Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria ... · Os indígenas Payayá e o Distrito de...

14
Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria: história, memória e ensino Patrícia Matos de Almeida 1 Larissa Cheyenne Nepomuceno de Jesus 2 Este artigo é resultado do desejo em registrar um trabalho realizado a partir de um estudo cuidadoso que objetivou pensar uma sequência didática que tocasse em uma questão ainda desejosa de metodologias específicas, como é a da história da população indígena no Brasil, neste caso, através do olhar sobre o povo Payayá. Este trabalho está em curso, até a data em questão, e é desenvolvido na Escola José Tavares Carneiro, localizada no distrito de Maria Quitéria, do município de Feira de Santana, Bahia. Ele está relacionado ao Projeto Interdisciplinar da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) que, por sua vez, é vinculado ao Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), configurado como uma iniciativa do Governo Federal para, através de bolsas concedidas a alunos de licenciatura e professores da Educação Básica, aperfeiçoar a formação de professores. Assim, o Projeto Interdisciplinar propõe um diálogo entre a História, Literatura e Geografia sem que se ignorem as especificidades de cada área de conhecimento em questão, reforçando que “a educação interdisciplinar não elimina as disciplinas, ao contrario reorganiza para torná-las comunicativas entre si” (OLIVEIRA, 2012, p. 3). Tal necessidade de comunicação advém de um currículo dos Ensinos Fundamentais e Médios cada vez mais engessados e fragmentados no qual as disciplinas são trabalhadas separadamente, a partir de uma concepção linear, que não permite a presença de correlações entre elas. Dessa forma, nos últimos anos, percebeu-se a necessidade de buscar diálogos, ainda considerados como audaciosos, que objetivam um ensino das áreas em questão, e outras, imbuídos de sentidos e significações importantes para o alunado. Além disso, a interdisciplinaridade se configura como uma forma de repensar a concepção que se deseja ter sobre a Educação e, portanto, de nada adianta se não a desenvolvermos sem superarmos a noção de encadeamento das disciplinas. 1 Graduanda em Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). 2 Graduanda em Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

Transcript of Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria ... · Os indígenas Payayá e o Distrito de...

Page 1: Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria ... · Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria: história, memória e ensino Patrícia Matos de Almeida1 Larissa

Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria: história, memória e ensino

Patrícia Matos de Almeida1

Larissa Cheyenne Nepomuceno de Jesus2

Este artigo é resultado do desejo em registrar um trabalho realizado a partir de um estudo

cuidadoso que objetivou pensar uma sequência didática que tocasse em uma questão ainda

desejosa de metodologias específicas, como é a da história da população indígena no Brasil,

neste caso, através do olhar sobre o povo Payayá.

Este trabalho está em curso, até a data em questão, e é desenvolvido na Escola José

Tavares Carneiro, localizada no distrito de Maria Quitéria, do município de Feira de Santana,

Bahia. Ele está relacionado ao Projeto Interdisciplinar da Universidade Estadual de Feira de

Santana (UEFS) que, por sua vez, é vinculado ao Programa Institucional de Bolsa de Iniciação

à Docência (Pibid), configurado como uma iniciativa do Governo Federal para, através de

bolsas concedidas a alunos de licenciatura e professores da Educação Básica, aperfeiçoar a

formação de professores.

Assim, o Projeto Interdisciplinar propõe um diálogo entre a História, Literatura e

Geografia sem que se ignorem as especificidades de cada área de conhecimento em questão,

reforçando que “a educação interdisciplinar não elimina as disciplinas, ao contrario reorganiza

para torná-las comunicativas entre si” (OLIVEIRA, 2012, p. 3). Tal necessidade de

comunicação advém de um currículo dos Ensinos Fundamentais e Médios cada vez mais

engessados e fragmentados no qual as disciplinas são trabalhadas separadamente, a partir de

uma concepção linear, que não permite a presença de correlações entre elas.

Dessa forma, nos últimos anos, percebeu-se a necessidade de buscar diálogos, ainda

considerados como audaciosos, que objetivam um ensino das áreas em questão, e outras,

imbuídos de sentidos e significações importantes para o alunado. Além disso, a

interdisciplinaridade se configura como uma forma de repensar a concepção que se deseja ter

sobre a Educação e, portanto, de nada adianta se não a desenvolvermos sem superarmos a noção

de encadeamento das disciplinas.

1 Graduanda em Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). 2 Graduanda em Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

Page 2: Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria ... · Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria: história, memória e ensino Patrícia Matos de Almeida1 Larissa

Nesse contexto, Almeida (2004) nos mostra que a especialização científica,

desenvolvida especialmente no século XIX, influenciou o currículo escolar que temos ainda

hoje e, portanto, é preciso compreender que tal processo foi resultado de anseios próprios de

sua época não devendo, assim, ser demonizado, mas, entendido dentro de seu contexto

histórico. Esta compreensão é importante para que entendamos a existência da necessidade de

uma nova educação escolar que prime por novos desejos, frutos de uma nova época que anseia

por uma desfragmentação do ensino. Dessa forma, o autor reforça o debate chamando a atenção

para outra problemática:

O exercício da interdisciplinaridade no ensino não convive com o

autoritarismo, pois exige mudanças radicais que vão desde a concepção de

ensino, passando pela postura assumida pelos docentes nos processos de

construção e reformulação curricular e na relação professor aluno,

principalmente no que se refere ao acesso ao conhecimento, que não é

propriedade individual do docente, mas uma produção coletiva e histórica de

toda a humanidade (ALMEIDA, 2004, p. 9).

Assim, a educação interdisciplinar propõe uma mudança de postura dos profissionais da

educação, comunidade escolar e discentes para que se possa superar a linearidade e

fragmentações das relações humanas no sentido de que a transformação sobre a concepção de

educação que se quer alcançar possa, de fato, acontecer. Dessa maneira, o Projeto

Interdisciplinar, vinculado ao Pibid e a UEFS, e vivenciado na Escola José Tavares Carneiro

tem buscado viabilizar a realização de “trabalhos voltados à valorização do local e à afirmação

da identidadedos sujeitos. Assim, tem como perspectiva que os professores supervisores e os

bolsistas ID percebam-se como professores-pesquisadores de sua própria atividade no ambiente

escolar” (FERREIRA, MACÊDO, ARAGÃO, PINHEIRO, 2015, p. 247).

Assim, na perspectiva de buscar a valorização da história local, foi desenvolvido um

plano de trabalho para o ano de 2016 que trouxe à tona a memória com relação aos índios

Payayá que viveram na região onde se localiza a escola. Isto por que, percebeu-se que a história

do distrito de Maria Quitéria e da cidade de Feira de Santana pouco vincula a importância desse

povo para o seu desenvolvimento provocando, assim, um desconhecimento que empobrece a

construção de uma identidade local que reconheça os Payayá como parte da formação do distrito

e sua sede. Além disso, percebemos que tal silenciamento não corresponde, apenas, à uma

realidade especifica, mas, à um âmbito nacional que construiu uma história oficial que

negligencia a importância dos povos indígenas, em toda a sua diversidade, para a sua formação.

Page 3: Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria ... · Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria: história, memória e ensino Patrícia Matos de Almeida1 Larissa

Nesse sentido, assim como há dificuldade em encontrar estes povos em documentações

escritas e oficiais no país, houve também obstáculos para se alcançar a história dos Payayá no

distrito de Maria Quitéria. Portanto, a partir da perspectiva do professor-pesquisador, buscou-

se recolher fontes históricas a respeito deste povo para a elaboração do plano de trabalho.

Assim, por meio do contato com professora Celeste A. P. de Oliveira, descendente Payayá,

pudemos conhecer a importância desse povo para a formação local. Ainda, seu depoimento foi

fundamental para este reconhecimento, pois, a maior parte da população de Maria Quitéria

enxerga a presença da população negra já que há uma comunidade quilombola nesta região,

mas, pouco ou quase nada se fala sobre a contribuição dos Payayá para sua história.

Nesse contexto, Celeste A. P. de Oliveira sugere que uma das dificuldades para tal

identificação se deva, provavelmente, ao fato de que os Payayá compuseram um grupo nômade

que frequentava a região por conta de suas lagoas abundantes no período. Portanto, apesar de

terem sido frequentes nos locais que, hoje, são parte do distrito feirense, não se fixaram ao

ponto de possuírem um poder de organização que resistisse às investidas portuguesas para

catequizá-los.

Dessa forma, com a chegada dos europeus nesta região, entre os séculos XVII e XVIII,

muitos fugiram e, assim, se dispersaram e outros acabaram casando e se relacionando com os

portugueses, por meio da religião, com a catequese. Entretanto, ela reforça que a catequização

e vivência com os estrangeiros não se deram de maneira pacífica e que, apesar do pouco poder

organizativo, tentaram resistir como podiam. A professora reforça afirmando que, suas bisavós

indígenas, contavam que foram pegas a “dente de cachorro”, como explica:

Gosto de usar essa expressão porque isso mostra que eles não eram tão

passivos e tão pacíficos como a história quer contar. Então, eles foram

aprisionados, obrigados a viver com o homem branco ainda criança [...] Meus

tataravós são índios 100%, já os meus bisavós, eu os conheci. Conheci minha

bisavó porque ela faleceu no século XX e muito idosa com cento e poucos

anos. As conheci e tinham todo o traço físico indígena. Tinham uma crença

de tudo o que era da natureza, não conviviam com o homem branco, elas

preferiram, inclusive, continuar morando no Boqueirão mesmo que os filhos,

mais tarde, migrassem para morar na sede do distrito, mas, viveram e

morreram perto da natureza (OLIVEIRA, 2016).

Compreendemos os cuidados exigidos pela História Oral, pois, sabe-se que a memória

do indivíduo seleciona as lembranças a partir de relações subjetivas que não podem passar por

despercebidos pelo pesquisador. Além disso, todo documento é imbuído de intencionalidade

Page 4: Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria ... · Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria: história, memória e ensino Patrícia Matos de Almeida1 Larissa

política e, nesse caso, a depoente tem a necessidade em reafirmar a importância dos Payayá

para a história da localidade em questão.

Assim, por não encontrarmos este povo, de forma substancial, em documentações

oficiais, a História Oral foi determinante para a elaboração deste processo já que ela “se

constitui em parte integrante do debate sobre a função do conhecimento social e atua em uma

linha que questiona a tradição historiográfica centrada em documentos oficiais” (MEIHY, 2005,

p. 19).

Dessa forma, elaborou-se uma sequência didática que levasse em conta estas questões a

partir, também, da desconstrução de estereótipos a respeito dos povos indígenas e do

questionamento sobre a noção que afirma que eles estariam fadados a extinção.

1- Relato de experiência: Os Payayá existem e resistem em nossa memória

O projeto oficina intitulado “Os Payayá existem e resistem em nossa memória: a

presença indígena no distrito de Maria Quitéria, na cidade de Feira de Santana, Bahia” foi

desenvolvido com as turmas de 7º ano do Colégio Municipal José Tavares Carneiro, a partir do

reconhecimento da necessidade de pensar a participação e influência indígena na formação do

distrito, como também de Feira de Santana.

Assim como o trabalho realizado anteriormente no Colégio, voltado para o estudo da

população quilombola daquela localidade, esse projeto foi também pensado e desenvolvido de

maneira coletiva através da atuação das bolsistas ID e supervisora. A sua base foi reconhecer e

problematizar a existência de outro caminho que, apesar de silenciado, contribuiu para a

formação daquela localidade e, a partir disso, nos mobilizar para a criação de uma proposta

voltado para o ensino básico.

Com o objetivo de estudar interdisciplinarmente a temática indígena, com destaque para

a etnia Payayá, todo o projeto foi desenvolvido com foco no letramento dos discentes cuja

metodologia procurou utilizar recursos lingüísticos como fotografias, vídeos e crônicas. Dessa

forma, buscando reconhecer a diversidade cultural indígena na história do Brasil e compreender

a experiência dos Payayá no distrito de Maria Quitéria, o projeto está ocorrendo no Colégio

desde o mês de março do ano de 2016.

A primeira etapa do trabalho foi elaborada com a intenção de diagnosticar as condições

de alfabetização e interpretação textual dos alunos das turmas selecionadas para serem

participantes das oficinas. A atividade diagnóstica foi elaborada tendo como justificativa o

Page 5: Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria ... · Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria: história, memória e ensino Patrícia Matos de Almeida1 Larissa

reconhecimento da deficiência no processo de alfabetização nas séries iniciais (fundamental I e

II), como também o entendimento de que os discentes são sujeitos ativos no processo de

formação escolar e possuem visão ou compreensão de mundo construída ao longo da sua

existência que deve ser exteriorizada e respeitada por todos.

Assim, ela foi, cautelosamente, elaborada levando em consideração o recorte temático

do projeto e elencou dois objetivos: avaliar as condições de alfabetização e letramento dos

alunos do 7º ano através de questões que serão respondidas pela leitura de dois textos com

linguagens diferentes; sondar sobre os conhecimentos prévios referentes aos povos indígenas

no Brasil a partir de questões que serão feitas aos alunos.

Nesse contexto, foram selecionados textos com diferentes linguagens: o primeiro texto

foi um trecho sobre a população Payayá retirada da obra de Agildo de Souza Barreto (2003),

intitulada como A praça da Bandeira e outras bandeiras, e o segundo foi a charge retirada da

página online Tiras Armadinho. Para ambos os textos foram elaboradas questões visando a

problematização do conteúdo presente em cada material. Assim, a atividade, dividida em dois

momentos, foi iniciada com uma breve apresentação do novo projeto, salientando a importância

do mesmo para o melhor conhecimento de quem somos.

Dessa forma, o primeiro momento, foi caracterizado pela distribuição das atividades

para que, sem uma inicial interferência dos bolsistas, pudessem fazer uma leitura silenciosa do

texto narrativo e respondessem as três primeiras questões. Passados vinte minutos, iniciamos o

segundo momento que foi composto por uma discussão oral para que pudéssemos reconhecer

os conhecimentos prévios sobre a temática, a partir do contato com a primeira atividade

realizada. Este processo foi orientado por meio das seguintes perguntas elencadas para o debate:

O que vocês sabem sobre os povos indígenas? O que, para você, é ser índio? Vocês conhecem

alguma comunidade indígena? Vocês acham que aqui, distrito de Maria Quitéria/ São José,

houve ou ainda há índios/ indígenas?

Nesse sentido, a participação discente foi significativa e elementar neste momento, pois,

através dela, percebemos o que os mesmos pensavam sobre as populações indígenas. Assim,

notamos que grande parcela acreditava na existência do indígena isolado na mata e distante de

nossa realidade, outros chegaram a ter algum contato por meio da visita destes em outras escolas

onde estudaram, mas, sem grande apreensão de sua diversidade reafirmando, a importância

deste trabalho para esta comunidade escolar.

Page 6: Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria ... · Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria: história, memória e ensino Patrícia Matos de Almeida1 Larissa

Após a discussão oral, o terceiro momento tratou de fazer uma leitura em voz alta do

texto interpretado, individualmente, no primeiro momento. Depois, propomos uma discussão

oral para interpretarmos, coletivamente, elementos problematizados por Agildo de Souza

Barreto sobre os Payayá e só, por fim, os estudantes puderam terminar de executar a atividade

escrita a partir da leitura da charge. Ainda, é importante frisar que as questões elaboradas foram

pensadas no intuito de trazer à tona possíveis dificuldades interpretativas e ortográficas dos

alunos, como também possibilitar que os discentes observassem semelhanças ou diferenças

entre sua vida e a dos sujeitos trabalhados nos textos.

Assim, toda a atividade permitiu que os alunos se questionassem sobre identificar-se

ou não como indígena, reconhecendo ou não heranças, legados, presenças desses povos na sua

própria vida. É importante salientar que toda a atividade diagnóstica foi construída em parceria

com o setor pedagógico do Colégio, especificamente, com as contribuições elementares da

pedagoga Gilcelia Santos Ressureição.

Em prosseguimento, a segunda atividade do projeto, realizada nas turmas, foi a oficina

intitulada “Povos tradicionais: iguais na diferença”, que teve como objetivos: evidenciar a

diversidade indígena existente no território brasileiro como também americano, possibilitando

que o aluno compreenda e reflita sobre essa diversidade a partir da visão que eles possuíam até

então sobre o assunto e que foi adquirida ao longo da sua vivência; possibilitar a partir do debate

sobre diversidade que os alunos do 7º ano problematizem estereótipos construídos sobre os

povos indígenas ao longo do tempo, como também possibilitar a reflexão sobre a atual situação

das populações indígenas no Brasil.

Mais uma vez, com a utilização de diferentes linguagens (vídeo, fotografias e crônica),

a atividade foi dividida em dois momentos: no primeiro houve a exibição do vídeo intitulado

Pluralidade Cultural – Índios no Brasil – Quem são eles? (1990), e, posteriormente, estudo da

crônica Da condição e costumes dos índios da terra de Gândavo (1570), ambos com discussão

oral e atividade escrita.

O trabalho com o audiovisual foi marcado pela indagação aos alunos a respeito daquilo

que tratou a exibição, bem como, se estes concordavam ou não com as visões estereotipadas

sobre os povos indígenas. Decorrida esta etapa, os discentes foram divididos em grupos e, de

maneira escrita, responderam questões relacionadas ao vídeo. Ainda nesse primeiro momento,

algumas imagens foram utilizadas para ampliar o debate sobre a atuação indígena em diversos

espaços, o que nos possibilitou perceber o estranhamento dos alunos ao observarem que

Page 7: Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria ... · Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria: história, memória e ensino Patrícia Matos de Almeida1 Larissa

representantes indígenas atuam e ocupam diferentes espaços, mostrando que a sua apropriação

sobre diferentes campos de atuação não se limita àqueles já conhecidos como tradicionais pela

maioria.

O segundo momento caracterizou-se pela leitura de uma crônica do século XVI no qual

algumas modificações com relação ao uso de algumas palavras foram feitas para que se tornasse

claro para alunos de 7º ano. É importante deixar claro que tais mudanças não retiraram a

complexidade do texto, apenas, possibilitou uma leitura na qual os objetivos pudessem ser

alcançados. Assim, a dinâmica de apresentação da crônica repetiu a leitura coletiva, um breve

momento de debate buscando expor suas informações chaves e depois, em grupo, os alunos

responderam mais um conjunto de perguntas. Esta atividade nos surpreendeu haja vista o fato

de que alguns alunos identificaram Gândavo (1570) como etnocêntrico demonstrando um grau

de compreensão aprofundado.

Ainda, como todo o projeto foi construído tendo como base o letramento, as atividades

respondidas pelos estudantes foram recolhidas e revisadas pelas bolsistas para que,

posteriormente, tivessem um encontro particular com os grupos que objetivou a reescrita da

atividade no intuito de melhorar elementos como coerência e coesão, levando em consideração

as dificuldades apresentadas por cada um.

A primeira fase do projeto foi concluída com a realização dessa oficina. A segunda

oficina está em desenvolvimento e a mesma será voltada para o estudo especifico da etnia

Payayá e suas contribuições para a formação do distrito de Maria Quitéria e Feira de Santana,

cidade sede. Como a disponibilidade de material referente a essa etnia é escassa, os sujeitos

envolvidos no projeto estão captando esse material através de entrevistas com descendentes,

como também através de revisão bibliográfica.

Até o presente momento, foi decidido que ela será dividida em duas etapas. A primeira

corresponderá à uma apresentação sobre a história que corresponde as regiões, hoje, pertencidas

ao município feirense na quais viveram os Payayá em meados dos séculos XVII e XVIII para

contextualização a respeito do que será problematizado posteriormente. As principais pesquisas

que nos ajudaram a compor este estudo foram Andrade (1990) e Santos (2011) no qual, o

primeiro, abordou sobre a história da cidade no período em questão e, o segundo, pensou

comunidades indígenas do sertão, incluindo a Payayá, a partir da dimensão da resistência desses

povos no processo de conquista e colonização. Esta primeira etapa ainda consistirá de um

Page 8: Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria ... · Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria: história, memória e ensino Patrícia Matos de Almeida1 Larissa

pequeno vídeo com a fala da descendente indígena e posterior discussão oral e execução de

uma atividade escrita.

O segundo momento desta segunda oficina terá como objetivo a exposição de uma aula

a respeito do que trata o gênero crônica para que os estudantes possam, no final, construir a sua

sobre os Payayá a partir do que foi estudado até aqui. Esse momento ainda contará com a leitura

de uma crônica, intitulada como Uma descoberta!, escrita por uma bolsista do grupo, Almeida

(2016), sobre esta temática para que possam ter como referência quando forem compor as suas:

Uma descoberta!

Eram nas serras, nas lagoas, um pouco longe da agitação citadina, há dois

séculos e muito antes disso, muito, muito mesmo... Estiveram ali, andavam de

lá pra cá em busca de alimentos para sobreviver celebrando e agradecendo o

que a natureza lhes proporcionava.

Viviam juntos, com os pés fincados no chão, nas regiões que, hoje, preservam

sua herança de maneira pouco escondida por debaixo da pele negra do povo

local, mas, evidenciados nos costumes que nunca se afastaram da terra. E se

mostram na brincadeira de roda das crianças, nos alimentos, no balançar da

rede...

Apareceram, para nós, por meio da linguagem poética que repete um “assim

que ouvi dizer, assim que ouvi contar”. Não estão muito, ou quase nada,

presentes nos papéis oficiais mas, estão na memória de seus descendentes e

na história do distrito de Maria Quitéria e de Feira de Santana - sua cidade

sede - e, portanto, são parte daqueles que nasceram nesses locais, são parte de

nós. Nós, que agora enxergamos que nossa ancestralidade também é Payayá.

Sim, Payayá! Os indígenas das serras, da Lagoa Grande, do Boqueirão, de São

José3 e da nossa vivência que, agora, fica mais completa e aberta para novos

saberes por meio de suas memórias... E hoje, por fim, nos fazem ver que a

história feirense é, também, a história dos índios Payayá e o que está por vir,

fica por conta da nossa participação (ALMEIDA, 2016).

Em meio a este processo, a escola recebeu a visita do grupo musical Coisa de Índio4 que

se apresentou no pátio com a presença de todos os alunos que puderam, ainda, elaborar

perguntas e ouvir sobre as experiências dos músicos pertencentes a diferentes etnias do

Nordeste. Neste interim, as turmas também estiveram presentes na exposição Indígenas do

Nordeste: Cultura, Identidade e Resistência5 realizada pelo Museu Casa do Sertão (UEFS),

com a curadoria da professora Patrícia Navarro de Almeida Couto. Assim, os estudantes

3 Lagoa Grande, Boqueirão e São José são regiões pertencentes ao distrito de Maria Quitéria, cidade de Feira de

Santana, BA. 4 Ver página oficial em: <https://www.facebook.com/fanpagecoisadeindio/>. Acesso em: 27/10/2016. 5 Mais informações sobre a mostra, ver: <http://www.uefs.br/2016/07/455/Museu-Casa-do-Sertao-realiza-

exposicaoIndigenas-do-Nordeste-Cultura-Identidade-e-Resistencia.html>. Acesso em: 27/10/2016.

Page 9: Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria ... · Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria: história, memória e ensino Patrícia Matos de Almeida1 Larissa

puderam ter contato com diferentes povos do nordeste e aprenderam sobre suas vivências e

processo de luta e resistência. Portanto, não souberam sobre estes sujeitos a partir, somente, de

não indígenas, mas, através dos próprios ocupando lugares de fala que lhes são legítimos.

Considerações finais:

Podemos concluir nosso escrito destacando a importância da experiência que o PIBID,

enquanto projeto de iniciação a docência, nos possibilitou ter a partir da realização das oficinas

no Colégio Municipal José Tavares Carneiro, momentos e encontros ímpares para o nosso

desenvolvimento enquanto profissionais. Acreditando que a formação docente é contínua, logo

não finda com a colação de grau e, projetos como esse devem ser mantidos e ampliados, pois

na ausência de manual ou fórmula pronta para a atuação docente, a prática é o caminho a ser

seguido, sempre lembrando que o ser humano é resultado de vivências, de cotidiano, de embates

e lutas.

A construção detalhada (busca por fontes, documentação) de todo o trabalho também

foi elementar, pois acreditamos que a docência não está separada da pesquisa: é necessário o

seu ato, a busca, a leitura e a seleção por parte do docente no tocante ao assunto que será

trabalhado em sala com os discentes. Nesse sentido, concordamos que “para formar qualquer

professor, temos que formar um estudioso, um pesquisador, porque, com essa perspectiva nova

do conhecimento, não existe um conhecimento pronto acabado em área nenhuma, não existem

verdades absolutas” (ANDRADE, 2006, p. 116).

Em diálogo com essa reflexão da ausência de verdades absolutas, destacamos também

outra percepção que norteou nosso trabalho: reconhecer que os discentes possuem

conhecimentos que devem ser ouvidos e debatidos no espaço escolar. Conhecimentos esses

adquiridos ao longo da sua vida em outros espaços e em diálogo com outros sujeitos, assim,

reconhecer a existência de conhecimentos prévios é elementar para nos afastarmos da ideia de

que o professor é o guardião do saber e o aluno o vaso a ser preenchido. A própria escolha do

formato no qual o assunto seria abordado, aulas- oficinas, foi pensada justamente com o

objetivo de estabelecimento da conversa, da troca, da exposição das diversas reflexões sobre o

tema.

Nesse contexto, a educação deve ser construída tendo como base a alteridade, o

reconhecimento de que nós existimos porque o outro existe também e ele é diferente, não

inferior ou superior. Compreendendo que podemos descobrir o outro em nós mesmos,

Page 10: Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria ... · Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria: história, memória e ensino Patrícia Matos de Almeida1 Larissa

poderemos construir um discurso e uma prática, não apenas docente ou discente, mais humana,

mais preocupada com o bem-estar coletivo e a preservação e respeito a vida.

Ainda, aprendemos do lugar do qual falamos, estudantes de graduação, a respeito da

importância em buscar diálogos com outras disciplinas no sentido de pensar uma educação

interdisciplinar que prime pela desfragmentação no processo de construção do conhecimento.

Também, refletimos com os Payayá, a importância de pensar estes povos como sujeitos da

história. História, esta, refletida pela descendente Oliveira (2016) que reitera:

A gente negar ou não buscar as nossas origens e não passar pra esses jovens o

desejo de ir atrás dessas origens, é negar o futuro porque tudo o que a gente é

hoje depende do que foram os nossos antepassados e, deixar isso fechado sem

procurar saber como foi e o que aconteceu, é apagar a história. E uma pessoa

sem história não existe (OLIVEIRA, 2016).

Finalmente, o trabalho desenvolvido até aqui, demonstrou as possibilidades e

importância de pensarmos em metodologias que reflitam sobre a temática em questão. Nossa

experiência foi considerada exitosa, pois, nos fez sair do lugar comum e vivenciar a concepção

de professor-pesquisador haja vista o fato de que construímos uma documentação para discutir,

não apenas o tema em dimensão nacional, mas, local que provocasse nos estudantes um

reconhecimento identitário com um povo que, certamente, ajudou a compor a formação da

comunidade na qual a escola está inserida. Dessa forma, desejamos que tal experiência se

configure como estimulo para que profissionais da área trabalhem a temática em uma educação

que se pretende cada dia, mais plural.

Referências:

ALMEIDA, José Luís Vieira de. Interdisciplinaridade: uma abordagem histórica com ênfase no

ensino. Anais eletrônicos. VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Coimbra,

16, 17e 18 de setembro de 2014.

ALMEIDA, Patrícia Matos De. Álbum. (4 fotografias coloridas, dimensões variadas), 2016.

(inédito).

ALMEIDA, Patrícia Matos De. Uma descoberta! In: Os Payayá existem e resistem em nossa

memória: a presença indígena no distrito de Maria Quitéria, na cidade de Feira de Santana,

Bahia. PIBID, UEFS, 2016 (inédito).

Page 11: Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria ... · Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria: história, memória e ensino Patrícia Matos de Almeida1 Larissa

ANDRADE, Celeste Maria Pacheco de. Origens do Povoamento de Feira de Santana: um

estudo de história colonial. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia. Salvador

(BA), 1990.

BARRETO, Agildo Souza. A praça da Bandeira e outras bandeiras. Ipirá- Bahia, 1º Edição,

junho, 2003.

ANDRADE, Maria Celeste Moura. Depoimento oral. In: RASSI, Antônio Caixeta; FONSECA,

Guimarães. Saberes docentes e práticas de ensino de história na escola fundamental e média.

SAECULUM – Revista de História (15); João Pessoa, jul./ dez. 2006.

FERREIRA, Carlos Augusto Lima; MACÊDO, Leonardo Silva Santa Rosa; ARAGÃO,

Lusanira Nogueira; PINHEIRO, Sandra Cristina Queiroz. Relato de experiência do Pibid

Interdisciplinar História, Geografia e Letras: olhares em convergência, vivências e

aprendizados na educação básica. Revista História Hoje, v. 4, nº 7, p. 245-267 – 2015.

ÍNDIOS NO BRASIL - Quem são eles? Produção: TV Escola. 1990. Disponível em:

<http://tvescola.mec.gov.br/tve/video/indios-no-brasil-quem-sao-eles>. Acesso em:

18/10/2016.

GÂNDAVO, Pero de Magalhães [1570]. Tratado de Terra do Brasil. Ministério da Cultura,

Fundação Biblioteca Nacional, Departamento Nacional do Livro, s/d, p. 12-13.

OLIVEIRA, Celeste A. P. de. Entrevista I. [set. 2016]. Entrevistadores: bolsistas ID e

supervisora Sandra Cristina Queiroz. Feira de Santana, 2016. 1 arquivo MVI (45’47”).

OLIVEIRA, Leila Maria de. A Interdisciplinaridade e a Transversalidade na abordagem

da educação para as Relações Étnico-Raciais. São Paulo, 2012. Disponível em:

<http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2013/03/Leila-Oliveira.pdf>.

Acesso em: 18/10/2016.

PEREIRA, Adriana. Álbum. (1 fotografia colorida, dimensão: 10,12 cm.; 15,5 cm.), 2016.

(inédito).

SANTOS, Solon Natalício Araújo dos. Conquista e Resistência dos Payayá no Sertão das

Jacobinas: Tapuias, Tupi, colonos e missionários(1651-1706). Dissertação de Mestrado.

Universidade Federal da Bahia. Salvador (BA), 2011.

ANEXOS:

Page 12: Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria ... · Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria: história, memória e ensino Patrícia Matos de Almeida1 Larissa

Figura 1: Discussão oral sobre a atividade respondida na primeira oficina “Povos tradicionais: iguais na diferença”.

Fonte: Almeida, 2016.

Figura 2: Exibição do vídeo “Índios no Brasil – Quem são eles?” apresentado na primeira oficina “Povos

tradicionais: iguais na diferença”. Fonte: Almeida, 2016.

Page 13: Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria ... · Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria: história, memória e ensino Patrícia Matos de Almeida1 Larissa

Figura 3: Visita a exposição “Indígenas do Nordeste: Cultura, Identidade e Resistência” apresentada pelo estudante

de Filosofia, Ângelo de Oliveira França, da etnia Kaimbé. Fonte: Almeida, 2016.

Figura 4: Supervisora, bolsista ID e integrantes do grupo musical “Coisa de Índio”, ambos estudantes universitários

e pertencentes à etnia Pankararu. Fonte: Pereira, 2016.

Page 14: Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria ... · Os indígenas Payayá e o Distrito de Maria Quitéria: história, memória e ensino Patrícia Matos de Almeida1 Larissa

Figura 5: Gravação do depoimento da descendente Payayá, Celeste A. P. de. Oliveira. Fonte: Almeida, 2016.