primeiramente, certo que a imposio do valor de troca ao valor de uso esconde o sentido mais profundo das relaes sociais. Contudo, mais importante perceber que, atravs desse processo de abstra-o, o segundo escamoteado para que o primeiro seja exibido como pretensamente nica expresso possvel do resultado do trabalho. Em outras palavras, a um grau cada vez maior de abstrao do objeto produzido, corresponde uma maior exibio deste e um obscurecimento cada vez mais acentuado de sua utilidade fora dele prprio, assim como do papel do sujeito que o produziu.Ora, os produtos dos trabalhos intelectuais no escapam a um processo semelhante. Ao menos, creio poder discernir neles uma dinmica de abstrao e de valorao em si mesmos. Mas h uma diferena importante: nesse caso, o valor de troca o ponto de partida, j que no existiria um produto intelectual realizado apenas por e para si prprio, como o que seria prprio a um Robinson Cruso do mundo intelectual (para mencionar o personagem utili-zado por Marx em suas consideraes, no citado captulo), pois as construes de linguagem so sempre intersubjetivas. Vendo por outro ngulo, poderamos descrever essa questo da seguin-te maneira: se o trabalho intelectual j toma seu ponto de partida num valor de troca, a partir deste se poderia (se deveria, certamente!) chegar a um valor de uso, invertendo o sentido do processo capitalista de valorao. Em outras palavras, abstrao inicial da atividade do te-rico e do crtico, se poderia (se deveria) contrapor uma concretizao, isto , a colocao de seus produtos num espao coletivo e dialgico de reflexo intelectual, em que a propriedade individualdessesprodutosintelectuaisfosseparcialmenteperdidaemnomedeummaior aprofundamentodeles.Eustenhoaganharseoquereflitoeescrevodeixadeserminha propriedadeexclusiva,deixadelevarminhamarcapessoal,paradarmaisrelevoaoespao coletivo em que se d todo e qualquer gesto de linguagem (a includa a expresso crtica e terica dos leitores de literatura). Isso no um mero esforo de bom-mocismo, para ganhar galardes num improvvel paraso dos literatos; muito mais importante que isso, certamen-te uma busca por maior eficincia na atividade intelectual de cada um de ns.Contudo, no assim que as coisas funcionam no universo da crtica e da teoria literrias. Aqui tambm ocorre uma fetichizao do produto do trabalho intelectual. Mas ela no se d na passagem de um valor de uso para um valor de troca, como no processo descrito por Marx. Ela se d no apagamento do valor de troca em detrimento de um valor de exibio. Indo no sentido oposto ao do valor de uso intelectual acima descrito, o que se faz, nesse caso, acen-tuar a marca pessoal, tentar afastar-se o mximo possvel do espao coletivo e dialgico em que ocorre toda expresso linguageira.Manuscrtican. 24 2013revista de crtica genticaOs acervos, o meio digital, o intelectual das LetrasAteli134Ora,aoimporoespaodaindividualidade,oqueresultadamesmoumprogressivo apagamentodossentidosmaisprofundosemaisfrteisdaatividadeintelectual;comose fosse retirado, da expresso verbal, o mximo possvel daquilo que lhe d seus sentidos mais largos. E, se o produto da atividade intelectual busca se desviar do espao em que se podem aprofundar seus sentidos, que espao lhe resta? Apenas, me parece, aquele em que se exibe exclusivamente a individualidade do intelectual, isto , sua prpria imagem, sua figura, sua persona. No o produto da atividade intelectual, mas a pessoa do intelectual em sua individu-alidade. De fato, interessa cada vez menos o produto em si dessa sua atividade, mais vale o sujeito dela. Nesse caso, trata-se de uma fetichizao de segundo nvel. Seguindo o esquema propostopeloautordOcapital,setratariadeumaabstraodeumaabstraoe,portanto, sem contar ao menos com a desculpa da mistificao ou do simbolismo religioso. Se,agora,analisamosesseprocessotodo,dentrodaculturadigitalcontempornea,po-demos perceber como ele pode ser e, de fato, est sendo reforado! Primeiramente, h que se pensar a respeito da ditadura da novidade, em que a mera aparncia de novo j basta para quealgosejalidoeconsideradocomonovidade.Aomesmotempo,issotira,nofundo,a novidadedequalquercoisa,poissemprehaverumanovidademenosantigadisposio, surgindo a cada momento. Da advm a necessidade de que o intelectual, ao exibir-se no meio digital, traga sempre algo de aparentemente indito, sob pena de desaparecer por debaixo da montanha de mesmices e de repeties que nos impe o mundo. Ora, as verdadeiras ideias e reflexes exigem tempo,maturao,retomadasinsistentes. Umanovateoria, umavisada crtica original e inovadora apenas aparecem depois de insistentes releituras, tanto de si mes-mas, como do contexto terico e crtico em que se inserem. Elas s se impem quando a sua novidade fora esse contexto a tambm renovar-se, diante da presena delas. Contudo, nessa pressa por chegar a resultados e a produtos, to tpica da cultura contempornea, a novidade da reflexo parece demasiado lenta. De fato, muitssimo mais fcil e imediato produzir a no-vidade no personagem que o intelectual exibe, do que na base de sua atividade, isto , em suas ideias. Alguns de meus leitores vo dizer, neste momento, que essa figura de intelectual que aqui descrevo contraditria, j que, acima, ele resistia pressa contempornea, pela escritura crtica caligrfica; aqui, ele adere celeridade. No caso, s posso concordar, pois no so meus argumentos que so contraditrios, esse tipo de intelectual que pende para certa esquizofrenia.Voltando,ento,aopontoquesediscutia,nuncacomoantes,estodadasascondies para um predomnio, to avassalador, dessa espetacularizao vazia e esvaziadora do intelec-tual. Se os sintomas disso j estavam em gente como Andy Warhol, Marcel Duchamp, John Cageetc.,quediremos,ento,agora,destanossapoca,emqueestdisposiodetodos algicaexibicionistadoFacebookedoTwitter?!Equedizer,ento,doscrticosetericos literrios que, antes ainda do meio digital, j se apoiavam na construo de personagens para si mesmos?! Para usar uma expresso bem coloquial, esses esto, agora, felizes como pintos no lixo.De fato, essa espetacularizao do intelectual no exclusiva do meio digital, ela j vem sendo posta em cena h bastante tempo, mas, vale muito repetir!, esto dadas, atualmente, as condies para uma exacerbao nunca antes vista desse processo. Inicialmente, ela se baseou numa hipertrofia dos crticos e dos tericos, em detrimento dos elementos diretamente liga-dos criao literria. possvel afirmar que esses intelectuais caram na armadilha do cime: diante da importncia atribuda linguagem dos escritores, aos elementos ligados criao literria,peloprprioresultadodesuasreflexescomocrticosetericos,elespassarama buscar tambm sua insero no espao do artstico. Afinal, como parecia ensinar Duchamp, qualquer coisa no deveria ser considerada arte?! Por que no entrar a tambm com a crtica e Manuscrtican. 24 2013revista de crtica genticaOs acervos, o meio digital, o intelectual das LetrasAteli135comateoria,compensandooquemuitagenteconsideraumadesmerecidasecundarizao da atividade de leitura?! De fato, trata-se de pretensa secundarizao, mas, nosso sculo tem pressa,4 como j se disse, e provar que essa secundarizao no ocorre de fato, toma tempo, toma, s vezes, todo o tempo de uma carreira intelectual. E a maioria de nossos intelectuais no tem pacincia para esperar que esse ciclo se cumpra. mais fcil, no imediato, rivalizar com os criadores literrios, mesmo sabendo que tero de ser usadas estratgias algo distintas das que so empregadas na criao literria.Em suma, temos, a nossa volta, um caldo de cultura em que se mesclam alguns elementos bsicos: a celeridade dos processos digitais extrapolada para as individualidades; a tendncia exibio de personagens individuais, de personas; a busca incessante por novidades. com tais condies de contorno que deve contar o intelectual das Letras nessa busca por notoriedade, por fazer-se visvel e ter sua pretensa importncia reconhecida. O primeiro ponto, ento, a reforar, sua individualidade, na maneira como escreve, reforando aquela estratgia da es-crita caligrfica. Nesse caso, o que ocorre, no mais das vezes, a utilizao de uma linguagem quelevesuamarca,comosefossemesmoumsinalde,postocomomarcadguasobre suas reflexes. Mesmo que isso se d custa de no ser efetivamente compreendido, de no estabelecer um dilogo produtivo com seus leitores. Mas no isso que importa agora para ele, no mesmo?! Da o uso de citaes inesperadas, de referncias desconhecidas, de neo-logismos vazios, nada que queira, de fato, estabelecer um dilogo; tudo reforando, apenas, afetichizaodoprpriodiscurso.Estesejustificarianopelasdiscussesquepermitiria aprofundar, mas pelo prestgio que acarreta.5 Afinal, para esse tipo de intelectual, mais vale seradmiradopeloinusitadodascitaes,pelasexpressesquecriaepelaobscuridadedos argumentos,doquesercompreendidoporestarabertoaumdilogocomoutrosleitores. Entre o esforo de propor um dilogo reflexivo e a criao de uma persona para si prprio, ele no vacila um segundo: as citaes absconsas, as referncias inesperadas so uma marca importantedesuaindividualidade;porqueperdertempoemfazer-seclaro?Ora,fazer-se claro ainda traria o risco adicional de ser respondido, at mesmo contestado, o que est no sentido contrrio ao da espetacularizao que ele constri para si. Ento, a preferncia mes-mo para o uso de expresses enigmticas que apenas simulam ser conceitos. De fato, no o so. Talvez at, na origem, possam ter sido, mas seu uso como mera decorao do espetculo, tiroudelastodapossibilidadededarfundamentoparaverdadeirasreflexesintelectuais.A partir da, outros leitores, os que se encantam com esse procedimento, passam a usar essas expresses no como ideias ou conceitos de que se apropriariam intelectualmente, mas como fetiches que permitem apenas marcar sua participao nesse seleto grupo. Vejam se no o que ocorre com palavras como desconstruo, entre-lugar... At mesmo dialtica, nos anos 70 e 80 era usada por gente que no tinha a mnima ideia do que seria isso, mas que valia como declarao de se estar afiliado a alguma esquerda marxista.Uma consequncia extremamente escandalosa desse processo fato de tais crticos e te-ricos, em geral, aprenderem pouco com a literatura, certamente bem menos do que deve-riam, to ocupados esto em ensinar-se, isto , em mostrar-se aos demais. Quem no conhece carrancudoscrticosdeOswalddeAndrade,quenoaprenderamcomelequeaalegriaa prova dos nove?! Ou leitores de Mrio de Andrade que esto apenas ocupados em criar legies de sditos, esquecidos do que o autor do Prefcio interessantssimo dizia: E no quero discpulos. Em arte: escola = imbecilidade de muitos para vaidade dum s. Parece-me muito claro que, se tais crticos e tericos aprendem pouco ou quase nada com a literatura, que eles a leem muito mal e s vo poder, de fato, ensinar quase nada ou muito pouco da prpria literatura.4 O sculo est rico, o sculo est gordo, como diz Jorge de Lima, no belo poema O poeta diante de Deus.5 Os literatos que aprendem com a literatura, podem aprender com Vieira. No Sermo da Sexagsima, o grande prosador disse: Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saeis do sermo muito contentes do pregador; agora quisera eu desenganar-vos tanto, que sareis muito descontentes de vs. Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermes: no que os homens saiam contentes de ns, seno que saiam muito descontentes de si; no que lhes paream bem os nossos conceitos, mas que lhes paream mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambies e, enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, descontentem-se embora de ns. O mesmo deveria se dar conosco e com nossos leitores!Manuscrtican. 24 2013revista de crtica genticaOs acervos, o meio digital, o intelectual das LetrasAteli136Essahipertrofiadoegointellectus,ouseja,aespetacularizaodointelectualtrazoutra consequncia: uma ampliao desmedida e descabida do princpio da propriedade intelectu-al, no que tange ao criador literrio e a sua criao. Trata-se de uma extenso abusiva desse princpio atividade de leitura do literrio: fala-se de meu autor, como se apenas aquele crtico fosse seu proprietrio (do mesmo modo como um escritor especfico ou seu descendente proprietrio dos direitos da obra). O mesmo vale, como j apontei ao incio, no s para a obra, mas para tudo que diga respeito a ela e a seu autor, a includos, obviamente, os do-cumentos que pertencem a seu acervo pessoal. Eu diria mesmo que, nesse caso dos acervos, isso talvez seja ainda mais grave, j que tal apropriao impede que tambm as informaes (e no apenas as reflexes) circulem, por construir obstculos praticamente intransponveis paraotrabalhocoletivo.Estefundamental,noapenasportudoquejdissemosacima, mas porque, em nossa sociedade de cultura digital, nos vemos s voltas com tal quantidade de dados (documentos, informaes, etc.) que nenhum intelectual, sozinho, pode dar conta de processar. E, com isso, voltamos a questes com que se abriu este trabalho. Espero que, nessepercursocircular,possamostodossair,umpouquinhoqueseja,dolabirintoemque nos metemos. E isso se far no pelo esforo individual, solitrio, egtico (afinal, foi ele que nos colocou l), mas pelo fortalecimento do dilogo respeitoso e produtivo entre todos ns.RefernciasBENJAMIN, W.; HABERMAS, J.; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. Lrica e sociedade. So Paulo: Abril Cultural, 1993, p. 193-4. Col. Os Pensadores.MARX, K. O Capital. Disponvel em: .Acesso em: 23 maio 2013.