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NOS LABIRINTOS DAS GALERIAS: UM ESTUDO DE ESPACIALIDADES URBANAS EM GALERIAS DA REGIÃO CENTRAL DE JUIZ DE FORA (MG) Sônia Maria Clareto 1 , UFJF, PROPESQ/UFJF Marina Furtado Terra 2 , UFJF, bolsista PIBIC/CNPq RESUMO : O presente artigo apresenta alguns dos resultados de uma pesquisa que teve como foco investigar a constituição de galerias da região central de Juiz de Fora como uma característica urbana marcante na cidade. Buscou-se, ainda, estudar a compreensão que pessoas que vivem e convivem nessas galerias produzem para as espacialidades que ali se estabelecem. Para empreender tal investigação, lançou-se mão de uma pesquisa de abordagem qualitativa de cunho etnográfico. Os resultados da investigação serão organizados, no presente artigo, em dois eixos principais. O primeiro deles buscou compreender o momento histórico em que surgiu a primeira galeria da cidade e como tal iniciativa se expandiu, compondo essa importante característica urbana de Juiz de Fora. Procurou-se refletir acerca da constituição histórica das galerias, sobretudo na composição urbanística juizforana, com especial atenção para sua história até as décadas de 20 e 30 do século XX, aproximadamente. Foram abordadas relações sócio-cuturais que se estabelecem neste chamado “shopping a céu aberto”. Entrevistas em profundidade, coleta de depoimentos e análise documental foram estratégias usadas na investigação. O segundo eixo foi dedicado à apresentação daquilo que foi definido como “cartografias simbólicas”, ou seja, a imagem produzida para esses espaços por participantes da investigação. Serão discutidas algumas das cartografias simbólicas produzidas no âmbito da investigação. Palavras-chave : Espaço. Galerias. Cartografias simbólicas. 1 Professora Adjunto na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Professora-pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Educação da UFJF. Coordenadora do Núcleo de Educação em Ciência, Matemática e Tecnologia (NEC). Coordenadora da pesquisa. 2 Graduada em Geografia, foi bolsista PIBIC/CNPq, no biênio 2004/2006. Atualmente é professora substituta no Colégio de Aplicação João XXIII/UFJF.

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NOS LABIRINTOS DAS GALERIAS:

UM ESTUDO DE ESPACIALIDADES URBANAS EM GALERIAS

DA REGIÃO CENTRAL DE JUIZ DE FORA (MG)

Sônia Maria Clareto1, UFJF, PROPESQ/UFJF

Marina Furtado Terra2, UFJF, bolsista PIBIC/CNPq

RESUMO:O presente artigo apresenta alguns dos resultados de uma pesquisa que teve como foco investigar aconstituição de galerias da região central de Juiz de Fora como uma característica urbana marcantena cidade. Buscou-se, ainda, estudar a compreensão que pessoas que vivem e convivem nessasgalerias produzem para as espacialidades que ali se estabelecem. Para empreender tal investigação,lançou-se mão de uma pesquisa de abordagem qualitativa de cunho etnográfico. Os resultados dainvestigação serão organizados, no presente artigo, em dois eixos principais. O primeiro delesbuscou compreender o momento histórico em que surgiu a primeira galeria da cidade e como taliniciativa se expandiu, compondo essa importante característica urbana de Juiz de Fora. Procurou-serefletir acerca da constituição histórica das galerias, sobretudo na composição urbanísticajuizforana, com especial atenção para sua história até as décadas de 20 e 30 do século XX,aproximadamente. Foram abordadas relações sócio-cuturais que se estabelecem neste chamado“shopping a céu aberto”. Entrevistas em profundidade, coleta de depoimentos e análise documentalforam estratégias usadas na investigação. O segundo eixo foi dedicado à apresentação daquilo quefoi definido como “cartografias simbólicas”, ou seja, a imagem produzida para esses espaços porparticipantes da investigação. Serão discutidas algumas das cartografias simbólicas produzidas noâmbito da investigação.

Palavras-chave: Espaço. Galerias. Cartografias simbólicas.

1Professora Adjunto na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Professora-pesquisadora doPrograma de Pós-graduação em Educação da UFJF. Coordenadora do Núcleo de Educação em Ciência, Matemática eTecnologia (NEC). Coordenadora da pesquisa.2Graduada em Geografia, foi bolsista PIBIC/CNPq, no biênio 2004/2006. Atualmente é professora substituta no Colégiode Aplicação João XXIII/UFJF.

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NOS LABIRINTOS DAS GALERIAS:

UM ESTUDO DE ESPACIALIDADES URBANAS EM GALERIAS

DA REGIÃO CENTRAL DE JUIZ DE FORA (MG)3

Eu achava que era um labirinto aquele centro. É, era noção de perdido mesmo, quetava num labirinto (Rafael, participante da investigação)

A sensação de “estar perdido” parece acompanhar muitos de nós quando circulamos pelas

primeiras vezes pela região central da cidade mineira de Juiz de Fora. Essa sensação, vivenciada

especialmente por aqueles que não são “filhos das terras juizforanas”, transformou-se em potencial

criador e nos impulsionou a investigar. Sensação semelhante aparece em diversas entrevistas com

participantes da pesquisa. Ao iniciarmos a investigação, começamos a conviver mais fortemente

com tal sensação... Outros desafios nos esperavam dentro do labirinto: os desafios impostos, pelo

labirinto que é a própria investigação e o investigar, eram muitos e intensos... Fomos enfrentando os

enigmas de compreensões e noções outras de conhecimento, ciência, verdade, pesquisa... Ficamos

perdidos nesses labirintos. Depois nos achamos. Novamente nos perdemos... nos achamos... nos

perdemos... Muitas possibilidades, muitos caminhos, alguns medos e inseguranças que,

transformados em potencialidades, nos lançaram, nos impulsionaram...

Fomos, assim, atraídos para o interior do labirinto. Desse modo, enveredamos por uma

trajetória sem certezas, mas com o desejo de retornar, pelas mãos de Ariadne, renovados dessa

viagem mágica que é a pesquisa. Entretanto nela, na vigem que é a pesquisa, não havia fio de

Ariadne... Era só labirinto. Enfim, depois de alguns embates, nos entregamos ao labirinto: “somos

seu, deixe que possamos nos perder em seus mistérios e segredos, sejamos somente vivente de suas

entranhas, de seus caminhos labirínticos, de seus mistérios”. Essa foi nossa entrega aos labirínticos

saberes, às labirínticas investigações: retornarmos – retornamos? – com uma compreensão de um

espaço rico e complexo, como o proporcionado pelas galerias de Juiz de Fora e, especialmente,

pelos estudos que, a partir delas, tivemos oportunidade de empreender junto a transeuntes,

moradores, passantes, observadores...

3Artigo baseado na pesquisa Galerias, passagens, entre-espaços: um estudo de espacialidades em regiões centraisda cidade de Juiz de Fora, financiada pelo Programa de Apoio a Recém-Doutor (2005/2006) da Pró-reitoria dePesquisa (PROPESQ) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e contemplada com duas bolsas de iniciaçãocientífica, uma delas do PIBIC/CNPq (Marina Furtado Terra, aluna do curso de Geografia) e a outra doBIC/PROPESQ/UFJF (João Paulo de Souza Vieira, aluno do curso de História).

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Nessas passagens labirínticas lançamos um olhar diferenciado para o espaço urbano4 da

cidade de Juiz de Fora, em especial para as galerias localizadas em sua região central. Fomos

motivados a pesquisar esse espaço a partir da observação de uma peculiaridade desta cidade

mineira: o grande número de galerias concentradas na sua região central (atualmente,

aproximadamente 20 galerias). Estamos chamando de galerias as passagens que funcionam como

ligação entre duas ruas, em sua maioria paralelas e, a maior parte delas, possuindo lojas em seu

interior. A área de estudo foi delimitada entre as avenidas Rio Branco e Getúlio Vargas e entre as

ruas Batista de Oliveira, Mister Moore e Santa Rita, onde se concentra o maior número de galerias

desta região central (FIGURA 1).

Procuramos, assim, tecer fios que pudessem nos levar – e com os quais pudéssemos nos

peder – a uma compreensão do contexto cultural que a cidade e, especialmente a Rua Halfeld,

estavam inseridas nas primeiras décadas do século XX, quando surge a primeira galeria da cidade.

Concordamos com Corrêa, quando ressalta que “a cultura não deve ser vista como independente das

condições matérias de existência (...) contudo, não pode ser concebida como mero reflexo dessas

condições” (2003, p.169). Para isso, no entanto, foi preciso voltar nosso olhar para a própria

constituição da cidade de Juiz de Fora, pois consideramos que “(...) o espaço urbano é um reflexo

tanto das ações que se realizam no presente como também daquelas que se realizaram no passado e

que deixaram suas marcas impressas nas formas espaciais do presente” (CORRÊA, 2000, p. 8).

Buscamos, prioritariamente, compreender o significado que pessoas que vivem nas e

convivem com as galerias atribuem a esta característica urbana, a nosso ver, marcante da cidade,

através da representação desse espaço em um desenho ou croqui que denominamos cartografia

simbólica, uma vez que “(...) devemos levar em consideração não apenas a cidade como uma coisa

em si, mas a cidade do modo como a percebem seus habitantes” (LYNCH, 1999, p.3), pois

Buscamos, prioritariamente, compreender o significado que pessoas que vivem nas e

convivem com as galerias atribuem a esta característica urbana, a nosso ver, marcante da cidade,

através da representação desse espaço em um desenho ou croqui que denominamos cartografia

simbólica, uma vez que “(...) devemos levar em consideração não apenas a cidade como uma coisa

em si, mas a cidade do modo como a percebem seus habitantes” (LYNCH, 1999, p.3), pois

Os elementos móveis de uma cidade e, em especial, as pessoas e suas atividades, são tãoimportantes quanto as partes físicas estacionárias. Não somos meros observadores desseespetáculo, mas parte dele (...). A cidade não é apenas um objeto percebido (...) (p.2).

4 Espaço urbano, neste trabalho assumirá uma dimensão simbólica, uma vez que de acordo com Corrêa “Fragmentada,articulada, reflexo e condicionante social, a cidade é também o lugar onde as diversas classes sociais vivem e sereproduzem. Isto envolve o quotidiano e o futuro próximo, bem como as crenças, valores e mitos criados no bojo dasociedade de classes e, em parte, projetadas nas formas espaciais: monumentos, lugares sagrados, uma rua especial etc”(2000, p.9).

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FIGURA 1

Em contrapartida à compreensão dessas galerias a partir de um olhar economicista,

constituindo o centro da cidade como um “shopping a céu aberto”, ou, a partir de um viés

utilitarista, como encurtamento de espaço, na travessia entre ruas, lançamos um olhar que, sem

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desprezar tais visões, buscou ampliar estas perspectivas, abarcando as galerias em sua dimensão

cultural, já que

O urbano pode ser analisado segundo diversas dimensões que se interpenetram. A dimensãocultural é uma delas e por seu intermédio amplia-se a compreensão da sociedade em termoseconômicos, sociais e políticos, assim como se tornam inteligíveis as espacialidades etemporalidades expressas na cidade, na rede urbana e no processo de urbanização(CORRÊA, 2003, p.167).

Os referenciais de localização, orientação e deslocamento são cada vez mais complexos,

devido à própria complexidade da vida urbana nos nossos dias. Caos e ordenação urbanos,

representações espaciais, mapas de orientação, imagens que produzimos para nosso viver cotidiano

nas cidades: estes são temas recorrentes em estudos urbanísticos. Assim, viver, hoje, nas cidades

modernas pode significar ter que, constantemente, deslocar-se entre espaços públicos e privados,

espaços de comércio e de lazer, espaços de passagem, que são entre-lugares, verdadeiros espaços

híbridos. Um exemplo desses entre-espaços, com todas as suas características de hibridação, pôde

ser encontrado nas galerias que compõem a estrutura urbana juizforana em suas regiões centrais.

Ao buscar compreender esse espaço urbano dotado de tal particularidade, uma questão se

colocou na base das nossas reflexões: que sensações, sentimentos, racionalidades, ou seja, que

práticas e saberes sócio-espaciais configuraram-se para que a região central da cidade se

constituísse nesta organização urbana que tem como foco as galerias?

A partir desta investigação, foi possível lançar olhares para a cidade e a produção de seu

espaço urbano. Nesta perspectiva pudemos melhor compreender as relações cotidianas que ali se

produzem e são produzidas. Segundo Certeau (2001 [original 1980]), as práticas cotidianas e a

produção da noção de espaço se dão mutuamente. É esta produção mútua que aqui interessou

investigar.

A pesquisa desenvolvida é de abordagem qualitativa. Trata-se de uma pesquisa

interpretativa, de cunho etnográfico (GEERTZ, 2000, 1989; CLIFFORD, 1998). A intenção

primeira da investigação de campo é o estudo das teias das relações sócio-culturais nas quais se dá a

experiência da vida (MONTEIRO, 1998). Nossos instrumentos de investigação partiram,

principalmente, de entrevistas em profundidade com pessoas envolvidas direta ou indiretamente na

construção das galerias, tentando constituir uma história oral da cidade, bem como a produção das

cartografias simbólicas desenvolvidas com transeuntes da região central.

No presente artigo, discutiremos, num primeiro momento, a constituição do centro da cidade

com suas galerias. Foi dado destaque ao surgimento da primeira galeria, a Pio X, na década de vinte

do século XX, buscando focar o contexto sócio-cultural em que as galerias surgiram. Procuramos

olhar para essa constituição não somente com foco da bibliografia existente, mas, sobretudo, a partir

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de uma história oral, constituída a partir de depoimentos de pessoas que participaram, direta ou

indiretamente, desse processo – comerciantes antigos, filhos de construtores ou empreendedores etc.

Procuramos, ainda, compreender o que estava na base do imaginário local para que esta

peculiaridade se tornasse possível.

Num segundo momento, apresentaremos as cartografias simbólicas, um dos principais focos

desse trabalho, no qual faremos uma discussão acerca da produção da representação do espaço

urbano e da própria espacialidade e vivência espacial. Por fim, iniciaremos uma discussão acerca

das educabilidades dessas espacialidades estudadas.

OS PRIMEIROS FIOS: Encantos e Encantamentos

A rua Halfeld desce como um rio, do morro do Imperador, e vai desaguar na Praçada Estação. Entre suas margens direita e o Alto dos Passos estão a Câmara; oFórum; a Academia de Comércio(...); a Matriz, (...); a Santa Casa de Misericórdia,(...); a Cadeia, (...); toda uma estrutura social bem pensante (...). Essesestabelecimentos tinham sido criados, com a cidade, por cidadãos prestantes quepraticavam ostensivamente a virtude (...). Já a margem esquerda da rua Halfeldmarcava o começo de uma cidade mais alegre, mais livre, mais despreocupada emais revolucionária. O Juiz de Fora projetado no trecho da Rua Direita era, porforça do que continha, naturalmente oposto e inconscientemente rebelde ao Altodos Passos. Nele estavam o Parque Halfeld e o Largo do Riachuelo, onde aescuridão noturna e a solidão favoreciam a pouca vergonha. Esta era maisdesoladora ainda nas vizinhanças da linha férrea (...) (NAVA, 1983, p.20-1).

O primeiro fio no qual nos apoiamos para iniciar nosso percurso investigativo foi o da

história. Buscamos lançar um olhar histórico para a constituição das galerias de Juiz de Fora sem

nos atermos a uma reconstituição histórica pormenorizada dos fatores econômicos, sociais e

políticos da época. Procuramos compreender o contexto cultural que a cidade e, principalmente, a

rua Halfeld, estavam inseridas nas primeiras décadas do século XX, já que é nesse período, e nessa

rua, que surge a primeira galeria da cidade: a Pio X. Para isso, entretanto, foi preciso voltar nosso

olhar para a própria constituição da cidade de Juiz de Fora, pois consideramos que “(...) o espaço

urbano é um reflexo tanto de ações que se realizam no presente como também daquelas que se

realizaram no passado e que deixaram suas marcas impressas nas formas espaciais do presente”

(CORRÊA, 2000, p.8).

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Na constituição da urbanidade juizforana, alguns movimentos históricos se destacam e

nos dão uma materialidade de tal constituição. Procurando dar uma certa espacialização para tais

eventos históricos, construímos um esboço (FIGURA 2), elaborado ao longo da investigação, que

pretende dar uma melhor visualização da constituição da região central da cidade. Mesclamos

informações antigas – o Caminho Novo, a estrada do Paraibuna e a estrada União & Indústria, o

antigo traçado do rio Paraibuna, a antiga sede da fazenda do Juiz de Fora, o morro da Boiada – com

informações atuais como o traçado de algumas ruas e avenidas originadas dessas antigas estradas –

as avenidas Barão do Rio Branco e Getúlio Vargas, a ruas Halfeld e Santa Rita – e pontos de

referência de localização como a Praça da Estação e o Morro do Imperador. A partir desse mapa,

podemos melhor visualizar o papel de destaque que a Rua Halfeld desempenha já nas primeiras

décadas do século XX, ligando a Avenida Rio Branco à Praça da Estação.

FIGURA 2

Outro evento que gostaríamos de destacar é o inventário posmortum do Tenente Antônio

Dias Tostes, em 1850, que estabeleceu a divisão da atual área central de Juiz de Fora em 12 faixas

de terra que começavam no morro do Imperador e se estendiam até o rio Paraibuna, que foram

distribuídas entre seus herdeiros. As faixas eram paralelas entre si e perpendiculares à Rua Direita

(atual Avenida Rio Branco). Conforme o povoado ia crescendo, vários desses proprietários foram

fazendo doações de suas terras, para a construção das primeiras ruas que acabaram seguindo um

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traçado que acabou se constituindo, do ponto de vista de traçados urbanos, em um fator importante

para o nascimento das galerias: quarteirões muito logo e estreitos.

No presente artigo, apesar da relevância dos dados históricos para o tema, não iremos

explorar, com mais detalhes, essa abordagem: restringir-nos-emos aos fios da história oral

constituída a partir de nossos depoentes5, focando a criação das galerias, com especial destaque para

a primeira delas, a Galeria Pio X, a galeria Constança Valadares e a Galeria Borges de Matos.

A primeira galeria da cidade foi construída entre 1923 e 1932, pelo Sr. Arthur Vieira6 num

centro urbano já consolidado, com destaque para as avenidas Rio Branco e Getúlio Vargas e as ruas

Halfeld e Marechal Deodoro. Em 1923, Artur Vieira anunciou a construção da Galeria Pio X, que

ligaria as ruas Halfeld e Marechal Deodoro, duas das ruas mais importantes da cidade, nas quais se

concentrava boa parte das casas comerciais da cidade. Segundo conta o próprio Arthur Vieira,

Numa das viagens ao Rio, fiquei deslumbrado com um projeto, cujas obras estavam noinício, uma galeria ligando duas ruas, no centro do Rio, as atuais Rio Branco e GonçalvesDias, não apenas para servir aos pedestres como travessia. Ao entrar nela, a pessoa seráenvolvida por vitrines atrativas, de dezenas de lojas, lado a lado, cada qual oferecendo suamercadoria. Fiquei um tempo com a galeria na cabeça imaginando uma ligando a Halfeldcom a Marechal, a meio caminho entre Rio Branco e a Batista de Oliveira (YAZBECK,2003, p. 59).

A firma encarregada pela obra foi a construtora Mancebo & Bracarini, de Belo Horizonte,

uma vez que, segundo Roberto Vieira7, a construtora Pantaleone Arcuri, a grande construtora local,

uma das mais importantes de Minas Gerais, recusou a proposta de realizar tal construção alegando

sua dificuldade. Roberto Vieira afirma que:

eles [os donos da Pantaleone Arcuri] disseram até que não iriam construir essa galeria dejeito nenhum, que isso nunca ia dar certo, que era uma loucura da cabeça dele [do seuavô, sr. Arthur Vieira]. Ele teve que ir em Belo Horizonte buscar construtores de fora, prapoder conseguir construir a galeria porque em Juiz de Fora ninguém acreditava que issosairia.

Em Yasbeck (2003), vemos que o construtor da primeira galeria teria sido de São João Del

Rey:

5A contextualização histórica aqui apresentada faz parte de um dos eixos orientadores no desenvolvimento da pesquisa“Galerias, passagens, entre-espaços: um estudo de espacialidades em regiões centrais de Juiz de Fora”, e foi apresentadaem forma de comunicação oral e publicada nos Anais do IV Fórum de Investigação Qualitativa - III Painel BrasileiroAlemão de Pesquisa em 2005 (CLARETO ET ALII, 2005).6 Arthur Vieira nasceu na cidade do Rio de Janeiro. Órfão de pai, mudou-se para Juiz de Fora aos dezenove anos, nacompanhia de sua mãe. Havia aprendido a profissão de ourives e joalheiro. Abriu a segunda joalheria da cidade e emum ano ficou rico (YAZBECK, 2003).7 Roberto Vieira é neto do Sr. Arthur Vieira e concedeu um depoimento à equipe que realiza a investigação que deuorigem a esta monografia, no dia 20/10/2004. O depoimento foi gravado e transcrito e consta da base de dados dapesquisa.

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Como acredito muito nas minhas idéias, não desisti, e fui buscar em São João Del-Rey umengenheiro italiano, chamado Bacarini, que morava lá. Levei-o ao Rio para conhecer odesenho da galeria, e ele aceitou o desafio. Um mês depois, o projeto estava concluído.Houve alterações e adaptações, mas o básico da idéia foi respeitado (p. 60).

A construção da galeria Pio X foi efetuada em duas etapas: a primeira corresponde à parte da

galeria que, saindo da rua Halfeld, vai até a metade do quarteirão, em direção à rua Marechal

Deodoro, inaugurada por volta de 1927. Para investir na realização do seu sonho, o sr. Arthur

comprou um terreno na rua Halfeld, onde instalou sua relojoaria. A segunda etapa consistiu em

abrir a outra parte da galeria, partindo da rua Marechal, em direção à Halfeld. Esta etapa, no

entanto, dependeu da negociação com o dono da propriedade vizinha, situada na rua Marechal. Esta

história é contada por Arthur Vieira assim: “a investida seguinte foi o dono do terreno vizinho, que

fazia divisa com o meu: Onofre Mendes, investidor em imóveis e terrenos, um homem com muitas

propriedades, que aceitou negociar a sociedade na galeria” (YAZBECK, 2003, p. 61). A galeria foi

concluída, dando vida ao sonho do sr. Vieira, cerca de oito anos após à conclusão da primeira etapa,

quando Arthur Vieira já era o único proprietário da galeria Pio X, que recebeu este nome em

homenagem ao Papa e por sugestão da mãe de sr. Vieira “que tinha pelo papa uma admiração

especial” (p. 62).

Com o anúncio da construção da galeria “muitos chegaram a duvidar de sanidade mental de

Artur Vieira e acharam que a obra iria colocar em risco sua fortuna” (Rádio FM Itatiaia e JF

Service, 2000). A construção era considerada uma ousadia porque Minas Gerais não possuía galeria

e o Rio de Janeiro, contava apenas com uma, a Galeria Cruzeiro, na qual, há indícios, o sr. Vieira

teria se inspirado.

A Galeria Pio X, até hoje, mantém traços arquitetônicos da primeira metade do século XX,

embora tenha passado por várias reformas. Recentemente, ganhou uma cobertura transparente, com

desenhos do artista juizforano Dnar Rocha.

Com a história da primeira galeria marcada por pioneirismo e ousadia, como as outras

galerias foram se sucedendo e incorporando-se à Juiz de Fora, transformando o seu centro

comercial em um verdadeiro “shopping à céu aberto”? Não pretendemos levantar as causas a partir

das quais isso ocorreu. Nossa intenção é tentar compreender, mesmo que de maneira ainda

incipiente, as falas de alguns personagens envolvidos nesta história. Para isso, tomamos depoimento

de dois moradores da cidade que se envolveram diretamente na história da construção ou ocupação

de galerias.

De acordo com o sr. Roberto Vieira, a galeria foi um verdadeiro sucesso. Ele afirma que

“sempre teve inquilino, nunca faltou inquilino pra nenhuma loja aqui nessa galeria. Desde, vamos

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dizer assim, os primeiros dois ou três anos de construída nunca faltou inquilino, sempre tem fila de

gente pra entrar”.

Entretanto, o sr. Ferreirinha8, ao contrário, afirma que

Não tinha movimento na Pio X e o pessoal que montou loja ali passou aperto no iníciomesmo. Outra coisa que dificultava é que antigamente não tinha esse sistema deiluminação, igual de hoje: era tudo escuro. Aí o pessoal tinha medo de passar. As mulheresnão passavam com medo dos pais não deixarem porque podiam ser estupradas,ameaçadas, violentadas... Tinha esse medo e os próprios pais, a família, passava isso prosfilhos. Gerou um mal estar e os próprios construtores tinham medo de construir. Aí, depoisque parece que deu certo a Pio X, depois de 10 a 15 anos, começou a ter um volume bom;os lojistas ficaram satisfeitos. Então, os construtores de Juiz de Fora resolveram valorizaro lançamento porque fazer uma galeria sem lojas, só com apartamentos em cima nãojustificava pra construção, não valia a pena. Então eles pegaram e fizeram na marra e deucerto. Viram que Juiz de Fora – o engenheiro, o prefeito – o perfil dela era construção depassagens e as passagens seriam as galerias....

O Dr. Moacir aponta um outro viés que parece se somar a este apontado pelo sr. Ferreirinha.

Ele afirma: “De forma que se você for justificar as galerias de Juiz de Fora parece que elas

surgiram para aproveitamento de terreno nesses quintais que eram verdadeiras chácaras...”. Ou

seja, devido ao fato dos quarteirões serem muito extensos, a viabilização de uma passagem que

encurtasse o caminho parece ser uma idéia bastante interessante. Este parece ser o sentido maior,

visto por Dr. Moacir, das galerias.

Para o sr. Ferreirinha, a questão da geografia local, somada a uma forte influência francesa,

teria sido decisiva para o sucesso das galerias como traço urbano da cidade, para além de suas

condições de comércio. Ele afirma:

a galeria puxou muito os projetos franceses. Para você ter uma idéia, ele [referindo-se aosr. Arthur Vieira, ao empreender a primeira galeria da cidade] copiou dos franceses. NaFrança tem muita galeria e esse projeto é todo da França e lá funcionava e tinha umcomércio intenso. [Por outro lado] Juiz de Fora é uma montanha, tipo um prato que vemdas beiradas pro centro. Encaixou direitinho na arquitetura pra absorver várias galeriase deu certo porque são ruas paralelas que vão se comunicando através das galerias. (...)Então se encaixou direitinho. As condições também ajudaram... Eu acho que Juiz de Foratem um Shopping aberto por causa das galerias,. Eu acho que esse mercado, essecomércio central nunca vai perder pra outros Shoppings e outros centros comerciais queforam lançados aqui em Juiz de Fora. O centro comercial de Juiz de Fora não vai deixarde ser ativo, dinâmico por causa desse projeto arquitetônico que tem Juiz de Fora. Euacho que o centro de Juiz de Fora vai ser sempre valorizado como centro ativo, dinâmicoque ele é e a própria Juiz de Fora tem esse comércio ativo, dinâmico.

O sr. Moacir parece partilhar com o argumento das condições geográficas e arquitetônicas

propiciadoras de um espaço que se constituiu como uma alavanca para o desenvolvimento das

galerias. Para ele,

8Sr. Ferreirinha, como é conhecido, concedeu um depoimento à equipe que desenvolve a investigação que dá origem aesta monografia, no dia 10/05/2005. O depoimento foi gravado e transcrito e consta da base de dados da pesquisa.

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as galerias que existem no centro, ligando as vias, [que] vão no sentido perpendicular aorio Paraibuna, [as ruas] Sampaio, Espírito Santo, Braz Bernardino, Santa Rita, São João,Halfeld, Mister Moore... É um centro comercial muito grande e abriu essas galerias praaproveitamento de terreno.

De toda forma, há sentimentos que parecem acompanhar a história das galerias: a paixão, o

desejo, a admiração. Assim, o sr. Ferreirinha, filho do dono da primeira loja da galeria Constança

Valadares, mostra uma paixão ao falar da galeria: mais que um local de trabalho, a galeria, a loja e

as histórias que elas envolvem, parecem ser motivo de orgulho que o depoente aponta em relação ao

seu pai e àquilo que ele fez pela galeria. Segundo ele, a galeria Constança Valadares foi construída

em 1959. Seu pai, movido pela vontade de ter uma loja própria, adquiriu a primeira loja daquela

galeria, um estabelecimento de revelação de fotografias. Seu pai não tinha condições financeiras de

comprar uma loja na rua Halfeld, pois o valor era muito alto. Neste tempo, as galerias eram mal

vistas, pois eram pouco iluminadas e desertas. O pai de Ferreirinha, então, começou a incentivar a

passagem por esta galeria no momento em que, com uma loja na rua Halfeld e outra na galeria,

fazia com que as pessoas que mandassem revelar ou tirassem fotos na loja da Halfeld, que era a

mais movimentada, buscassem a mercadoria na loja da galeria. Com isso ele começou a incentivar a

passagem nesta galeria e, segundo seu filho, foi ele que deu vida a esta, que só começou a

apresentar uma passagem expressiva de pedestres em 1963.

Segundo conta sr. Ferreirinha, a Galeria Constança Valadares teria sido construída onde

antes havia o Cine Glória, que foi derrubado e, em seu lugar, foi erguida a Galeria. Na mesma

época, começa a ser erguida, também, a Galeria Belfort Arantes. Segundo ele, grande parte das

galerias do centro da cidade teria sido construída entre os anos de 1959 e 1963, aproximadamente.

O mesmo sentimento de engrandecimento das galerias e dos feitos familiares parece rondar

a Galeria João Borges de Mattos. Sr. Moacir conta assim esta história:

Meu pai era dono de uma propriedade na rua Santa Rita e dono de também uma outracasa na rua São João, mais ou menos na mesma posição de posse de um trecho dessachácara que ligava as duas casas pôde-se fazer a galeria João Borges de Mattos. Paraisso meu pai teve que providenciar um monte de coisa, pois era realmente um homemmuito empreendedor. Venceu muitas dificuldades e ainda o fato de que a dona que queriavender [o terreno] pro meu pai alegava “e como que eu vou ficar com a parte depois dessagaleria?” Dona Constança [Valadares]9 impôs a condição de que os outros proprietáriossituados abaixo da galeria comprassem também as suas posses. E foi assim queaconteceu: meu pai foi procurar a associação dos empregados do comércio que interessoupor comprar a parte dela [da dona Constança Valadares]. Foi procurar, depois, OrminoMaia que morava na rua Santa Rita, que também se interessou por sua parte. Todos queestavam depois do meu pai acharam possível e viável a compra. Então, aí está a históriade como se abre uma galeria pra dar acesso. Veja só: esse quarteirão todo enorme nãoteria uma possibilidade de comunicação a não ser pelas vias exteriores. Agora o quanto

9 A dona Constança Valadares era proprietária de uma residência na Avenida Rio Branco que ia tinha seu terreno até aRua Batista de Oliveira, tomando, assim a extensão de todo o quarteirão.

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de facilidade que não criou essa galeria? (...) Meu pai foi a Rio Novo10 para comprar acasa da rua São João e acho que ele não discutiu muito o preço porque acho que era deinteresse dele abrir a galeria era plano dele. Mas, infelizmente, faleceu. Nós [ele e seusquatro irmãos] achamos que era uma dívida moral de honra à memória dele abrir agaleria e por isso demos o nome dele depois...

Essa parece ter sido uma história de um sonho para cuja realização não se medem esforços...

Um sonho de um homem de sua época que parece nos refletir a própria época: seus valores, seus

sentidos, suas trilhas, seus caminhos...

O LABIRINTO E A BUSCA DO FIO: cartografias simbólicas e a cidade transeunte

Caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à procura deum próprio.Michel de Certeau

Trabalharemos a partir da elaboração da imagem produzida para a cidade (LYNCH, 1999)

através de cartografias simbólicas elaboradas por pessoas que freqüentam ou simplesmente

transitam por esses espaços. Em especial, buscamos compreender a organização social da cidade de

Juiz de Fora, no espaço, a partir da imagem produzida para ela pelos participantes da investigação.

Os sujeitos de investigação são transeuntes em geral, moradores das galerias, pessoas que nelas

trabalham formal ou informalmente, que tomam esses espaços ocasionalmente como morada,

consumidores dos “shoppings à céu aberto”, apreciadores de vitrines etc.

Nesta perspectiva, buscamos desvendar “as teias de significados tecidas pelos seus

membros” (CORRÊA, 2003, p.170), os transeuntes da região central da cidade de Juiz de Fora, por

meio da noção de cartografia simbólica que se distingue da cartografia física, e como destacado por

Armando Silva

a primeira [cartografia física], produto do trabalho de técnicos, respeita os limites político-administrativo de unidades territoriais e pretende ser um simulacro visual do objetorepresentado, é caracterizada pela linha contínua. A segunda [cartografia simbólica] é umaexpressão de concepções sociais e simbólicas de grupos sociais e/ou de indivíduos arespeito de um território, não admitindo, portanto, cortes precisos, é caracterizada pela linhainterrompida: graficamente tem a forma de croqui (apud NIEMEYER, 1998, p.12).

Esta noção de representação está na direção daquela expressa por Corrêa para os mapas de

significados, pois possibilita “um outro conhecimento das múltiplas e simbólicas espaço-

temporalidades da ação humana” (2003, p.174). Como destacado, nosso elemento de estudo são os

10 Cidade da região, próxima à Juiz de Fora.

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caminhantes da cidade, pessoas que freqüentam o seu centro comercial, como destacado por

Certeau:

Mais "embaixo" (down), a partir dos limiares onde cessa a visibilidade, vivem ospraticantes ordinários da cidade. Forma elementar dessa experiência, eles são caminhantes,pedestres, Wandersmanner, cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um "texto" urbanoque escrevem sem poder lê-lo. Esses praticantes jogam com espaços que não se vêem; têmdele um conhecimento tão cego como no corpo a corpo amoroso. Os caminhos que serespondem nesse entrelaçamento, poesias ignoradas de que cada corpo é um elementoassinado por muitos outros, escapam à legibilidade. Tudo se passa como se uma espécie decegueira caracterizasse as práticas organizadoras da cidade habitada. (2001 [original 1980],p.171)

A partir desta perspectiva podemos pensar as representações para a nossa pesquisa.

Analisaremos, portanto, duas das cartografias simbólicas produzidas pela investigação que dá

origem a esta monografia “procurando investigar as maneiras de fazer/saber com as quais essas

imagens são produzidas” (CLARETO, 2003, p.175).

Para a produção dessas imagens da cidade, com foco nas galerias, realizamos entrevistas que

consistiam numa conversa informal que durava cerca de uma hora e meia. A partir do momento que

a pessoa começava a descrever lugares ou situações, o pesquisador pedia então que começasse a

desenhar o que estava explicando. Neste momento foi imprescindível esclarecer que

(...) não se pretende obter algo bem desenhado e tampouco fiel à realidade, visto que tanto omapeamento cognitivo quanto um de seus produtos, os mapas à mão livre, são seletivos eque não existe uma correspondência total entre o meio ambiente espacial e suarepresentação mental (...) (NIEMEYER, 1998, p.13)

Uma das entrevistas com a produção da cartografia simbólica foi realizada com Rafael11, 23

anos, estudante do 6º período do curso de Farmácia da UFJF. Ele é natural de Descoberto12 e veio

pela primeira vez para Juiz de Fora em 1999. Ele contou que a impressão inicial que teve da cidade

foi “eu achava que era um labirinto aquele centro. É, era noção de perdido mesmo, que tava num

labirinto”, pois não conseguia entender a configuração da cidade

(...) pra mim, o primeiro dia no centro já foi marcante. Eu achava muito sinistro, euandando com um colega meu que já conhecia aqui, poxa, de entrar numa galeria e sair naoutra, anda um pouco na rua e daqui a pouco tem outra galeria que vai pra uma outra rua,de repente volta por outras galerias diferente. E também uma outra coisa que eu nãoentendi, tipo porque as ruas eram paralelas, as galerias não, não tinham nenhum sentido,nenhuma orientação, aí isso aí ainda tinha a Getúlio com a Rio Branco que não eramparalelas, e isso pra mim confundia sabe, porque ia entrando em galeria, aí tinha que sairem uma avenida do nada (...) e galerias também muito diferentes uma da outra. Umas com

11 Rafael concedeu uma entrevista à equipe que realiza a investigação que deu origem a esta monografia e confeccionouesta cartografia, no dia 14/07/2006. O depoimento foi gravado e transcrito e consta da base de dados da pesquisa, bemcomo o croqui em formato original A4.12 Cidade localizada próximo a Juiz de Fora, com população em torno de 4765 mil habitantes.

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escadas, outras com escada rolante, uma com várias lojas, umas com restaurantes... genteassentasse num monte de cadeira e aquilo pra mim foi totalmente desorientador, eu nãoconseguia muito bem ter uma orientação de espaço ali dentro.

Rafael não quis fazer um desenho dessa primeira experiência pois, para ele, “(...)não tinha

nenhum ponto que eu me orientava (...) acho que fazer um desenho daquilo seria impossível até no

dia. Eu ia pegar o papel e ficar olhando pra ele um tempão, não tinha nenhum tipo de orientação,

não saberia dizer”.

Pedimos, então, que fizesse um desenho que representasse esse espaço para ele atualmente,

que significasse um pouco como ele via aquele espaço. Ao desenhar a sua imagem para o espaço

descrito (FIGURA 3), Rafael o faz como um observador-flutuante, ou seja, aquele

que tudo vê com o olho abstrato: generalizador e genérico, presente, simultaneamente, emtodos os pontos que se situam, cada um deles, perpendicularmente ao plano que se desejarepresentar. É o observador que observa e representa aquilo que vê como se estivesseflutuando, verticalizando; observando com um olho abstrato, que produz uma “vistasuperior” (CLARETO, 2003, p.153).

Rafael realizou uma representação da região central mais sintética, destacando as avenidas

Rio Branco e Getúlio Vargas que compõem “(...) aquela ilha ali de Getúlio, Rio Branco e

Independência (...) esse centro comercial, esse centro mesmo de Juiz de Fora que é conhecido

basicamente nesse triângulo”. Para ele, essa região é a mais importante quando peço para que

represente o centro da cidade pois é onde ele visualiza uma maior concentração destas. Ele afirma:

(...) eu acho, em questão de galerias mesmo, eu acho que eu mais visualizo em galeria édentro desse triângulo e aqui embaixo (...) É o que eu vejo que é mais assim centro mesmo,e depois essas outras ruas aqui embaixo também que eu rodo bastante, mas em questão degalerias não são muitas. (...) o que eu mais visualizo em galerias é dentro desse triânguloaqui.

Rafael utilizou as cores apenas para diferenciar as galerias que mais freqüenta, sem atribuir

muito significado para a escolha do verde e do vermelho. Ao falar de como vê as galerias

atualmente, ele destaca o quanto se sente à vontade nesse espaço:

Hoje eu acho a coisa mais natural, natural. Sei lá, acho natural mesmo, não tenho nenhumempecilho em andar em galerias. Hoje, adoro elas ... Talvez eu tô lá embaixo no meio deuma rua, no meio e vou ter que ir numa outra loja no meio, poxa, não vou ter que daraquela volta toda pra ... aquela galeria. E também o espaço que ganhou ali no centro, euacho sensacional, o número de lojas ampliaram.

Ele utiliza-se da arte do observador flutuante para produzir esta imagem, não lança mão do

caminhar.

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FIGURA 3

A segunda cartografia simbólica que será aqui discutida foi elaborada pela pedagoga

Patrícia13, de 35 anos. Ela é paulista e morava em Juiz de Fora, à época, há quatro meses em uma

das galerias da rua Halfeld. Ao falar sobre as galerias ela diz que, assim como para Rafael, “(...) as

galerias no começo eu ficava meio perdida, sai da onde, vai pra onde, onde que eu tô? Eu ficava

procurando referência”.

Quando abordada sobe o tipo de referência que usava para guardar as galerias, ela ressaltou

o caráter utilitarista que dá a essas “eu uso a galeria muito pelo lado prático de cortar caminho

mesmo, uma coisa prática assim, de cortar caminho”. Entretanto, continua,

agora tem uma que eu descobri por último agora, foi até essa semana, até acho que voulembrar o nome, Pio X, Pio XI, eu não lembro, que a minha prima falou ... eu vi que tinha

13 Patrícia concedeu uma entrevista à equipe que realiza a investigação que deu origem a esta monografia econfeccionou esta cartografia, no dia 21/07/2006. O depoimento foi gravado e transcrito e consta da base de dados dapesquisa. A imagem aqui apresentada é composta de 3 folhas A4, retificadas para darem a noção do que ela quisrepresentar.

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um jardim assim, umas coisas de planta, toda hora eu falava pra mim, “eu preciso ir lá, eupreciso ir lá” e essa semana eu fui, com escada rolante tal, depois sobe escada e tal prachegar lá em cima ... aí descobri que tem uma livraria lá, muito boa... tem café, escola deyoga. E eu gostei dela, então eu tenho vontade de voltar, me deu vontade de ir prá lá, né?,Eu gostei daquela livraria, daquele ambiente, ela é bonita (...) eu gosto de coisa bonita, émais assim... é, não sei, acho que a vida com uma beleza fica melhor, né?.

Podemos observar que, mesmo achando que a praticidade está em primeiro lugar no que

concerne ao uso que faz das galerias, ela não percebe o valor que atribui a algumas características

simbólicas deste espaço, quando ressalta o quanto gosta de “coisa bonita”, aprazível. Ao falar sobre

o percurso que faz, diariamente, na hora do almoço, ela ressalta novamente o quanto a dimensão

estética é importante na escolha do percurso que realiza:

eu sempre faço o mesmo caminho praticamente assim, eu vou sempre ali pelo cine-teatro.Aí tem duas “ruinhas”, aí essa aqui [indicando no desenho a Galeria Ali Halfeld] já dá defrente pra outra galeria que eu posso aproveitar e atravessar, só que eu não faço essecaminho porque essa [Galeria Azarias Vilela] é que é a mais bonita, aí eu vou por aqui, daíeu pego a galeria dali e vou a pé atravessando, aí chega na Santa Rita não tem galeria,tem aquele estacionamento que tem uma placa “aqui não é uma galeria”, então eu nãoatravesso, eu vou por baixo pela Batista e, às vezes, eu vou pela Rio Branco pra chegar naBraz.

Patrícia desenha o seu croqui com os olhos do que estaremos chamando de observador-

flutuante-caminhante: o croqui que aqui aparece foi produzido por duas artes ou modos de fazer: a

arte do observador flutuante-caminhante. Esta mescla duas artes: a do observador flutuante com a

do observador caminhante. Como dito anteriormente, o primeiro observa e representa aquilo que vê

como se estivesse flutuando, verticalizando; observando com um olho abstrato, que produz uma

“vista superior”. Este último, por sua vez, observa com o olho encarnado, observa e representa o

que vê enquanto caminha, horizontalizando; observando com um olho particular, encarnado em um

sujeito, em suas práticas cotidianas (CLARETO, 2003).

Patrícia mescla as duas artes ao traçar ruas e galerias a partir de uma vista “de cima” e, ao

mesmo tempo, desenhar em uma visão “rebatida” pontos que utiliza como referência como o Cine

Theatro Central, árvores, portão de seu edifício, elevador etc. Este modo de produzir imagens para a

cidade revela um caminhante atento, observador, que se lança na caminhada, que se lança às

relações sócio-espaciais, vivenciando-as. Esta representação é realizada com uma escala vivencial,

que não está preocupada com medidas quantitativas, “não tem precisão no meu desenho, você já

percebeu!”. Adapta o desenho ao que pretende representar: “ai, ta ficando muito grande isso daqui,

vamos corta aqui”.

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FIGURA 4

Ao empregar as cores14, Patrícia insere mais elementos simbólicos à sua representação. Ela

utilizou as cores após ter feito o desenho, colorindo de acordo com o queria expressar para os

lugares ali representados. O vermelho representa a afetividade que estabelece com certos espaços,

como o Cine Thetro Central, que, segundo afirma:

14Foram utilizadas as cores: vermelho, verde, azul, laranja, marrom e preto.

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ele é meio o coração da cidade assim pra mim, então eu faria de vermelho, como sanguemesmo, porque eu acho que a vida cultural tem a ver, porque eu acho que a alma dacidade tem muito a ver com a vida cultural, e o Cine Theatro acho que representa isso, né?Não são só as apresentações, a arquitetura do prédio, aquela figura, né?...

O verde adquire um caráter de “saudável” para a cidade: “um verde lindo, né?, que mostra

que ela [a árvore] tá bem saudável, o verde”. O laranja, por sua vez, representa o sol: “eu vejo a

Rio Branco aqui uma rua muito ensolarada, muito quente, com muito sol na Rio Branco, porque eu

não sei, a Rio Brando ela é grande assim e acho que os prédios não impedem que o sol chegue. Na

Halfeld eu acho que tem menos sol”. Ao pintar o lugar onde mora, ela destaca:

É assim: aqui é como se fosse uma base pra mim, não é o meu lar porque não é a minhacasa, eu moro com outras pessoas, numa pensão, então eu sei que não é o meu lar ali, écomo se fosse uma base mesmo temporária que me possibilitasse muitas coisas... então, euacho que o verde assim pra mim tá muito aquela coisa aberta, então vamos pensar assim aminha casa, essa base, essa coisa aberta como um sinal verde, essa coisa aberta pra vocêfazer as coisas, essa casa que me possibilita fazer muitas coisas... mas vamos colocar umpouquinho também de azul, onde eu tenho meu quarto, onde eu durmo, onde eu tenho asminhas coisas também, então eu colocaria um pouco de azul...

O preto foi usado para representar o que ela sente com relação à galeria que mora, ela diz

que não gosta dela pois ela tem um aspecto sujo, feio.

Observamos, assim, que as cartografias analisadas expressaram as expectativas, vontades,

vivências espaciais do caminhante da cidade. Portanto a ela reflete as vivências sócio-espaciais dos

transeuntes em seus diferentes espaços vivenciados. Ao lançar esse olhar sobre a cidade, buscamos

apreender uma leitura das espacialidades urbanas de juiz de Fora feita por moradores que ali vivem

e (com)vivem, buscando a cidade transeunte:

Neste conjunto, eu gostaria de detectar práticas estranhas ao espaço "geométrico" ou"geográfico" das construções visuais, panópticas ou teóricas. Essas práticas do espaçoremetem a uma forma específica de "operações" ("maneiras de fazer"), a uma "outraespacialidade" (uma experiência "antropólogica", poética e mítica do espaço) e a umamobilidade opaca e cega da cidade habitada. Uma cidade transumante, ou metafórica,insinua-se assim no texto claro da cidade planejada e visível (CERTEAU, 2001 [original1980], p.172).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de Fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves.6 ed. Petrópolis: Vozes, 2001 [original 1980].

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CLARETO, S. M. Terceiras Margens: um estudo etnomatemático de espacialidades em Laranjal doJari (Amapá). Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática. Tese de Doutorado. Orientador prof.Dr. Ubiratan D’Ambrósio. Rio Claro: UNESP, 2003.

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