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2553 OS FRANCISCANOS E O ENSINO DA TEOLOGIA NA UNIVERSIDADE, EM PORTUGAL, AO TEMPO DE D. DINIS Teresinha Maria Duarte Universidade Federal de Goiás RESUMO No documento de petição da criação de um Estudo Geral em Portugal, de 12 de novembro de 1288, foram signatários: o abade de Alcobaça, o Prior de Santa Cruz de Coimbra, o Prior de São Vicente de Lisboa, o Prior de Santa Maria de Guimarães secular, o Prior de Santa Maria de Alcáçova de Santarém, e os Reitores das Igrejas de São Leonardo da Atouguia, de São Julião, de São Nicolau, de Santa Iria, de Santo Estêvão de Santarém, de São Clemente de Loulé, de Santa Maria de Faro, de São Miguel, de Santa Maria de Sintra, de Santo Estêvão de Alenquer, de Santa Maria, São Pedro, de São Miguel de Torres Vedras, de Santa Maria de Caya, da Lourinhã, de Vila Viçosa, de Azambuja, de Sacavém, de Estremoz, de Beja, de Mafra e do Mogadouro. Os prelados que faziam a petição eram motivados por dois objetivos, o conhecimento das leis, para que a República fosse bem governada no tempo da guerra e da paz e facilitar os estudos daqueles que desejassem seguir o estado clerical. Tinha-se como objetivo produzir conhecimentos que viessem contribuir para o esclarecimento das competências em âmbito espiritual e em âmbito temporal, evitando conflitos entre a Igreja e o Rei e que também afastassem o perigo das heresias. A fundação da Universidade foi, na verdade, uma empresa que contou com o esforço conjunto do clero e do rei e sua fundação só ocorreu em 1º de Março de 1290, mediante um diploma real e o reconhecimento pontifício ocorrido em 9 de Agosto daquele ano, quando o papa Nicolau IV expediu a bula “Dilectis filiis”, que, entre tantas coisas que mandava e ordenava acerca do funcionamento daquele Estudo Geral, permitia-lhe conceder grau de licenciados a estudantes de vários saberes, exceto Teologia. Entretanto, para José Antunes a Universidade não teria funcionado sem o curso de Teologia. Ele está convicto que a Faculdade de Teologia existiu, em Portugal, ligada à Universidade desde o ano de 1290. No seu entender, a Faculdade de Teologia teria sido confiada às Ordens Mendicantes (Franciscanos e Dominicanos). De acordo com Frei Fernando Félix Lopes, em Lisboa, já existia escola de Teologia desde 1277, a qual ainda se encontrava em funcionamento em 1292, também pondera que, se fora de Portugal, as escolas dos conventos franciscanos eram escolas públicas, mais deveria ser em Portugal, onde havia tanta necessidade de escolas. Desta forma, em Portugal, os Menores estariam tomando parte, ativamente, juntamente com os Pregadores, na formação teológica do clero, inclusive do clero secular. Estariam contribuindo para tornar conhecidos os cânones do IV Lateranense e estariam contribuindo para uma reforma da Igreja, na cabeça e nos membros, como se dizia à época. Em 1309, quando, por questões estratégicas de povoamento da cidade de Coimbra, D. Dinis transferiu a Universidade que criara em Lisboa, para esta outra cidade, em sua carta fundando e estabelecendo em Coimbra o Estudo Geral, o monarca português queria que os frades Pregadores e os Menores ensinassem a sacra pagina, ou seja a santa Teologia, em seus conventos, para que a Fé Católica, como muro inexpugnável, fosse defendida daqueles que contra a mesma quisessem se colocar. Sem dúvida que, nas suas preocupações, a ocupar o primeiro lugar, estaria entre todas as Faculdades, a de Teologia, cadeira fundamental na formação do clero. Tarefa esta, por demais delicada que deveria ser confiada a gente competente como o eram os frades Menores e os Pregadores. Entretanto, não foi no espaço da cidade Alta, onde se instalou a Universidade, que se instalou o ensino da Teologia, este seria ensinado nos conventos dos Pregadores e dos Menores, os quais ficavam no arrabalde da cidade. Pode-se afirmar que D. Dinis entendeu que era da competência da Igreja o ensino da Teologia e que as Ordens Mendicantes, em especial os Franciscanos, tinham melhores aptidões em ministrá-la, colaborando, assim, para a formação do clero português do começo do século XIV.

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OS FRANCISCANOS E O ENSINO DA TEOLOGIA NA UNIVERSIDADE, EM PORTUGAL, AO TEMPO DE D. DINIS

Teresinha Maria Duarte

Universidade Federal de Goiás

RESUMO No documento de petição da criação de um Estudo Geral em Portugal, de 12 de novembro de 1288, foram signatários: o abade de Alcobaça, o Prior de Santa Cruz de Coimbra, o Prior de São Vicente de Lisboa, o Prior de Santa Maria de Guimarães secular, o Prior de Santa Maria de Alcáçova de Santarém, e os Reitores das Igrejas de São Leonardo da Atouguia, de São Julião, de São Nicolau, de Santa Iria, de Santo Estêvão de Santarém, de São Clemente de Loulé, de Santa Maria de Faro, de São Miguel, de Santa Maria de Sintra, de Santo Estêvão de Alenquer, de Santa Maria, São Pedro, de São Miguel de Torres Vedras, de Santa Maria de Caya, da Lourinhã, de Vila Viçosa, de Azambuja, de Sacavém, de Estremoz, de Beja, de Mafra e do Mogadouro. Os prelados que faziam a petição eram motivados por dois objetivos, o conhecimento das leis, para que a República fosse bem governada no tempo da guerra e da paz e facilitar os estudos daqueles que desejassem seguir o estado clerical. Tinha-se como objetivo produzir conhecimentos que viessem contribuir para o esclarecimento das competências em âmbito espiritual e em âmbito temporal, evitando conflitos entre a Igreja e o Rei e que também afastassem o perigo das heresias. A fundação da Universidade foi, na verdade, uma empresa que contou com o esforço conjunto do clero e do rei e sua fundação só ocorreu em 1º de Março de 1290, mediante um diploma real e o reconhecimento pontifício ocorrido em 9 de Agosto daquele ano, quando o papa Nicolau IV expediu a bula “Dilectis filiis”, que, entre tantas coisas que mandava e ordenava acerca do funcionamento daquele Estudo Geral, permitia-lhe conceder grau de licenciados a estudantes de vários saberes, exceto Teologia. Entretanto, para José Antunes a Universidade não teria funcionado sem o curso de Teologia. Ele está convicto que a Faculdade de Teologia existiu, em Portugal, ligada à Universidade desde o ano de 1290. No seu entender, a Faculdade de Teologia teria sido confiada às Ordens Mendicantes (Franciscanos e Dominicanos). De acordo com Frei Fernando Félix Lopes, em Lisboa, já existia escola de Teologia desde 1277, a qual ainda se encontrava em funcionamento em 1292, também pondera que, se fora de Portugal, as escolas dos conventos franciscanos eram escolas públicas, mais deveria ser em Portugal, onde havia tanta necessidade de escolas. Desta forma, em Portugal, os Menores estariam tomando parte, ativamente, juntamente com os Pregadores, na formação teológica do clero, inclusive do clero secular. Estariam contribuindo para tornar conhecidos os cânones do IV Lateranense e estariam contribuindo para uma reforma da Igreja, na cabeça e nos membros, como se dizia à época. Em 1309, quando, por questões estratégicas de povoamento da cidade de Coimbra, D. Dinis transferiu a Universidade que criara em Lisboa, para esta outra cidade, em sua carta fundando e estabelecendo em Coimbra o Estudo Geral, o monarca português queria que os frades Pregadores e os Menores ensinassem a sacra pagina, ou seja a santa Teologia, em seus conventos, para que a Fé Católica, como muro inexpugnável, fosse defendida daqueles que contra a mesma quisessem se colocar. Sem dúvida que, nas suas preocupações, a ocupar o primeiro lugar, estaria entre todas as Faculdades, a de Teologia, cadeira fundamental na formação do clero. Tarefa esta, por demais delicada que deveria ser confiada a gente competente como o eram os frades Menores e os Pregadores. Entretanto, não foi no espaço da cidade Alta, onde se instalou a Universidade, que se instalou o ensino da Teologia, este seria ensinado nos conventos dos Pregadores e dos Menores, os quais ficavam no arrabalde da cidade. Pode-se afirmar que D. Dinis entendeu que era da competência da Igreja o ensino da Teologia e que as Ordens Mendicantes, em especial os Franciscanos, tinham melhores aptidões em ministrá-la, colaborando, assim, para a formação do clero português do começo do século XIV.

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TRABALHO COMPLETO Os Franciscanos ou Ordem dos Frades Menores se originaram de um movimento penitencial e

de pregação da penitência de cunho laico e que deu origem a uma fraternidade de penitentes ao redor de Francisco de Assis, no início do século XIII. Na primavera de 1209 ou 1210, receberam a aprovação oral por parte do Inocêncio III e, em 1223, receberam do papa Honório III a aprovação definitiva de sua regra. O processo de transição de uma fraternidade – composta por frades leigos, sacerdotes e até intelectuais – para uma ordem religiosa, foi um processo mais ou menos longo, concluindo-se por volta de meados do século XIII, quando se integrou ao conjunto das ordens mendicantes.

Frei Gualter e Frei Zacarias de Roma e seus companheiros, foram os primeiros missionários franciscanos em Portugal; chegaram ali, em 1217; depois do Capítulo da Ordem realizado, em Assis, na festa de Pentecostes daquele ano, e que enviou os frades em missão, fora da Itália, para a pregação da pobreza e da penitência.1 Frei Gualter e seu(s) companheiro(s) se instalam em Guimarães e Frei Zacarias com seu(s) companheiro(s), em Alenquer, com o apoio da rainha D. Urraca e da infanta D. Sancha, respectivamente.

Quando chegaram a Portugal, os primeiros Franciscanos não causaram boa impressão, pois eram pobres e andrajosos, entretanto, com o tempo e a sua muita piedade começaram a ganhar a admiração e a simpatia do povo. Em Guimarães mesmo, a população quis tê-los mais próximo da vila, o quê resultou na primeira mudança do convento, feito de ramos de árvore em paliçadas, com teto de colmo – como as casas dos pobres – ainda na Fonte Santa, na Serra da Penha. Mudaram, então, para Vila Verde, local que ficava entre o antigo eremitério e a vila. A razão da mudança, ao que parece, teria sido o bálsamo da caridade que os frades espargiam e que os habitantes da cidade desejavam mais perto de si.2

Em Alenquer, os Franciscanos impressionavam a infanta D. Sancha com a sua pobreza, pois as crônicas antigas dizem que a Infanta os fez chamar para ouvi-los, depois, teve tanta familiaridade com eles que não apenas encabeçou a fundação de um convento deles, naquela vila, como tinha, em sua casa, alguns hábitos para que, quando eles lá chegassem, molhados, pudessem trocar.3

Alexandre Herculano, ao falar da entrada dos Franciscanos em Portugal, além de considerá-los uma “ordem nova” os considerou uma ordem diferente das ordens antigas. Para ele, a situação do clero regular, em Portugal, era bastante semelhante à situação do mesmo na Europa, como um todo. Desde o século X a disciplina monástica afrouxou e a corrupção imperava, apesar das sucessivas reformas dos séculos X e XI.4 O autor traçou, com cores sombrias, a realidade do clero regular português à chegada dos Menores em Portugal:“As congregações antigas eram corpos privilegiados, ricos, poderosos e, portanto, ligados naturalmente à nobreza”.5 Riqueza, privilégios e poder: pouca ou nenhuma santidade.

Além do fato do clero ser rico e ligado à nobreza, tinha também um peso político adverso à centralização monárquica. José Mattoso parece concordar com Herculano quanto à situação do clero, em Portugal, no século XIII. Embora, o autor não comente os seus vícios, deixa claro que a “época de ouro” do monaquismo, em Portugal, aconteceu entre o final do século XI e o final do século XII. Mattoso prefere tratar da conjuntura social e política adversa, bem como das mudanças da conjuntura eclesial e da falta de habilidade do clero regular em se adaptar à nova realidade e em responder aos novos desafios eclesiais.6

1. Cf. Fr. Fernando F. LOPES, OFM. “Franciscanos de Portugal antes de formarem Província independente Ministros Provinciais a que obedeciam”. In. ACADEMIA Portuguesa da História. Coletânea de Estudos de História e Literatura. Fontes Históricas e Bibliografia Franciscana Portuguesa. Lisboa. 1997. V. II. p. 14. 2. Cf. Fr. Manoel da ESPERANÇA. História Seráfica da Ordem dos Frades Menores na Província de Portugal. Lisboa.Officina Craesbekiana. 1656. Parte I e II p. 141. A partir de agora, História Seráfica I e II. 3. Cf. Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285). (editada por José Joaquim Nunes). Coimbra. Imprensa Universitária. 1918. Volume I. p. 16; História Seráfica I. Op. cit. p. 68 e 70. 4. Alexandre HERCULANO. História de Portugal. Desde o começo da monarquia até o fim do reinado de Afonso III. Amadora. Bertrand. 1980. Tomo II e III. p. 304. 5. Idem. p. 304. 6. Cf. José MATTOSO. Portugal Medieval. Novas interpretações. 2. ed. Lousã. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1992. pp. 101-122; 389-408 e seguintes.

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A conjuntura social e política, em Portugal, foi marcada pela crise que envolveu o país desde o começo do reinado de Sancho I, devido às invasões almóadas, em 1184 e em 1190-1191; uma série de maus anos agrícolas entre 1190 e 1210, acompanhados de fome e peste; e, ainda, a governança de D. de Afonso II, baseada no processo legislativo e na supremacia dos poderes régios. A isto se juntavam mudanças nos meios eclesiásticos: como a decisiva supremacia episcopal e do clero secular sobre o monástico, especialmente pela eficiência de sua organização e da sua máquina administrativa e pelo conhecimento do Direito romano e canônico; além da perda da pujança dos eremitas e de dinamismo dos movimentos monásticos, além dos patronos se tornarem mais ciosos de seus direitos sobre os mosteiros.7

Completavam o quadro: as dissensões entre os Crúzios, o enriquecimento dos monges de Alcobaça e a incapacidade do monaquismo beneditino de se fazer presente fora da região senhorial de Entre Douro e Minho, isto é, em regiões de fronteira, como o Sul recém saído do domínio muçulmano. Como se vê, o clero, em Portugal, além de oportunista, optava por um estilo de vida religiosa baseado na “estabilidade, tradicionalismo e conservadorismo”.8

E as Ordens Militares, segundo Joaquim Veríssimo Serrão, tiveram duas linhas de força: uma guerreira e outra de povoamento.9 Depreende-se desta observação, que tiveram seus dias de glória no transcorrer do século XII.

Mas, em um ambiente religioso como aquele, que imperava na Cristandade, no primeiro quartel do século XIII, não é de se admirar que houvesse, em Portugal, também, pessoas sequiosas por uma vida de maior perfeição, como em outras partes da Cristandade. Entendo que seja nisto que reside a aceitação que os primeiros Franciscanos encontraram entre as gentes portuguesas.

Se a vida pobre, a pregação, o exercício da caridade cristã e a pureza de vida foram fatores que tornaram os Franciscanos benquistos junto à população; por outro lado, a atitude despretensiosa dos mesmos em relação às querelas pelo poder e por terras os tornava, ao mesmo tempo, diferentes do clero local – quer o regular ou o secular – e os fazia parecer inofensivos ao poder real, cioso para controlar o poder. A postura daqueles irmãos os limitava ao âmbito do poder espiritual, fator importante em uma sociedade onde as desavenças oriundas da intromissão do espiritual na esfera do temporal e vice-e-versa eram constantes.

Assim, eles não representavam nenhum perigo para o poder temporal, encabeçado pelo Monarca português; diferentemente dos Dominicanos – uma ordem nova, também, e que chegou a Portugal naquela mesma época – mas que se meteram a estabelecer leis para o Reino, entrando em conflito com o Rei.10 Destarte, os Franciscanos, em Portugal, iam ganhando a admiração das populações e dos monarcas portugueses.

Com o apoio da família real portuguesa deram início às suas moradas de Lisboa e Coimbra, no começo da década de 1220; e, graças à devoção dos comerciantes da cidade do Porto e das populações de Leiria, Guarda, Covilhã, Santarém, Estremoz, Portalegre, Lamego e Beja foram-se fundando conventos, naquelas localidades, nas décadas seguintes. Os conventos dos Menores, em Portugal, aumentaram no correr dos anos e, com certeza, o número de frades, bem como a relevância das missões que lhes foram confiadas. Ganharam o respeito do clero secular e a confiança dos papas e reis.

Embora, a Ordem dos Frades Menores ainda fosse considerada uma Ordem nova, tinha em suas fileiras homens valorosos, sábios e prudentes, aptos a desempenhar tarefas de cunho local e até internacional, quer fossem como pregadores em cidades e vilas, quer como professores, ou como encarregados de missões pontifícias, ou ainda como bispos. Já na década de 1260, pode-se afirmar que, em Portugal, havia frades Menores que eram professores de Teologia e até bispos.

Sabemos dos primeiros frades Menores, em Portugal, que foram professores de Teologia, através de um documento monumental intitulado “Sentença-arbitragem entre Dominicanos e Franciscanos com intervenção do mestre Geral da Ordem dos Pregadores e arbitrada por Frades

7. Ibidem. p. 404. 8. José MATTOSO. Portugal Medieval. Novas interpretações. Op.cit. p. 405. 9. Cf. J. Veríssimo SERRÃO. História de Portugal. Estado, Pátria e Nação (1080-1415). 2.ed. Lisboa. Verbo. 1978. Volume I. p. 167. 10. A este respeito ver Fr. António BRANDÃO, Crónicas de D. Sancho I e de Afonso II. Porto. Livraria Civilização. 1945. p. 241-242.

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Menores. 1261. 17 de Novembro. Santarém”.11 Aquele documento menciona, entre os Menores que arbitraram, naquela sentença, juntamente com o rei D. Afonso III, dois frades, que eram leitores, isto é, eram professores de Teologia.12 Tratava-se de Frei Fernando Balenato, no momento, leitor em Santarém e de Frei Martim Mendes, leitor em Lisboa.13 Ora, isto quer dizer, que já em 1261, em Lisboa e em Santarém, os Franciscanos tinham studium de Teologia. E, ao menos, naqueles lugares, em Portugal, os frades exerciam a pregação, no púlpito e na cátedra – uma situação nova, resultado da evolução da Ordem.

O desenvolvimento dos estudos, entre os Franciscanos, pode ser visto como um sinal de evolução da Ordem dos Menores, que o generalato de Frei Boaventura de Bagnoregio (1257-1274) – São Boaventura – fez institucionalizar. Embora, antes mesmo do início de seu generalato, os estudos florescessem, na Ordem, mas abusos cometidos em nome desses mesmos estudos os tinham tornado um dos pontos mais criticados por uma minoria rigorista no interior da mesma Ordem, os zelanti e depois os espirituais.

Entretanto, o Doutor Seráfico teve uma política bem definida, a favor do desenvolvimento dos estudos. Para ele, a prática escolar não estava em oposição e nem era estranha à Regra, mas necessária à pregação e uma exigência para o exercício do ministério sacerdotal; mesmo que o frade não exercesse a pregação, os estudos seriam úteis, para uma vida de perfeição; ainda, os estudos foram vistos por ele como uma ocupação condizente com o estado religioso.

Assim, esta política embasou o surgimento dos studia. Muitos conventos passaram a tê-los, com o objetivo de formar pregadores; como se vê, também, em Portugal. Com isto, o tamanho e a localização dos conventos foram alterados. Tornaram-se mais espaçosos e passaram a ficar, se não no centro das cidades, ao menos em seus arrabaldes e ou em bairros já urbanizados. Também em Portugal, isto se sucedeu. “Os eremitórios, por pequeninos, não podiam agasalhar os estudantes; e, por sertanejos, não os podiam freqüentar os estranhos”, já dizia Fr. Fernando F. Lopes.14

As implicações que essa nova situação trouxe para a vida cotidiana dos frades, em Portugal, foram muitas. Em primeiro lugar, um grau maior de clericalização da Ordem; depois, um nível de estabilidade maior, em decorrência dos edifícios conventuais, que foram deixando de ser aquelas casinhas térreas dos primeiros tempos, para serem mais bem edificados e mais próximos dos centros urbanos. Também, a questão da propriedade de livros induzia a esta maior estabilidade, uma vez que os pertences dos frades aumentavam. Embora, em tese, tais livros pertencessem à Igreja, na verdade o frade que os usava tinha necessidade de tê-los perto de si.

Há que se mencionar, por outro lado, um afastamento das atividades manuais: desta forma, a subsistência dos frades Menores, deixava de ser assegurada pelo trabalho corporal, para advir, só, das esmolas. Juntamente com isso, deu-se um afastamento dos serviços diretos aos pobres e doentes. Os frades – pelo menos, aonde tais studia existissem – passaram a se dedicar mais aos estudos, em detrimento da vida simples, nas ruas, nos eremitérios, nos hospitais e albergarias.

11. “Sentença-arbitragem entre Dominicanos e Franciscanos com intervenção do mestre Geral da Ordem dos Pregadores e arbitrada por Frades Menores. 1261. 17 de Novembro. Santarém”. Apud. José MATOSO, “Estratégias de pregação no século XIII”. “Fragmentos de uma composição medieval”. Lisboa. Estampa. 1993. pp. 191-202. 12. Havia os studia generalia e os estudos particulares. Com toda certeza, Lisboa e Santarém, no momento, eram estudos particulares. Segundo Frei Fernando Félix LOPES. “Escolas Públicas dos Franciscanos em Portugal, antes de 1308”. In. Colectânea de Estudos de História e Literatura. Vol. II. A Ordem Franciscana na História e Cultura Portuguesa. Lisboa. MCMXCVII. pp. 365-366, naqueles studia, “eram professores (lectores ou doutores) os frades nomeados pelos Ministros Provinciais, segundo as Constituições da Ordem. Também a este ponto o papa Alexandre IV, em 1257, estendera o privilégio da isenção episcopal. Embora não haja testemunho explícito de que para tal ministério escolhiam os Ministros os que haviam frequentado os “estudos gerais”, é todavia de supor que assim sucedesse. Também nestes estudos se imitava, na medida do possível a orgânica e programas dos estudos universitários. O leitor lia o texto (Bíblia e as Sentenças) e disputava: ‘Studium in lectione et disputatione consitit’, dizia Rogério Bacon. Ler o texto era comentá-lo. 13. Sentença-arbitragem entre Dominicanos e Franciscanos com intervenção do mestre Geral da Ordem dos Pregadores e arbitrada por Frades Menores. 1261. 17 de Novembro. Santarém. Apud. José MATOSO, “Estratégias de pregação no século XIII”. In. “Fragmentos de uma composição medieval”. Op. cit. p. 196. 14. Frei Fernando Félix LOPES. “Escolas Públicas dos Franciscanos em Portugal, antes de 1308”. Art. Cit. pp. 366.

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Depois, o saber os tornava mais aptos para serem coopatados, pela Igreja, para o episcopado. Em vários locais do Ocidente Cristão, já pontificavam bispos franciscanos. Em Portugal, pelo que se sabe, o primeiro bispo franciscano foi frei Vasco, sagrado bispo para a cidade de Famagusta, em Chipre; e, depois, em 1267, o papa Clemente IV o transferiu para a diocese da Guarda.15 O primeiro bispo franciscano português foi frei João Martins, bispo de Cádiz por aquela mesma época, e, em 1277, também transferido para a diocese da Guarda.

Frei Vasco e Frei João Martins foram uma repetição, para Portugal, do que já acontecia naqueles centros, onde os frades eram mais bem preparados. A sua experiência e dedicação à cura das almas, aliadas à preparação teológica os tornavam aptos para o ministério episcopal. Com efeito, apesar de nova, a Ordem dos Frades Menores já era uma instituição madura.

Foi em meio a estas transformações, ocorridas na Ordem dos Frades Menores, que aconteceu a criação de um Estudo Geral, em Portugal, no reinado de D. Dinis. Do documento de petição ao Papa, para a criação de um Estudo Geral em Portugal, de 12 de novembro de 1288, foram signatários: o abade de Alcobaça, o Prior de Santa Cruz de Coimbra, o Prior de São Vicente de Lisboa, o Prior de Santa Maria de Guimarães secular, o Prior de Santa Maria de Alcáçova de Santarém, e os Reitores das Igrejas de São Leonardo da Atouguia, de São Julião, de São Nicolau, de Santa Iria, de Santo Estêvão de Santarém, de São Clemente de Loulé, de Santa Maria de Faro, de São Miguel, de Santa Maria de Sintra, de Santo Estêvão de Alenquer, de Santa Maria, de São Pedro, de São Miguel de Torres Vedras, de Santa Maria de Caya, da Lourinhã, de Vila Viçosa, de Azambuja, de Sacavém, de Estremoz, de Beja, de Mafra e do Mogadouro.16

Os prelados que faziam a petição eram motivados por dois objetivos, um era o conhecimento das leis, para que a República fosse bem governada no tempo da guerra e da paz e o ouro era facilitar os estudos daqueles que desejassem seguir o estado clerical, porque entendiam que...

“(...) o não eftar o Reyno prouido de peffoas de letras, que foubeffem liquidar os limites, & poderes de cada hûa das jurifidições, auia fido a caufa de fe terem introduzidos alguns abufos: com efte zelo fe resolueraõ entaõ a ordenar, que ouueffe efcolas, em q fe criaffem varões doutos que gouernaffem o Reyno com a igoaldade de jusftiça, que as leis humanas, & diuinas tem difpofto”.17

Como se vê, a falta de conhecimentos de direitos e de jurisdições foi vista, pelos peticionários, como a causa que desencadeou o longo conflito entre a Igreja, a Coroa e o clero portugueses, vindo desde 1267 – ao tempo de D. Afonso III – quando o arcebispo de Braga, D. Martinho Geraldes e os bispos do Porto, Coimbra, Guarda, Viseu, Lamego e Évora lançaram um interdito sobre o reino e apresentaram ao Papa Clemente IV uma lista de 42 artigos nos quais acusavam o Rei “de violências na administração civil e de atentado contra as liberdades eclesiásticas”.18

As relações entre a Igreja, o Rei e a Coroa, em Portugal, tenderam a piorar, na década seguinte, em conseqüência daquele interdito lançado, em 1267. Por conta daquele incidente e por não se encontrar uma solução para os abusos, em 1274, o papa Inocêncio V teria enviado a Portugal Frei Nicolau Hispano, Menor, com a Bula De Regno Portugaliae, do papa Gregório X, seu predecessor, destinada a D. Afonso III.

Naquela Bula, o Papa defendia os bispos e outros eclesiásticos das perseguições infligidas pelo Rei. Fazia um histórico das perseguições sofridas pela Igreja, em Portugal, ao tempo de D. Afonso II, pai de D. Afonso III, e D. Sancho II, seu irmão; lembrava a D. Afonso III, da sua disposição em proteger a Igreja, quando ainda era Conde de Bolonha; e, no momento, a quebra do compromisso.

15. Cf. História Seráfica I. Op. cit. pp. 608-611. 16. Conforme se pode ver na petição, de 12 de novembro de 1288, dirigida ao Papa, publicada pelo INSTITUTO de Alta Cultura, no Chartularium Universitatis Portugalensis (1288-1377). Lisboa. 1966. Vol. 1 (1288-137I7), pp. 8-9. 17. Frei Francisco BRANDÃO, Monarquia Lusitana. Lisboa. Imprensa Nacional: Casa da Moeda. Parte Quinta. 1976. fls. 132 e 132vº. 18. Cf. Fortunato de ALMEIDA. História da Igreja em Portugal. Volume I. Nova edição, preparada e dirigida por Damião Peres. Porto. Portugalense Editora. S.A.R.L. s/d. p. 189. Da página 189 à 193, o autor, reproduz estes artigos.

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Mandava-lhe que refizesse o juramento, ratificando o que havia feito em Paris, em 1245, de acordo com as resoluções contidas nas Bulas dos papas Honório III e Gregório IX.

Naquela Bula, ainda, o Papa ordenava para que não se consentisse que o clero fosse vexado e se desse liberdade aos bispos, para entrarem e saírem do reino. O não cumprimento daquelas determinações ou a sua demora acarretaria em penas de interdito local, interdito geral e excomunhão. Também, ameaçava o Rei com a quebra do juramento de obediência dos seus vassalos e até a sua deposição do trono real.19 Como a legacia de Frei Nicolau Hispano, junto a D. Afonso III, coincidisse com a morte do papa Inocêncio V e seus sucessores, no papado, tiveram pontificados efêmeros, D. Afonso III procurou ganhar tempo. Em 13 de setembro de 1276, foi eleito o papa João XXI – o português Pedro Hispano. D. Afonso III esperava que, sendo português, o Papa abrandasse as ordenações de seus predecessores, enquanto continuava a evadir-se de encontros com o Núncio ou de assinar qualquer resolução. Em março de 1277, cansado de tanta dilação, Frei Nicolau avisou ao Soberano que incorria nas penas do decreto de Gregório X. Tomou certidão, junto às pessoas eclesiásticas, do quanto havia feito e de como o Rei se mostrava avesso a qualquer compromisso, e se pôs a percorrer as principais localidades do País, publicando a bula papal.

A 6 de outubro, daquele ano, em novo encontro com o Rei, Frei Nicolau voltou a insistir com D. Afonso III, diante dos infantes, de seus altos funcionários, para que lhe desse o documento, conforme o exigido na bula de Gregório X, o Rei mais uma vez se esquivou, alegando que era intenção do papa João XXI abrandar a ordenação de seu predecessor.

O Núncio apenas o advertiu de se deixar conduzir por conselheiros que lhe induziam em erro, enganando-se mutuamente com estas promessas de misericórdia. Ele, por sua vez, só conhecia o documento de João XXI que lhe mandava cumprir as ordenações de Gregório X. Desta forma, Frei Nicolau deu por concluída a sua legacia, em Portugal, a qual deixou como saldo: “(...) um país interdito, um rei excomungado, os súbditos desligados do juramento de fidelidade e da homenagem ao rei (...)”.20

Embora, os tempos não fossem mais os mesmos de Gregório VII e de Henrique IV ou mesmo de Inocêncio IV e de D. Sancho II, em que as relações senhor\vassalo fossem tão afetadas, com semelhante situação, verdade é que permanecia um mal-estar, com aquelas questões pendentes e por tempo indeterminado, mesmo porque, em 1277, o papa João XXI morria e para a eleição de seu sucessor, o papa Nicolau III, foram-se bem uns seis meses. Da sua eleição à morte do Monarca português, em 1279, conforme Maria Alegria F. Marques, não houve qualquer tentativa de reconciliação, nem de uma parte nem de outra.21 Assim, o reino continuava sob interdito e o Rei excomungado e, assim, haveria ainda de permanecer por um bom tempo, no reinado de D. Dinis, seu sucessor.

19. Bulário Bracarense. Sumários de Diplomas Pontifícios dos Séculos XI a XIX. Responsáveis: Maria da Assunção Jácome VASCONCELOS e António de Sousa ARAÚJO. Braga. Arquivo Distrital de Braga e Universidade do Minho. 1986. p. 76. Não há no conjunto de bulas, deste Bulário, nenhuma que incumbisse a um comissário ou legado que executasse a referida Bula, entretanto, Frei Manoel da Esperança, na História Seráfica II. Op. cit. p. 11, fala que Gregório X teria incumbido a seu núncio, Frei Nicolau, de transmitir a D. Afonso III as mesmas penas previstas na Bula De Regno Portugalie. Mas, o autor dá notícias da entrada desse núncio papal, em Portugal, no ano de 1275. Poderia se pensar, que dadas as condições do tempo, uma bula emitida em começo de setembro de 1274, só viesse a entrar, em Portugal, juntamente com o seu executor, alguns meses depois, no que já seria 1275; entretanto, em estudo recente, Maria Alegria F. MARQUES. O Papado e Portugal no tempo de D. Afonso III (1245-1279). Tese de Doutorado. Faculdade de Letras. Coimbra. 1990. pp. 404-406, se debruçou sobre um documento do Arquivo Distrital de Braga e publicado como apêndice, em sua tese – que ela considera uma “constituição De Regno Portugallie” – o qual data em 4.IX.1275, e que tem um conteúdo semelhante à Bula já mencionada. Este documento estudado pela autora em questão, teria sido redigido por Isembardo de Pecorara e não teria entrado em Portugal pelas mãos de Frei Nicolau – como quis Esperança – mas segundo a autora teria sido trazido pelos emissários do rei na Cúria Pontifícia e teria sido considerado pela corte de D. Afonso III, como “ordinationem diabolicam”, porque destruía “a favor do clero, o equilíbrio instável em que, apesar de tudo, o rei ia dominando, no meio da procela”. 20. Maria A. F. MARQUES. O Papado e Portugal no tempo de D. Afonso III (1245-1279). Op. cit. p. 413. 21. Cf. Maria A. F. MARQUES. O Papado e Portugal no tempo de D. Afonso III (1245-1279). Op. cit. p. 413.

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Conforme Frei Fernando Félix Lopes, em Portugal, imperava um panorama sombrio:

“Sobre o reino pesava o interdito, mudos os sinos, fechados os templos sem cerimônias nem culto, como se Deus estivera ausente de Portugal e Portugal fora da Igreja e cristandade. O rei excomungado e desatado o juramento que a ele prendia os súbditos”.22

Uma situação de sofrimento e de desconsolo para a população, em uma sociedade aonde a religião era o lenitivo para todas as situações. Era, pois, preocupação daqueles que emitiram o documento de 1288, pedindo ao Papa, a instalação de um Estudo Geral, em Portugal, que situação semelhante àquela que estavam vivendo – ainda não se havia concluído o acordo entre a Igreja e a Coroa portuguesa – não viesse a se repetir. O conhecimento das jurisdições – espiritual e temporal – mais a formação teológica do clero haveria de evitar novos conflitos, entre a Igreja e a Coroa, semelhante àquele que se vivia, então.

De acordo com Frei Francisco Brandão, os signatários do documento esperavam que com a presença, em Roma (negociando o acordo entre a Igreja e a Coroa) de D. Frei Tello, arcebispo de Braga, D. Bartolomeu, D. Aymerico e D. João seria mais “facil ratificarfe pelo Pontífice efta determinaçaõ”.23

A fundação da Universidade seria um empreendimento que deveria contar com o esforço conjunto do clero e do Rei. Contudo, “só depois da solene assinatura da Concordata (o acordo entre a Igreja e a Coroa), e do respectivo compromisso de a cumprir por parte do rei, no segundo semestre de 1289, é que essa mesma entreajuda começou a traduzir-se em termos de documentos jurídicos e oficiais.24 Assim, o diploma real, fundando a Universidade é de 1º de Março de 1290,25 e o reconhecimento é de 9 de Agosto daquele ano, quando o papa Nicolau IV expediu a bula “Dilectis filiis”, que, entre tantas coisas que mandava e ordenava acerca do funcionamento daquele Estudo Geral, permitia-lhe conceder grau de licenciados a estudantes de vários saberes, exceto Teologia.26

É problemática esta questão, da Universidade não poder conceder grau em Teologia, se um dos motivos alegados pelos peticionários era justamente ....

‘que muitos dos que querem estudar e aspiram ingressar no sacerdócio não ousam, antes pelo contrário, temem, e não podem deslocar-se facilmente a longínquas terras em razão dos estudos, não só por falta de recursos, mas também em virtude do estado dos caminhos e perigo das pessoas. E assim permanecem leigos, contra a sua vontade, quando era importante que não se afastassem do seu referido propósito” .27

José Antunes não acredita que a Universidade, em Portugal, tenha funcionado sem o curso de Teologia. Ele está convicto que a Faculdade de Teologia existia e estava ligada à Universidade desde o ano de 1290. Pois, “(...) no espírito dos peticionários pontificava entre todos e em primeiro lugar, o desejo da implantação a nível superior dos Estudos Teológicos”.28 O autor tem como certa que, de algum modo, aquela aspiração tenha sido realizada. Mesmo porque, segundo ele:

22. Fr. Fernando Félix LOPES. “A propósito do conflito entre a Igreja e Portugal no tempo de D. Dinis”. In. ACADEMIA Portuguesa da História. Colectânea de Estudos de História e Literatura. MCMXCVII (1997). Volume. III. pp. 186-187. 23. Frei Francisco BRANDÃO, Monarquia Lusitana. Op. Cit. fl. 132 v°. 24. Victor HENRIQUES. “D. Frei Tello e a Eucaristia”. Itinerarium, XL (1994), p. 285. 25. Cf. “Carta de D. Dinis ampliando os privilégios concedidos ao Estudo Geral de Lisboa”. In. INSTITUTO de Alta Cultura, no Chartularium Universitatis Portugalensis (1288-1377). Op. cit., pp. 10-11.Ver, também, A. Domingues de SOUSA COSTA. “Considerações à volta da fundação da Universidade Portuguesa no dia 1 de março de 1290”. In. Universidade(s) Historia Memória Perspectivas. Actas 1. Coimbra. 1991. pp. 71-88. 26. Cf. a tradução desta bula feita pelo INSTITUTO de Alta Cultura, no Chartularium Universitatis Portugalensis (1288-1377). Op. cit. pp. 14-15. 27. “Documento de Petição” INSTITUTO de Alta Cultura, no Chartularium Universitatis Portugalensis (1288-1377). Lisboa. 1966. Vol. 1 (1288-137I7), pp. 8-9. 28. José ANTUNES. A Cultura Erudita Portuguesa nos Séculos XIII e XIV (Juristas e teólogos). Faculdade de Letras. Coimbra. 1995. Mimeografado. fls. 501-502.

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“Pelo menos, por parte dos homens da Igreja, não se conhece qualquer queixa quanto à não existência de uma Faculdade de Teologia ou qualquer petição em ordem a uma futura implantação. O que pode significar que juntamente com as outras Faculdades também o campo da Teologia tenha sido contemplado, embora ficando certamente sob o domínio de parâmetros eclesiais”.29

Isso indica, para Antunes, que a questão da Faculdade de Teologia tenha sido resolvida, e no seu entender, confiada às Ordens Mendicantes (Franciscanos e Dominicanos). Frei Fernando Félix Lopes ponderou que, se fora de Portugal, as escolas dos conventos franciscanos eram escolas públicas, mais deveria ser em Portugal, onde havia tanta necessidade de escolas. Para Félix Lopes...

“Eram escolas para o ensino doméstico, e podiam freqüentá-las os estudantes seculares, como nas outras escolas da Ordem. Faziam, pois de escolas públicas e nelas se ministravam a cultura teológica ou religiosa, tão encarecida pelo concílio IV de Latrão como necessária para a reforma da Igreja”.30

Desta forma, em Portugal, os Menores estariam tomando parte, ativamente, juntamente com os Pregadores, na formação teológica do clero, inclusive do clero secular. Estariam contribuindo para tornar conhecidos os cânones do IV Lateranense e estariam contribuindo para uma reforma da Igreja, na cabeça e nos membros, como se dizia à época.

Ainda é de notar-se que, no ano de 1309, D. Dinis transferiu a Universidade que criara em Lisboa, para a cidade de Coimbra. De acordo com Maria Helena da Cruz Coelho, tratava-se de ocupar e dar significação ao espaço da alcáçova, desativado, em grande parte, com a mudança da corte para Lisboa, feita ainda por Afonso III.31 Por isso, o Estudo Geral foi instalado na cidade Alta.

Sem dúvida que, nas preocupações do Monarca português, a ocupar o primeiro lugar, estava entre todas as Faculdades, a de Teologia, cadeira fundamental na formação do clero. Pelo menos é o que se pode depreender da sua carta em que menciona claramente a preocupação com a “instrução do clero dos nossos reinos”.32 Tarefa esta, por demais delicada que deveria ser confiada a gente competente como o eram os frades Menores e os Pregadores.33 Por isso, D. Dinis quis que os frades Pregadores e os Menores ensinassem a sacra pagina, ou seja a santa Teologia, em seus conventos, para que a Fé Católica, como muro inexpugnável, fosse defendida daqueles que contra a mesma quisessem se colocar.34 Assim, não seria no espaço da cidade Alta que se instalaria o ensino da

29. Idem. fl. 502 . 30. Frei F. F. LOPES. “Escolas Públicas dos Franciscanos em Portugal antes de 1308”. Art. cit. p. 369. 31. Cf. Maria H. da Cruz COELHO. “Coimbra trecentista a cidade e o Estudo”. In. Biblos. Coimbra. Imprensa de Coimbra Ltda. Vol LXVIII (1992). p. 337. 32. Cf. “Carta de D. Dinis fundando e estabelecendo em Coimbra o Estudo Geral e concedendo-lhe privilégios”. In. INSTITUTO de Alta Cultura, no Chartularium Universitatis Portugalensis (1288-1377). Op. cit. pp. 43-47. 33. Sobre a decisão de que o ensino da Teologia fosse feito nos Conventos dos Franciscanos e Dominicanos, José ANTUNES. A Cultura Erudita Portuguesa nos Séculos XIII e XIV (Juristas e teólogos). Op. cit. p. 511-512, comenta: “É possível que esta decisão régia, embora com a colaboração dos Franciscanos e Dominicanos, tenha obedecido a um prévio acordo entre D. Dinis e a Igreja (...). Mas também nada repugnaria se se tratasse de um acto centralizador do monarca, com aquiescência das duas Ordens Mendicantes. Cremos (...) que estamos diante de um acto de estreita colaboração entre o poder régio e o poder eclesiástico. (...) o rei respeita a esfera da Igreja (autonomia, organização do ensino teológico). Mas (...)dá-lhe cobertura oficial e proteção, reconhecendo as Escolas de Teologia dos Franciscanos e Dominicanos como Escolas públicas do Reino, integrando-as não só na sua Universidade, mas equiparando-as de algum modo, às restantes Faculdades” . 34. Cf. “Carta de D. Dinis fundando e estabelecendo em Coimbra o Estudo Geral e concedendo-lhe privilégios”. In. INSTITUTO de Alta Cultura, no Chartularium Universitatis Portugalensis (1288-1377). Op. cit. pp. 43-47, José ANTUNES. A Cultura Erudita Portuguesa nos Séculos XIII e XIV (Juristas e teólogos). Op. cit. fl. 495, afirma que “em 1309, quando o rei (...), manda que [a sagrada Teologia]seja ensinada nos conventos dos Franciscanos e Dominicanos. (...) significa, claramente, que é uma Faculdade cujos destinos pertencem à esfera eclesiástica, que ele respeita e quer que se cumpra, confiando-a totalmente à responsabilidade das duas Ordens Mendicantes.

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Teologia, esta como atrás ficou dito, seria ensinada nos conventos dos Pregadores e dos Menores, os quais ficavam no arrabalde da cidade.35

%%%%%%%%% Pode-se afirmar que, no esforço de estabelecer jurisdições, D. Dinis entendeu que era da

competência da Igreja o ensino da Teologia, e que as Ordens Mendicantes, em especial os Franciscanos, tinham melhores aptidões em ministrá-la, colaborando, assim, para a formação do clero português do começo do século XIV. Porque aquelas Ordens, e em especial, os Franciscanos, porque imbuídos do ideal da pobreza, da santidade individual e da reforma da Igreja, tinham mais aptidão para entender, viver e ensinar o que era específico da Igreja, ou seja, o zelo e a jurisdição sobre o espiritual, sendo capazes, portanto, de desarticular aquela simbiose de poderes, que vige nas Cristandades e que é causa de permanentes conflitos. Pode-se dizer que esta foi uma preocupação, não mais medieval, mas moderna.

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35. Cf. Maria Helena da Cruz COELHO. “Coimbra trecentista a cidade e o Estudo”. In. Biblos. Op. cit. p. 339.

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