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OS LABIRINTOS DA LOUCURA: OS DESAFIOS DA PESQUISA COM NARRATIVAS DE “LOUCOS” PARA A ESCRITA DA HISTÓRIA

Thamara Parteka1 (UNIOESTE-CNPQ)

Yonissa Marmitt Wadi2 (UNIOESTE; CNPq)

Resumo: A literatura autobiográfica é uma fonte privilegiada para historiadores terem acesso a questões subjetivas, pois possibilita refletir sobre o sujeito a partir de seu próprio texto e não pelo que outros disseram dele. Isto não significa que o historiador se absterá de problematizar este tipo de escrita, pois será preciso detectar os filtros construídos pelos autores, perceber as maneiras como escrevem, as quais de forma alguma são neutras, pois estes selecionam fatos, silenciam dados e ordenam à narrativa. Neste trabalho, pretendemos problematizar um tipo específico de escrita autobiográfica, aquela construída por uma pessoa considerada louca. Este tipo de narrativa há pouco tempo, passou a ser considerada uma fonte historiográfica confiável, principalmente pelos desafios que coloca aos pesquisadores, mas sua utilização como fonte tem servido de forma expressiva para um maior debate dentro do campo específico da História da Loucura e da Psiquiatria, bem como para a reformulação de questões teóricas e metodológicas dentro do campo ampliado da História e das demais Ciências Humanas. Neste sentido, o objetivo deste trabalho é debater os desafios, dificuldades, limites, possibilidades e particularidades deste tipo de fonte. Palavras-chave: literatura; autobiografia; narrativa; loucura; escrita da história.

1Mestranda em História, Poder e Práticas Sociais, na Universidade Estadual do Oeste do

Paraná – UNIOESTE – PR / Brasil. Bolsista de Extensão no País – EXP/C – CNPq, pelo Projeto “Gênero, Instituições e Saber Psiquiátrico em Narrativas da Loucura”. Email: [email protected]. 2 Doutora em História; Professora Associada da Universidade Estadual do Oeste do Paraná –

UNIOESTE, PR / Brasil. Bolsista PQ-CNPq. Coordenadora do Projeto “Gênero, Instituições e Saber Psiquiátrico em Narrativas da Loucura”. E-mail: [email protected]

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As narrativas da loucura e a autobiografia, entre gêneros, o espaço

autobiográfico

Pretendo começar essa discussão com uma pergunta fundamental:

poderia haver uma narrativa da loucura, a qual não fosse autobiográfica?

Prontamente alguém poderia dizer que sim, que o contrário seria um

reducionismo a respeito da escrita de pessoas que passaram pela experiência

da loucura, acrescentando talvez, que a autobiografia como fonte, traria certos

limites à pesquisa por ter um compromisso maior com a “realidade” e não

permitir que haja o desenvolvimento da questão imaginária, como de uma

literatura não biográfica, e/ou ainda, como afirmou Paul de Man em seu artigo

A autobiografia como des-configuração3 não considera a autobiografia como

um gênero literário “uma vez que o conceito de gênero designa uma função

tanto estética quanto histórica, o que está em jogo é não somente a distância

que protege o autor de autobiografia de sua experiência, mas a possível

convergência de estética e história” (PAUL DE MAN, 2012, s/p). Neste sentido,

vale ressaltar que o autor não considera a autobiografia como um gênero

literário, ao contrário, coloca-a hierarquicamente em uma condição inferior:

...já que, comparada com a tragédia, ou com a poesia épica ou lírica, a autobiografia parece sempre ligeiramente desacreditada e auto-indulgente de um modo que pode ser sintomático de suas incompatibilidades com a dignidade monumental dos valores estéticos (PAUL DE MAN, 2012, s/p).

Essa visão do autor é decorrente da própria maneira reducionista que se

limita a olhar para a autobiografia, pois como Margareth Rago apontou na

introdução de seu livro A aventura de Contar-se, genuinamente a autobiografia

era masculina e apresentava uma necessidade de purificação pela escrita

confessional, a qual “visava zerar o passado e aliviar a alma” (RAGO, 2013,

p.58), mas isso numa perspectiva tradicional, pois como forma de se opor essa

tradição, ela analisa autobiografia de feministas, as quais:

3 Originalmente publicado em Modern Language Notes, 94 (1979), 919-930; republicado em

The rhetoric of romanticism. Nova York: Columbia University Press, 1984, pp. 67-81. Tradução de Joca Wolff. Revisão de Idelber Avelar. Disponivel em: http://www.culturaebarbarie.org/sopro/outros/autobiografia.html#.U_IAqvldVH0 Acesso 18/08/14 às 10h39.

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...acentuam a dimensão do testemunho, apontando para a denúncia

das violências sofridas pelo terrorismo do Estado, pelo autoritarismo do partido político, pela Igreja ou pelos preconceitos sexuais e sociais. Ao contrário de um mea-culpa, afirmam a necessidade e a importância das rupturas subjetivas realizadas e buscam legitimá-las, apesar das diferenças que caracterizam a maneira como olham para si mesmas e redesenham suas trajetórias pessoais (RAGO, 2013 p.58).

O que Paul de Man vê como aspecto negativo da autobiografia “cada

exemplo específico parece ser uma exceção à norma; as próprias obras

parecem sempre obscurecer-se em gêneros vizinhos ou mesmo incompatíveis”

(PAUL DE MAN, 2012, s/p) é justamente o que torna a narrativa mais rica, pois

transpassa os gêneros sofrendo e exercendo influência. Nosso objetivo, aqui

não é categorizar a autobiografia, nem de apresenta-la como fiel ou infiel a

“realidade” extratextual, mas justamente compreender o discurso como

constituinte da própria realidade.

Para a reflexão deste debate, devemos levar em consideração três

aspectos: primeiro, como outros autores pensaram a autobiografia, segundo, o

discurso como constituinte da realidade e terceiro, considerar a narrativa da

loucura como uma tecnologia da existência. Neste sentido percebemos que a

autobiografia, durante muito tempo, foi vista como um subgênero literário, a

qual serviria muito mais para promover autores do que possuir um valor

literário. Neste sentido, os críticos literários, por muito tempo, desaprovaram-

na, justamente, por ter uma pré-classificação do entendiam como literário,

assim a autobiografia não se tratava nem de um texto literário nem de um

relato “verdadeiro”, pois qual seria a confiabilidade deste relato? Qual seria o

valor literário da autobiografia? Em outras palavras diziam o seguinte: Se se

trata de uma narrativa literária não ficcional, então como podemos medir a

verdade do relato? Como confiar se o que escritor escreveu se trata do “fato

como ocorreu”?

O que menos nos interessa é variabilidade dos fatos, mas sim como a

pessoa construiu sua narrativa e no momento da escrita (re)inventou a si

própria. E nisso, implica, compreender a escrita de si4 e o discurso5 como parte

4 Para Foucault a escrita de si é um exercício pessoal “praticado por si e para si é uma arte da

verdade constrastiva; ou mais precisamente, uma maneira refletida de combinar a autoridade tradicional da coisa já dita com singularidade da verdade que nela se afirma e a particularidade das circunstâncias que determinam seu uso” (FOUCAULT, 1992 p.5).

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fundamental da realidade, e, não como instâncias díspares ou contraditórias,

pois “é em e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito, porque só

a linguagem funda na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de

„ego‟” (BENVENISTE apud ARFUCH, 2010, p.123).

Neste sentido contribuiu Philippe Lejeune, o qual em O Pacto

Autobiográfico (1975) ampliou a concepção de autobiografia e firmou-a como

um gênero literário. Lejeune, teórico literário, dedicado a escrita autobiográfica,

afirma que para existir a autobiografia deveria existir o pacto autobiográfico, o

qual consiste que o narrador e o personagem tenham o mesmo nome do autor,

afirmando um pacto. Uma das primeiras definições que Lejeune fez é que a

autobiografia se trata de “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real

faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em

particular a história de sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p.15).

Lejeune ao longo dos anos e do contato com outras fontes e novas

problemáticas, buscou rever seu conceito de autobiografia de pacto

autobiográfico. A partir de seus estudos muitos pesquisadores se dedicaram a

estudar a autobiografia, não somente nos estudos literários, mas sociológicos,

historiográficos, psicológicos, enfim pesquisas comprometidas com os estudos

culturais. Na medida em que diferentes pesquisadores se debruçaram sobre o

tema, os conceitos foram se ampliando, assim como novas referências

metodológicas foram aparecendo a partir das problemáticas das fontes.

Dentre os autores que dialogaram com Philippe Lejeune e buscaram

ampliar sua concepção de autobiografia, poderíamos citar a pesquisadora

argentina Leonor Arfuch, a qual a partir da noção de espaço autobiográfico

busca pensar a autobiografia não apenas como um gênero literário, mas como

um espaço, pois permite uma leitura transversal e intersubjetiva. Pois, permite

analisar não somente a produção/reprodução dos cânones, “mas também seus

desvios e infrações, a novidade, o „fora de gênero‟” (ARFUCH, 2010).

Nosso objetivo, diferente dos autores expostos é compreender a

autobiografia enquanto um espaço de escrita de si e de produção de

5 Para Foucault a produção do discurso é “controlada, selecionada, organizada e redistribuída

por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (...) o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar (FOUCAULT, 1996).

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subjetividade. Acerca desses elementos, Arfuch contribuiu muito para a

pesquisa autobiografia, pois permitiu transpor limites de categorização do

gênero6, do mesmo modo que contribuiu para pensarmos a narrativa dos

loucos, a qual não está apenas nas cartas que escreviam para seus parentes e

amigos, ou nos diários que os médicos pediam para escrevesse como forma de

terapia ou para ter a confirmação de um diagnóstico. A escrita de si está nos

cadernos, nos livros, nos blogs, na internet, nas telas, enfim, a autobiografia

mais que ser uma narrativa em que apresente o pacto autobiográfico, é uma

narrativa que apresenta o olhar, as leituras e a própria constituição do autor

enquanto sujeito. Na narrativa da loucura, acerca desses elementos de

constituição do sujeito, está fortemente à presença da institucionalização seja

na tentativa de objetiva-lo, de enquadrá-lo em determinado sintoma ou doença,

seja na tentativa do sujeito dobrar-se sobre esse eu objetivado, buscando um

processo de transformação, de construção da subjetividade no processo da

própria escrita.

A narrativa da loucura é mais do que uma narrativa de uma pessoa que

passou pela experiência do enlouquecimento e institucionalização, é uma

narrativa que procura dar sentido a própria vida extradiscursiva. É uma

narrativa que tem como pano de fundo a loucura e a instituição psiquiátrica,

mesmo se propondo falar sobre outros temas como futebol, arte ou literatura,

pois ao falar de si e sua relação com o mundo, o sujeito não pode esquecer o

diagnostico ou a medicalização, por que sempre o lembram de que é louco.

Seja por tomar lexotan, seja por não gostar de sair de casa ou por sentir coisas

que outras pessoas não sentem. Assim ao falar do eu em relação ao mundo

estará presente este discurso e saber médico.

A narrativa da loucura fala da loucura, mas não apenas dela, pois o

sujeito considerado como louco não se constitui apenas como louco, mas,

também louco, flamenguista, brasileiro, esportista, etc. No trecho abaixo,

6 Lejeune ao definir autobiografia como “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real

faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p.15) deixou de considerar a poesia e outros supostos gêneros literários de caráter autobiográfico, então ao invés de classificar prosa como autobiográfico e poesia como não, arfuch elaborou uma nova concepção que desse conta de sanar não apenas as problemáticos do gênero literário, mas também do gênero discursivo que estão presentes nos blogs, sites, a noção de espaço (auto)biográfico.

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escrito por Rodrigo de Souza Leão (1965-2009) autor considerado louco,

podemos ver os seguintes aspectos:

Ganhamos. Sufoco total. Dia do jogo do Brasil. Eu me preparei para esta Copa do Mundo. Comprei até uma camisa da seleção, mas só vou usá-la se o Brasil ganhar o caneco. Gosto de amarelo. A gravata de Maiakovski era amarela. Era a gravata que ele mais gostava. Na verdade era um pano que cortou e usou como tal adereço. Tomei um Lexotan e mais os remédios de praxe. Consigo enxergar com os meus óculos a gordura de longe. Ronaldo está tão gordo quanto Lula. O Lexotan é um remédio inofensivo que muita gente não toma para não perder a memória. Pra que wserve a memória? Só serve pra eu lembrar de meus traumas. Todas as gaiolas voam. Sou um canário preso. Mas faço tudo voar dentro e fora. Voa canarinho, voa. Por isso tomo os remédios sem medo de ser feliz. Mas num sei se voto no Lula de novo. Aliás, eu não voto. Estou muito velho para isso e não pretendo fazer nenhuma viagem ao exterior. Só saio para ir ao jornaleiro para comprar jornais sobre o futebol. Vi quase todos os jogos até agora. Torci pelo Zico. Mas até agora surpresa mesmo só Trinidad Tobago! Não tenho nenhuma informação sobre Trinidad. [...] Robinho tem lugar neste time. Pedala Brasil. Enquanto isso, enquanto espero os outros jogos achando que o nosso time tem que melhorar, tiro a camisa de força e o coração na boca pulsa de nervosismo. Mais um Lexotam e tudo bem. Que venha a Austrália e seus gangurus [sic] assassinos de camicases. O país se nutre do caos que gera. O Haldol é um remédio azul, bem que poderia ser amarelo (LEÃO, 2006)

7.

Em sua escrita está presente sua história da leitura, na qual apresenta

suas referências literárias, através da citação de Maiakovski, além de fazer

referência a sua relação cotidiana com os remédios, com a doença e assim, de

forma poética, metaforiza a seleção brasileira consigo através da palavra

“canarinho”. Além disso escreve que faz tudo para voar “dentro e fora”

referindo-se “dentro”, no período que este internado, ou seja, preso pela

institucionalização e no momento que estava “fora”, período que estava em

casa, ou seja, preso pelas sensações que a doença lhe dava. Rodrigo fala de

seus traumas e de suas memórias e mais que isso, fala do próprio apagamento

delas por conta da medicação. Assim, a institucionalização da loucura além de

criar marcas no presente do sujeito, através da intervenção, o faz, ao mesmo

tempo, no passado ao “apagar” memórias através dos remédios.

Do mesmo modo, que se o texto de uma pessoa considerada “normal”

abordar sobre a loucura, não fará dele uma narrativa da loucura, pois não se

trata de fazer uma simples referência temática, mas se trata da necessidade do

7 Disponível em: http://lowcura.blogspot.com.br/2006/06/copa-do-mundo-1-ganhamos.html

Acesso 15/08/2014 às 23h48.

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autor em escrever o próprio texto para dar sentido a vida extratextual “a

narração é a condição de uma experiência vivida mais humana, porque a

narração dá forma e sentido ao tempo vivido, isto é, exterior, real, concreto”

(RICOEUR apud REIS, 2010, p.70).

Novos olhares para uma nova historiografia

Os autores que atuam no campo da história da loucura e da

psiquiatria8, tais como Sacristán (2005), Venancio, Wadi (2011) e Huertas

(2013) destacam que os primeiros escritos sobre a história da loucura e da

psiquiatria surgiram ainda no século XIX, durante a própria constituição da

Psiquiatria enquanto ciência. A fim de legitimar sua existência, os próprios

psiquiatras começaram a escrever sua história. Esses relatos partiam de uma

perspectiva tradicional, caracterizada por uma visão panegírica, ou elogiosa

aos primeiros psiquiatras, vistos, principalmente como “grandes homens”, ou

“heróis” da história psiquiátrica. Sua preocupação é de narrar de forma positiva

os sucessos científicos e filantrópicos da primeira psiquiatria: medicalização e

humanização da loucura.

A partir dos anos 1960 surge a história revisionista que pretendeu revisar

e ampliar a perspectiva dos enfoques tradicionais, analisando a loucura e a

psiquiatria por um viés social e cultural. “se hará hincapié en aspectos diversos:

la locura como mito y como construcción social, las respuestas sociales a la

locura, el papel de las instituciones psiquiátricas como instrumentos de control

social, etc” (HUERTAS, 2001, p.17). Neste sentido, Michel Foucault é uma

grande referência não apenas para pensar um sujeito plural, mas a própria

loucura. Sua obra História da Loucura na Idade Clássica (1970) foi um divisor

de aguas não apenas nas ciências humanas, mas nos próprios estudos da

loucura, na medida em que buscou mostrar como a loucura é histórica e se

constitui como tal a partir das relações sociais. Neste sentido, o livro história da

loucura do Foucault desenvolveu toda uma historiografia sobre a

8 Segundo Wadi (2011) “história da loucura e da psiquiatria” é um campo de análise

historiográfica que emergiu entre as décadas de 1960 e 1970 e que se constitui a partir de linhas ou tendências diversas, sendo que os trabalhos que adotam a proposição de analisar a loucura e a prática médica psiquiátrica, além dos pressupostos do próprio saber psiquiátrico, utilizam aportes teóricos oriundos de disciplinas das Ciências Humanas e Sociais como a História, a Antropologia e a Sociologia.

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institucionalização da marginalização do doente mental e contribuiu com ações

e discussões que fortaleceram a luta antimanicomial.

Na década de 1970, surgiram vários estudos que ampliaram a

perspectiva histórica de todo esse processo, modulando seus objetivos,

lançando novos olhares sobre as fontes e contribuindo como uma nova

maneira de se escrever história. Essa historiografia revisionista considerava

que se deve levar em conta a história social, as pesquisas sobre pobreza,

marginalização ou exclusão social ocupam um lugar inegável nesta

perspectiva.

Uma terceira corrente historiográfica surge a partir da década de 1990

que tem como suas premissas ligação com os estudos culturais. Esses estudos

buscaram explorar a articulação da psiquiatria e da doença mental com outras

práticas sociais e culturais. O objeto doença mental também se transmuta na

possibilidade de compreensão do personagem e sujeito doente mental,

enquanto protagonista de sua própria história e, portanto, revelador de uma

experiência e vivência (VENANCIO, 2010). Assim, esta historiografia busca

compreender não só o poder institucional, mas a narrativa daqueles

considerados loucos. Possibilitando analisar o hospício e suas relações a partir

das vivências das pessoas consideradas loucas, as quais passaram a ser

vistas de forma transversal.

Com a contribuição de vários pesquisadores e com o que se denominou

como História Cultural da Loucura e Psiquiatria, a instituição psiquiátrica deixou

de ser vista apenas como meio de exclusão social, mas passou a ser vista a

partir da vivência dos próprios internos, ao mesmo tempo em que o sujeito

considerado louco, passou a ser visto de forma transversal. Assim, objetivo

desta perspectiva não é vitimizar os sujeitos, mas discutir a pluralidade de

experiências de cada sujeito, assim como os processos de subjetivação.

Essa perspectiva tem utilizado como fonte não apenas prontuários

médicos e documentos institucionais, documentos bastante valorados pela

perspectiva tradicional, mas buscaram analisar a instituição psiquiátrica e o

próprio interno, a partir do que as pessoas consideradas loucas diziam. Assim,

diferentes produções materiais elaborados por esses sujeitos, passaram a ser

utilizados como fonte: desenhos, pinturas, cartas, romances, poesias,

narrativas orais, etc.

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Uma narrativa de loucos, uma narrativa da loucura

A partir de uma reflexão poderíamos questionar: existira uma narrativa

especificamente da loucura? Como ela se constitui? Qual sua importância para

a pesquisa historiográfica? Com toda certeza não são questões fáceis de

resolver, principalmente pelo fato de as narrativas não serem homogêneas ou

classificáveis como o pensamento cartesiano está acostumado. A narrativa da

loucura parte sempre de uma vivência da loucura, de uma experiência da

institucionalização, é por sua essencial plural.

Essas narrativas podem se manifestar de diferentes formas como:

telas, cartas, falatórios9, poesias, livros, crônicas, escritos avulsos, falas

dispersas, enfim não há um gênero específico, se constituem em um espaço

autobiográfico, o qual permite reviver experiências, memórias, traumas, modos

de reinventar-se. Algumas possuem características autoficcionais, as quais

são:

Uma nova forma de escrita autobiográfica, própria, talvez, da era pós-moderna, em que a narrativa dos fatos da vida do autor é feita através de uma linguagem própria do gênero romanesco, ou seja, de uma escrita que se pretende artística. Além disso, para muitos, a autoficção também porta fabulações, invenções e distorções em relação à verdade dos fatos, uma vez que permite a introdução, no texto autobiográfico, de sentimentos, desejos, sonhos, frustrações e devaneios do escritor, numa reconstrução inventada e romanceada daquilo que ele viveu. (Doubrovsky apud. SILVA, 2012, p.2).

O autor da autoficção cria um romance de sua própria história, assim ao

invés de ser uma narrativa inventada, baseado no imaginário, ela é

constitutivamente histórica, pois é fundamentada na vida no narrador, mas para

ser mais poética e possuir uma estética o autor utiliza recursos ficcionais na

estrutura e conteúdo do texto.

Algumas narrativas da loucura podem ser consideradas como literaturas

de urgência, as quais são, segundo Luciana Hidalgo, “um tipo de escrita

realizado sob estado de emergência, consolidado como inscrição capaz de ir

além das técnicas de controle corporal no hospital psiquiátrico” (HIDALGO,

2008, p.1). A pesquisadora investigou a obra Diário do Hospício de Lima

Barreto, no qual mostrou como essa literatura nasceu:

9 Refiro-me a forma com que Stela do Patrocínio (interna na Colônia Juliano Moreira durante 30

anos) referia-se as suas poesias faladas. (Patrocínio, 2001, p. 55).

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“contaminada pela loucura e pela rotina no manicômio, sendo simultaneamente uma escrita de si criada para defender o eu acuado ante a instituição e um documento de valor histórico capaz de denunciar, pelo viés do paciente, minúcias do dia-a-dia psiquiátrico, constituindo uma literatura não-oficial do hospício” (HIDALGO, 2008, p.1).

Roy Porter (1987) discute importância das narrativas da loucura para a

produção do conhecimento histórico, pois a partir delas temos acesso ao

cotidiano da instituição psiquiátrica, formas de tratamento, mas também, por

meio delas compreender as ideias, valores e esperanças, daqueles

considerados loucos, bem como a suas concepções acerca do saber médico e

do diagnóstico recebido no lugar e no período que eles estavam internados.

Já a partir da perspectiva de Artière (1998), essas narrativas podem ser

vistas como arquivos da vida, que nos casos dos internos, pode responder a

uma injunção social (com o incentivo médico de que escrevam e desenhem) ou

uma intenção autobiográfica. Através dessas narrativas, se visualiza questões

variadas como as apontadas pela Wadi:

...alguns delineiam o processo de sua enfermidade, os tratamentos

buscados (antes e depois da internação), seu encontro com os hospícios e

as práticas dos diversos sujeitos que lá atuam (médicos, enfermeiros, irmãs

de caridade, administradores, guardas...); alguns se limitam a reivindicar

sua condição de „não-loucos‟, condição esta atestada por médicos

psiquiatras (ou não) quando da internação e ao longo de sua estada nas

instituições; alguns rememoram suas vidas até o momento da internação,

ora no sentido de defenderem-se da „acusação‟ de serem loucos, ora

„acusando‟ outras pessoas (especialmente familiares, amantes, inimigos...)

pela imputação da sua loucura ou pela realização de complôs para

despojar-lhes de seus bens; outros dizem ser vítimas de bruxarias; outros

ainda questionam com ênfase o saber e o poder médico e suas

possibilidades de tratamento e cura de doenças ou de uma doença em

especial, a loucura, que nem todos creem ser deles, mas mais daqueles

que lhes outorgaram um „rótulo‟ (WADI, 2012, p. 13).

Cristina Sacristán apresenta, através destas narrativas, um novo olhar

sobre o manicômio, pois em determinados momentos os próprios pacientes

procuravam o a instituição psiquiátrica:

por voluntad propia y encontraron la cura a sus males, otros relatan haberse

adaptado aunque al principio les pareció un “infierno”, y algunos más

rogaron no ser dados de alta por considerar que estarían peor en su casa.

Para quienes carecían de familia el manicomio se convirtió en una opción

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laboral, pues pidieron ser contratados o poner su propio negocio a fin de no

verse expuestos a la vida en las calles. Así fue como llegaron a trabajar,

incluso de asistentes de los médicos aplicando electroshocks o haciendo

disecciones de cerebros. Para todos ellos, no cabe duda de que el

manicomio fue um lugar para vivir y no un espacio de terror (SACRISTÁN,

2009).

Através destas narrativas é possível ver a particularidade de cada

experiência e compreender que mesmo a experiência da loucura é histórica e

não natural. Através da narrativa de Leão podemos, a partir de diferentes

referências teóricos, perceber as relações de poder dentro da instituição, os

modos de subjetivação na escrita autobiográfica, comparar o tratamento dele

com de outra pessoa que não era de sua classe, de sua cor ou do seu gênero,

analisar os (diferentes) tipos de tratamento de instituições privadas e públicas,

refletir sobre as mudanças e/ou permanências depois da luta antimanicomial,

enfim, são muitas as possibilidades que as narrativas da loucura permitem o

historiador pesquisar.

Considerações finais

As narrativas da loucura são fontes estratégicas para o desenvolvimento

da história da loucura e da psiquiatria. Através delas podemos acessar o

cotidiano das pessoas que estiveram internadas, seus pensamentos, suas

expectativas, esperanças. Nosso objetivo é analisá-las historicamente,

percebe-las em um tempo e um espaço, possibilitando estudas o consciente

dos loucos, as relações de poder, os modos de subjetivação.

Frisamos que de nenhuma maneira pretendemos diagnosticar ou

entender o inconsciente das pessoas consideradas loucas, como fizeram e

ainda fazem os psiquiatras e psicólogos, nosso objetivo é analisa-los através

da linguagem, história e cultura, assim como afirmou Roy Porter “os escritos

dos loucos podem ser lidos não apenas como sintomas de doenças ou

síndromes, mas como comunicação coerente em si mesma” (PORTER,1987,

p.8).

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Longe de encerrar qualquer questão, tivemos como objetivo provar,

refletir e analisar as possibilidades e contribuições deste tipo de fonte para o

conhecimento histórico.

Fontes e referencias teóricos

ARFUCH, L. O espaço biográfico. Dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.

ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a Própria Vida. Estudos Históricos, 1998.

FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996.

HIDALGO, L. Literatura da urgência. Lima Barreto no domínio da loucura. São Paulo: Annablume, 2009.

LEÃO, Rodrigo de Souza. O esquizoide. Rio de Janeiro: Recorde, 2011.

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