Os Guarani Na Historiografia Regional

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Semana de História 2011 UFMS Tema: Os Guarani na historiografia regional A titulo de introdução lembro que os documentos nos quais o historiador apóia seu trabalho são pistas ou testemunhos mudos, que só falam, segundo Marc Blocc (1989, p. 46), se “soubermos fazer-lhes as perguntas adequadas”. E as perguntas adequadas não vêm das fontes, mas do pesquisador e de sua base teórica. Os mesmos documentos podem responder a diversas e sempre novas perguntas. Por isso, segundo E. Carr (1989:22), “a história consiste essencialmente em ver o passado através dos olhos do presente”, uma relação de reciprocidade entre presente e passado a mesma reciprocidade se estabelece, segundo Carr (1989, p. 28), entre os pesquisadores e seus fatos. Os documentos que também já são interpretações de fatos - talvez sejam exatamente os mesmos de ontem, mas as perguntas não. Estas emergem do contexto histórico e do referencial teórico do historiador. Por isso, é relevante, ao tomarmos conhecimento de uma produção historiográfica, buscar saber quem é o seu autor não tanto seu nome, mas o lugar em que está posicionado, de onde que ele fala, a partir de que interesses pessoais e sociais? Segundo Skliar (2003, p. 70) que o que interessa é o “lugar desde o qual parte o olhar – e não pelo que é efetivamente olhado...”. Analisando a produção historiográfica sobre os Guarani até muito recentemente, percebemos que os seus autores, em sua grande maioria, eram integrantes ou estavam ou estão preocupados em explicar e de certa forma justificar o processo de colonização aqui verificado. E sob a ótica dos interesses do modelo de colonização implantado nessa região - que se caracteriza pela concentração fundiária, acento na monocultura e na utilização intensiva de tecnologias e de insumos químicos - não oferece qualquer espaço e possibilidades não só para o mundo indígena, mas, também, para os milhares de migrantes que foram historicamente, atraídos para essa região, e que hoje estão á margem do desenvolvimento regional, mas que acabaram assumindo as mesmas representações sobre os índios construídas pela elite regional durante o processo de conquista da região 1 , como veremos. Utilizo aqui o conceito de representação como uma “atribuição de sentido”, um “dizer” sobre a identidade do outro, cuja força não está na “aferição” com um suposto real (SILVA,1995, p. 199), mas nas relações de poder que lhes dão credibilidade, seu caráter de verdade e sua sustentação. Para Silva (1995, p. 199), a “eficácia” das representações, está exatamente “em sua capacidade para ocultar sua cumplicidade na constituição e fabricação do real”, em ocultar o processo de sua produção (1995, p. 200). Para Chartier (1988, p. 17), as representações do mundo social “embora aspirem à universalidade de um 1 Foram realizadas uma serie de entrevistas com ex-trabalhadores da CiaMatte Larangeira, no bojo Projeto de pesquisa “Território, Territorialidade e Processos Históricos dos Kaiowá e Guarani no Mato Grosso do Sul”, que contou com financiamento do CNPq e Fundect, integrado pelos pesquisadores: Antônio Brand, Neimar Machado de Sousa, Eva Maria Luiz Ferreira e Fernando Augusto A. de Almeida, do Programa Kaiowá/Guarani/NEPPI/UCDB. Ao serem perguntados sobre a presença de índios no contingente de trabalhadores engajados na colheita da erva-mate, esses ex-trabalhadores foram categóricos em afirmar que não havia índios, como trabalhadores, mas apenas “paraguaios”. Havia alguns “bugres”, sim, porém sempre distantes, nas reservas ou então bem no interior da mata. Descreviam a vida “desses bugres” como próxima a dos animais selvagens

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Semana de História 2011 – UFMS

Tema: Os Guarani na historiografia regional

A titulo de introdução lembro que os documentos nos quais o historiador apóia seu

trabalho são pistas ou testemunhos mudos, que só falam, segundo Marc Blocc (1989, p.

46), se “soubermos fazer-lhes as perguntas adequadas”. E as perguntas adequadas não vêm

das fontes, mas do pesquisador e de sua base teórica. Os mesmos documentos podem

responder a diversas e sempre novas perguntas. Por isso, segundo E. Carr (1989:22), “a

história consiste essencialmente em ver o passado através dos olhos do presente”, uma

relação de reciprocidade entre presente e passado – a mesma reciprocidade se estabelece,

segundo Carr (1989, p. 28), entre os pesquisadores e seus fatos. Os documentos – que

também já são interpretações de fatos - talvez sejam exatamente os mesmos de ontem, mas

as perguntas não. Estas emergem do contexto histórico e do referencial teórico do

historiador.

Por isso, é relevante, ao tomarmos conhecimento de uma produção historiográfica,

buscar saber quem é o seu autor – não tanto seu nome, mas o lugar em que está

posicionado, de onde que ele fala, a partir de que interesses pessoais e sociais? Segundo

Skliar (2003, p. 70) que o que interessa é o “lugar desde o qual parte o olhar – e não pelo

que é efetivamente olhado...”.

Analisando a produção historiográfica sobre os Guarani até muito recentemente,

percebemos que os seus autores, em sua grande maioria, eram integrantes ou estavam ou

estão preocupados em explicar e de certa forma justificar o processo de colonização aqui

verificado. E sob a ótica dos interesses do modelo de colonização implantado nessa região -

que se caracteriza pela concentração fundiária, acento na monocultura e na utilização

intensiva de tecnologias e de insumos químicos - não oferece qualquer espaço e

possibilidades não só para o mundo indígena, mas, também, para os milhares de migrantes

que foram historicamente, atraídos para essa região, e que hoje estão á margem do

desenvolvimento regional, mas que acabaram assumindo as mesmas representações sobre

os índios construídas pela elite regional durante o processo de conquista da região1, como

veremos.

Utilizo aqui o conceito de representação como uma “atribuição de sentido”, um

“dizer” sobre a identidade do outro, cuja força não está na “aferição” com um suposto real

(SILVA,1995, p. 199), mas nas relações de poder que lhes dão “credibilidade, seu caráter

de verdade e sua sustentação. Para Silva (1995, p. 199), a “eficácia” das representações,

está exatamente “em sua capacidade para ocultar sua cumplicidade na constituição e

fabricação do real”, em ocultar o processo de sua produção (1995, p. 200). Para Chartier

(1988, p. 17), as representações do mundo social “embora aspirem à universalidade de um

1 Foram realizadas uma serie de entrevistas com ex-trabalhadores da CiaMatte Larangeira, no bojo Projeto de

pesquisa “Território, Territorialidade e Processos Históricos dos Kaiowá e Guarani no Mato Grosso do Sul”,

que contou com financiamento do CNPq e Fundect, integrado pelos pesquisadores: Antônio Brand, Neimar

Machado de Sousa, Eva Maria Luiz Ferreira e Fernando Augusto A. de Almeida, do Programa

Kaiowá/Guarani/NEPPI/UCDB. Ao serem perguntados sobre a presença de índios no contingente de

trabalhadores engajados na colheita da erva-mate, esses ex-trabalhadores foram categóricos em afirmar que

não havia índios, como trabalhadores, mas apenas “paraguaios”. Havia alguns “bugres”, sim, porém sempre

distantes, nas reservas ou então bem no interior da mata. Descreviam a vida “desses bugres” como próxima a

dos animais selvagens

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diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupos que as

forjam” e não são neutras e “produzem estratégias e práticas (sociais, escolares e políticas)

que tendem a impor uma autoridade às custas de outros, por elas menosprezados...”

(CHARTIER, 1988, p. 17).2.

No caso dos Guarani e Kaiowá, suas demandas territoriais e sua cultura sempre

foram e serão um impecilho, não tanto pela extensão territorial que reivindicam, mas por

representarem uma alternativa, embora aparentemente frágil, a esse modelo único de

relacionamento com a terra e a natureza. .

A titulo, ainda, de introdução, quero formular algumas questões que tem motivado

minhas pesquisas junto aos Guarani no MS: - Como foi possível que a presença de um

povo tão numeroso – no caso os Guarani Ñandeva e os Guarani Kaiowá3 - pudesse ser

ignorada, pela historiografia tradicional, apesar de sua constante emergência e irrupção no

decorrer do processo de colonização da região?4. Esse é um aspecto relevante considerando

que nos confrontamos com um processo de colonização relativamente recente5 – final do

século XIX e sec XX. Como foi possível que essa presença, embora invisibilizada, dos

povos indígenas não tenha em nenhum momento estimulado perguntas sobre seus

direitos?6.

Finalmente, considerando que diversos discursos foram produzidos e registrados na

documentação deixada por sertanistas, viajantes e memorialistas sobre os Guarani e sub

grupos localizados nessa região, por que somente alguns deles se firmaram e seguem até o

presente produzindo identidades sobre esses povos e são trazidos à tona para definir e

marcar o seu lugar social ainda hoje?.

1. Os povos indígenas nos documentos pós-coloniais do século XIX e XX .

Segundo Meliá, F. Grünber, J. Grünberg, 1976:169), os Caaguá, denominação

recorrente dos Guarani na documentação do período, encontravam-se, no sex. XVIII,

identificados pelos colonizadores como “infieles” e culturalmente “bárbaros” (ou como

homens do mato (Waldmenschen) por Koenigswald (1908:377). Para esses autores (1976,

p. 168), os Pãi/Kaiowá “... son los Itatin, pero conceptuados nuevamente por el processo

colonial: los Caagua son aquellos Itatin no colonizados ni misionados, pero en contacto

con la colonia y la misión; ahí, estribaría su identidad y su diferencia”.

As primeiras informações mais detalhadas vem dos diários de campo da “Comissão

de Demarcação da América Meridional”, em especial do trecho entre o salto do rio Paraná e

o rio Paraguai, em 1754 e 1777 e dos viajantes, que percorrem essa região. Nos diários da

Comissão de Limites encontramos aí a seguinte referência: “A outra nação que se conhece

habitante por aqui, são os Montezes, he gente a pé, vivem em os bosques, não duvidamos,

2 Por isso, investigar os processos de produção e reprodução das representações sobre os povos indígenas no

presente constitui-se, em minha opinião, um dos campos mais relevantes de pesquisa porque permite trazer a

público as relações de poder que seguem impregnando as relações interétnicas na região. Permitem

compreender, também, porque a violência que marca as demandas territoriais apresentadas pelos povos

indígenas sempre acabam, de alguma forma, justificadas. 3 Documentos do SPI, de 1927, indicam uma população indígena de 5 mil pessoas só no vale do Rio Iguatemi.

4 Como veremos, em diversas publicações e registros da época, a presença dos índios aparece, registrada,

sempre de passagem e no início da implantação dos projetos de colonização. 5 As regiões de mata no sul do atual Estado de Mato Grosso do Sul foram as últimas a serem ocupadas pelos

novos chegantes. 6 Inclusive, porque a Constituição de 1934 já explicitou claramente o direito indígena às terras que ocupavam.

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que seria sua habitação esta montanha e assim não tínhamos suspeita delles senão quando

se entrava entre os arvoredos” (Academia Real de Ciências, 1841:528, apud Monteiro,

2003, p. 21).

Bernardo Ibañez de Echávarri, capelão da Comissão de Limites de 1754, destaca a

“índole afable, dócil, mansa y de una bondad y rectitud extraordinaria...” (apud Meliá, F.

Grünberg, G. Grünberg, 1976:172). Este aspecto é importante por contrastar com as

descrições relativas ao caráter guerreiro dos tupi-guarani do período anterior.7 Constata,

ainda, que “cada uno tiene un solo cacique que manda, y es puntualmente obedecido; vela

en que todos trabajen para si y para el comun de los que no pueden trabalhar....”8.

Em 1767, o governo português criou o Forte Iguatemi (Povoação e Praça de Armas

Nossa Senhora dos Prazeres e São Francisco de Paula do Iguatemi), elevado à categoria de

vila em 1771, transformando-se no mais antigo povoado do Mato Grosso meridional e o

primeiro passo para a ocupação do atual Mato Grosso do Sul. Esse Forte, segundo

pesquisas efetuadas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (“Relatório de

registro de sítio arqueológico-etnográfico e histórico”, 1987), localizava-se em território da

atual aldeia kaiowá Yvykuarusu/Paraguassu, às margens do rio Iguatemi, município de

Paranhos. Esses pesquisadores reportam-se a vários documentos históricos, indicando a

presença de índios Kaiowá naquela região já desde a fundação do Forte Iguatemi. É esta campanha abundante de gentio Cauan e cavaleiro, tem suas caças, mas

também tem muitos mosquitos e insetos, não tem os homens liberdade de saírem ao

campo sem que vão com camaradas, porque do contrário correm risco suas vidas”

(Diário de Navegação do Rio Tietê, Rio Grande Paraná e Rio Iguatemi, que

principia em 13.03.1769, do Sargento-Mor Theotônio José Juzarte, apud Taunay,

1951:280).

Há várias referências à presença dos índios Cauan na documentação envolvendo o

Forte Iguatemi. Em 1768, foram expulsos os jesuítas da Região Platina, ficando os “restos”

das reduções para a administração dos governos provinciais9.

A partir do sec. XIX, o viajante alemão Johan Rudolph Rengger10

, que visitava o

Paraguai durante o governo do Dr. Francia, entre 1818-1826, traz informações mais

detalhadas sobre “los Caaguá-Pãi”. Segundo ele, “el pequeño número de Guarani que

7 . Ver Schmidl (1945:33) e outros. 8 .Nesses relatos, emerge serem os Caaguá monoteístas, portarem tonsura e, especialmente, usarem, em seus

rituais a cruz. A referência à cruz já vem registrada por Montoya (1639a/1985:86), relacionando-a à eventual

passagem de Santo Tomé, “Pai Zumé”. Aguirre, participante da nova demarcação de limites, em 1777,

confirma o uso ritual da cruz entre os Pãi/Kaiowá, mas que, para ele, é fruto dos “contatos coloniales y

misioneros”. Ambrosetti (1895:740) vai na mesma linha. Nimuendaju (1914/1987:47), referindo-se aos

Guarani, vai encontrar esta cruz em vários mitos e conclui que ela partilha, com os cristãos, apenas a forma e

o material. Com referência à origem da cruz e seu uso entre os Kaiowá, ver ainda Chamorro (1995:183 e ss). 9. Foi no governo de Carlos Antônio López, sucessor do Dr. Francia, que foram dissolvidos os 21 povos

(antigos pueblos de índios), que ainda restavam do período colonial. Transferiu para o Estado a propriedade

de todos os bens: chácaras, estâncias e gado. Aos índios deixou algumas reses e emprestou ferramentas e

pequenas extensões de terras em aluguel. Exceto a isenção do dízimo por três anos, os sobreviventes desses

povos passaram a ter as mesmas obrigações que os demais paraguaios (Linhares, 1969:47). Foi a ruína do que

ainda restava das antigas reduções e significou, segundo Vazquez (1981:100), incorporar uma grande massa

de população na categoria de gente sem terra, “precisamente al sector de la población que mas dificuldades

tuvo para llegar a ser propietaria: el nativo”. Porém, essa situação afetou pouco aos Caaguá-Monteses, pois

estes seguem “en los montes inpenetrables”, praticamente até o seculo XX. 10

Ver Reise nach Paraguay in den Jahren 1818 bis 1826, in Los Pai-Tavyterã, 2008

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pudieron conservar todavía su libertad, se retiraron, sin inquietar, desde entonces a los

españoles, a los montes inpenetrales de la parte oriental y septentrional de la nueva

província” (Meliá, F. Grünberg e G. Grünberg, 1976:177). Destaca ainda, entre outros

aspectos, o fato das “diversas tribus” receberem nomes diferentes, segundo os lugares onde

residiam, o que leva esses autores a relacionar esta indicação com os três subgrupos guarani

atualmente existentes.

Em 1822, com a independência do Brasil, constituiu-se a Província de Mato Grosso,

incluindo o atual Mato Grosso do Sul. Mas, segundo Campestrini e Guimarães (1991), foi

na década de 1830 que se iniciou de fato o povoamento por não-índios das terras que hoje

constituem o Estado do Mato Grosso do Sul. Essa ocupação se deu pelos campos de

Miranda, Serra de Maracaju e, entrando pelo rio Paranaíba, rios Sucuriju e Taquarussu

(1835), chegando aos campos dos rios Brilhante (1839) e Vacaria. Porém, segundo Gressler

e Swensson (1988:20), “apesar do surto colonizador do ciclo do gado, o Estado de Mato

Grosso do Sul permanecia quase despovoado” até a Guerra do Paraguai.

Em 1845, temos expedições organizadas pelo Barão de Antonina, com o objetivo

principal de “descobrir uma via que ligasse o porto de Antonina a Cuiabá, ou seja, uma via

de acesso direto entre o Paraná e Mato Grosso”. Somente em 1847, essa expedição teria

penetrado em rios do Mato Grosso, e já em 23 de setembro desse mesmo ano o sertanista

João Henrique Elliot, integrante da mesma expedição, escreveu: a oito léguas abaixo da barra do Vaccaria com o Ivinheima, encontrámos muitos

vestígios de índios na margem direita: n´este mesmo dia, dobrando uma volta, os

avistámos de repente lavando-se no Rio: Seriam cincoenta, e correram para o mato

da barranca, ficando alguns mais corajosos por verem sómente uma canôa com

quatro pessôas dentro. Confiados na fortuna que nos têm seguido passo a passo em

todas estas explorações, nos approximámos à praia, e saltando em terra os

abraçámos, e os brindámos com mantimentos, muitos anzóes, facas, e alguma roupa

que traziamos de resto. Eram Caiuás da mesma família d´aquelles que encontrámos

nas margens do Rio Ivahy em 1845, tinham o labio inferior furado, e traziam dentro

do orificio um batoque de rezina, que à primeira vista alambre, cobriam as partes

que o pudor manda esconder com panno de algodão grosso; os cabellos eram

compridos e amarrados para traz. (...) fallei algumas palavras de língua guarany, e

entenderam-me perfeitamente (...). Estes índios pareciam de boa índole, fáceis de

reduzir, e podem ser muito úteis aos navegantes: resta que o governo dê boas

providencias a respeito, para que os não hostilisem, matando uns, captivando

outros, e affugentando o resto (Elliot, apud Monteiro, 2003, p. 23) (destaque meu)

A partir de 1848, segundo Monteiro (2003), novamente pessoas enviadas pelo Barão

de Antonina percorreram a região do atual Mato Grosso do Sul, com o mesmo objetivo “de

verificar a possibilidade de abertura de uma via de comunicação entre S. Paulo e Mato

Grosso” ou, segundo Campestrini e Guimarães (1991:41), para, tendo em vista já a Lei de

Terras de 1850, garantir-lhe as melhores áreas da região11

. Nessa mesma viagem, outro

sertanista integrante da comitiva, Joaquim Francisco Lopes, descreve bem as aldeias

kaiowá e confirma a abundância e a variedade de sua agricultura: Chegamos enfim ao aldêamento, impropriamente assim chamado, porque as casas

acham-se disseminadas e como por bairros. Entramos em um rancho coberto de folhas

de caetê, sendo outros cobertos de folhas de jerivá. A aldêa é collocada entre as suas

roças ou lavouras, que abundam especialmente em milho, mandioca, abobora,

batatas, amendoins, jucutupé, carás, tingas, fumo, algodão, o que é tudo plantado

11 . Ver ainda Melo e Silva (1947/1989:58).

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em ordem; e toda época é própria, fora a sementeira, (...) (Lopes, 1850:320-21,

apud Monteiro, 2003, p.24).

Os Guarani e Kaiowá, sob a ótica dos viajantes e sertanistas, que não eram

portadores de projetos de ocupação imediata dos espaços por eles ocupados, tem suas

aldeias bem descritas, com ênfase na abundância de alimentos e acima de tudo são

percebidos como povos de “boa índole” e pacíficos. É uma identidade indígena

produzida e formatada por esses personagens interessados em informações

geográficas e ambientais e que não tinham projetos imediatos para desalojar os índios,

como os que vem a seguir.

Até 1850, poucos contatos foram mantidos com os Kaiowá, o que, aliás, está

expresso no Relatório do Diretor Geral de Indios, da Província de Mato Grosso (1848):

“Pouco conhecimento temos desta Nação que habita as immediações do Rio Iguatemy;

consta com tudo que he bastante numerosa de indole pacífica, dada a vida sedentaria

e agricola, dotada de constância, qualidade raríssima entre os Indígenas” (apud

Monteiro, 2003, p. 24-25).

Elliot (1900:447), no relato da transferência dos índios para as fazendas do Barão de

Antonina, nas margens do rio Tibagi, escreve que “deparou nos Cayuaz, nessa

numerosíssima nação refugiada nas vastas matas da margem direita do grande

Paraná, índole benigna, costumes pacíficos e tendências bem pronunciadas para a

civilização”. Borba (1908) informa que uma epidemia de varíola teria dizimado o

aldeamento.

A partir dessa data, no entanto, iniciaram-se tentativas, que não foram bem

sucedidas, de aldeamento dos Kaiowá e Guarani dessa região, porque, embora haja

unanimidade, nos escritos da época, sobre o caráter pacífico desses índios, concluiu-se

que seria necessário aldeá-los, pois “no estado, porém, em que vivem, são

completamente inuteis e prejudiciaes à sociedade pelas suas freqüentes correrias...” (Relatório do Presidente da Província de Mato Grosso, 1880:33, apud Monteiro, 2003, p.

26-27).

No mesmo relatório, o Presidente da Província afirma que “o único meio de chama-

los à civilização será o da persuação, procurando se modificar os seos habitos por

intermedio de Missionários que possuidos da verdadeira fé christã, se internem nos sertões

com o fim de aldear e catechisar esses infelizes”. Sob o olhar da autoridade provincial,

preocupada com a ocupação do território indígena, os índios demandam civilização e

catequese para se tornarem úteis à sociedade, que vinha chegando12

.

Em maio de 1861, instalou-se às margens do rio Dourados, em local próximo à atual

cidade de Ponta Porã, a Colônia Militar de Dourados, criada pelo Decreto-lei nº 1754, de

1856. Embora oficialmente destinada a auxiliar a navegação interior e a defesa dos

moradores contra os índios até a fronteira do rio Iguatemi e do rio Apa, e a “chamar estes

(índios) por meio da catequese à civilização” (Gressler, Swensson, 1988:39), essa colônia

estava, no entanto, muito mais voltada para a já difícil situação com o Paraguai.

12

Koenisgswald (1908:377) e Watson (1944:32) informam que, em 1855, o governo do Paraná teria

organizado um aldeamento para os Kaiowá sobre as ruínas da redução de Loreto de Pirapó, na afluência do

rio Pirapó, no Paranapanema, mas que já em 1862 seria abandonado pelos índios, que teriam se transferido

para Santo Inácio.

Page 6: Os Guarani Na Historiografia Regional

O Relatório do Presidente da Província de Mato Grosso (1863) informa sobre o

aldeamento “dos cayuás e guaranis” na confluência do rio Santa Maria com o Brilhante, no

ano de 1883, sob a responsabilidade do Frei Ângelo de Caramônico (MONTEIRO, 2003, p.

27 e 28). Com a guerra do Paraguai, os índios se dispersaram e o aldeamento foi extinto.

A guerra do Paraguai, em 1864, alterou o isolamento de parte importante do atual

Estado de Mato Grosso do Sul. Mas, segundo os autores acima citados (1991:92), em 1870

– final da Guerra - permaneciam como território dos índios “as matas ao longo do

Ivinhema, do Brilhante, do Dourados, do Pardo (...) vistas apenas como território de índios

e as terras ao Sul do Ivinhema, matas de ervais nativos, em mãos de Thomás Larangeira”.

A partir da década de 1880 inicia suas atividades a Cia Mate Larangeira e o

território indígena passa a ser, progressivamente, ocupado pelas diversas frentes de

expansão da sociedade nacional, que se juntam à Cai Matte e/ou a sucedem, configurando

um dos processos mais radicais de confinamento indígena. Cerca de cem aldeias

tradicionais foram, historicamente, destruídas sendo os Kaiowá e Guarani forçados a

abandoná-las. Nem todas as aldeias foram abandonadas em decorrência de alguma ação de

força. Muitas tiveram que ser abandonadas pelos índios por causa do excessivo número de

doenças – muitas delas trazidas pelos trabalhadores que passam a circular pelo território

indígena - e mortes decorrentes das mesmas (BRAND, 1997)13

.

O que quero destacar aqui é que paralelo à desterritorialização dos Guarani e

Kaiowá, verificado no bojo do processo de colonização, a partir, especialmente, do pós-

guerra – verificamos, também, sua invisibilização, seja por parte da historiografia –

não são mais “percebidos” pelos que escrevem sobre esse período, - como por parte

dos novos chegantes e que se apossam dos territórios indígenas e, certamente,

também, como estratégia indígena no esforço de fugir aos estereótipos e à repressão.

Praticamente toda a produção acadêmica sobre a Cia Mate Larangeira não faz

referência à presença e participação indígena, como, também, os projetos governamentais

de colonização, implantados na região, como a Colônia Agricola Nacional de Dourados,

CAND, que buscam ignorar a presença indígena, embora a documentação da Colônia esteja

repleta de registros de conflitos com os índios.

Mas, encontramos um novo tipo de registro da presença indígena pós-processo de

ocupação do seu espaço. Refiro-me aos memorialistas, preocupados em registrar seus

feitos, em especial, seus confrontos com os mesmos índios, visibilizados enquanto

resistiam à entrega de seus territórios e suas casas. Considerando os discursos

produzidos sobre esses povos, talvez estes personagens buscassem, através de suas

memórias, de alguma forma justificar os atropelos e violências cometidas. Há um livro que chama sobremaneira a nossa atenção no que se refere aos índios -

Os Barbosas em Mato Grosso, de 1961. O autor destaca que seu avô, Inácio Gonçalves

Barbosa, havia deixado um arquivo com documentos importantes, sendo que entres estes

estavam “duas cartas de dois governadores da província de Mato Grosso [...]”, uma das

quais, de 1874, “autorizava-o a arredar os índios de qualquer modo e tomar conta de suas

posses e garantir a família”.

13

Sobre a relação dos Kaiowá e Guarani com a Mate Larangeira há diversas publicações que podem ser

acessadas: A tese de Brand (1997), a dissertação FERREIRA, Eva (2007) e outros trabalhos que tratam sobre

território, educação. História. (Brand, 1997, Landa, 2005, Vietta, 2007, Marques, 2004, Colman, 2007, Mura,

2005, Silva, 2007, Benitez, 2010)

Page 7: Os Guarani Na Historiografia Regional

Após descrever a corrida atrás do ouro no então Estado de Mato Grosso, afirma que

muitos “foram sacrificados pelos silvícolas ciumentos e ferozes, deixando esteios e taperas,

plantas e mais vestígios da sua presença”. O autor não estabelece qualquer relação entre a

primeira afirmação - o ato de arredar os índios de suas terras e a segunda afirmação – de

que são ciumentos e ferozes, que devem ser domesticados.

Mas, reconhece que os “Caiuas” eram muitos: “Do lado das matas cheias de Caiuás,

ergueram com pedra canga uma trincheira de caçada grande, como para defesa. [...] (1961,

p.14). Portanto, os índios estavam aí e em número significativo. Essa informação, no

entanto, não ficou registrada nos livros de história regional e nas representações regionais

sobre esses povos.

Mais adiante e sempre continuando a registrar o processo de ocupação do território

indígena, o autor confirma que “foi possível a expansão, a tomada de posse definitiva de

toda a região e tornaram-se senhores, arredando o índio, ou com ele se cruzando e

domesticando-o” (1961, p. 15).

Em outra passagem constata que “os bugres dominavam livremente, comendo o

resto de gado escapo dos paraguaios. Os Terenos e Xavantes faziam excursões amistosas,

mas os Caiuás foram maus e traiçoeiros, o ciúme os levou a assaltos contínuos e só

contidos de medo da arma de fogo, não deram tréguas, usando mão baixa nas ferramentas e

roupa. [...]” (1961, p. 29).

Fazendo referência às incursões do Barão de Antonina, através do “hábil sertanejo,

Joaquim Francisco Lopez”, que acompanhado do cartógrafo inglês, John Henri Elliot,

registra que “traçaram mapas, agradaram os silvícolas, compraram e demarcaram posses

para o Barão” e, o que é mais importante, transladaram “os indesejáveis Caiuás para a

Colônia de S. Jerônimo, na Província de S. Paulo e hoje do Paraná”.

Lendo os escritos desse autor (1961), percebe-se que os índios, especialmente, os

Kaiowá e Guarani, opuseram-se, fortemente, à entrega de seus territórios, suas casas e

plantações à gente estranha, vinda de regiões distantes. Foram, por isso, caracterizados

como ciumentos, ferozes, maus e traiçoeiros, que “sacrificaram” os coitados, invasores de

suas terras, obrigando-os ao uso das armas, para impor a paz à gente tão violenta e

traiçoeira.

Essa mesma visão vem registrada no livro “Maracaju e sua gente”, de Ferreira e

Rosa (1988, p.111), que após reconhecerem que “havia muitas aldeias indígenas espalhadas

desde as cabeceiras dos rios Sta Maria e Brilhante até as margens do Rio Paraná”,

informam que “os índios constituíam ameaça permanente para os fazendeiros que, por

diversas vezes, tiveram que empregar muita astúcia, e até mesmo o uso de armas de fogo,

para rechaçar os seus ataques traiçoeiros e perigosos”. E concluem os mesmos autores que

“depois de muita luta e até combates sanguinolentos, teve lugar uma aproximação pacífica

dos grupos em litígio”.

A mesma solução violenta vem indicada em Barbosa (1961, p. 18), ao reconhecer

que a belicosidade indígena só foi contida com o reforço de gente e pólvora, sendo fácil

domá-los, trazendo ao redil. E conclui que “domesticados e fortes como eram foram de

proveito nas roçadas. [...]”. E, novamente, os índios são invisibilizados ou se invisibilizam,

como veremos abaixo.

É, certamente, importante perceber que em nenhum momento os colonizadores e os

seus historiadores admitem aos índios o direito de defenderem suas terras, suas casas e suas

famílias, direito absolutamente inquestionável em se tratando deles mesmos, os colonos.

Serejo (1986:107-108) é, talvez, um dos poucos que reconhece que “estes silvícolas -

Page 8: Os Guarani Na Historiografia Regional

verdadeiros donos da terra”, achavam-se no direito de “defender as matas, os campos, as

aguadas e os ervais nativos”.

O que chama atenção como a legislação que garantia o direito às terras ocupadas

pelos índios já desde a regulamentação da Lei de Terras de 1854, artigo 72, 73 e 74, e mais

especificamente as Constituições de 1934, de 1937 e de 1946, nas quais constam artigos

garantindo a posse indígena das terras nas quais se “achem permanentemente localizados,

sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las” (art 129/1934) foi sistematicamente ignorada por

todos, inclusive pelos órgãos responsáveis pela proteção dos índios.

As representações e a produção discursiva da identidade dos Guarani e Kaiowá

Os povos indígenas, ao se oporem à entrega de suas terras, suas casas sofrem uma

dupla violência que segue até o presente:

- primeiro, são compulsoriamente impulsionados a assumir uma outra relação com a

terra e a natureza – pois sob sua visão de mundo e seus valores, a avidez dos que chegavam

por mais terra para a criação de gado não fazia sentido. Mas, também, o modo de vida

indígena e sua forma de uso da terra não fazia qualquer sentido para os colonizadores,

como não faz sentido até hoje, justificando, portanto, a expulsão dos índios de terras tão

ricas14

;

- e, segundo, são, discursivamente, produzidos como ferozes e traiçoeiros ou então

como inúteis e um estorvo ao desenvolvimento regional, apesar que os poucos documentos

e registros do SPI sobre essa “guerra” indicarem exatamente o contrário, isso é, os índios

sendo constantemente violentados. Há uma relação significativa de documentos registrando

o atropelo dos índios, mas esses documentos tem sido ignorados15

.

14

Cabe destacar que essa “guerra” pela posse da terra, como no período colonial, vem perpassada por visões

de mundo, valores e perspectivas de vida completamente distintas, mas que tem em comum, embora, também,

por razões muito distintas, a importância e valorização da terra. Os povos indígenas já ocupavam essa terra

não com o objetivo de gerar riquezas, mas como espaço de vida e certamente não encontravam qualquer

sentido na insaciável avidez por terras para criar gado e assim gerar riquezas dos novos chegantes. Estes, por

sua vez, estavam, exclusivamente, em busca de terras para exploração, tendo em vista a geração de riquezas,

num primeiro momento, pela criação de gado. 15

No Ofício, de nº 2, datado de 28 de janeiro de l947, o agente Acácio Arruda, do P.I. Horta Barbosa, de

Dourados, informa que a “perseguição em Dourados contra os índios é quaze geral”, indicando o clima de

violência e pressão contra os Kaiowá na área da colônia federal. É dramático o depoimento de um dos índios

sobreviventes do período de implantação da CAND: “Meu pai morreu quando chegou os colono. Morreu de

tristeza de perder as terra. Os índios foram tocado que nem bicho, com espingarda. Por que fazer isso com

índio?” (apud, SILVA, 1982:20). O Ofício nº 2, de 12 de outubro de 1949, de Dayen Pereira dos Santos,

funcionário do Posto Indígena Benjamin Constante, dirigido ao chefe da I.R. 5º, relata a expulsão de uma

comunidade indígena de 80 pessoas: Agora estes índios foram de lá expulsos com toda a violência, por um

grupo de civilizados, todos armados a armas cumpridas (fuzis e mosquetões), alegando eles que ditas terras

estão reservadas para uma colônia agrícola (não sei se isto é exato). (...), o grupo que os expulsou da terra era

composto dos seguintes indivíduos (No ofício seguem os nomes)15

. O funcionário informa que já havia

tentado várias soluções por meio da autoridade policial local, mas que “encontra pouca vontade da mesma

agir com energia em defesa dos interesses dos índios”. E mais recentemente, na década de 1980, o jornal O

Progresso, de 5 de março de 1985, sob o título Brancos invadem terras de índios em Jaguapiré, registrou o

seguinte fato: (...) tiros, fogo e pancadaria foram a tônica de uma invasão na comunidade indígena de

Jaguapiré, em Tacuru no final da semana. Um batalhão de 27 homens, incluindo jagunços e até soldados da

polícia militar, entrou na Reserva onde vivem 30 índios kaiowá e provocaram o maior tumulto15

.

Page 9: Os Guarani Na Historiografia Regional

É essa visão que acaba sedimentada nas representações e no imaginário de amplos

setores da população regional. Recorrendo à Pesavento (2005, p. 41) e de outros já citados,

sabemos que a “força das representações não está no seu valor de verdade”, mas em sua

capacidade de mobilização e de produzir reconhecimento e legitimidade social”. E

analisando a história de ocupação dos territórios indígenas, creio que fica claro que “quem

tem o controle da vida social”, decorrente da supremacia conquistada em uma relação

histórica de forças, “tem o poder simbólico” de “dizer e fazer crer sobre o mundo” (2005, p.

41). Ou, como afirmou, certa vez, um produtor rural: “cabe aos índios reconhecer que

foram derrotados”.

É o estatuto do conquistador que confere verossimilhança e credibilidade às

representações sobre os povos indígenas, ocupantes primeiros dos territórios. E, como

veremos, é a persistência dessas relações de colonialidade, afiançadas pela grande

propriedade, que permite que essas representações sigam incorporadas por coletivos

maiores, integrando o imaginário regional sobre os povos indígenas. E certamente, grande

parte da produção historiográfica contribuiu significativamente para essas representações

por ter se alinhado e assumido, acriticamente, essas mesmas representações ou ter

contribuído para a sua persistência através da omissão e do silenciamento16

.

A visão dos Guarani e Kaiowá, como pacíficos, amáveis e agricultores, produzida

pelos viajantes e sertanistas, não conseguiu se transformar em representação e muito menos

transitar para o imaginário regional, onde se confirma a versão, produzida e “afiançada”,

pelos que venceram a intensa e violenta disputa em torno da posse da terra, que se instalou

em toda a região.

A luta que se desencadeia em torno da posse do território antes indígena foi

completamente desigual porque, além das armas e das poderosas doenças “brancas”,

somente um lado tinha o poder do registro escrito e, portanto, o poder da versão. E, é

preciso reconhecer que a historiografia regional foi, durante longos anos refém dos

registros (documentos) e das versões dos colonizadores, contribuindo para a sedimentação

dessas representações em amplos setores da sociedade regional.

Numa publicação de 2009 encontramos o registro da suposta “venda” de sua

filha por parte de um morador da aldeia de Amambaí. Esse fato leva o autor da

publicação a seguinte conclusão: ler p. 43. - lembrar fato dos sertanistas..17

.

Essa submissão às versões da elite regional, ou, aos interesses da grande

propriedade por parte da produção historiográfica, começa a ser quebrada, a meu ver, a

16

Na discussão do problema da desnutrição infantil entre os Kaiowá e Guarani, em 2005, no esforço de

explicar e justificar as mortes de tantas crianças, novamente, emergem com força as mesmas representações,

historicamente construídas, sobre esses povos, no bojo da conquista territorial, buscando caracterizar essas

mortes como conseqüência lógicas de “limitações” próprias da cultura indígena. Em matéria do jornal Correio

do Estado, de 27 de fevereiro de 2005, (p.8 A), referindo-se a manifestações de responsáveis pelo

atendimento da saúde indígena, encontramos, novamente, que “a cultura indígena vem se mostrando um

importante obstáculo às ações do Governo em Dourados” e mais adiante segue afirmando que entre esses

índios “é comum que os pais se alimentem antes dos filhos, deixando para as crianças o que restou da

comida”. 17

Por isso faz, certamente, sentido a afirmação do general Couto Magalhães, em seu livro O Selvagem, escrito

em 1876, referindo-se as acusações de que “o índio é perigoso, estúpido, bêbado, traiçoeiro e mau”. Afirma

ele: “coitados! Eles não têm historiadores; os que lhes escrevem a história ou são aqueles que, a pretexto de

religião e civilização, querem viver à custa de seu suor, reduzir suas mulheres e filhas a concubinas, ou são os

que os encontram degradados por um sistema de catequese, que com muito raras e honrosas exceções é

inspirada pelos móveis da ganância ou da libertinagem hipócrita...” (1876/1975:138).

Page 10: Os Guarani Na Historiografia Regional

partir do que poderíamos chamar de “emergência indígena”, que no Brasil começa a se

configurar na década de 1970, mas que adquire visibilidade na década de 1980, em

especial, com a Constituição de 1988, que quebra e supera, pela primeira na história do

país, a perspectiva integracionista.

É importante dizer que os povos indígenas contaram nessa luta pelo

reconhecimento de seus direitos com o apoio de importantes setores da sociedade civil,

incluindo aí, a destacada atuação de grupos de antropólogos, historiadores e de outros

cientistas sociais. Desde lá, a par do envolvimento crescente de setores da academia com a

luta pelos direitos indígenas e da afirmação, em especial, do direito à autonomia dos povos

indígenas, e considerando, ainda, as discussões envolvendo os 500 anos de colonização da

América – 1992, inicia, também uma importante virada nas abordagens teóricas

envolvendo não só os povos indígenas18

No que se refere aos Guarani e Kaiowá, em MS, importantes estudos, em especial

dissertações e teses foram produzidas, que contribuíram e contribuem significativamente

não só na luta por seus direitos, mas, o que considero sobremaneira relevante, para o

questionamento dessas representações, historicamente, sedimentadas. No entanto, o grande

desafio posto é fazer com que essas pesquisas e produções saiam dos espaços restritos das

Universidades e transitem, em especial, para os livros didáticos e para os meios de

comunicação.

Nesses dois setores persiste de forma mais clara a reprodução das representações

acima destacadas. É o que confirma pesquisa realizada por Calderone e Brand (2010), em

dois livros didáticos distribuídos pelo PNLD - Programa Nacional do Livro Didático, em

2008, buscando discutir as representações da identidade indígena presentes nesses livros

selecionados19

. Concluem que os livros analisados se caracterizam mais pelo

“silenciamento e pela invisibilidade da presença indígena na história e no presente” e

quando percebidos “o são de forma secundária, foclorizada ou são “colocados” em um

tempo e com práticas sociais e culturais do passado”. Aliás, a forma como está “lembrada”

a semana dos povos indígenas em nossas escolas contribui, certamente, para aprofundar

essas representações.....

Em um trabalho sobre as notícias envolvendo os Guarani e Kaiowá nos principais

jornais regionais - Correio do Estado, Folha do Povo e O Estado de Mato Grosso do Sul,

Maldonado (2010) concluiu que esses meios de comunicação apresentam os fatos de forma

isolada, “não permitindo ao leitor uma compreensão e uma leitura mais complexa e crítica”,

contribuindo, dessa forma e em muitos casos, para “uma imagem negativa do índio,

impregnada de estereótipos”. E segue afirmando que, quando se trata de matérias especiais

observam-se “falhas e superficialidade na apuração que comprometem as informações”,

persistindo, também, “o claro alinhamento com um lado do conflito, contribuindo, mais

18

Há um expressivo número de publicações relevantes sobre a temática indígena que vem a público nessa

década: História dos Índios no Brasil, de Manuela Carneiro da Cunha (1992); Índios no Brasil, organizado por

Luís Donisete Benzi Grupioni (1994; a Temática Indígena na Escola: novos subsidios para professores de 1 e

2 graus, coordenado por Aracy Lopes da Silva & Luís Donisete Benzi Grupioni (1995) 7; Negros da Terra:

indios e bandeirantes nas origens de São Paulo, de John Manuel Monteiro (1995)8, e Ensaios em antropologia

histórica, de João Pacheco de Oliveira (1999). Para maiores informações ver Eremites, in Revista História em

Reflexão: Vol. 3, n. 6 – UFGD - Dourados jul/dez 2009, 19

Projeto Pitanguá, organizado pelo Editora Moderna, 2005, distribuído pelo Plano Nacional do Livro

Didático, PNLD, do Ministério da Educação (FNDE), em 2007; e História de Mato Grosso do Sul, de Lori

Alice Gressler, Luiza Mello Vasconcelos e Zélia Peres de Souza, 2005.

Page 11: Os Guarani Na Historiografia Regional

uma vez, para uma imagem destorcida do indígena”. A ausência, em muitos casos, de

fontes indígenas envolvidas no assunto abordado nas matérias é uma das constatações mais

desanimadoras nesta pesquisa, considerando, em especial, que as fontes são o principal

elemento do texto jornalístico.

Penso que todos os presentes tem acompanhado o total alinhamento de alguns meios

regionais de comunicação no conflito envolvendo a posse de terras de ocupação tradicional

indígena, em 2009 e 2010. Sem questionar informações, mas preocupados em explicitar

eventuais interesses “obviamente sempre escusos”, de um lado do conflito, no caso dos

índios. No entanto, os interesses dos outros envolvidos são apresentados, logicamente,

legítimos e, acima de tudo, transformados em interesses do Estado e do país, exatamente,

como no início da colonização em que os índios sempre foram “apresentados” e produzidos

discursivamente, como o problema e como negação dos interesses maiores do país.

Algumas considerações finais

Como primeiro ponto quero destacar a relevância das representações nos processos

de afirmação étnica em curso no presente, lembrando de um texto de Hall (2000), no qual o

autor afirma que nossas identidades estão atreladas “com a questão da utilização dos

recursos da história, da linguagem e da cultura” (HALL, 2000, p.109), ou seja, alerta para a

eficácia discursiva na marcação da identidade do outro. Afirma ele que:

(...) Tem a ver não tanto com as questões „quem nós somos‟ ou „de onde nós

viemos‟, mas muito mais com as questões „quem podemos nos tornar‟, „como

nós temos sido representados‟ e como essa representação afeta a forma como

nós podemos representar a nós próprios.

O historiador é um homem do presente, que formula perguntas ao passado, a outros

“presentes”, preocupado, porém, sempre, em compreender o seu próprio momento

histórico. E penso que como historiadores e demais pesquisadores temos pela frente um

importante desafio: como contribuir na desconstrução dessas representações sobre os povos

indígenas, historicamente não considerados como sujeitos inteligentes? Segundo John

Monteiro (2000, p. 227), cabe ao historiador, hoje, “recuperar o papel histórico de atores

nativos na formação das sociedades e culturas do continente, revertendo o quadro hoje

prevalente”.

A documentação disponível foi produzida por uma das partes, ou um dos lados,

refletindo apenas o seu ponto de vista. Além disso, encontramos lacunas documentais, ou

seja, fatos ou momentos decisivos para a história do outro que não foram considerados

relevantes ou não interessantes sob a ótica do colonizador. Lidamos com povos que não

conseguiram “ser ouvidos” pelas fontes tradicionais da historiografia. Como superar essas

lacunas documentais? Certamente o recurso à história oral pode contribuir

significativamente para isso!

Em segundo lugar quero retomar a questão da invisibilização dos Guarani e Kaiowá

em diversos momentos desse processo histórico. Parece-me não ser explicação suficiente

creditar esse ocultamento à estratégia dos colonizadores, interessados na negação da

presença indígena. Estou cada vez mais convencido de que se tratou, também, de clara

estratégia indígena, uma forma encontrada pelos Guarani e Kaiowá para, de um lado,

fugirem do esteriótipo de “bugre” e, ao mesmo tempo, seguirem vivendo na região e, mais

ainda, terem acesso a bens que lhes interessavam muito (roupas, feramentas, remédios...)

Page 12: Os Guarani Na Historiografia Regional

Aliás, ao analisar as estratégias guarani e kaiowá frente ao avanço das frentes de

colonização de seu território e à ocupação de suas aldeias (ver Brand, 1997), percebe-se que

foram se retirando e procurando áreas de refúgio nos fundos das fazendas, nos lugares mais

inacessíveis e de menor interesse para a economia regional. Apelam a formas mais

ostensivas de enfrentamento do entorno, apenas quando não encontram mais áreas de

refúgio, o que se verifica, especialmente, a partir da década de 1970 e 1980.

Em terceiro lugar, conhecemos, ainda, pouco, sobre os processos de negociação,

troca, resistência ou confrontação desenvolvidos por esses povos e por cada povo em

particular nesse período histórico e em um contexto de relações de poder profundamente

assimétricas e que lhes permitiram manterem sua distintividade e a persistência das

fronteiras étnicas, ou a explicitação de critérios de pertencimento e de exclusão,

entendendo-se esses como um “conjunto sistemático de regras que governam os encontros

sociais interétnicos”? (Barth, 2000, p. 35)20

. Por isso, é certamente, muito significativa a

chegada às Universidades de pesquisadores indígenas – já temos um doutor em história

terena – e vários outros vem chegando. Caberá, certamente, a eles um importante papel na

revisão de muitas leituras “nossas” sobre esse passado recente.

E, finalmente, a persistência das representações acima, em amplos setores do

entorno regional, é um indicativo importante para a análise das relações de poder que

seguem perpassando a realidade social, na qual estes povos estão inseridos. Indica,

claramente, a persistência de relações de colonialidade, a partir das quais segue sendo

definido o lugar desse outro, no caso, os povos indígenas. A luta pela terra adquire, dessa

forma, dimensões de fundamental relevância dentro do projeto de quebra dessa relação

colonial21

.

20

Para Barth (2000, p. 27), o importante na definição dos limites de um grupo étnico, são “os valores êmicos

e sua interação com os outros grupos como meio de afirmar as diferenças, em vez de insistir nos elementos

culturais visíveis e materiais, quer dizer objetiváveis”. Os grupos étnicos são “categorias atributivas e

identificadoras empregadas pelos próprios atores” e têm como meta “organizar as interações entre as

pessoas”.

21 Inclusive, os esforços de uma melhor informação sobre o modo de vida desse outro parece caírem no vazio

porque não logram questionar as relações de poder.