Os Donos do Poder: sobre a origem da nação brasileira - Augusto Bruno de Carvalho Dias Leite

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    Os Donos do Poder : sobre a origem da nao brasileira Augusto Bruno de Carvalho Dias Leite

    Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG Vol . 5, n. 2, Mai/Ago - 2013 ISSN: 1984 -6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 34

    Os Donos do Poder : sobre a origem da naobrasileira

    Augusto Bruno de Carvalho Dias LeiteMestrando em Histria pela UFMG

    [email protected]

    RESUMO: Os Donos do Poder: Formao do patronato poltico brasileiro no se trata de um textodescompromissado, fechado em discusses internas academia, mas, sim, de uma obra quepensa o Brasil. Objetiva-se aqui conjecturar sobre a pertinncia da teoria do Estadopatrimonial-estamental brasileiro e seus desdobramentos, discutindo as asseres do autore as crticas recebidas pela teoria faoriana. Partindo da Revoluo do Mestre de Avisportugus para chegar aos anos de ao do ex-presidente Getlio Vargas, em um recorteextenso, Raymundo Faoro prope algo alm da conhecida chave interpretativa Estadopatrimonial-estamental. O jurista-historiador delimita os contornos de uma teoria daorigem da nao brasileira.

    PALAVRAS-CHAVE: Nao, Origem, Faoro.

    ABSTRACT: The Power Owners: The Formation of the Brazilian Patronage Group, written byRaymundo Faoro , is not just an academic text, but rather a book devoted to think aboutthe foundations of Brazil. This article approaches the relevance of the Brazilian patrimonialstate theory and its consequences, debating the author's assertions and and its critics. Fromthe revolution of the Portuguese Master of Avis (1383-1385) to the former PresidentGetlio Vargas Era (1930-1945 and 1951-1954), in a quite extensive time gap, RaymundoFaoro goes further the familiar interpretative key, the patrimonial state. The lawyer-historian outlines a theory of the origin of the Brazilian nation.

    KEYWORDS: Nation, Origin, Raymundo Faoro.

    Voc, meu brasileiro,no acha que j tempo de aprendere de atender quela brava gente

    fugindo caridade de ocasio

    e ao vcio de esperar tudo da orao? 1

    Carlos Drummond de Andrade

    Caso perguntem a um indivduo quem ele , o que o mesmo responde? Recorreesse a sua experincia e, depois de organizar um pouco as lembranas que na mente pairamembaraadas, configura um esboo de identidade, respondendo a seu contento pergunta

    1 ANDRADE, Carlos Drummond de. Prece do brasileiro: um ensaio estilstico. Rio de Janeiro: Jornal doBrasil, 30 de maio de 1970, Caderno B, p. 37

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    um tanto complexa, carregada de um teor ontolgico. Em uma escala macro, a mesmaindagao cabe a uma nao? Exemplo: quem somos ns, ditos brasileiros? Mesmolevando em conta a medida ideolgico-poltica e cultural, ou seja, imaginria do serbrasileiro, deve -se lembrar que a experincia de fato, a experincia poltica e social vivida. Da a pertinncia em anlises dessa experincia.

    Um Estado-nao subentende, obviamente, um Estado e uma nao. So entidadesque informam uma outra quem so. O Estado, enquanto entidade palpvel, materializadaem fronteiras geogrficas, uma estrutura de governo e domnio sobre alguma comunidade,difere da nao. Para o filsofo polons Bronislaw Baczko, a nao amalgamada por umimaginrio social 2 que, enquanto imaginario, agrupa experincias compartilhadas paraconformao, ou legitimao, da mesma. So comunidades imaginrias 3, diz Benedict

    Anderson. Partilhando esse olhar sobre a nao, animando a discusso, assevera JosMurillo de Carvalho que:

    Mais do que qualquer outra comunidade, as naes exigem para suasobrevivncia a construo de uma identidade coletiva paracontrabalanar os muitos fatores de diviso que todas tm de enfrentar. A identidade uma construo feita de vrios ingredientes, em geralcarregados de componentes emocionais.4

    Historiadores, socilogos, antroplogos, juristas, polticos profissionais, diversoshomens se encarregaram de pensar a categoria brasileiro, em outras palavras, a nao

    brasileira. E, assim, ao seu modo, interpretar o Brasil. Raymundo Faoro um deles. Jurista,historiador, mas, acima de tudo um socilogo, logrou obras de grande importncia para ahistoriografia contempornea. Mais do que cientista social que faz histria, u mhistoriador no cultivo da cincia social no seu todo. 5 Em seu texto mais conhecido,OsDonos do Poder: Formao do patronato poltico brasileiro6 , Faoro traa uma estrutura bsica que,como uma capa social rgida, engessa, sufoca uma nao que poderia ser brasileira, mas noo . Sobre essa estrutura, o estamento-patrimonial, Faoro, em entrevista a Jair dos Santos

    Jnior, diz que: [...] o Brasil era dirigido por uma classe dirigente sem conexo com uma

    2 BACZKO, Bronislaw. A imaginao social In: Leach, Edmund et Alii.Anthropos -Homem. Lisboa,Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.3 ANDERSON, Benedict.Imagined Communities , rev. ed.London : Verso Books, 1991.4 CARVALHO, Jos Murilo de. Terra do nunca: sonhos que no se realizam. In:BETHELL, Leslie (Org.).Brasil fardo do passado, promessa do futuro. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002.5 IGLSIAS, Francisco. Historiadores do Brasil. Ed. Nova Fronteira, 2000.6 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formao do Patronato Politico Brasileiro. So Paulo: Globo,2008. A partir de ento, referir-me-ei a obra apenas comoOs Donos do Poder .

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    base, uma classe dirigente que se renovava dentro dela prpria. Esse o estamento, que serenova dentro dele prprio, e se renova por um fenmeno de circulao de elites. 7

    Os Donos do Poder apresenta uma interpretaosui generis das origens8 e dodesenvolvimento de um Estado brasileiro, no de uma nao brasileira, malograda por aodo prprio Estado. Raymundo Faoro diz sobre um Brasil que, engendrado por umaempreitada portuguesa, portugus no deixou de ser.9

    *** primeira edio deOs Donos do Poder , em 195810, edio de pouco sucesso e

    muitas crticas, Faoro responde com uma segunda edio em 197311. Nesse momento, aobra toma corpo, em nmero de pginas, que se amontoam num calhamao dividido emdois volumes; so as provas que o autor arregimenta e quer levar pblico. Provas de um

    crime cometido por um Estado, que recebe do autor a alcunha de patrimonial-estamental.Esse Estado brasileiro levado a julgamento, denunciado com provas, evidncias, que vo

    7 GUIMARES, Juarez (orgs.). Raymundo Faoro e o Brasil. So Paulo: Ed. Fundao Perseu Abramo, 2009.p 99.8 Atenho-me ao sentido benjaminiano referncia ao terico alemo Walter Benjamin do termo,Ursprung . Aqui, origem aquilo que informa um algo que salta de seu incio sua permanncia, desvelando umaestrutura, chave para entendimento de algum processo que subjaz ao observvel em uma narrativa. Ver oPrefcio epistemolgico-crtico de BENJAMIN, Walter. Origem do drama trgico alemo. Belo Horizonte:

    Ed. Autntica, 2011. E GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Histria e narrao em W. Benjamin. Campinas, SP: SoPaulo: Perspectiva / FAPESP / UNICAMP, 1994.9 Peo licena ao leitor para usar a primeira pessoa e dizer que intenciono aqui, nesse pequeno artigo, realizaruma apresentao da teoria do Estado patrimonial-estamental brasileiro de Raymundo Faoro e, porconseguinte, aprofundar em uma questo que, segundo minha leitura, merece discusso, a saber, o lugar danao tanto no vocabulrio de Faoro quanto em sua teoria. Isso, pela via que mais me interessou na leitura deuma obra especfica do autor,Os Donos do Poder : a denncia da distncia entre nao e Estado, e, porconseguinte, ano-realizao de uma relao entre as duas partes; o poltico se ocupando meramente dopoltico, enquanto estamento fechado em si; e, tambm, a desvinculao das origens sociais dos agenciadosdesse estamento: entidade plstica, sem forma, sem identidade nica e, assim, difcil de se concentrar em umconceito. No existe a possibilidade de definir sumariamente o patrimonialismo-estamental faoriano semengess-lo. Portanto, deixo pistas sobre ele em todo o texto, de forma a no conduzir o leitor at umaconceitualizao fechada, minha. Pelo contrrio, minha ambio induzir o leitor a reflexo e instig-lo a irat a obra. Tambm chamo a ateno para o seguinte fato: as lacunas que persistem no presente artigo so,declaradamente, lacunas a serem preenchidas pelos especialistas em Faoro. E tenho a conscincia de que so vrias, as lacunas: a ausncia de anlise das outras obras de Faoro e suas afinidades comOs Donos do Poder ,ausncia de estudos que comparem Faoro com outros autores de matriz weberiana, como Srgio Buarque deHolanda, ou mesmo a incipiente apresentao da crtica ao centro de seu modelo interpretativo. No tiveambio de trazer nenhuma resposta, mas, apenas, indicar questes que, em minha leitura deOs Donos doPoder , devem ser colocadas, especialmente, aos atuais estudiosos da histria brasileira.10 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formao do Patronato Poltico Brasileiro. Rio de J aneiro:Globo, 1958. 271pginas.11 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formao do Patronato Politico Brasileiro. Rio de Janeiro:Globo, 1975. 750pginas.

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    da Revoluo do mestre portugus de Avis ao brasileiro Getlio Vargas. Ao folhear aspginas deOs Donos do Poder , ouve-se esses, os donos do poder, o Estado e o estamento. Anao, essa, sufocada, cala-se.

    O estilo de escrita, fato seguido de fato, a nao que no aparece, sufocam alm danao, tambm o leitor. Ao se enveredar pelo raciocnio de Faoro, o incmodo inevitvel.Um incmodo que se d no por ser desinteressante o que se l, mas por fazer o leitorbrasileiro, flagrar ali, nas pginas, ou provas, a nao silenciada,bestializada 12, diante da forapoltica do estamento, por vezes confundido com o prprio Estado. So vestgios de umpassado reconstitudo em forma de denncia.

    Entendido queOs Donos do Poder no se trata de um texto descompromissado,fechado em discusses internas academia, mas, sim, de uma obra que pensa o Brasil,

    objetiva-se aqui conjecturar sobre a pertinncia da teoria do Estado patrimonial-estamentalbrasileiro mesmo hoje , discutindo as asseres do autor e as crticas recebidas pelateoria faoriana.

    ***No movimento historiogrfico e sociolgico dos anos de 1950 a 1970, perodo de

    escrita da obra em questo, correntes tericas exerciam sobre a intelectualidade seufascnio; evidenciam-se trs: marxismos, weberianismo e estruturalismos. Em especial, os

    marxismos brasileiros pensavam com maior empenho a nao, o Estado e, claro, oscaminhos para revolucionar esse Estado. Faoro discute, ento, nesse ambiente.

    Raymundo Faoro traa um panorama social brasileiro a partir de estruturas, oumesmo de um marxismo bastante analtico, ao estilo de Florestan Fernandes, apropriando-se de um vocabulrio weberiano, instrumentalizando-o sua prpria maneira. Noobstante Faoro negue ser weberiano no prefcio edio de 1973, o registro no dissimulao fato de seu vocabulrio ser. Vocabulrio e conceitos weberianos so, em grande medida,explorados, discutidos, ao modo do autor, isto , adequados realidade brasileira. Ementrevista, ele mesmo diz que talvez nenhum autor tivesse me [ Faoro] sugerido tanto

    como o Weber .13 Weber, de fato, segundo o prprio autor, foi importante terico em suaformao acadmica que, depois de conhecido, tornou complexa as relaes sociaisdicotmicas comuns bibliografia acadmica conhecida por ele nos tempos de faculdade:

    12 Fao referncia especfica a obra que, em alguma medida, concordante com a teoria faoriana, a sab er:CARVALHO, Jose Murilo de. Os Bestializados : o Rio de Janeiro e a Republica que no foi. Rio de Janeiro:

    Companhia das Letras, 1987.13 GUIMARES, Juarez (orgs.). Raymundo Faoro e o Brasil. p. 98.

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    uma bibliografia marcada por um marxismo muito primrio 14, segundo o jurista gacho.Faoro no se alinhou a nenhum grupo terico. Seu esforo foi o de se apropriar dalinguagem das cincias polticas, histria, filosofia, na medida em que essas linguagensfossem pertinentes para explicar a realidade brasileira. Seu lxico , dessa forma, weberiano,marxista, estruturalista, diverso.

    O conceito-chave de sua obra, o patrimonialismo -estamental, , num todo, umacategoria ideal weberiana15. Categoria ideal eleita por estar consoante estrutura de longadurao constatada por Faoro, pois De D. Joo a Getlio Vargas, numa viagem de seissculos, uma estrutura poltico-social resistiu a todas as transformaes fundamentais, aosdesafios mais profundos, travessia do oceano largo. 16 a estrutura patrimonial-estamental, difcil de definir, talvez por isso, alvo de tantas crticas; tanto pelo seu

    significado ideal em Weber, quanto pela no explicitao esquemtica no prprio texto deFaoro. O conceito porta um carter absoluto, quase meta-histrico.

    Uma das mais contumazes crticas ao estamento de Faoro parte da historiografia dematriz marxista17. Essa, no simptica ao pessimismo em relao Revoluo nosentido marxiano do termo que se pode deduzir da obra. Faoro tambm no enxerga asestruturas econmicas determinantes e as superestruturas determinadas, conforme osesquemas do marxismo clssico18, necessrios para explicar o passado brasileiro, entendido

    como feudal pelo mesmo. Faoro no identifica um feudalismo, v um patrimonialismo,dirigido por um estamento. So conceitos por vezes difceis de desdobrar as diferenas,mesmo dentro dos esquemas propostos por Weber. Vejamos um pouco da discussoendurecida em relao aos conceitos utilizados por Faoro:

    A diferenciao entre patrimonialismo e feudalismo (...) nem sempre inequvoca. Zabludovsky, por exemplo, destaca a ambigidade que

    14 GUIMARES, Juarez (orgs.). Raymundo Faoro e o Brasil. p. 98.15 Ver WEBER, Max. Os trs tipos puros de dominao legtima. In: COHN, Gabriel (org).Weber . So Paulo: tica, 1991. WEBER, Max. O conceito de ordem legtima/ tipos de ordem legtima/ justificao da ordemlegtima. In: Metodologia das Cinc ias Sociais . So Paulo: Cortez/ Unicamp, 1992.16 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formao do Patronato Poltico Brasileiro. So Paulo: Globo,2008. p. 819.17 Como salienta Fbio Konder Comparato: claro que a interpretao que Faoro deu da Histria do Brasilirritou profundamente a crtica marxista, pois tornava dispensvel o recurso metodolgico ao esquema da lutade classes. Ver COMPARATO, Fbio Konder. Raymundo Faoro historiador. Estud. av. [online]. 2003, vol.17, n.48, pp. 330-337. ISSN 0103-4014. Disponvel em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340142003000200024&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. 18 Procu ro aqui delinear a diferena entre marxismo clssico ortodoxo em detrimento de um m arxismo aberto

    a reformas, conforme obra de Raymond Aron: ARON, Raymond. O marxismo de Marx. 2. ed. So Paulo: Arx, 2005.

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340142003000200024&lng=pt&nrm=iso&tlng=pthttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340142003000200024&lng=pt&nrm=iso&tlng=pthttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340142003000200024&lng=pt&nrm=iso&tlng=pthttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340142003000200024&lng=pt&nrm=iso&tlng=pthttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340142003000200024&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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    Weber empresta ao termo patrimonialismo. Geralmente, diz a autora, Weber classifica-o como sub tipo de dominao tradicional, ao lado dofeudalismo. s vezes, porm, patrimonialismo tratado por Webercomo sinnimo de dominao tradicional, sendo feudalismo um modode patrimonialismo, identificado com o patrimonialismo estamental. Daa diferenciao feita pela autora entre patrimonialismo em sentido amplo(sinnimo de dominao tradicional, que engloba o feudalismo) epatrimonialismo no sentido estrito (um modo de dominao tradicional,ao lado do feudalismo). Talvez essa ambigidade se deva ao fato, para Weber, de o feudalismopossuir, contraditoriamente, tanto elementos tipicamente patrimoniais como culto fidelidade pessoal ao governante quanto caractersticastipicamente extrapatrimoniais como a complexa e minuciosaestipulao contratual (mesmo que no-escrita, costumeira) de direitos edeveres entre governantes e quadros administrativos.19

    Visto isso, o quo dificil delinear os limites desse conceito, o patrimonial-estamental, afastar-se da obra de Weber e discutir o conceito a partir da obra de Faoro,pensando o que Faoro entendia por Estado patrimonial-estamental, faz-se pertinente.Lembrar que os conceitos propostos por Weber so ideais, ou seja, dados a adequaes, importante para compreender a instrumentalizao dos mesmos pelo autor que, a partirdessas categorias ideias weberianas, determina quem seriam os donos do poder na estruturapoltica brasileira. Faoro se apropria desses conceitos, no como militante, de antemoafeito a um projeto poltico, mas como cientista social, dado ao seu projeto intelectual seFaoro tem ou no um projeto, isso ser discutido adiante. Simon Schwartzman, em sua

    obra Bases do Autoritarismo Brasileiro, na qual o patrimonialismo discutido emprofundidade, evidencia em captulo intitulado Neopatrimonialismo e a questo de

    Estado os diversos usos da terminologia weberiana para compreenso dos pro cessospolticos latino-americanos, especialmente, no caso brasileiro. Faoro um deles. EmOsDonos do Poder , como j citado, latente a dominao exercida por esse estamento,corroborado, ou, nas palavras de Weber, justificado, pelo poder tradicional dopatrimonialismo.

    Ademais, alm das crticas estritamente conceituais, apegadas a um conceitualismoduro, as quais no alcanaram a forma faoriana de emprego das categorias weberianas friza-se, ideais , crticos tm suas ressalvas aos limites de averiguao histrica do suporteterico principal da obra de Faoro, a saber, o estamento-patrimonial. Maria Aparecida

    Azevedo Abreu, em artigo intitulado Raymundo Faoro: Quando Mais Menos 20, lembraas crticas de Antnio Paim e do socilogo Leopoldo Waizbort. Suas crticas vo em

    19 CAMPANTE, Rubens Goyat. patrimonialismo em Faoro e Weber. DADOS Revista de Cincias Sociais.Rio de Janeiro, v. 46, n. 1, 2003.20 ABREU, Maria Aparecida Azevedo: Raimundo Faoro: quando o mais menos, Perspectivas,. SP. V.29,pp. 169-189, 2006.

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    direo ao centro do texto faoriano. Para eles, Faoro fora sua teoria, conformando fatos,elegendo, esquecendo situaes ou acontecimentos. Paim escreve que Faoro ficou topasmado com sua teoria que ofuscado pela magnitude da prpria descoberta oestamento brasileiro tentou provar sua tese a qualquer custo21. Waizbort diz quepoderamos dizer, um pouco provocativamente, que Faoro possui sua histria j pronta

    de antemo. 22 Diz mais, em referncia obra Machado de Assis: a pirmide e o trapzio, naqual Faoro discute o segundo reinado por um olhar machadiano, procurando localizar ofuncionamento do estamento nesse perodo chave, quando da conformao do estamentopropriamente brasileiro sem perder a origem lusitana , Waizbortaponta que Faoro v oque Machado no v.

    As elucubraes acusativas supracitadas adentram o terreno da teoria da histria.

    Pensar que Faoro foi ambicioso e, em suas centenas de pginas de fatos atrs de fatos,tentou de forma enciclopdica, como um positivista rankeano23, dar conta de uma verdadefactual, tentador. Ou mesmo acusar Faoro de tecer uma narrativa ideologizante, nosentido durkheimiano do termo, urdindo uma trama de verdade frgil. Tais acusaes soinaveriguveis, na medida em que se entende, assim como informa o historiador JosCarlos Reis, a impossibilidade de iseno em um discurso, seja ele qual for; serideologizante faz parte de um bom processo argumentativo. Em sua obra A Histria entre a

    Filosofia e a Cincia , Reis, discutindo o esforo historicista de afastar-se da filosofia, o qualprocura aproximar-se das cincias sociais, como cincia verdadeira, informa sobre aimpossibilidade de se abster de uma filosofia da histria. Ela estaria subjacente em qualquertexto que narra alguma histria.

    Alm do j dito, Faoro impede o leitor atento de cair nessa tentao simplista,demarcando em sua obra suas impresses dos fatos narrados. A especial leitura do primeiroe do ltimo captulo deOs Donos do Poder no deixam dvida: Faoro interpreta o Brasil.Neles, o autor explicita seu objetivo, a saber, por seus fatos apresentados, ou provas,delimitar os contornos de um Estado brasileiro patrimonial-estamental, paulatinamente.

    Dentro da discusso conceitual e terica, sem fugir da proposta faoriana, a cientistapoltica Ktia M. Barreto aclara outra questo colocada pela crtica: quem seria esse corposem rosto, o to falado estamento? O possvel intento de Faoro em no explicitar quem oestamento, desenvolvido por Barreto nos seguintes termos:

    21 Ver PAIM, Antonio. A querela do estatismo. 2. ed. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1994.22 WAIZBORT, L. Influncias e inveno na so ciologia brasilei ra (desiguais porm combinados). In:

    MICELI, S. O que ler na cincia social brasileira, 2002. p 85 174.23 REIS, Jos Carlos. Histria entre a filosofia e cincia. 4 ed. Belo Horizonte: Autntica, 2004.

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    O que parece estar subjacente ao raciocnio de Faoro na constituio darelao estamental que no interessa tanto quem a constitui, at porqueos atores vo sendo substitudos durante a histria. Mas como seconstitui. As prticas que so relevantes.24

    A partir da leitura total da obra que se pode construir uma idia de o que seria

    esse estamento. Faoro no determina de forma clara quem o estamento, mas trata decomo funciona, com quem se relaciona, a quem interessa a sua existncia e, especialmente,o que realizou e tem realizado esse estamento dentro da histria brasileira; sensivelmentepercebe as dissimulaes e o uso de mscaras no jogo poltico25. Explicita alguns dessesatores, aponta-os, a partir de um acontecimento esboado, identificando quem est fazendoparte do corpo estamental num certo momento poltico da histria, apropriando-se daestrutura de poder tradicional na poltica lusitana-brasileira, o estamento. Segundo Faoro,

    assim se d a constituio do Estado brasileiro. Resta aqui, ento, rememorar onde, naobra, se demarca de melhor forma essa incompreendida estrutura estamental.Partindo da chamada Revoluo Portuguesa do Mestre de Avis, quando uma

    nobreza se alia ao Rei por um processo de negociao, Faoro averigua uma camada depoder que aos poucos delimita seus contornos. Tal estrutura de poder, assegurada porprivilgios jurdicos [...] pela lei ou pela tradio 26, seguiu como uma capa social rgida,nas palavras do prprio autor, perene mas plstica sabendo adequar-se as demandas emovimentos da poltica e sociedade. Essa estrutura, o estamento, como j discutidoanteriormente, so atores diversos: instituies privadas, do Estado, grupos econmicos,polticos, aliados ou legitimados pelo Estado e suas tradies. Criam, esses atores, relaoprofcua com o patronato, o Estado, engendrando uma autarquia chamada Estadopatrimonial-estamental. Essa estrutura no potica, no cria ou recria nada de si para fora-de-si; fechada em si, pensa apenas em si. O estamento pensa em si e no Estado; o Estadopensa em si e, para tanto, preocupa-se com o bem-estar do estamento.

    So de fato atores diversos e mutveis, parte de um mesmo corpo, o estamento.

    Para essa identidade comum funcionar, preciso entender o seguinte: ao se tornar partedessa estrutura estamental, os atores desvinculam-se de sua origem, tornando-se parte doEstado patrimonial-estamental, perdendo assim sua identidade original para conformar-se nova, impossibilitando uma representatividade da origem, desmantelada pela fora doestamento. A denncia central de Faoro essa, a saber, que h uma ruptura entre o Estado

    24 BARRETO, Ktia M. Um projeto civilizador: revisitando Faoro. Lua Nova, So Paulo, n. 36, 1995.25 A ttulo de exemplo: Getlio Vargas, na multiplicidade de papis que lhe querem impor, tem o seuprprio. Ver FAORO, R aymundo. Os Donos do Poder: Formao do Patronato Politico Brasileiro. p. 705.26 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formao do Patronato Politico Brasileiro. p. 261.

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    e a nao, mesmo quando o Estado composto por entes, classes, originrias da naocomo j dito. Assim foi, tambm, fundado o Estado portugus, de acordo com Faoro.Uma realidade transportada at o outro lado do Atlntico, aqui fazendo morada epermanecendo; trabalhando em prol dessa ruptura, malogrando o advento de uma naode fato brasileira. As tentativas de dilogo entendido aqui como os momentos da histriabrasileira em que a nao fala ou tenta falar, quando no geme ou grita foram violentamente extinguidas por parte do Estado, seja o portugus, nos idos da colonizao,ou mesmo o brasileiro, quando o estamento e seu justificador, o Estado, so questionados.1817 no Recife, 1824 e seus confederados nordestinos, so exemplos por Faoro citados;reaes espasmdicas de antigas elites de um Brasil que nunca houve. O Estado, pela

    cooptao sempre que possvel, pela violncia se necessrio, resiste a todos os assaltos,

    reduzido, nos seus conflitos, conquista dos membros graduados de seu Estado-maior. 27 Esse afastamento entre nao e Estado, alm da desvinculao do funcionrio do

    estamento e sua origem, so pontos em que o historiador-jurista se ancora. Faoro constatamovimentos de contestao. Mas os mesmos no prevalecem e, a cada movimentorevolucionrio do estamento, a nao no se pronuncia. Golpes de Estado, militares nopoder, alianas oligrquicas, coronelismo so assistidos por uma nao sem voz, impotente,castrada pelo Estado estamental-patrimonial. EmOs Donos do Poder , o silncio dessa nao

    o maior argumento do autor para corroborar sua tese.O patronato no , na realidade, a aristocracia, o estamento superior, maso aparelhamento, o instrumento em que aquela se expande e se sustenta.Uma circulao de seiva interna, fechada, percorre o organismo, ilhadoda sociedade, superior e alheio a ela, indiferente sua misria. O que estfora do estamento ser a cera mole para o domnio, enquanto esta, caladae medrosa, v no Estado uma potncia inabordvel, longnqua, rgida.28

    E sobre a nao, o povo, pouco citado emOs Donos do Poder , diz ainda Faoro:E o povo, palavra e no realidade dos contestatrios, que quer ele? Esteoscila entre o parasitismo, a mobilizao das passeatas sem participaopoltica, e a nacionalizao do poder, mais preocupado com os novossenhores, filhos do dinheiro e da subverso, do que com os comandantesdo alto, paternais e, como o bom prncipe, dispensrios de justia eproteo. A lei, retrica e elegante, no o interessa. A eleio, mesmoformalmente livre, lhe reserva a escolha entre opes que ele noformulou.29

    Durante o perodo colonial, o Brasil permanece como pedao da estruturaestamental portuguesa. Os impostos e riquezas enviados Coroa so os mesmos que

    27 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formao do Patronato Politico Brasileiro. So Paulo: Globo,2008. p. 837.28 ________________. Os Donos do Poder: Formao do Patronato Politico Brasileiro. p. 449.29 ________________. Os Donos do Poder: Formao do Pat ronato Politico Brasileiro. p. 837.

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    saldam os gastos e penses devidos aos fidalgos e dependentes do corpo estatal portugus.E, com a transmigrao da corte portuguesa para as terras brasileiras, tal estrutura tambm transmigrada. a partir de ento que, segundo Faoro, funda-se o Estadopatrimonial brasileiro. Referindo-se ao perodo imperial, Faoro evidencia que:

    O predomnio do soberano, legitimado no Poder Moderador, acentralizao articulada, na corte, pela vitaliciedade, o voto manipuladono criam, como entidades feitas de vento, o sistema poltico. Esteassenta sobre a tradio, teimosa na sua permanncia de quatro sculos,triturando, nos dentes da engrenagem, velhas ideias importadas (...).Sobre as classes que se armam e se digladiam, debaixo do jogo poltico, vela uma camada poltico-social, o conhecido e tenaz estamento,burocrtico nas suas expanses e nos seus longos dedos. Nao, povo,agricultura e comrcio obedecem a uma tutela, senhora e detentora dasoberania.30

    O sc. XIX, da chegada da corte portuguesa ao perodo do Imprio , assim, crucialpara compreenso do estamento-patrimonial como elemento tpico da poltica portuguesa-brasileira (vide a quantidade maior de captulos dedicados ao perodo emOs Donos do Poder ).Nesse momento, quando da transmigrao da Coroa, na viso de Faoro, uma possvelemancipao em relao ao modelo estamental-patrimonial aos moldes portugueses malograda. Uma elite formada j ensaiava empreender, tal qual se observa em alguns paseshispano-americanos, um movimento de autonomia econmica e poltica. So enumerados,na prpria obra, os diversos movimentos de contestao aos poderes centralizadores nosfins do sc. XVIII; portugueses ou da estrutura colonial. Mas, com a transmigrao daCoroa e, conseguinte, o advento do Estado brasileiro autnomo em relao Coroaportuguesa, paradoxalmente engendrado por elites portuguesas, a estrutura polticatransmigrada se sedimenta. Estrutura essa que corroborada por Jos Murillo de Carvalho,historiador, autor de importante obra sobre o Imprio brasileiro. Jos Murillo destaca operodo como lugar de uma dialtica da ambiguidade, quando, autorizados pelo poder

    moderador, a figura imperial, grupos partidrios, grupos polticos, classistas ou no,

    alternavam-se no poder31, estrutura que Faoro chama de estamento. Ainda na viagem redonda proposta pelo autor, ao proclamar -se a Repblica, nada

    muda. Os Militares, um dos feitores da assim chamada proclamao, assediam o estamento,adentrando-o, para permanecerem por um tempo significativo. Sem perder o total controledesse estamento, grupos econmicos, especialmente os cafeeiros, alternam-se no poder,ainda numa dialtica da ambiguidade: a chamada poltica dos governadores.

    30 FAORO, Raymundo. Os donos do Poder: Formao do Patronato Politico Brasileiro. p. 444 - 445.31 Ver Jos Murillo de Carvalho, I A Construo da Ordem, II Teatro de Sombras, 2 ed., Rio de Janeiro,Editora UFRJ/Relume Dumar, 1996.

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    com Getlio Vargas, apenas, que, na viso de Faoro, se discute o Brasil: produzido um discurso e uma praxis poltica brasileira; ou seja, uma discusso terica arespeito do Brasil e uma prtica poltica nos termos dessa teoria so ensaiadas. Mesmo queGetlio ainda no rompa com a estrutura patrimonial-estamental, o pai dos pobresaproxima o Estado da nao, fenmeno nico, at ento, constatado por Faoro em suareconstituio do que se passou no Brasil, do dito achamento Repblica.

    Essa simpatia ao projeto varguista, talvez oriunda de um positivismo gacho, pois oautor era gacho, aquiesce em alguma medida com o olhar faoriano sobre o Brasil32. Opositivismo gacho tradicionalmente alinhado idia da ao do Estado comocoordenador e disciplinador dos interesses coletivos palavras de Getlio , provedorde um equilbrio supraclassista. Quando esse Estado age de forma a coordenar os interesses

    da nao, promovendo uma aproximao entre as duas partes, Faoro tem elogios. Quandono, o autor averigua o caos, ou a atuao nociva do estamento, preocupado com assuntosintestinos dinmica de seu funcionamento, mantendo o distanciamento entre o Estado ea nao. Nesses termos, pensando Faoro como politicamente simptico ao projetopositivista gacho, em sntese: o Estado seria o problema, pois, no Estado residiria asoluo. Por isso um estudo to profundo, um olhar to preocupado com o histrico efuncionamento da estrutura do Estado brasileiro emOs Donos do Poder .

    *** Aps essa breve anlise, objetivando traar as balizas tericas propostas por Faoro

    para uma interpretao do Brasil, fica a pergunta: avergua-se esse Brasil faoriano?De fato, Faoro animou e anima as discusses acerca da identidade brasileira

    enquanto algo a ser pensado e repensado, reflexo pertinente para confrontar o serbrasileiro de outrora e o de hoje. Se no temos ainda uma nao que se relaciona de formaintensa com o Estado que, em grande medida, confere a ela identidade, a teoria faorianaainda instrumento eficaz de anlise da realidade brasileira.

    Consoante viso do texto faoriano que se presta aqui, Bernardo Ricupero eGabriela Ferreira, em artigo intitulado Raymundo Faoro e as interpretaes do Brasil,

    sintetizam assim, a origem do Estado patrimonial-estamental brasileiro: Faoro, como outros intrpretes da experincia brasileira e latino-americana, considera que conviveriam no pas, lado a lado, duassociedades distintas. No entanto, diferentemente, por exemplo, deEuclides da Cunha que entende a oposio entre litoral e serto combase em determinantes geogrficas, Os Donos do Poder a explicita apartir de fatores sociais, em particular, a ao do estamento burocrtico

    32 Ver BOSI, Alfredo. Dialetica da colonizacao. 3. ed. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1998. p 306.

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    ao longo da histria brasileira. Expresso da civilizao europia, agiusobre o ambiente americano sem, contudo, transform-lo inteiramente.Estaria a a origem da permanente tenso entre a metrpole e a colnia,o Estado e a nao no Brasil.33

    As armadilhas trgicas que o povo brasileiro sofreu foram frutos dos privilgios e

    da ganncia da minoria dominante 34, salienta o historiador Jos Honrio Rodrigues. Anuindo a essa ideia, Faoro, com linguagem barroca, fala de Quatro sculos de hesitao e

    de ao, de avanos e recuos, de grandeza e vacilao. 35 Esses dois, Estado e nao,governo e povo, dissociados e em velado antagonismo, marcham em trilhas prprias 36,num rumo mesmo. uma nao que no existe em um Estado que no se deixa existir emsua completude, como ncora de uma nao. So duas partes que se buscam, em contnuaprocura recproca. Uma nao malograda e um Estado patrimonial-estamental. Uma

    imagem que Raymundo Faoro traa com linhas fortes.Essa comunidade imaginria que, para solver seus problemas, precisa do

    ancoramento do Estado, deve, segundo Faoro, devagar e urgentemente 37 traar umhorizonte no qual o Estado deixe de se retro-alimentar, deixe de pensar apenas em si epense a nao. Talvez fosse esse o projeto faoriano, que, como um promotor pblico,denuncia a sufocante realidade da impotente nao brasileira ao seu modo e espera que amesma, ao folhear sua obra, perceba a medida real de sua denncia, relacionada

    experincia dessa nao malograda. Como j dito,Os Donos do Poder no um textodescompromissado, uma obra que pensa o Brasil e, do mesmo, demanda ao.

    Recebido em: 07/05/2012 Aprovado em: 19/06/2012

    33 RICUPERO, B. ; FERREIRA, G. N. . Raymundo Faoro e as interpretaes do Brasil. Perspectivas (SoPaulo), v. 28, p. 37-55, 2005.34 RODRIGUES, Jos Honrio; RODRIGUES, Leda Boechat. Ensaios livres. So Paulo: Im aginrio, 1991.p. 4.35 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formao do patronato poltico brasileiro. p. 114.36 ________________. Os Donos do Poder: Formao do patronato poltico brasileiro. p. 114.37 Conforme a cano Todo o Sentimento de Chico Buarque de Holanda. Ver HOLANDA, Chico

    Buarque de. Francisco. Chico Buarque, Cristvo Bastos, Edu Lobo, Vincius Canturia, Joo Donato,composies; Chico Buarque e Vin cius Canturia, vozes. So Paulo: BMG Ariola, 1987.