Os Direitos Fundamentais e a Incerteza do Direito

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Artigo publicado em 2011.

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  • Menelick de Carvalho Netto Guilherme Scotti

    Os Direitos Fundamentais e a (In)Certeza do Direito

    A Produtividade das Tenses Principiolgicas e a Superao do Sistema de Regras

    Belo Horizonte Editora Frum

    2011

  • Prefcio

    O Direito Constitucional e isso vale tambm para o Brasil tem protagonizado

    nas trs ltimas dcadas um papel interessante na reflexo do direito e no exerccio das suas prticas. Grosso modo, interessante aquilo que atrai ateno. Todavia, nesta aparentemente simples qualidade que est a absoluta importncia do livro Os Direitos Fundamentais e a (in)certeza do Direito: a produtividade das tenses principiolgicas e a superao do sistema de regras que neste momento se apresenta ao leitor. Isto , porque o Direito Constitucional no limiar dos sculos redefiniu o sentido do prprio direito e de suas prticas, atraiu e tem atrado a ateno dos seus intrpretes falo de ns, o povo na medida em que compreender e interpretar o Direito (Constitucional) compreender e interpretar a ns mesmos como comunidade. Tarefa complexa esta, pois a autocompreenso que temos de ns mesmos como comunidade nos desacomoda do lugar seguro de um mundo dado, ao qual apenas assistimos como observadores externos, para um mundo que se d (ou se constri) na medida das nossas aes. E nossas aes no so lineares ou isentas de tenses e contradies.

    E justamente aqui que reside o carter indispensvel da reflexo que fazem os autores Menelick de Carvalho Netto e Guilherme Scotti quando nos deixam face a face com a (in)certeza do direito para podermos radicalmente experienciar os direitos fundamentais. Dito de outra maneira, os direitos s so fundamentais porque cotidianamente se reinventam na concretude das nossas vivncias como comunidade de pessoas que se reconhecem reciprocamente como livres e iguais e isso no se d sem tenses, ou como dizem os autores, sem uma eticidade reflexiva, plural e fluda, apta a se voltar criticamente sobre si mesma.

    Da este livro ser um destes que faz toda a diferena na produo recente em teoria constitucional, assim como seus autores fazem toda diferena no conhecimento que se tem produzido em Direito Constitucional no Brasil e na Amrica Latina. Menelick de Carvalho Netto certamente um dos constitucionalistas crticos mais proeminentes do Brasil, o qual tem formado geraes de novssimos constitucionalistas como o prprio Guilherme Scotti , cuja interveno terica e prtica se v nas principais escolas de direito do Brasil, bem como nas instncias decisrias do parlamento, da jurisdio e do governo. sempre bom lembrar que, tradicionalmente, as escolas de direito no Brasil so pouco ou quase nada reflexivas, mas hoje esto profundamente afetadas por uma nova eticidade e pelo radical compromisso com o constitucionalismo e a democracia, graas a intelectuais da monta dos

  • autores desta obra. Nova eticidade ou eticidade reflexiva, constitucionalismo e democracia so o leitmotiv

    do livro, o qual inicia discutindo a superao do projeto positivista no direito, qual seja, a necessria intruso da moral e da poltica neste e a consequente abertura (ou luminosidade) que ela provoca. Da a referncia s teses de Dworkin, a comear pela ressignificao que a sua noo de princpio prope ao direito, em oposio ao centralismo das regras da tradio positivista e, internamente, em relao noo de poltica. Devem os princpios e no as polticas fundamentar as decises judiciais, na medida em que, como dizem os autores, aqueles remetem aos contedos morais dos direitos fundamentais. Assim, ao aplicador e no ao legislador dado, no enfrentamento de cada caso e no argumento da sua deciso (para cada caso), reconstruir o direito vigente no sem interpretar as decises passadas, no sem levar em conta o contexto da sua histria institucional e os compromissos assumidos e compartilhados de liberdade e igualdade. Ao faz-lo, o aplicador-intrprete oferece a nica deciso correta para aquele caso promovendo assim, uma certa estabilidade, a qual, por sua vez no se confunde com a segurana pretendida pelos positivistas, mas, ao contrrio, reafirma a contingncia do direito.

    Tal tarefa to difcil quanto o prprio caso ao qual ela pretende dar uma resposta e a iluso de que o direito uma narrativa fcil prpria de uma compreenso precria das nossas prticas jurdicas. No por acaso afirmam os autores que as normas gerais e abstratas no so capazes de regular as suas prprias condies de aplicao, e que, portanto, a aplicao de um princpio, requer que, na unicidade especfica e determinada do caso concreto, diante das vrias verses dos fatos que se apresentem, se tenha o tempo todo tambm em mente a norma geral ou princpio contrrio, a configurar uma tenso normativa rica e complexa que opere como crivo para discernir, no caso, as pretenses abusivas das legtimas.

    No h constitucionalismo e democracia fora da tenso que os constitui, a qual reaparece no momento da aplicao do direito, relativamente s demandas que se colocam ao juiz, sobretudo as de direitos fundamentais. Neste sentido, o livro exemplar ao analisar a deciso do Supremo Tribunal Federal no famoso caso Ellwanger. Isto, pois, os autores so precisos ao apontar a insuficincia da argumentao utilizada pela Corte com base na ideia de ponderao (ou do que a Corte entende por isso). Ainda, apontam os autores que alguns dos argumentos utilizados pelos ministros da corte apoiados na ideia de ponderao, no so propriamente assim, na medida em que, atentos s especificidades do caso, evidenciam a natureza abusiva da pretenso levantada pelo ru ao atribuir prtica do crime de racismo, o

  • exerccio do direito liberdade de expresso. No obstante, quando tais argumentos insistem em recorrer ponderao para fundamentar a deciso acabam banalizando os direitos fundamentais ao apresent-los como simples opes valorativas em abstrato do aplicador.

    Pois bem, est a comunidade em frente de uma das mais sofisticadas e crticas reflexes que se tem feito em filosofia e teoria constitucional no Brasil nos ltimos anos. Reflexo de quem vive (experincia) a constituio e por isso mesmo s v sentido em suas prticas cotidianas de cidado e professor de direito se significadas por tal vivncia, com todos os seus riscos, perigos e incertezas. Definitivamente, certezas no combinam com o exerccio da cidadania, da democracia e do constitucionalismo sendo muito mais afeitas aos arranjos totalitrios e autoritrios. Por fim, ficamos com a pergunta que trazem os autores sobre o que uma constituio constitui. Interpret-la o que far o leitor deste livro, porm, no sem o prazer de uma narrativa escrita de maneira escorreita altura da ltima flor do Lcio.

    Curitiba, janeiro de 2011.

    Vera Karam de Chueiri Professora de Direito Constitucional dos programas de Graduao e Ps-Graduao da UFPR.

  • Apresentao com vistas a melhor compreender o nexo interno que entre si guardam os direitos

    fundamentais e o carter estruturalmente aberto e indeterminado das normas gerais e abstratas caractersticas do direito moderno, que convidamos o leitor a nos acompanhar na reconstruo que empreendemos da trajetria percorrida pela teoria da interpretao jurdica da primeira para a segunda metade do sculo XX. Percurso no qual este nexo torna-se no apenas visvel, mas parte essencial da proposta de se lidar produtivamente com o problema da indeterminao estrutural do Direito. Autores paradigmticos do perodo, como Hans Kelsen e Francesco Ferrara, por um lado, e Ronald Dworkin e Robert Alexy, de outro, so aqui enfocados e trabalhados em profundidade. Uma compreenso normativamente consistente dos direitos fundamentais na ordem constitucional de 1988 requer que se leve a srio o disposto nos 1 e 2 do art. 5 da Constituio da Repblica, ou seja, que o leitor, enquanto intrprete e cidado que , seja capaz de alterar sua postura diante dela, a assumir como sua uma perspectiva de quem operou o giro lingustico (hermenutico/pragmtico) no campo da teoria constitucional.

    A questo deixa de ser vista como um dado: o que uma Constituio?. A abordagem do tema passa agora a ser determinada pela postura de um participante interno que tem como foco central a indagao acerca do que ela constitui, ou seja, a comunidade de pessoas que se reconhecem reciprocamente como livres e iguais na concretude de suas vivncias cotidianas, em suma: uma determinada comunidade de princpios que se assume como sujeito constitucional, capaz de reconstruir permanentemente de forma crtica e reflexiva a eticidade que recebe como legado das geraes anteriores, precisamente restritos queles usos, costumes e tradies que, naquele momento histrico constitucional, acredita possam passar pelo crivo do que entende ser o contedo da exigncia inegocivel dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais, ou seja, a igualdade e a autonomia ou liberdade reciprocamente reconhecidas a todos os membros da comunidade, passam a ser compreendidos, portanto, como princpios, a um s tempo, opostos e complementares entre si. Por isso mesmo, aptos a gerar tenses produtivas e a, assim, instaurar socialmente uma eticidade reflexiva capaz de se voltar criticamente sobre si prpria, colocando em xeque tanto preconceitos e tradies naturalizados quanto a prpria crena no papel no principiolgico e meramente convencional das normas jurdicas. A complexidade da tarefa interpretativa de aplicao desse Direito geral e abstrato de natureza estruturalmente indeterminada requer a superao tanto da crena irracional de que textos racionalmente elaborados pudessem por si

  • ss reduzir a complexidade social a ponto de tornar esse trabalho de interpretao e aplicao do Direito uma tarefa mecnica e automatizada, quanto do ceticismo decisionista que retira dos direitos fundamentais seu papel de barreira de fogo inegocivel.

    a integridade do Direito a exigir ateno permanente s especificidades nicas e irrepetveis dos casos concretos, com vistas promoo simultnea das pretenses justia (Justice) e segurana jurdica (fairness), que tambm permite que nos libertemos do mito da possibilidade de deciso padro capaz de se autoaplicar a todos os casos semelhantes. Cada deciso que assim se apresentar configurar, outra vez, como norma geral e abstrata, estruturalmente indeterminada, introdutora de maior complexidade social, vez que na qualidade de orientao voltada ao futuro tambm incentivar, por seu turno, pretenses abusivas em relao a ela, as quais s podero ser desmascaradas mediante o exame reconstrutivo e criterioso da unicidade irrepetvel de cada caso concreto que venha a se apresentar.

    O convite reflexo teortica acerca do caminho percorrido pela teoria da interpretao jurdica nas ltimas dcadas vincula-se ao fato de que estamos plenamente convencidos de que esta uma condio academicamente indispensvel para alcanarmos apreender o efetivo significado de que hoje passam a se revestir os direitos fundamentais enquanto princpios que se consubstanciam no nexo interno e constitutivo inafastvel da tenso entre o direito e a democracia, a dimenso pblica e a privada, a complexidade social e a abertura simultnea da Constituio tanto para o futuro e quanto para a reconstruo do passado.

    Iniciemos, portanto, a reconstruo dessa aventura, a um s tempo intelectual e vivencial, passvel de ser reconhecida no somente nos textos de estatura terica e teortica mais detidamente analisados, mas igualmente em um sem nmero de outros bem como nas narrativas e prticas cotidianas das sociedades que os produziram.

  • Captulo 1 Introduo Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade

    A proposta da presente reflexo, muito sinteticamente, a de se levar a srio os 1 e

    2 do art. 5 da Constituio da Repblica que, para uma compreenso normativa efetivamente consistente, requerem um enfoque que opere o giro lingustico (hermenutico/pragmtico) no campo da teoria constitucional em especial, e do Direito Pblico em geral, e desenvolva as suas consequncias teorticas e tericas. Com este giro a questo deixa de ser o que uma Constituio?. A teoria passa a operar agora a partir da postura de um participante interno que tem como foco central o que ela constitui, ou seja, a comunidade de pessoas que se reconhecem reciprocamente como livres e iguais na concretude de suas vivncias cotidianas, considerada sincrnica e diacronicamente. A efetividade da Constituio deixa de ser abordada a partir da dicotomia ideal x real tpica de toda a Teoria da Constituio clssica,1 para ser enfocada, de forma muito mais sustentvel, rica e produtiva, a partir do que Jrgen Habermas denomina tenso externa entre facticidade e a validade da Constituio.2

    Com vistas a explicitar desde j o fundamento teortico aqui adotado, convm analisar o prprio caminho trilhado pela Filosofia do Direito nos trs ltimos sculos e a posio em que ela hoje se coloca, ou seja, centralidade que ela volta a ocupar no cenrio da reflexo filosfica, reforado ainda mais nos tempos de terror que correm, ao afirmar o carter indisponvel dos direitos humanos bem como o vnculo interno que guardam com a democracia e a necessidade inafastvel de sua concretizao mediante a institucionalizao como direitos fundamentais nas diversas ordens constitucionais.

    A Filosofia do Direito assume um papel central para a reflexo daqueles que inventaram a idade moderna.3 A evidncia racional dos direitos naturais entendidos como princpios morais universais indisponveis que expressavam a exigncia do reconhecimento tambm institucional de que todos os seres humanos nascem iguais, livres e proprietrios, no mnimo de si prprios, era uma crena to forte que literalmente provou-se capaz de, antes mesmo de haver provocado a ecloso da era das revolues, j inocular um efeito dissolvente 1 SCHMITT, C. Teora de la constitucin. Madrid: Alianza, 1982. 2 HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo

    Brasileiro, 1997. 3 BLUMENBERG, H. The Legitimacy of Modern Age. Cambridge: MIT Press, 1985

  • nas prprias bases da sociedade. Essas evidncias passam a ser os critrios com base nos quais a imvel, slida e absolutizada eticidade tradicional torna-se uma eticidade reflexiva,4 plural e fluda, apta a se voltar criticamente sobre si mesma, de tal sorte que ns, at hoje e cada vez mais, escrutinamos, todos os dias, os nossos usos, costumes e tradies para discernir os que podem continuar a s-lo, daqueles que, quando questionados luz do contedo de sentido sempre renovado desses crivos, passam a ser vistos como abusos e discriminaes.

    A evidncia desses critrios universais de justia moral era ento vista como devendo reger, de fora, enquanto transcendente, a organizao poltica e jurdica da sociedade. O direito e a poltica deveriam se submeter moral, s exigncias racionais universalizantes da moral moderna de defesa da subjetividade. A vitria institucional da crena nesses ideais traduziu-se em distintas vivncias regionais que culminam, por vias diversas, com a adoo dos Estados constitucionais, no final do sculo XVIII e incio do XIX, marcando um ponto de inflexo a partir do qual, paradoxalmente, a Filosofia do Direito perder a sua centralidade na reflexo filosfica. A inveno da forma constitucional pelos norte-americanos estabelece a diferena entre o Direito Constitucional e o restante do Direito. ela que funda agora o Direito e a Poltica.

    Assim que, como afirma Niklas Luhmann, a inveno da constituio formal pelos norte-americanos possibilitou que a modernidade se completasse no campo do Direito e da Poltica. At ento, o problema do fundamento do direito remetia s exigncias de adequao do direito positivo s exigncias morais do direito natural moderno, ou seja, o fundamento de legitimidade do direito e da poltica residia fora deles mesmos. Agora, a distino entre o Direito Constitucional e os demais direitos fundados pelo Direito Constitucional oculta o fato paradoxal de que o Direito Constitucional Direito e permite a fundamentao autopoitica do prprio Direito.5 4 Sobre o tema, vale conferir a discusso que Habermas travou com Richard Bernstein no

    simpsio ocorrido na Cardozo Law School, publicado entre ns como um suplemento em HABERMAS, J. A incluso do outro: estudos de teoria poltica. So Paulo: Loyola, 2002. Para um registro mais completo dos debates, cf. ROSENFELD, M.; A. ARATO. Habermas on Law and Democracy: critical exchanges. Berkeley: University of California Press, 1998.

    5 LUHMANN, N. La costituzione come acquisizione evolutiva. In: ZAGREBELSKY, Gustavo; PORTINARO, Pier Paolo; LUTHER, Jorg. Il futuro della costituzione. Torino: Einaudi, 1996.

  • A Filosofia do Direito inicia ento uma trajetria de reduo Teoria Geral do Direito, uma disciplina tcnica da formao especificamente jurdica, que, por sua vez, encontrar seu ponto mximo de inflexo tendencial na Teoria pura de Hans Kelsen.6 A partir da segunda metade do sculo XX a Filosofia do Direito volta a ocupar, claro que de forma inteiramente distinta, um lugar central na reflexo filosfica em autores to diversos quanto Paul Ricouer,7 Jrgen Habermas,8 Jacques Derrida9 e Gicomo Marramao,10 para citar apenas alguns. a reflexo acerca dessa trajetria que, acreditamos, muito pode contribuir para melhor compreendermos os desafios que, em tempos de terror, a Filosofia no pode deixar de enfrentar e, portanto, a nova centralidade que nela a Filosofia do Direito passa a ocupar.

    Muito embora no incio dessa trajetria a evidncia racional pudesse funcionar como critrio tanto de verdade quanto de justia, hoje conhecemos a sua natureza puramente convencional. O exerccio do pensar filosfico aplicado ao campo do Direito, marcado pelo seu alto grau de reflexividade, volta-se tanto para o questionamento acerca das condies da produo do conhecimento neste campo, ou seja, para o estatuto epistemolgico de uma Cincia do Direito, configurando-se assim como uma Filosofia da Cincia aplicada do Direito; como para as indagaes acerca da justia, de uma sociedade justa e de instituies justas, como uma Filosofia Moral aplicada ao Direito.

    A questo da justia, em funo dos prprios critrios que inauguraram a modernidade, renova-se como exerccio de Filosofia do Direito ao tematiz-la como problema a ser enfrentado cotidianamente pelo exerccio da democracia e da prtica do constitucionalismo.

    O que conduz diversos autores a postularem o rtulo de ps-modernidade, de modo a atribuir uma especificidade estrutural to grande aos tempos em que vivemos quanto havida na passagem das sociedades tradicionais para a sociedade moderna? precisamente o 6 KELSEN, H. Teoria pura do direito. So Paulo: Martins Fontes, 1998. 7 RICOEUR, P. O justo ou a essncia da justia. Lisboa: Instituto Piaget, 1997 8 HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo

    Brasileiro, 1997. 9 DERRIDA, J. Fora de lei: o fundamento mstico da autoridade. So Paulo: Martins Fontes,

    2007. 10 MARRAMAO, G. Passato e futuro dei diritti umani Dallordine posthobbesiano al

    cosmopolitismo della differenza. In: CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, 16., 2007, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte, 2007.

  • reconhecimento das pretenses excessivas atribudas racionalidade humana na modernidade: a superao do mito da razo moderna, que seria capaz de revelar verdades eternas, imutveis, a-histricas, bem como o reconhecimento dos altos custos pagos pela crena nesse mito.

    Na companhia de Niklas Luhmann e Jrgen Habermas, no entanto, preferimos reconhecer nossos tempos como mais modernos do que aqueles dos homens que cunharam esse termo para designar a sua poca, exatamente por no mais acreditarmos naquela racionalidade mtica, na cincia como saber absoluto. Acreditamos que vivemos, sim, em uma poca ainda moderna, em uma modernidade tardia, que pode ser mais sbia, mais moderna, do que a prpria modernidade que a antecedeu, em razo do que fomos capazes de aprender com as nossas prprias vivncias. A modernidade revela-se assim como um projeto inacabado.

    Por isso mesmo, para ns, cientfico o saber que se sabe precrio, que no se julga absoluto, que sabe ter de expor com plausibilidade a fundamentao de tudo o que afirma. Leis cientficas, por definio, so temporrias. Sero refutadas. A refutao s prova que determinadas teses foram cientficas enquanto foram crveis, plausveis, para ns.

    No nosso campo especfico, o do conhecimento acerca do Direito, um grande complexo de inferioridade marcava a reflexo terica jurdico-cientfica em relao cincia da Fsica e dos demais campos do conhecimento, sobretudo, aos das demais cincias naturais e exatas, pois a visvel base convencional do direito moderno, positivado e contingente, parecia impedir aqui uma cincia que pudesse se apresentar como conhecimento irrefutvel, eterno e imutvel. Hoje, no mais precisamos ter qualquer complexo de inferioridade, porque a base convencional de qualquer cincia tornou-se clara. Todos se recordam de como, recentemente, Pluto deixou de ser planeta mediante a votao da comunidade cientfica dos astrnomos. Alis, foi o modelo da comunidade cientfica que pde servir para repensarmos o prprio conceito de democracia. O saber que se sabe limitado funda-se no permanente debate pblico acerca de seus prprios fundamentos e, assim, precrio, contingente e sempre aprimorvel. Seus fundamentos so histricos e datados. A nossa racionalidade , ela prpria, um produto humano e como tal porta todas as nossas caractersticas. O projeto iluminista era um mito, precisamente por divinizar a racionalidade humana.

    preciso realizar o iluminismo do Iluminismo, para usar os termos de Niklas Luhmann (Der Aufklrung der Aufklrung). Saber que a nossa racionalidade humana, sab-la histrica, limitada, datada, ela prpria uma construo social vinculada a determinadas tradies, prticas, vivncias, interesses e necessidades, no mais das vezes naturalizados e

  • apenas pressupostos. O positivismo, no af de eliminar os mitos, dando curso ao projeto iluminista de iluminar as trevas, pretendendo que tudo fossem luzes, criou o maior dos mitos, o mito da cincia, do saber absoluto, como se fssemos capazes de produzir algo eterno, imutvel, perfeito, enfim, divino.

    Somos seres humanos, datados, com o olhar marcado por aquilo que vivemos. S podemos ver o que a nossa sociedade permite que vejamos, o que a nossa vida concreta em sociedade permite que vejamos. Qualquer luz necessariamente projeta sombras. Se podemos ver muito bem alguns aspectos porque outros restam ofuscados pelo brilho daqueles que enfocamos em destaque. Toda produo de conhecimento requer reduo de complexidade e, nessa medida, produz igualmente desconhecimento.

    Podemos ver agora a modernidade da sociedade moderna tambm no que diz respeito sua cincia. Uma cincia que s conhecimento na medida em que se sabe precria, provisria. Um saber que, ao assumir a sua complexidade, enfrenta seus riscos e os incorpora, lidando com eles de forma a conhec-los e a buscar preveni-los, sabendo, de antemo, que no poder evit-los totalmente.

    O conhecimento produzido tambm produz, em igual medida, desconhecimento. Neste passo o conceito de paradigma cientfico em Thomas Kuhn11 pode muito nos esclarecer. Paradigma um conceito da filosofia da cincia de Thomas Kuhn que, por sua vez, afirma ter sido por influncia de Gadamer, o autor de Verdade e mtodo12 um autor vinculado hermenutica filosfica, reflexo do status do conhecimento no terreno das chamadas cincias do esprito, das cincias humanas, das cincias que tm por objeto precisamente a interpretao de textos ou de equivalentes a textos que pensou em trabalhar este conceito. Kuhn, em A estrutura das revolues cientficas, avana a tese de que o conhecimento no progride evolutiva e pacificamente, mas, ao contrrio, o progresso do conhecimento nas cincias, e de se destacar que seu enfoque se centra nas cincias ditas exatas ou da natureza, se daria por rupturas, por grandes saltos, por profundas alteraes de paradigmas.

    Toda essa discusso de Kuhn encontra-se tambm intimamente vinculada aos desenvolvimentos da filosofia da linguagem, ao denominado giro lingustico, hermenutico e pragmtico. Nessa poca, a filosofia da linguagem estava a descobrir, no somente com a

    11 KUHN, T. S. A estrutura das revolues cientficas. So Paulo: Perspectiva, 1996. 12 GADAMER, H. G. Verdade e mtodo. Petrpolis: Vozes, 1997.

  • contribuio da hermenutica de Gadamer, mas tambm desde a herana pragmtica de Wittgenstein,13 o papel fundamental que o silncio exerce na linguagem.

    claro que tudo isso que estamos dizendo o fazemos no pressuposto de que podemos ser entendidos, mas esse um pressuposto contrafactual pois, na verdade, se formos verificar as vivncias das pessoas, essas so muito diversas e a possibilidade de se ser efetivamente compreendido pouco plausvel. Ao retirarmos do pano de fundo tacitamente compartilhado de silncio qualquer palavra que consideremos de sentido bvio, trazendo-a para o universo do discurso, como fizemos com o termo cincia, veremos que acerca de seu significado no havia um acordo racional mas mero preconceito, ou seja, uma precompreenso irrefletida, um saber que se acreditava absoluto e que, por isso mesmo, no era saber algum. E conquanto efetivamente possamos provar empiricamente que a comunicao no se d, ao faz-lo, provamos unicamente que o mal entendido possvel, o que portanto apenas confirma o entendimento como regra geral. A comunicao como tal, por meio da linguagem, muito improvvel e, no entanto, ela se d, ns nos comunicamos graas a esse pano de fundo compartilhado de silncio que, claro, sentido naturalizado. Da a natureza contrafactual desse pressuposto residir precisamente no paradoxo da linguagem: ns nos comunicamos porque no nos comunicamos. So exatamente essas precompreenses que integram o pano de fundo da linguagem que constituem o que Kuhn denomina paradigma. Esse pano de fundo compartilhado de silncio, na verdade, decorre de uma gramtica de prticas sociais que realizamos todos os dias sem nos apercebermos dela e que molda o nosso prprio modo de olhar, a um s tempo agua e torna precisa a nossa viso de determinados aspectos, cegando-nos a outros, e isso parte da nossa condio humana. Para Kuhn, ns no temos como sair de um paradigma, ou melhor, da condio paradigmtica, podemos sim trocar de paradigmas, mas sempre que o advento de novas gramticas de prticas sociais permitirem a troca de paradigma, esse vai ser um novo filtro, como culos que filtram o nosso olhar, que moldam a forma como vemos a chamada realidade; as normas performticas decorrentes de nossas vivncias sociais concretas condicionam tudo o que vemos e a forma como vemos. Por isso mesmo, um olhar estrangeiro na cincia, de fora daquela comunidade cientfica especfica, sempre produtivo. Normalmente, as grandes descobertas vm de algum no habituado com o paradigma tradicional.

    Ronald Dworkin, ao suceder Hart na ctedra de Teoria do Direito em Oxford, retoma a questo da interpretao precisamente ali onde Kelsen termina, mas da perspectiva oposta. A 13 WITTGENSTEIN, L. Investigaes filosficas. So Paulo: Nova Cultural, 2000.

  • sua afirmao de uma nica deciso correta para o caso assenta-se na unicidade e irrepetibilidade que marca cada caso. Ressalta aqui a complexidade do modelo de um ordenamento de princpios (mesmo as regras aqui devem ser principiologicamente lidas), que se apresenta por inteiro e, a um s tempo, composto por princpios opostos em produtiva tenso reciprocamente constitutiva e igualmente vlidos que dependem do caso concreto para que seja possvel discernir a pretenso abusiva da correta que com base neles so levantadas. Por isso mesmo, o caso em sua concretude e irrepetibilidade deve ser reconstrudo de todas as perspectivas possveis, consoante as prprias pretenses a direito levantadas, no sentido de se alcanar a norma adequada, a nica capaz de produzir justia naquele caso especfico. Essas reflexes de Dworkin marcam o emergir de um novo paradigma que vem, enquanto tal, de forma cada vez mais difundida e internalizada se afirmando atravs da constituio de um novo senso comum social, de um novo pano de fundo para a comunicao social, no qual so gestadas pretenses e expectativas muito mais complexas, profundas e rigorosas no que respeita ao projeto de reencantamento com o Direito, seja como ordenamento ou esfera prpria da ao comunicativa, do reconhecimento e do entendimento mtuo dos cidados para o estabelecimento e a implementao da normativa que deve reger sua vida em comum, seja como simples mbito especfico de conhecimento e exerccio profissionais. esse novo paradigma que tem sido denominado pela Doutrina Estado Democrtico de Direito e que, no Brasil, foi inclusive constitucionalmente consagrado.

    Ainda de se registrar que a prevalncia do positivismo jurdico instrumentalizador do paradigma do Estado Social se verifica no s como marco terico explcito, mas muito mais como pano de fundo tacitamente acolhido que chegou e ainda continua a conformar difusa e eficazmente no apenas a prtica dos vrios operadores jurdicos, mas a prpria reproduo desta prtica ao determinar decisivamente o caldo de cultura em que se do o processo de aprendizagem e de formao do profissional do Direito. A profunda reviso doutrinria que tem conduzido, de modo crescente e de par com as marcantes alteraes ocorridas nas duas ou trs ltimas dcadas em todos os mbitos da vida humana resultantes da nova estrutura societria pluralista e hipercomplexa das denominadas sociedades ps-industriais, da crtica aos excessos da razo iluminista acolhida pela modernidade no mago do prprio conceito de cincia, do advento de novas tecnologias e saberes, da exigncia de se rever a relao puramente predatria com a natureza, do advento dos direitos de 3 gerao e do fracasso do modelo do Estado Social constituio desse novo paradigma, possibilita e exige a recunhagem do prprio estatuto da Cincia ou Teoria Geral do Direito, redefine e amplia suas fronteiras, seus conceitos bsicos e seu prprio papel, bem como o papel, as tarefas e a

  • responsabilidade do profissional do Direito, sobretudo, do Judicirio em sua relao cotidiana com a efetividade dos ideais constitucionais como implementao, concretizao e efetivao da Justia e da cidadania.

    Dworkin expressa no Direito o que passa a ocorrer no mbito da prpria Filosofia a partir da dcada de 1970. Verifica-se o movimento de reencantamento com o Direito na Filosofia mesma. A Filosofia do Direito passa a ser novamente temtica obrigatria dos filsofos. claro que desta vez, em um contexto de racionalidade limitada, sobretudo aps o evento de 11 de setembro, a preocupao de autores de vertentes to distintas como Jacques Derrida, Jrgen Habermas e Paul Ricoeur termina por encomendar Filosofia a reflexo acerca do significado da herana jurdico-constitucional e a sua centralidade para a preservao e o desenvolvimento de uma sociedade cada vez mais complexa, plural e inclusiva em face da ameaa dos totalitarismos fundamentalistas (sejam orientais ou ocidentais, de direita ou de esquerda). Assim que o retorno da Filosofia do Direito como uma das dimenses centrais da reflexo filosfica termina, paradoxalmente, por nos enviar de volta Teoria da Constituio, dos Direitos Fundamentais e da Interpretao Constitucional.

    Assim que no mais podemos validamente pretender transferir nossos problemas para os textos. Muitas alteraes constitucionais profundas verificaram-se na histria do constitucionalismo mediante alteraes na gramtica das prticas sociais de tal sorte que passamos a l-los consoante a ressignificao dos prprios direitos fundamentais.

    O passado to aberto quanto o futuro, afirma Michel Rosenfeld. Assim que cada gerao s capaz de revisit-lo sob a sua tica, sempre renovada, marcada, claro, pela vivncia herdada das geraes anteriores, bem assim por seus prprios desafios, aflies, desejos e temores inerentes e constitutivos de sua especfica temporalidade social. Neste texto, procura-se explorar a distncia conceitual que nos separa, na histria do constitucionalismo, das geraes anteriores, que, de uma forma ou de outra, tematizaram a relao entre a forma e o contedo constitucionais como uma simples relao de oposio antagnica.

    Demarcar essa distncia, acreditamos, um exerccio de Teoria da Constituio, de reflexo acerca da histria do pensamento constitucional, necessrio para que se alcance uma compreenso mais profunda do sentido complexo desta relao que hoje, ainda que inconscientemente, tendemos a compartilhar. Ou seja, se tendencialmente continuamos a v-la como uma relao de oposio, essa, contudo, no mais pode ser vista como uma relao de simples oposio em que ambos os termos reciprocamente se excluam, tal como ocorre na

  • relao de oposio entre preceitos no modelo normativo em que se acredita que as normas sejam capazes de regular suas condies de aplicao, o das regras.

    Ao contrrio, sob o influxo da racionalidade subjacente ao modelo normativo dos princpios, sabemos que as normas gerais e abstratas no so capazes de regular as suas prprias condies de aplicao, e que, portanto, a aplicao de uma norma, de um princpio, requer que, na unicidade especfica e determinada do caso concreto, diante das vrias verses dos fatos que se apresentem, se tenha o tempo todo tambm em mente a norma geral ou princpio contrrio, a configurar uma tenso normativa rica e complexa que opere como crivo para discernir, no caso, as pretenses abusivas das legtimas. Nessa tenso, muito embora efetivamente o significado das duas normas, sem dvida, seja oposto, a um s tempo, o significado de cada uma delas delimita e matiza o da outra, passando, assim, a conform-lo profundamente, de tal sorte que uma recproca e inafastavelmente constitutiva do sentido constitucional da outra. Uma boa aplicao do princpio da publicidade, por exemplo, requer que sempre se tenha em mente o da privacidade, e vice-versa.

    No mbito da filosofia poltica, da teoria democrtica e da teoria da Constituio, do ponto de vista de uma perspectiva que busque se incorporar no processo de aprendizado possibilitado pelas vivncias constitucionais anteriores, que se assuma como desenvolvida a partir dos novos horizontes de sentido descortinados pelo paradigma do Estado Democrtico de Direito, o mesmo sucede com todos os pares de conceitos opostos tpicos da modernidade, at ento tambm enfocados como antagnicos e reciprocamente excludentes. Cultura e natureza, pblico e privado, igualdade e liberdade, democracia e Constituio, forma e matria constitucionais, para citar apenas alguns, so termos cuja significao atual rica e complexa, decorrente da possibilidade de vermos a relao, a um s tempo, de oposio e complementaridade que guardam entre si. Em uma terminologia habermasiana, so conceitos ou princpios co-originrios e equiprimordiais.

    Autores que trabalham de forma extremamente produtiva a exigncia herdada do constitucionalismo social de um enfoque materializado do Direito Constitucional, como, por exemplo, na Espanha, Pablo Lucas Verd (difusamente em toda a sua obra, mais especificamente no volume IV do Curso de direito poltico),14 no Brasil, Lnio Streck,15 enfocam o Direito Constitucional como vida. E realmente, o Direito Constitucional vida 14 VERD, P. L. Curso de derecho poltico. Madrid: Tecnos, 1984. 15 STRECK, L. L. Hermenutica jurdica e(m) crise: uma explorao hermenutica da

    construo do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

  • ou vida ou no nada! De outra vertente, mesmo autores que, no campo da teoria jurdica, adotaram posturas mais formalistas, como, por exemplo, Norberto Bobbio, no correr da ltima dcada do sculo XX j denunciavam a histria do Direito Constitucional como uma histria de promessas no-cumpridas.16 A denncia de Bobbio delineia o horizonte do desafio posto a ns, constitucionalistas e jusfilsofos do final do sculo XX, incio do XXI: sem abrir mo do conhecimento crtico acerca das inegveis possibilidades de usos abusivos do Direito em geral, do Constitucional em especial, resgatar, em um contexto de racionalidade que se sabe limitada, o reencantamento com o Direito e com a Democracia; enfim, com os direitos fundamentais e com o constitucionalismo. Exatamente por isso, a atual doutrina do Direito unnime em requerer que o Direito em geral e, em especial, o Direito Constitucional, sejam uma efetividade viva, ou seja, que se traduzam na vivncia cotidiana de todos ns.

    Os direitos fundamentais, tal como os entendemos hoje, so o resultado de um processo histrico tremendamente rico e complexo, de uma histria, a um s tempo, universal, mas sempre individualizada; comum, mas sempre plural.

    Em termos de caractersticas mais gerais possvel divisar etapas tendenciais em um nico processo global de aprendizado social decorrente das lutas pela afirmao do que acreditamos sejam os direitos fundamentais e a negao vivencial e histrica dessas crenas.17 Sempre, no entanto, esta uma histria plural, matizada regionalmente segundo as especificidades das tradies herdadas em cada pas. A irracionalidade do excesso racionalista das pretenses iluministas revela-se claramente na crena em fundamentos ltimos que podiam ser vistos como definitivos e imutveis, quando sabemos hoje que permanente somente o que capaz de ter o seu significado renovado conjuntamente com a constante transformao da sociedade moderna. No contexto de uma racionalidade que se sabe precria, os fundamentos revelam-se frgeis constructos sociais, requerendo que os compreendamos como conquistas histricas discursivas que, embora estruturalmente inafastveis do processo de reproduo diuturna da sociedade moderna, por si ss, no so definitivas, ao contrrio, encontram-se, elas prprias, em permanente mutao, sujeitas ao retrocesso e sempre em risco de serem manipuladas, abusadas. 16 BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. 17 HABERMAS, J. O Estado Democrtico de Direito: uma amarrao paradoxal de princpios

    contraditrios?. In: HABERMAS, J. Era das transies. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 2003.

  • Vimos a fragilidade da fundamentao que, em nossa poca, podemos plausivelmente oferecer noo de direitos humanos e de direitos fundamentais e, claramente, prefiro essa expresso outra, direitos naturais, por entend-los conquistas histricas, aquisies evolutivas socialmente criadas, direitos institucionalizados em uma sociedade improvvel, complexa. Na modernidade, vivemos em uma sociedade instvel, uma sociedade que se alimenta de sua prpria instabilidade, uma sociedade absolutamente implausvel.

    Aqui comeamos a tratar explicitamente da questo dos desafios postos hoje aos direitos fundamentais. O primeiro e grande desafio sabermos que se, por um lado, os direitos fundamentais promovem a incluso social, por outro e a um s tempo, produzem excluses fundamentais. A qualquer afirmao de direitos corresponde uma delimitao, ou seja, corresponde ao fechamento do corpo daqueles titulados a esses direitos, demarcao do campo inicialmente invisvel dos excludos de tais direitos. A nossa histria constitucional no somente comprova isso, como possibilita que repostulemos a questo da identidade constitucional como um processo permanente em que se verifica uma constante tenso extremamente rica e complexa entre a incluso e a excluso e que, ao dar visibilidade excluso, permite a organizao e a luta pela conquista de concepes cada vez mais complexas e articuladas da afirmao constitucional da igualdade e da liberdade de todos. Este um desafio compreenso dos direitos fundamentais; tom-los como algo permanentemente aberto, ver a prpria Constituio formal como um processo permanente, e portanto mutvel, de afirmao da cidadania.

    Uma das preocupaes centrais aqui presentes volta-se para a possvel contribuio de uma cincia do Direito para a questo da eficcia e da efetividade do Direito e da democracia. Apenas que, quando o problema retomado de uma perspectiva posterior ao giro lingustico, o papel do conhecimento ou da cincia passa a ser bem mais modesto e o da comunidade de princpios, como um todo, reforado. claro que, muito embora o enfoque tenha se tornado bem mais complexo, continuamos a considerar central o problema da tessitura aberta do Direito positivo e a possvel contribuio de uma Teoria do Direito ou, mais especificamente de uma Teoria da Constituio, para se no coibir, ao menos denunciar, as leituras abusivas das autoridades encarregadas de aplic-lo. Alis, este um dos papis centrais das academias no campo do Direito: proceder ao controle discursivo das decises do judicirio como um todo, dos tribunais superiores em especial, trazendo para o debate cientfico e mesmo pblico, as decises que acreditam inconsistentes.

  • Captulo 2 A Imploso e Superao do Projeto Positivista no Direito

    Sumrio: A imploso da teoria pura O positivismo, os hard cases e a nica resposta correta de Dworkin O conceito de integridade na poltica O conceito de integridade no Direito A teoria de Dworkin na perspectiva da teoria discursiva do Estado Democrtico de Direito Dworkin e o realismo moral A interpretao construtiva O papel dos princpios Os estgios de Kohlberg A imploso da teoria pura

    O cenrio poltico que privilegiou a afirmao do positivismo tornava plausvel a crena dos juristas no poder regulatrio de regras racionalmente cunhadas por especialistas. A noo linear de progresso, num contexto de relativa homogeneidade moral e estabilidade de mercado, se comparado com o sculo XX, tornava possvel a percepo do utilitarismo positivista de Bentham como uma fora capaz de combater tradies morais reacionrias. Permitir que juzes extrassem princpios morais, a partir da leitura da tradio jurdica, ressoaria conservadorismo e anticientificidade.18

    As teorias positivistas buscaram estabilizar expectativas sem recorrer a tradies ticas como suporte para a legitimidade das normas jurdicas. Kelsen e Hart buscaram conceber o ordenamento jurdico como sistema fechado de regras cuja compreenso seja independente da poltica e da moral. Reduz-se o Direito a uma determinada histria institucional, com abstrao de qualquer princpio suprapositivo.19

    O problema da legitimidade e das fontes se resolve com a explicitao de regras de reconhecimento, regras secundrias de identificao do direito/no direito, ou seja, regras autorreferentes do ordenamento jurdico instituidoras de autoridades e identificadoras de suas respectivas competncias para decidir. A legitimidade das normas refere-se portanto unicamente sua procedncia, no racionalidade de seu contedo. Essa regra de reconhecimento, porm, no pode ela mesma ser fundamentada em outra regra jurdica, devendo portanto ser reconhecida como um fato histrico, como parte de uma determinada 18 DWORKIN, R. Harts Postscript and the Point of Political Philosophy. In: DWORKIN, R.

    Justice in Robes. Cambridge, Mass.: Belknap Press, 2006. p. 180. 19 HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo

    Brasileiro, 1997. p. 250.

  • forma de vida, aceita de forma autoevidente pelos prprios participantes do jogo de linguagem.20

    Como bem aponta Habermas, para o positivismo a noo de segurana jurdica se sobrepe, abarca, eclipsa a ideia de justia enquanto pretenso de correo normativa. A fundamentao das normas jurdicas puramente procedimental de forma bem distinta do procedimentalismo21 de Habermas , refere-se unicamente sua gnese, deixando o problema do contedo das normas para outros mbitos normativos ou cientficos moral, poltica, sociologia, histria etc.

    A noo do ordenamento jurdico como sistema de regras, tendo-se em vista a base terica lingustica pressuposta pelos expoentes maiores do positivismo cientfico, implica o reconhecimento de seu carter impreciso, indeterminado ou lacunoso. Admitindo-se a estrutura aberta da linguagem, a pretenso de regulao de todas as possveis condutas por meio de regras abstratas se mostra invivel, cabendo ao sistema jurdico lidar com essa indeterminao diante de sua tarefa inescapvel de decidir.

    Se tambm Kelsen parte do reconhecimento da tessitura aberta dos textos legais e constitucionais, ao contrrio de Dworkin e dos autores atuais, ele pretende eliminar ou reduzir essa abertura que v como um problema central para todo o Direito.

    Para o primeiro Kelsen, o da Teoria pura de 1933, a indeterminao dos textos legais e constitucionais poderia ser solucionada ao se eliminar o problema da arbitrariedade na aplicao do Direito mediante a contribuio da Cincia do Direito. A Teoria pura do direito, a asctica Cincia do Direito kelseniana, deveria traar o quadro das leituras possveis dos textos legais e constitucionais, de tal sorte que o arbtrio inicial transformar-se-ia em discricionariedade do aplicador. Este ltimo deveria escolher, determinar, dentro do quadro dos sentidos possveis de um texto neutramente delineados pela doutrina, a norma, ou seja, o 20 Ibid., p. 251. 21 Assim como Habermas, Dworkin compreende a relao entre forma e contedo ou

    procedimento e substncia no direito como algo marcado por complementaridade, e no oposio. Aqueles que dizem que a expresso devido processo substantivo consiste num oxmoro, porque substncia e processo so opostos, desconsideram o fato crucial de que uma demanda por coerncia de princpio, que traz bvias conseqncias substantivas, parte essencial do que faz um processo de tomada de deciso ser um processo jurdico (DWORKIN, R. Originalism and Fidelity. In: DWORKIN, R. Justice in Robes. Cambridge, Mass.: Belknap Press, 2006).

  • sentido estatal, oficial, do texto. Observadas as possibilidades interpretativas descritas sem qualquer juzo de valor pela doutrina cientfica, a atividade da autoridade deixaria de ser arbitrria para ser discricionria, ao proceder ao juzo de valor, prprio da sua competncia e, portanto, dotada de poder vinculante, da escolha da norma a ser aplicada no interior daquele quadro de possibilidades normativas.

    No entanto, na edio revista da Teoria pura do direito, de 1960, Kelsen procede ao famoso giro decisionista, alterando o captulo oitavo da obra dedicado questo da interpretao. Precisamente o que distingue, para Kelsen, a interpretao cientfica da interpretao que denomina autntica, o fato de a primeira ser neutra e de no ter o poder de vincular as pessoas to somente em razo da pronncia, como as autoridades estatais competentes para decidir e aplicar a norma jurdica o fazem. Ele se indaga agora o que aconteceria se a autoridade decidisse por um sentido que no estivesse contido no interior do quadro dos sentidos admissveis traado pela doutrina, e responde: azar da Cincia do Direito, a autoridade que pode impor a observncia das normas e no o cientista. Kelsen buscara restringir a natureza aberta dos textos mediante a contribuio de uma cincia neutra, seu fracasso, no entanto, revela a ingenuidade com que buscou enfrentar o problema da linguagem.

    Para ns, bvio que no h dicionrio ou gramtica, por mais bem feita que seja, capaz de congelar a linguagem. Dicionrios e gramticas ficam defasados em pouqussimo tempo diante da fora atribuidora de sentido da gramtica das prticas sociais em permanente transformao. A linguagem algo vivo e vivenciado que no se deixa aprisionar.

    Paradoxalmente, s podemos enfrentar de fato os riscos, quando assumimos sua inevitabilidade, quando desistimos de exorciz-los, de elimin-los, e passamos a buscar control-los; a questo s pode ganhar um enfrentamento mais consistente, possibilitando a criao de um instrumental de outro tipo para o controle do risco da arbitrariedade inerente atividade interpretativa, quando se passou a assumir a natureza incontornavelmente aberta, indeterminada, de qualquer texto. a unicidade, a irrepetibilidade da situao de aplicao que pode assegurar a imparcialidade e nunca o texto em si, ainda que apoiado em outros textos supostamente neutros, como se esses ltimos, por alguma mgica, pudessem escapar do turbilho incessante da vida e das formas de vida que marcam a nossa leitura do mundo. Esse turbilho , ele prprio, constitutivo do pano de fundo compartilhado de silncio que sustenta a comunicao na linguagem, do mundo da vida, que, mediatizado institucionalmente, possibilita o advento de uma Constituio compartilhada intersubjetivamente pela comunidade de cidados. Pano de fundo que contm os horizontes de sentido dessa

  • determinada comunidade enraizados na gramtica de suas prticas sociais, incorporando um repositrio de sentidos decorrentes tanto das prticas assentadas nas tradies quanto de novas prticas emancipatrias e transformadoras.

    Tanto em Kelsen quanto em Hart, contudo, a sada termina por ser decisionista. A prpria Cincia do Direito, como fica patente na obra revista de Kelsen, pode apenas indicar, mas no assegurar qualquer moldura de interpretaes que vincule as autoridades competentes para decidir capazes de realizar interpretaes autnticas, pois impositivas , cujas decises podem assim ter fundamentos extrajurdicos:

    A propsito, importa notar que, pela via da interpretao autntica, quer dizer, da interpretao de uma norma pelo rgo jurdico que a tem de aplicar, no somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretao cognoscitiva da mesma norma, como tambm se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa.22

    O reconhecimento de Kelsen de que no h nada a fazer se a autoridade encarregada

    de aplicar o direito no se deixa submeter moldura das interpretaes possveis descrita pela Cincia do Direito equivale, na verdade, aceitao da possibilidade de arbtrio da autoridade aplicadora como algo inafastvel e incontrolvel. A contribuio que se buscara alcanar com a Teoria pura do direito, expressa em seu ltimo captulo, perde-se agora de seu propsito original. O sentido do texto normativo, ou seja, a norma, ser aquela que a autoridade afirma ser. A segurana jurdica termina por no ser crvel, nem mesmo no mbito do regulado pelas regras jurdicas expressamente positivadas.

    O positivismo jurdico de Hart concebe os hard cases como casos que no podem ser solucionados com recurso a uma regra jurdica suficientemente clara, cabendo portanto ao juiz fazer uso de sua discricionariedade para decidir. Ao faz-lo uma nova regra estaria sendo criada e aplicada retroativamente, por mais que o juiz se esforasse para dar a entender que estaria simplesmente aplicando um direito pr-existente, tentando assim salvaguardar a fico da segurana jurdica.23 A ideia de certeza do direito como atividade de mera cognio, ou seja, como desvelamento racional do sentido pr-existente das normas, expressamente rejeitada por Kelsen: 22 KELSEN, H. Teoria pura do direito. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 394. 23 DWORKIN, R. Taking Rights Seriously. Cambridge, Mass.: Harvard University Press,

    1977. p. 81.

  • A Teoria Pura destri a viso segundo a qual as normas podem ser criadas por meio da cognio, uma concepo que decorre, em ltima instncia, da necessidade de se imaginar o Direito como um sistema fixo que regula todos os aspectos do comportamento humano e, em especial, as atividades dos rgos que aplicam o Direito, sobretudo as de todos os tribunais. A funo desses ltimos e, assim, tambm a interpretao h de ser vista simplesmente como o desvelamento das normas vigentes, normas que, ento, ho de ser simplesmente, de uma certa maneira, reveladas. A teoria jurdica tradicional, deliberadamente ou no, se esfora por manter a iluso da certeza jurdica.24

    A teoria positivista da interpretao, ao igualar em essncia as tarefas legislativa e

    judicial, especialmente diante de hard cases, nivela as distintas lgicas subjacentes, causando uma profunda confuso entre argumentos cuja distino cara a toda a estrutura poltica das sociedades modernas: argumentos de poltica e argumentos de princpio. Os primeiros se referem persecuo de objetivos e bens coletivos considerados relevantes para o bem-estar de toda a comunidade, passveis de transaes e compromissos, enquanto os segundos fundamentam decises que resguardam direitos de indivduos ou grupos, possuindo assim um papel de garantia contramajoritria.25 O positivismo, os hard cases e a nica resposta correta de Dworkin

    O argumento de Dworkin da nica resposta correta consiste na afirmao de que mesmo nos casos considerados pelo positivismo como hard cases, onde no h uma regra estabelecida dispondo claramente sobre o caso, uma das partes pode mesmo assim ter um direito preestabelecido de ter sua pretenso assegurada. Cabe ao juiz descobrir quais so esses direitos, mas isso no poder ser obtido com auxlio de algum mtodo ou procedimento mecanicista. Dworkin deixa claro que se trata primeiramente de uma postura a ser adotada pelo aplicador diante da situao concreta e com base nos princpios jurdicos, entendidos em 24 KELSEN, H. On the Theory of Interpretation. Legal Studies, v. 10, n. 2, p. 132, 1990: The

    Pure Theory decimates the view that norms can be created by way of cognition, a view that arises in the end from the need to imagine the law as a fixed system governing every aspect of human behavior, and governing in particular the activity of the organs that apply the law, above all the courts. Their function and thus, interpretation too is to be seen simply as the discovery of existing norms, norms, then, that are simply to be uncovered in a certain way. The illusion of legal certainty is what traditional legal theory, wittingly or not, is striving to maintain.

    25 DWORKIN, R. Taking Rights Seriously in Beijing. The New York Review of Books, v. 49, n. 14, p. 82, 2002.

  • sua integridade,26 e no numa garantia metodolgica, o que significa que discordncias razoveis sobre qual a resposta correta para cada caso exigida pelo Direito podem ocorrer entre os juzes, advogados, cidados, etc.27

    Nos casos em que nos parea inequvoca a atribuio de um direito a um requerente por meio da clareza de uma norma expressa ou melhor, em que (ainda) no se sustentem argumentos em contrrio em face dos dispositivos normativos invocados fica claro que o que se exige a prevalncia de um argumento de princpio, mesmo que o direito em questo, previsto na norma, tenha se originado de argumentos de poltica, como, por exemplo, no caso de um subsdio fiscal criado com o objetivo de promover o crescimento de um setor especfico da economia.

    At aqui as diferenas no se mostram com toda a sua fora. Em se tratando de um hard case, entretanto, surge a questo sobre a aplicabilidade de cada tipo de argumento por parte do aplicador. Se os juzes atuam como legisladores delegados, como na concepo positivista, ento toda a gama de argumentos de poltica est sua disposio. Um caso pode ser decidido, na ausncia de uma regra, de forma a promover, por exemplo, a maximizao de objetivos econmicos considerados relevantes pelo juiz, ou a prevalncia de valores sociais considerados superiores, sem que isso reflita necessariamente princpios jurdicos enquanto comandos normativos deontolgicos. Se, por outro lado, a tarefa jurisdicional se distingue em essncia da atividade legislativa, atuando como um frum de princpio, nos hard cases as decises tambm devem se basear em argumentos de princpio.28

    Dworkin rejeita a reduo da legitimidade do direito simples textualidade legal, em termos de uma gnese puramente formal do Direito, como em Kelsen ou Hart. A diferenciao entre direito, moral e poltica deve ser mantida, mas isso se torna possvel justamente pela traduo dos princpios morais e dos objetivos polticos na linguagem

    26 Sobre a integridade em Dworkin como teoria normativa da coerncia, cf. GNTHER, K.

    Un concepto normativo de coherencia para una teora de la argumentacin jurdica. Doxa, n. 17/18, p. 271-302, 1995.

    27 DWORKIN, R. Taking Rights Seriously. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1977. p. 81.

    28 DWORKIN, R. A Matter of Principle. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1985. p. 69.

  • propriamente jurdica, internalizando e ressignificando assim seus contedos no direito positivo.29

    A diferenciao interna ao direito entre direitos e polticas, proposta por Dworkin, refora a distino entre formas especficas de discursos, buscando garantir a primazia dos argumentos de princpios, que remetem aos contedos morais dos direitos fundamentais, sobre a argumentao teleolgica e pragmtica de polticas cunhadas para a realizao de objetivos supostamente realizadores de bens coletivos.30 o Legislativo, assim, a porta de entrada dos argumentos ticos e pragmticos prprios das polticas pblicas, a serem incorporados no discurso judicial de forma seletiva e condicionada, dado o papel de firewall atribudo aos direitos fundamentais, com sua linguagem deontolgica, no ordenamento jurdico.31

    A insuficincia das crenas e posturas positivistas torna-se ainda mais clara com a distino proposta por Dworkin entre regras e princpios. A leitura positivista do direito como sistema autossuficiente de regras, que pretendem regular com alto grau de determinao suas situaes de aplicao, deixa escapar a dimenso central de qualquer ordenamento jurdico ps-convencional: sua estrutura principiolgica, necessariamente indeterminada em abstrato, embora determinvel em concreto, aberta hermeneuticamente construo intersubjetiva dos sentidos das normas universalistas positivadas enquanto direitos fundamentais.32 Importante ressaltar que num sistema principiolgico mesmo as regras, que especificam com maior detalhe as suas hipteses de aplicao, no so capazes de esgot-las; podem, portanto, ter sua aplicao afastada diante de princpios, sempre com base na anlise e no cotejo das reconstrues fticas e das pretenses a direito levantadas pelas partes na reconstruo das especificidades prprias daquele determinado caso concreto. 29 HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo

    Brasileiro, 1997. p. 257. 30 DWORKIN, R. Taking Rights Seriously. Cambridge, Mass.: Harvard University Press,

    1977. p. 82 et seq. 31 Robert Alexy critica a distino proposta por Dworkin entre princpios e polticas por

    consider-la por demais estreita (ALEXY, R. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. p. 111).

    32 Essa caracterstica da aplicao jurdica, mesmo se tratando de regras, tambm no captada da mesma forma na teoria de Alexy. Cf. ALEXY, R. Sistema jurdico, principios jurdicos y razn prctica. Doxa, n. 5, p. 139-151, 1988.

  • A perspectiva decisionista a que chega o positivismo em face da reconhecida indeterminao das regras rechaada assim pelo carter normativo dos princpios jurdicos que, embora muito gerais e abstratos, exigem do intrprete densificao, com especial ateno histria institucional e sistematicidade do conjunto de princpios reciprocamente vinculados do Direito. Essa exigncia de Dworkin bem apreendida por Habermas:

    Depois que o direito moderno se emancipou de fundamentos sagrados e se distanciou de contextos religiosos e metafsicos, no se torna simplesmente contingente, como o positivismo defende. Entretanto, ele tambm no se encontra simplesmente disposio de objetivos do poder poltico, como um medium sem estrutura interna prpria, como defendido pelo realismo. O momento da indisponibilidade, que se afirma no sentido de validade deontolgica dos direitos, aponta, ao invs disso, para uma averiguao orientada por princpios das nicas decises corretas.33

    nesse sentido que pode Dworkin falar da exigncia de se buscar a nica deciso

    correta autorizada pelo ordenamento: no enquanto mandamento inscrito a priori nas normas gerais e abstratas, mas como postura a ser assumida pelo aplicador em face das questes aparentemente no reguladas apresentadas pelos hard cases, de densificao dos sentidos abstratos em face de um compartilhamento existente, embora sempre passvel de ser problematizado e polemizado, do sentido vivencial dos princpios jurdicos, presente naquela determinada comunidade de princpios, tanto na assimilao prtica dos direitos pela sociedade em seu quotidiano, em suas lutas, reivindicaes por posies interpretativas e em seu aprendizado histrico, quanto na reafirmao institucional do sentido dessa histria pelos rgos oficiais. O conceito de integridade na poltica

    Para Dworkin, precisamente o contedo moral incorporado ao Direito como direitos fundamentais, funcionando como Direito e no mais como moral, que garante o pluralismo e a crescente complexidade da sociedade moderna.

    Essa relao um suposto inafastvel da Teoria do Direito de Dworkin. Para ele tarefa de uma comunidade concreta densificar, interpretar reflexivamente, esses princpios. Essa comunidade no mais pode compreender a si mesma como um grupo de pessoas unidas apenas por razes acidentais, externas e incontrolveis, histricas ou territoriais (o estgio

    33 HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo

    Brasileiro, 1997. p. 259.

  • pr-convencional de Kohlberg).34 Tampouco no mais capaz de se ver como um grupo apenas por terem estado submetidos s mesmas normas, decorrentes de um procedimento aceito, a partir, por exemplo, de uma regra de reconhecimento (o estgio convencional de Kohlberg).

    Uma verdadeira comunidade, que Dworkin denomina de princpios, uma comunidade especial. Alm de compartilhar esses princpios comuns, eles a compreendem como uma comunidade de princpio, pois seus membros se reconhecem reciprocamente como livres e iguais, h um respeito pela diferena do outro que no se confunde com a emoo moral, o altrusmo ou o amor. As obrigaes recprocas dessa comunidade decorrem dessa natureza especial que lhe constitutiva. No se obedece a essas normas como realizao de uma justia global, universal, no exemplo dado por Dworkin. Tais obrigaes nascem justamente desse senso de pertencimento a uma comunidade que compartilha os mesmos princpios. O conceito de integridade no Direito

    Assim, para Dworkin, o Direito um sistema aberto de princpios e regras. Princpios so normas abertas e que no buscam controlar previamente sua prpria aplicao. Regras so proposies normativas que buscam controlar a sua aplicao, por isso, no segundo modelo de comunidade, e na primeira fase do estgio ps-convencional, conduziram a aplicao dos prprios princpios a ser pensada e praticada como uma aplicao que deveria se conformar tpica das regras. J os princpios, por sua vez, conquanto sejam abertos e indeterminados, so, porm, passveis de serem densificados nas situaes concretas de aplicao segundo a sua adequabilidade unicidade e irrepetibilidade das caractersticas do caso em tela, em termos de sua capacidade de regncia, sem produzir resduos de injustia, em face aos demais princpios.

    Por isso mesmo, princpios contrrios so no somente opostos, mas se requerem complementarmente como parte da integridade complexa do Direito no momento de sua aplicao, nunca podem ser considerados isoladamente; j as regras, em seu modo tpico de aplicao, ao invs, requerem a crena que hoje sabemos implausvel de que as normas, por si ss, seriam capazes de regular as situaes sempre individuais, concretas e infinitamente complexas da vida, sem a mediao do aplicador. Por isso puderam gerar a crena em uma 34 Sobre os estgios de desenvolvimento moral, ver o tpico O papel dos princpios Os

    estgios de Kohlberg.

  • concepo de imparcialidade do aplicador que requereria a sua cegueira s especificidades das situaes de aplicao, dando curso ao mito iluminista, totalmente irracional, sabemos hoje, exatamente pela confiana excessiva em uma racionalidade sobre-humana, perfeita, eterna, isenta de todos condicionantes que marcam nossa humanidade, segundo o qual a elaborao de normas gerais e abstratas perfeitas eliminaria o problema do Direito, pois ao aplicador restaria apenas um trabalho de aplicao mecnica e silogstica dessas mesmas normas s situaes concretas de vida sempre passveis de serem reduzidas a situaes padro. Desconhecia-se, precisamente, que o advento de normas gerais e abstratas, vlidas para toda a sociedade, incrementam a complexidade social em geral, e do direito em especial, sempre abrindo a possibilidade, pelo simples fato de terem sido positivadas, de que pretenses abusivas de aplicao em situaes concretas que, na verdade, nunca se deixaram reger por elas, venham a ser levantadas. Aprendemos a duras penas que racional o saber que sabe da precariedade de nosso prprio saber e busca lidar racionalmente com os riscos que ela acarreta.

    O ponto de partida de Dworkin aqui, portanto, o da crtica ao excesso de racionalidade inconsciente que marcava a viso anterior no s do conceito de cincia mas do prprio conceito de direito, de norma e de ordenamento jurdico, saber que uma norma geral e abstrata nunca regular por si s as situaes de aplicao individuais e concretas, at mesmo pela incorporao de maior complexidade ao ordenamento de princpios que a sua adoo necessariamente significa, ao dar uma maior densidade aos princpios constitucionais bsicos e ao, simultaneamente, abrir novas possibilidades de pretenses abusivas. Assim que para ele, todas as normas, mesmo as regras, que se constitucionalmente vlidas nada mais so do que densificaes desses princpios naquele campo especfico de sua fora irradiadora, sejam sempre aplicadas de modo racional, ou melhor, com a clareza de que, por si ss, nada regulam, pois requerem a intermediao da sensibilidade do intrprete capaz de reconstruir no o sentido de um texto normativo tido como a priori aplicvel, mas aquela especfica situao individual e concreta de aplicao, em sua unicidade e irrepetibilidade, do ponto de vista de todos os envolvidos, levando a srio as pretenses a direitos, as pretenses normativas, levantadas por cada um deles, para garantir a integridade do direito, ou seja, que se assegure na deciso, a um s tempo, a aplicao de uma norma previamente aprovada (fairness aqui empregada no sentido de respeito s regras do jogo, algo prximo do que Kelsen denominava certeza do direito) e a justia no caso concreto, cada caso nico e irrepetvel. nesse contexto que Dworkin levanta a tese da nica resposta correta.

  • A integridade do Direito significa, a um s tempo, a densificao vivencial do ideal da comunidade de princpio, ou seja, uma comunidade em que seus membros se reconhecem reciprocamente como livres e iguais e como coautores das leis que fizeram para reger efetivamente a sua vida cotidiana em comum, bem como, em uma dimenso diacrnica, a leitura melhor luz da sua histria institucional como um processo de aprendizado em que cada gerao busca, da melhor forma que pode, vivenciar esse ideal. Desse segundo sentido decorre a metfora do romance em cadeia.

    Ao levarmos em conta a histria constitucional, podemos ver o que esse duro processo de aprendizado institucional nos ensinou a respeito dos direitos fundamentais igualdade e liberdade. A produtiva tenso constitutiva inerente a esses princpios encontra-se presente em todas as dicotomias clssicas tpicas da modernidade, como pblico e privado, soberania popular e constitucionalismo, republicanismo e liberalismo, etc., pois apenas aparentemente apresentam uma natureza paradoxal. Tambm aqui esses plos efetivamente opostos, so tambm, a um s tempo, constitutivos um do outro, de tal sorte que instauram uma rica, produtiva e permanente tenso, capaz de dotar a doutrina constitucional da complexidade necessria para enfrentar problemas que ela antes nem era capaz de ver.

    No h espao pblico sem respeito aos direitos privados diferena, nem direitos privados que no sejam, em si mesmos, destinados a preservar o respeito pblico s diferenas individuais e coletivas na vida social. No h democracia, soberania popular, sem a observncia dos limites constitucionais vontade da maioria, pois a h, na verdade, ditadura; nem constitucionalismo sem legitimidade popular, pois a h autoritarismo.

    A igualdade do respeito s diferenas inclui e, ao mesmo tempo, exclui. Sempre que afirmamos quem somos ns, os titulares do direito igualdade, fechamos o sujeito constitucional que, conforme nos ensina Michel Rosenfeld e requer o 2 do art. 5 da Constituio da Repblica, h que sempre permanecer aberto ao reconhecimento como igualdade de diferenas antes discriminadas e insustentveis em um debate pblico quando questionadas. A teoria de Dworkin na perspectiva da teoria discursiva do Estado Democrtico de Direito

  • A teoria jurdica de Ronald Dworkin busca superar os desafios e as perspectivas colocadas pelas teorias hermenuticas,35 realistas e positivistas. Dworkin se prope a lidar com o direito de uma perspectiva deontolgica a pressupor a possibilidade e necessidade da fundamentao das decises em termos de correo normativa , atribuindo ao ordenamento jurdico a dupla tarefa de garantir simultaneamente os requisitos de segurana jurdica (fairness e due process respeito aos procedimentos e s regras preestabelecidas) e de justia (correo normativa substantiva, tendo-se em vista o contedo moral dos direitos fundamentais democraticamente positivados):

    De um lado, o princpio da segurana jurdica exige decises tomadas consistentemente, no quadro da ordem jurdica estabelecida. (...) [A] histria institucional do direito forma o pano de fundo de toda a prtica de deciso atual. (...) De outro lado, a pretenso legitimidade da ordem jurdica implica decises, as quais no podem limitar-se a concordar com o tratamento de casos semelhantes no passado e com o sistema jurdico vigente, pois devem ser fundamentadas racionalmente.36

    Concebendo o ordenamento jurdico como composto fundamentalmente por

    princpios, que estruturalmente no buscam esgotar de forma autorreferencial suas possibilidades de aplicao, Dworkin busca no interior do prprio direito as respostas para questes supostamente apontadoras de lacunas no ordenamento (ausncia de regramento especfico). O recurso histria institucional e ao pano de fundo compartilhado de sentidos tambm se faz necessrio mas, ao contrrio da hermenutica, esse arcabouo no deve ser aprendido como tradio inescapvel, j que a prpria atribuio de contedo moral (abstrato e universal) aos direitos fundamentais positivados oferece uma perspectiva crtica um crivo de validade para a considerao das tradies e da possibilidade de sua recepo para a soluo de casos atuais. Dworkin e o realismo moral

    35 Segundo Habermas, a hermenutica (...) resolve o problema da racionalidade da

    jurisprudncia atravs da insero contextualista da razo no complexo histrico da tradio. E, nesta linha, a pr-compreenso do juiz determinada atravs dos topoi de um contexto tico tradicional (HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 248).

    36 HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 246.

  • Valendo-se de uma linguagem prpria da tradio filosfica do realismo moral,37 38 Dworkin pode afirmar que tais direitos humanos (moral rights) existem, isso , seu contedo pode ser considerado verdadeiro39 o que para a teoria de Habermas s pode ser lido como expresso da validade e da legitimidade de tais direitos, j que normas situam-se primordialmente no plano da validade, e no da faticidade:

    Ambos compartilhamos a crtica aos enfoques no cognitivistas. Mas, enquanto o professor Dworkin adota a linguagem do realismo moral, ou pelo menos no encontra nenhuma razo para deixar de faz-lo, eu acredito que se deveria evitar falar sobre fatos morais. Creio que a razo para tanto seja evidente, e gostaria de formular de algum modo o ponto em disputa. No existe nada que corresponda afirmao ningum deveria participar de um extermnio tnico. No h nenhum fato que corresponda a uma afirmao como essa. Tais afirmaes no dizem como so as coisas ou como as coisas esto conectadas entre si (para usar uma expresso do nosso amigo Rorty). Elas nos dizem o que devemos ou no devemos fazer. Em casos como esses, ao invs de levar adiante um discurso que afirma a existncia de fatos, em lugar de dizer: existem tais e tais direitos, prefiro dizer que ns criamos estes e aqueles direitos, dos quais alguns, inclusive, merecem reconhecimento universal.40

    37 Aplicao do realismo aos juzos da tica e, entre outras coisas, aos valores, obrigaes e

    direitos que so apresentados nas teorias ticas. A idia principal ver a verdade moral como algo fundado na natureza das coisas, e no nas reaes humanas, subjetivas e variveis, s coisas. Como acontece ao realismo em outras reas, o realismo moral suscetvel de muitas formulaes diferentes. Podemos dizer que, de uma maneira geral, o realismo tem a aspirao de proteger a objetividade dos juzos ticos (opondo-se ao subjetivismo e ao relativismo); pode equiparar as verdades morais s da matemtica, pode ter a esperana de que elas tenham aprovao divina (...), ou v-las como algo que garantido pela natureza humana (BLACKBURN, S. Realismo moral. In: BLACKBURN, S. Dicionrio Oxford de filosofia. Consultoria da edio brasileira Danilo Marcondes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 336, destacamos).

    38 Jean Piaget considera o realismo moral como a concepo de existncia das regras morais de forma independente dos sujeitos, sendo tpica do segundo estgio de conscincia normativa no desenvolvimento infantil, onde a relao da criana com as normas cunhada autoritariamente (GNTHER, K. The sense of appropriateness: application discourses in morality and law. Albany: State University of New York Press, 1993. p. 115.

    39 DWORKIN, R. Objectivity and Truth: Youd Better Believe It. Philosophy & Public Affairs, v. 25, n. 2, p. 87-139, 1996.

    40 DWORKIN, R.; HABERMAS, J. et al. Impera el derecho sobre la poltica?. Revista Argentina de Teora Jurdica de la Universidad Torcuato Di Tella, v. 1, n. 1, 1999. (grifei):

  • Para ambos os autores, portanto, a razo prtica implica a possibilidade de um ponto

    de vista moral, universalista e deontolgico, indicador da prevalncia normativa do justo sobre o bom, a exigir que a sociedade por meio de suas instituies, no caso do Direito trate a todos os seus membros como merecedores de igual respeito e considerao.41

    Pouco importa o modo como Dworkin entende a relao entre direito e moral: sua teoria dos direitos exige uma compreenso deontolgica de pretenses de validade jurdicas. Com isso ele rompe o crculo no qual se enreda a hermenutica jurdica com seu recurso a topoi historicamente comprovado de um ethos transmitido. Dworkin interpreta o princpio hermenutico de modo construtivista.

    Como podemos perceber, se levarmos em conta as distintas tradies e escolas tericas, o debate sobre a relao entre direito e moral de Habermas e Dworkin redunda, no fim das contas, essencialmente terminolgico.

    Para ambos os autores, portanto, o contedo moral traduzido para o cdigo especificamente jurdico que confere aos direitos fundamentais o status de incondicionalidade em face dos demais bens ou valores sociais. Da incondicionalidade dos direitos resulta seu funcionamento como trunfos em face de possveis abusos justificados com base em polticas de maximizao de finalidades coletivas.

    Ambos compartimos la crtica a los enfoques no cognitivistas. Ahora bien, mientras que el profesor Dworkin adopta el lenguaje del realismo moral, o al menos no encuentra ninguna razn para evitarlo, yo creo que se debera evitar hablar sobre hechos morales. Creo que la razn es evidente y quisiera formular de algn modo el punto en disputa. No existe nada que se corresponda con la afirmacin nadie debera participar en un exterminio tnico. No hay ningn hecho que se corresponda con afirmaciones como sta. Tales afirmaciones no dicen cmo son las cosas o cmo las cosas estn conectadas entre s (para usar una expresin de nuestro amigo Rorty). Ellas nos dicen qu es lo que debemos o no debemos hacer. En estos casos, en lugar de llevar adelante un discurso que afirma la existencia de hechos; en lugar de decir: hay tales y tales derechos, prefiero decir que nosotros creamos estos y aquellos derechos, de los cuales algunos incluso merecen un reconocimiento universal.

    41 HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 252 et seq.

  • Naturalmente a moral, no papel de uma medida para o direito correto, tem a sua sede primariamente na formao poltica da vontade do legislador e na comunicao poltica da esfera pblica. Os exemplos apresentados para uma moral no direito significam apenas que certos contedos morais so traduzidos para o cdigo do direito e revestidos com um outro modo de validade. Uma sobreposio dos contedos no modifica a diferenciao entre direito e moral.42

    A justificao de decises jurdicas com base em princpios de contedo moral,

    portanto, no extrajurdica na medida em que tais contedos possam ser identificados como assimilados aos princpios fundamentais do prprio ordenamento.

    Alm disso, deve-se ressaltar que o fato de Dworkin entender os Direitos Humanos como princpios universais, dotados de contedo moral, no significa que a interpretao e densificao dada a eles pelas diversas ordens jurdicas no possa legitimamente variar. Para o autor torna-se relevante a distino entre interpretaes de boa-f e de m-f atribudas pelos governos aos direitos e s aes justificadas por eles; o compromisso, ao menos em princpio, com o respeito pelos Direitos Humanos demonstrado por um governo ou instituio mostra-se relevante para a interpretao de seus atos.43 O direito humano fundamental , para Dworkin,44 o de ser tratado pelas instituies detentoras de autoridade com uma certa atitude ou postura, qual seja, a que reflita o igual respeito e considerao pela dignidade de cada um.45 A interpretao construtiva 42 HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo

    Brasileiro, 1997. p. 256. 43 Sobre a postura de sistemtico desrespeito pelos direitos humanos na China, cf.

    DWORKIN, R. Taking Rights Seriously in Beijing. The New York Review of Books, v. 49, n. 14, 2002.

    44 DWORKIN, R. Is Democracy Possible Here?: Principles for a New Political Debate. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 2006. p. 35.

    45 Dworkin compreende a dignidade humana como um princpio de duas dimenses, correspondentes ao princpio de que cada pessoa deve ser tratada como portadora de valor intrnseco (como na concepo kantiana de fim em si mesmo), e ao princpio da responsabilidade pessoal, segundo o qual cada pessoa tem especial responsabilidade pela realizao de seus objetivos de vida. (DWORKIN, R. Is Democracy Possible Here?: Principles for a New Political Debate. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 2006. p. 9 et seq.)

  • Em que pese a adoo da terminologia do realismo moral, Dworkin se vale de uma postura construtivista para lidar produtivamente com o princpio hermenutico, de modo a no permitir que as tradies se legitimem de maneira autnoma e acrtica, pois exige a reflexividade tica com base em uma noo universalista de direitos fundamentais ou humanos (moral rights).46

    A atitude interpretativa adotada e descrita por Dworkin funciona do ponto de vista interno, dos prprios intrpretes. Diante da conscincia da condio lingustico-paradigmtica de todo saber, percebe-se que o prprio conceito de interpretao um conceito interpretativo; por isso afirma Dworkin que uma teoria da interpretao uma interpretao da prtica dominante de usar conceitos interpretativos.47 Essa circularidade inescapvel, j que um ponto de vista completamente externo, arquimediano,48 resta implausvel. A prpria ideia de nica resposta correta, claro, no poder fugir a essa circularidade.

    A interpretao construtiva o modelo hermenutico adotado por Dworkin para lidar com obras de expresso humana, em especial o direito. Em contraste com a interpretao cientfica emprica, em que se busca a interpretao de dados fticos, e com a interpretao conversacional, em que a inteno do falante o objeto central, Dworkin aponta a semelhana entre a interpretao de uma prtica social e a interpretao artstica, no sentido de que:

    46 Norberto Bobbio ressalta o carter intraduzvel da distino entre legal rights e moral

    rights. Para o autor a expresso moral rights ocuparia o lugar destinado a direitos naturais na tradio jurdica europeia continental (BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 27). de se ressaltar, entretanto, que muitas vezes problemtica a identificao entre esses termos, e entendemos que, ao menos no caso de Dworkin, faz mais sentido entender moral rights como direitos fundamentais ou direitos humanos, a depender do contexto.

    47 DWORKIN, R. O imprio do direito. So Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 60. 48 A perspectiva filosfica arquimediana seria aquela tpica da meta-tica e de certas

    abordagens da filosofia do direito, como a de Hart, que supostamente estudariam mas no participariam de algum aspecto da vida social. Cf. DWORKIN, R. Harts Postscript and the Point of Political Philosophy. In: DWORKIN, R. Justice in Robes. Cambridge, Mass.: Belknap Press, 2006. p. 141 et seq.

  • Ambas pretendem interpretar algo criado pelas pessoas como uma entidade distinta delas, e no o que as pessoas dizem, como na interpretao da conversao, ou fatos no criados pelas pessoas, como no caso da interpretao cientfica. (...) atribuirei a ambas a designao de formas de interpretao criativa.49

    Os propsitos que esto em jogo na interpretao criativa construtiva das obras de arte

    e das prticas sociais, como o direito, so fundamentalmente os do intrprete, no os do autor. Atribui-se um propsito a um objeto ou a uma prtica, tornando-o o melhor possvel em face de seu contexto temtico. O que no quer dizer que o objeto no imponha limites interpretao; a prpria natureza intersubjetiva, paradigmtica da interpretao vai exigir condies de plausibilidade para qualquer interpretao, especialmente em face de uma histria interpretativa minimamente compartilhada. Sua validao portanto, ao final, discursiva na verificao de racionalidade. Por isso afirma Dworkin que do ponto de vista construtivo, a interpretao criativa um caso de interao entre propsito e objeto.50

    Dworkin retoma assim o debate sobre hermenutica travado entre Gadamer e Habermas51 para identificar, nas crticas desse, o aspecto construtivo da interpretao, verificado na suposio da possibilidade de que os autores do objeto a ser interpretado poderiam tambm aprender com os intrpretes sobre o prprio objeto em questo, em contraposio postura de Gadamer, de subordinao do intrprete ao autor; para Habermas haveria uma via de mo dupla na interpretao.52

    Diante do reconhecimento do carter paradigmtico do conhecimento pelas prprias cincias, como em Thomas Kuhn,53 Dworkin sugere que, ao final, a interpretao criativa construtivamente enfocada nos permite compreender melhor a tarefa de interpretao em qualquer campo do saber, pois toda interpretao tenta tornar um objeto o melhor possvel,54 no contexto do empreendimento travado, segundo seus critrios especficos.

    49 DWORKIN, R. O imprio do direito. So Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 61. 50 DWORKIN, R. O imprio do direito. So Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 64. 51 Essa rica discusso foi de grande relevncia no posterior desenvolvimento da teoria da ao

    comunicativa de Habermas. Cf. HABERMAS, J. A pretenso de universalidade da hermenutica. In: HABERMAS, J. Dialtica e hermenutica. Porto Alegre: L&PM, 1987. p. 26-71.

    52 DWORKIN, R. O imprio do direito. So Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 62, nota n. 2. 53 KUHN, T. S. A estrutura das revolues cientficas. So Paulo: Perspectiva, 1996 54 DWORKIN, R. O imprio do direito. So Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 65.

  • As pessoas traduzem o que outras disseram atravs da mesa de jantar bem como atravs dos sculos por meio de um processo de interpretao construtiva que tem por objetivo no espiar dentro dos crnios, mas sim elaborar da melhor maneira possvel o sentido de suas falas e de outros comportamentos. Trata-se de um processo normativo, e no emprico.55

    A noo de paradigma, ressalta Habermas,56 desempenha uma funo central na

    Teoria do Direito de Dworkin ao formar o pano de fundo de suporte a teorias jurdicas capazes de reconstruir o ordenamento jurdico, sistemicamente estruturado em princpios, de que devem se valer os aplicadores para buscar decises corretas que mostrem o direito como um todo em sua melhor luz, como um empreendimento coletivo legtimo de uma comunidade de princpios, que trate a todos os seus membros como merecedores de igual respeito e considerao.

    Dworkin ressalta que no em qualquer tipo de comunidade que as ideias de nica resposta correta e integridade, baseadas em princpios, tero lugar como elemento integrante de sua moralidade poltica. Num modelo de comunidade de fato, em que as pessoas no se sentem vinculadas por nenhuma responsabilidade em especial, e num modelo de comunidade de regras, em que a responsabilidade recproca se baseia em meras convenes contratuais, o tipo de vnculo existente entre os cidados e de responsabilidade exigvel da comunidade no remete necessariamente a princpios de contedo moral. A postura adotada pelos membros da comunidade de fato pode ser puramente estratgica; na comunidade de regras, o puro pragmatismo balizado por acordos de tipo contratual, vistos como limites ao; apenas numa comunidade de princpios as normas estabelecidas podem ganhar contedo universal e serem vistas como condio de possibilidade para a liberdade e a igualdade, para alm de limites convencionais, e passam a requerer a integridade na compreenso de seus princpios.57

    55 DWORKIN, R. Originalism and Fidelity. In: DWORKIN, R. Justice in Robes. Cambridge,

    Mass.: Belknap Press, 2006. p. 127: People translate what other people have said across the dining table as well as across the centuries by a process of constructive interpretation that aims not at intracranial peeks but at making the best sense possible of their speech and other behavior. That is a normative, not an empirical, process.

    56 HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 261.

    57 DWORKIN, R. O imprio do direito. So Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 252 et seq.

  • Essa leitura de Dworkin sobre o tipo de vnculo intersubjetivo dos cidados e de sua postura diante das normas, bem como sobre o papel dos princpios numa comunidade poltica nos remete teoria dos estgios de desenvolvimento moral, especialmente como desenvolvida por Lawrence Kohlberg, que veremos a seguir. O papel dos princpios Os estgios de Kohlberg

    Os estudos realizados por Lawrence Kohlberg na Universidade de Chicago foram de grande relevncia para o desenvolvimento de um corpo terico analtico empiricamente embasado capaz de comprovar o sentido prtico de teorias morais formalistas. Em sua tese de doutorado, onde estudou o desenvolvimento moral em crianas e adolescentes de 10 a 16 anos,58 Kohlberg ampliou e desenvolveu conceitos sobre o desenvolvimento cognitivo e moral trabalhados por Jean Piaget. Posteriormente, estendeu seus estudos empricos para grupos de crianas e adolescentes de diversas culturas ao redor do mundo, comprovando o carter universal das etapas de desenvolvimento descobertas por ele.

    Trabalhando com a ideia de distintos nveis de percepo do carter heternomo ou autnomo das normas sociais, perceptveis tanto no desenvolvimento dos indivduos quanto no das sociedades, a teoria de Kohlberg delineia a diferena entre os nveis pr-convencional, convencional e ps-convencional (vide Tabela 1), sendo cada nvel subdividido em dois estgios. Para o nosso tema mostram-se relevantes especialmente os dois ltimos nveis, onde podemos localizar as compreenses e teorias normativas59 mais relevantes nas sociedades contemporneas.

    Os aspectos mais relevantes de cada nvel e estgio esto resumidos na seguinte tabela, que vale a pena transcrever:

    TABELA 1

    58 KOHLBERG, L. The Development of Modes of Moral Thinking and Choice in the Years

    10 to 16. Department of Psychology. Chi